Os mortos, os que se desprendiam deste mundo, rompendo os laços da carne e os da família, tinham também sua festa fúnebre, com todos os apar...

Artigo 27

1/01/2016 0 Comentários

Os mortos, os que se desprendiam deste mundo, rompendo os laços da carne e os da família, tinham também sua festa fúnebre, com todos os aparatos de tristeza! O cerimonial romano a prescrevia, e o povo, embora à custa de lágrimas e dolorosas excitações, a executava. A crença da imortalidade da alma era tradicional, e filha do consenso geral da humanidade.

As honras fúnebres, em memória do morto, principiavam solenes desde suas casas, vestidas de pesado luto, continuavam pelas ruas, finalizavam na igreja e nos cemitérios com o ofício de sepultura. Um clero numeroso, padres e frades, às vezes nove e, quando presentes os de fora, treze, cantavam o ofício fúnebre.

Principiavam o subvenito[ 1 ] e pelas ruas faziam-se estações com mementomemento[ 2 ] acompanhado de música.

Às vezes, segundo a hierarquia do morto, depositava-se o cadáver na igreja e, no dia posterior, tinha lugar a missa solene de corpo presente, seguindo-se matinas e laudes, horas canônicas do ofício de defuntos.

Todos os convidados, parentes e as corporações religiosas assistiam às exéquias com tochas acesas. Só se retiravam quando a música em tom terno e grave desprendia aquele adeus saudoso requiescat in pace; Amen, respondiam os clérigos com voz firme e plangente...

Pela quaresma ainda os mortos eram obsequiados por preces e sufrágios.

O José Peru incumbia-se dessa missão. Em todas as segundas-feiras, embuçado no seu capote, munido de uma matraca com argolas, ou asas de ferro, à meia-noite, postava-se nas portas das igrejas e nas esquinas das ruas onde havia cruzes e principiava sua religiosa tarefa. Todos despertavam à sua voz e ao estrondo da estridente matraca. Uns vinham à janela, outros ajoelhavam nas camas, tremendo de susto, e balbuciavam o Pater-Nostere a Ave Maria, que ele pedia por todos os mortos. Era aterrador e dava calafrios!...

Naquelas horas profundamente silenciosas, entre os mistérios da natureza e trevas da noite; em que só falam as estrelas; em que geme o mocho; plange a coruja; ciciam os insetos; rumoreja a brisa; esvoaçam espectros na superexcitada imaginação, é coragem evocar os mortos! Cantava ele:

“Acordai, acordai, pecadores! O sono é imagem da morte! Ela pode agora mesmo surpreender-vos! Já fui como vós sois, e sereis como nós somos! Lembrai- vos de mim, ao menos vós, que sois meus amigos!”

“Um Padre Nosso e Ave Maria pelos que morreram nas ondas do mar...” (Aqui agitava com força a matraca.) Assim por diante, rogando pelas almas dos que tinham sido esquecidos!

Os que espreitavam diziam que após o José Peru ouviam-se pisadas mas não se divulgava alguém! Cá pela minha parte cobria-me dos pés à cabeça e suava por todos os poros, tendo os cabelos eriçados!... Nunca acertei com o Padre Nosso e Ave Maria! Que terror pânico!

Já que estamos em maré de tristezas, não será fora de propósito, nem altera essencialmente o presente escrito, referir as cenas lutuosas que esta capital presenciou pela invasão da febre amarela e o cólera-morbo, esses viajantes terrestres que em sua lúgubre passagem conduziam o presságio da justiça divina!

Em 1850, depois de haver posto em completa desolação o povo do Rio de Janeiro, a febre amarela assestou entre nós as suas baterias e feriu de morte grande parte dos habitantes desta cidade, à custa das mais pungentes lágrimas! Era um espetáculo contristador. Pesado luto envolvia centenas de famílias, sentindo amargamente os látegos dessa horrível disciplina com que Deus pune os delitos do seu povo.

As enfermarias franqueavam suas enxergas, a religião ativava os socorros espirituais, e, apesar disso, os cadáveres cruzavam as ruas entre gemidos e soluços de seus conterrâneos, amigos e parentes. Foi uma desolação que pôs em sustos todos os seus habitantes, quase apagando toda as esperanças.

Faleceram vítimas desse indomável mal epidêmico o negociante Meireles, morador da ladeira do Sacramento,[ 3 ] a cuja família pertence o ramo dos Ataídes; o simpático João, conhecido por Ligeiro, o empregado mais confidente do comendador Souto; a moça Afonsa, os mais lindos e sedutores olhos da falange, ou antes miríada, da juventude feminina, que então primava por seus ademanes e encantos. Os desazados médicos Brandão e Nabuco aumentaram por sua insciência a cifra dos mortos! Nessa luta conheciam-se palpavelmente os embaraços dos profissionais. Foi uma sinecura.[ 4 ] Abandonados à ação do inimigo, à míngua sucumbia grande número de doentes, afetados desse horrível mal.

O hábil, caridoso e dedicado Goulart foi um herói no meio dessa arriscada campanha. A cidade devia levantar um monumento à sua abnegação! Era um anjo, ou antes uma providência viva pela saúde de tantos infelizes! Encontrava- se em todas as casas, junto ao leito dos moribundos, e a todas as horas do dia e da noite! A ele se deve a salvação de muitas pessoas atacadas pelo flagelo.

Lançando mão de medicamentos homeopáticos, pôde combater casos que teriam sido fatais se não fosse a acertada aplicação de seus medicamentos! Goulart linha uma inteligência aguda e penetrante e sabia acompanhar as fases desses sintomas que se sucedem no desenvolvimento de uma moléstia. Os casos complicados, que são os mais difíceis de resolver, ele curou-os de um modo prodigioso! Levou de vencida os rivais de sua medicina e ganhou vantagens de 50%, quando apenas os outros as obtinham na razão de 10%! Uma lágrima de reconhecimento à sua ilustre memória!

_____________________________

NOTAS

[ 1 ] Cântico religioso. Falando sobre a veneração aos mortos o padre Antunes no Esboço histórico (p. 86) afirma que “[...] a música se lhes ajuntava. Subvenite, liberame, memento eram ali estrondosamente entoados!”.
[ 2 ] Isto é, faziam-se pausas com preces.
[ 3 ] Logradouro desaparecido que ligava a atual rua Dionísio Rosendo a uma outra rua chamada Pereira Pinto, situada onde se edificou a praça Costa Pereira.
[ 4 ] Trapaça.

Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto)Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense,  Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

0 comentários :