Artigo 24
Falemos ainda de atos religiosos que esta cidade presenciou nos tempos que saudosos nos deixaram.A influência afável, ao estímulo poderoso de um espírito cultivado devo o fazer este quadro mais completo. Tinha-o reduzido muito, desconfiado da sorte que aguarda minhas pobres composições; como porem animam-me o afago e a benevolência do endossante desta letra, penhor de amizade, lá vai mais alguma curiosidade que me sugere a memória.
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Na quarta-feira de cinzas, primeiro dia da Quaresma, festa da liberdade cristã, salva dos grilhões da culpa como os hebreus da opressão do faraó, depois da bênção e distribuição das cinzas, cerimônia assistida por todos os terceiros da ordem da Penitência ereta no franciscano convento, pelas 4 horas da tarde, saía uma procissão pomposa de todos os santos que haviam militado sob os estandartes da penitência e que modelaram pela prática perseverante das virtudes cristãs os prosélitos da religião de Francisco de Assis.
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Eis as figuras que, em ricos andores, eram conduzidas pelos irmãos terceiros, precedidos de uma grande cruz, com o abraço do Cristo e Francisco, símbolo da união, tendo no alto a seguinte inscrição: Agite poenitentiam.[ 1 ]
1º andor — Nossa Senhora da Conceição, ao qual acompanhava um anjo com uma tarja onde se lia a seguinte estrofe: In conceptione tua, virgo, immaculata fuisti.[ 2 ] Pertencia aos noviços.
2º andor — O Salvador do mundo, figura de pé tendo encostada a si uma cruz com esta legenda: Tollat crucetn suam.[ 3 ] Um anjo caminhava adiante com a seguinte inscrição: Factus obediens usque ad mortem.[ 4 ] O encarregado desta figura era o irmão José Cláudio de Freitas.
3º andor — O padre São Francisco de Assis, de pé com uma cruz encostada a si, tendo esta legenda: Imitatores mei stote, sicut et ego Christi.[ 5 ] O anjo que o precedia levava esta inscrição: Quicumque hanc regulam secuti fuerint, pax super illos.[ 6 ] Era o encarregado Francisco Mendes da Silva.
4º andor — São Lúcio e Santa Bona, sua companheira, terceiros, com seus rosários e disciplinas[ 7 ] de penitência e mortificação da carne. Eram eles o símbolo da união conjugal. O anjo que precedia-os tinha a seguinte inscrição: Quod Deus conjunxit, homo non separeit.[ 8 ]
5º andor — São Guálter, vestido de murça roxa, com báculo, mitra branca e pluvial branco. O anjo levava a seguinte inscrição: Consummatus in brevi, explevit têmpora multa.[ 9 ] Era seu encarregado Veríssimo Manoel de Aguiar.
6º andor — Santa Rosa de Viterbo, titular da capela da Ordem, tendo na mão uma cruz e no regaço do hábito um ramo de rosas. O anjo levava esta inscrição: Quasi rosa, plantatio inJericho.[ 10 ]
7º andor — São Ivo, doutor, de batina, banda, sobrepeliz e capelo. Levava na mão esquerda um livro e na direita uma pena. O anjo tinha esta inscrição: Bonum certamen certavi, fidem servavi.[ 11 ] Era do mesmo irmão Aguiar.
8º andor — Santa Margarida de Cortona, modelo da mais acrisolada penitência. Cingida com cilício,[ 12 ] cabelo desgrenhado. Tinha na mão esquerda um crucifixo e na direita uma disciplina; ia de joelhos. O anjo tinha esta inscrição: Mulier timens Dominum, ipsa laudabitur.[ 13 ]
9º andor — São Luís, rei de França, que trocara a púrpura pelo grosseiro saial[ 14 ] da penitência. Na mão direita empunhava o cetro e na esquerda uma coroa de espinhos. O anjo tinha esta inscrição: Initium sapientiae est timor Domini.[ 15 ] Não tinham estes pessoas designadas.
10° andor — O beato Antônio de Noto, de cor preta. Na mão direita levava uma pedra e na esquerda um crucifixo. O anjo que o precedia levava esta inscrição: Niger in facie, sed formosus in corde.[ 16 ]
11º andor — Santa Isabel, rainha de Portugal. Na mão direita levava uma muleta; no regaço do manto rosas e aos pés a coroa. O anjo tinha esta inscrição: Mulierem fartem quis inveniet?[ 17 ]
O décimo andor era do irmão Antônio Francisco de Sales e o décimo-primeiro, de João Carvalho de Abreu.
12° andor — Nossa Senhora do Rosário. O anjo tinha esta inscrição: Hoc rozarium utile est hominibus.[ 18 ]
13° — O grande crucificado no alto do Alverne, e São Francisco recebendo as chagas. O anjo precursor tinha esta inscrição: Mihi absit gloriari nisi in cruce Domini N. J. C.[ 19 ]
Ao sair de cada imagem vibrava o sino de São Francisco os seus plangentes sons.
Era um espetáculo que animava a lembrança dos tempos em que se abnegava o terreno, para inebriar-se nas vistas da salvação!
Depois deste séquito imenso, fazendo-lhe alas grande número de terceiros, via-se o anjo tutelar da Ordem, de espada em punho, com seu escudo de cruz vermelha, com coturnos escarlates, armado de largas asas, coberto com capacete de guerreiro, tendo na frente três plumas ou penachos encarnados que se agitavam ufanos pelo movimento compassado do corpo.
O peito do anjo era enfeitado com jóias e pedras preciosas.
Junto do pálio ia um coro de anjos que serviam de navieulários[ 20 ] e turiferários,[ 21 ] incensando o santo lenho.
Estas cenas não falavam tanto ao coração humano? Não despertavam ideias grandes acerca da religião que tanto policiou os nossos costumes? Esta falange de bem-aventurados não era vivo e eloquente modelo da conduta do povo, hoje tão indisciplinado e corrompido?... Digam os grandes pensadores...
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NOTAS
[ 1 ] Fazei penitência.
[ 2 ] Na tua concepção, ó virgem, foste imaculada.
[ 3 ] Carregue a sua cruz.
[ 4 ] Feito obediente até a morte.
[ 5 ] Sede meus imitadores, como o sou de Cristo.
[ 6 ] Os que seguirem esta regra terão paz.
[ 7 ] Correias com que frades e devotos se açoitam por penitência ou castigo.
[ 8 ] O que Deus uniu, o homem não separe, ou não desligue o homem aquilo que Deus ajuntou, como está à p. 110 do Esboço Histórico.
[ 9 ] Em pouco tempo de vida, realizou muitas coisas.
[ 10 ] Qual rosa plantada em Jericó.
[ 11 ] Combati o bom combate, guardei a fé.
[ 12 ] Pequena túnica ou cinto ou cordão, de crina, de lã áspera, às vezes com farpas de madeira, que, por penitência, se vestia diretamente sobre a pele.
[ 13 ] A mulher temente a Deus será louvada.
[ 14 ] Antiga vestidura grosseira, para homem ou mulher.
[ 15 ] O princípio da sabedoria é o temor de Deus.
[ 16 ] Negro na face (ou preto no rosto, como está no Esboço histórico, p. 110), mas formoso no coração.
[ 17 ] Uma mulher virtuosa quem a encontrará?
[ 18 ] Este rosário é útil a todos.
[ 19 ] Estou longe de me vangloriar, a não ser na cruz de Cristo.
[ 20 ] Portadores da naveta (vaso pequeno, com o feitio dum barco, em que, nas festas de igreja, se guarda o incenso).
[ 21 ] Os que levam o turíbulo (vaso onde se queima o incenso nos templos).
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
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