O mastro, de que falei, era conduzido do Porto Velho para esta cidade em prancha [ 1 ] adornada de festões e galhardetes, iluminada por arc...

Artigo 6

1/01/2016 0 Comentários

O mastro, de que falei, era conduzido do Porto Velho para esta cidade em prancha[ 1 ] adornada de festões e galhardetes, iluminada por archotes e lanternas simetricamente colocadas, ao som de músicas. Rodinhas da sé, girassóis e pistolas cruzavam seus fogos pelo ar.

Aglomerava-se o povo no cais da Alfândega[ 2 ] ou no largo da Conceição,[ 3 ] onde o depositavam entre alas de coqueiros, sob arcos de murta, para daí, à noite, ser conduzido processionalmente ao largo do Palácio, hoje praça do Dr. João Clímaco. Entre outros, os seguintes versos determinavam o ponto de sua partida:

Amigos, adeus, té à noitinha
Pois espero-vos no largo da Igrejinha.

* * *

Se, durante o mês de outubro, davam-se chuvas torrenciais, que embargavam a festa dos máscaras, alguns gaiatos vestiam-se com roupas ordinárias, enlodavam-se no barro e, munidos de enormes bolos dessa substância, percorriam as ruas, jogando pelotas sobre os que encontravam e manchando as frentes das casas com os salpicos de uma papa mole que preparavam! Que gosto extravagante!

Em todos os dias, pela tarde, e muito especialmente nos domingos, os máscaras a pé infestavam a cidade. Não se falava, nem se cuidava de outra coisa.

Era esse o assunto das conversas nos grupos e nas famílias.

Tratava-se então do levantamento do teatro, como já descrevi, quando falei das festas civis.

Aqui porém dá-se uma representação histórico-mitológica que captava todas as atenções. Era ela a fábula de Perseu e Andrômeda. Esta, princesa de invejável formosura, provocou o ódio de suas companheiras e foi condenada a ser devorada pelas feras. Presa com grossos grilhões, foi amarrada a uma palmeira, nas solidões de um deserto, à borda de um escarpado rochedo. Perseu, destemido guerreiro, ouvindo os seus lamentos, a encontra nessa crítica e arriscada conjuntura, livra- a das prisões, promete salvá-la, se ela quiser desposá-lo, matando afinal o monstro, próximo a devorá-la.

Canta ela tristemente:

Ai de mim, triste coitada,
Princesa tão infeliz,
Da formosura o matiz
Ter-me à morte condenada!

Perseu lhe responde:

Senhora, eu sou Perseu
Que, ao passar por esta estrada,
Ouvi os vossos lamentos,
Arrancados de voss’alma.
Vim seguindo os vossos brados;
Vejo-vos em prantos banhada
Chorando a vossa desgraça.
Se me dás a mão d’esposa,
Já podeis estar segura,
Que essa fera malvada
Rojará hoje a seus pés
Sendo por mim degolada.

Ditos estes versos, sente-se o ramalhar da serpente por entre as folhagens do bosque. Andrômeda cai desfalecida e Perseu ataca a serpente, que o vulgo chamava bicha. Então principiava um dançado ao som da música, com posições difíceis, dando em resultado a morte do tal monstro.

O velho Chagas Coelho, escultor e pintor distinto, e depois de sua morte o Chagas Vidigal, eram os structores[ 4 ] desse horrível animal.

O ventre tinha um imenso bojo, com dois óculos por onde se estendiam as vistas do homem que ali se introduzia — terminando por uma enorme cabeça, deixando-se ver escancaradas fauces, a boca com dentes incisivos, uma farpada língua, e chamejantes olhos. Coberta de uma pele escamosa, terminava pelas coxas e pernas do indivíduo, vestidas da mesma forma, tendo por base grandes patas. Das espáduas nasciam asas, enfeitadas com plumas de diversas aves.

Mirabile dictu, horribile visu![ 5 ]

Ao receber o golpe fatal, jorravam da cerviz, golpeada, fitas encarnadas que fingiam sangue. Eis o desfecho do drama. O teatro apresentava o quadro de um bosque, enegrecido pela sombra que projetavam os arvoredos.

Tudo era muito original.

_____________________________

NOTAS

[ 1 ] Tipo de embarcação.
[ 2 ] Cais existente nas imediações da atual praça Oito.
[ 3 ] Contíguo à igrejinha da Conceição da Praia, parte da atual praça Costa Pereira.
[ 4 ] Em latim: construtores, arquitetos.
[ 5 ] Espantoso de dizer, horrível de ver!

Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto)Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense,  Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

0 comentários :