Os primeiros cinemas
Cine Dom Marcos, inaugurado na década de 1940, na Avenida Luciano das Neves, no Centro de Vila Velha. |
O cinema não surgiu da noite para o dia. Houve diversos antecessores. O mais conhecido deles foi a lanterna mágica, um aparelho ótico inventado no começo do século XIX e que foi sendo aperfeiçoado. Tratava-se de um aparelho com o qual se projetavam sobre um lençol ou parede, em grande dimensão, imagens de objetos pequenos pintados em vidro ou outro suporte transparente. Depois da lanterna mágica vieram o cinematógrafo e outros aparelhos de projeção. No final do século XIX, dois franceses, os irmãos Lumière, desenvolveram, a partir das experiências anteriores, um aparelho que projetava imagens com movimento.
Os primeiros filmes, de curta duração, eram de caráter documentário, e mostravam a entrada de um trem na estação ou a saída de operários de uma fábrica. Não demorou muito para que os filmes passassem a contar histórias, sobretudo nos primeiros anos do século XX, com o francês Meliès. Assim atingiu-se o grande público e foram surgindo os grandes nomes como Chaplin e Griffith nos Estados Unidos.
Mas a banda sonora das películas seria inventada somente mais tarde. Até 1927 os filmes não eram falados, sendo as exibições geralmente acompanhadas de piano e violino. Com o advento do som, o cinema granjeou uma popularidade ainda maior, apesar da resistência dos artistas ligados à forma de expressão do cinema mudo.
O "Cici"
Vila Velha teve o seu cinema mudo. Ele se localizava à rua Vinte e Três de Maio, próximo à antiga casa de comércio de secos molhados do finado Radagásio Lyra, onde muito mais tarde seria instalada uma pensão. Esse cinema, chamado Cici, era propriedade de Durval Santos, popularmente conhecido como Tinininho. Como todo cinema mudo que se prezava, ele tinha também o seu fundo musical ao vivo, só que, em vez do piano e do violino tradicionais, estavam presentes o violão e o cavaquinho tocados pelo casal Tanego Piratininga de Barros e Maria José Barros, respectivamente, que acompanhavam as cenas do filme. Mais tarde juntou-se à dupla Waldemar Bourguignon, que na época teria uns quatorze anos e era carinhosamente chamado de Waldemar Cambota, pelo seu andar de pernas arqueadas. Aí a dupla transformou-se em trio, passando Maria José a tocar bandolim. Apesar de novo, Waldemar já tocava como gente grande. Quando adulto, poucas execuções no cavaquinho ou violão, no Brasil, igualaram-se às dele. Se as superassem, a diferença estaria nas firulas próprias de cada um. Pena que os grandes centros não o tenham descoberto, pois seria, sem sombra de dúvida, como músico, uma celebridade nacional.
Os músicos, assim constituídos, tinham que estar ativos e observar atentamente os movimentos dos protagonistas dos filmes, adequando as linhas melódicas às situações e cenários que os envolviam. Isso era comum no período entre os anos de 1920 e 1927.
Em 1928 surgiu o cinema falado. Os artistas músicos que faziam o acompanhamento das cenas protestaram, mas o que fazer? O cinema falado viera para ficar.
No começo, o salão do cinema Cici não dispunha de cadeiras. Os espectadores tinham que levá-las de casa. Em dias de apresentação de filmes era comum verem-se famílias inteiras com os seus filhos meninos na porta do cinema e cadeiras à cabeça. As crianças, na frente, diziam a senha ao transpor a porta: "Quem vem atrás paga." Atrás estavam os seus familiares ou alguém que se dispunha a pagar-lhes a entrada. Lá dentro os adultos se sentavam nas cadeiras, enquanto os transportadores ficavam em pé pelos cantos, encostados nas paredes ou mesmo sentados no chão. Os filmes eram divididos em partes denominadas atos. Quando terminava o primeiro, aparecia na tela a legenda: "Fim do 1º ato". Da mesma forma para o segundo, o terceiro e assim sucessivamente, até o último ato. Os filmes podiam ter de um a sete atos e ao final de cada um deles acendiam-se as luzes para inserção de um novo rolo no aparelho projetor. Enquanto isso os músicos paravam de tocar, retomando suas atividades assim que se apagavam as luzes e recomeçava a projeção.
As sessões de cinema do Cici eram anunciadas pelas ruas de Vila Velha várias vezes num só dia, levando-se em consideração o seu aglomerado urbano de pouca extensão. Os anunciantes ou pregoeiros circulavam com tabuletas de madeira penduradas às costas do tamanho de uma meia porta em que se fixavam cartazes com cenas e título do filme. À tardinha, dois garotos, um de cada lado, levavam a tabuleta pelas ruas e iam gritando: "É hoje no Cici, belíssimo drama em 5 (ou 7) atos, O Conde de Monte Cristo. Cascudo." E concluíam: "Para conforto, não deixem de levar suas cadeiras! Criança só paga a metade." O pagamento desses pregoeiros consistia na entrada grátis ao cinema, e para serem identificados exibiam à porta um dos braços marcados com uma cruz em tinta própria.
O cinema do seu Raimundo
O primeiro cinema sonorizado instalado em Vila Velha como casa de espetáculo era conhecido como o cinema do seu Raimundo por não se ter dado a ele uma denominação própria. No entanto, há quem diga que ele se chamava Cine Continental, mas com esse nome conhecemos o de Antônio Saliba, à rua Cabo Aylson Simões, na praça Duque de Caxias. O cinema do seu Raimundo situava-se exatamente onde hoje se localiza a Primeira Igreja Batista de Vila Velha, cuja estrutura — toda ou quase toda — foi aproveitada do cinema. No seu interior, bem nos fundos, no lugar em que estavam instalados a tela e o palco, havia uma mureta separando as plateias da primeira classe e da segunda. Esse espaço da frente, que atendia à segunda classe, dispunha de longos bancos mochos de madeira colocados sobre chão de terra batida. A parte destinada à primeira classe, localizada bem acima dos demais espectadores, era também bastante espaçosa para a população de então. O chão era de cimento e os bancos de madeira tinham encosto, como os utilizados nas igrejas. Esses bancos, ociosos em grande parte pela falta de espectadores, foram sendo vendidos pouco a pouco pelo seu Raimundo às instituições religiosas, deixando um grande espaço vazio nos fundos do cinema. Muitos garotos iam para esse espaço e ali, nos intervalos dos atos, quando as luzes se acendiam, andavam de bicicleta sem que ninguém os incomodasse.
A entrada para a geral dava-se pela lateral direita do cinema, bem nos fundos, sem comunicação com a platéia da primeira classe que, sentada nos bancos de encosto, não tomava conhecimento dos ocupantes da segunda. Por uma questão de foro íntimo, as pessoas que frequentavam a geral faziam questão de não serem identificadas, e para isso passavam abaixadinhas, protegidas pela mureta de pouco mais de metro e meio. Lá dentro, depois de sentadas, nem as cabeças eram visíveis e, sabendo disso, no conforto dos seus bancos, ninguém na primeira classe se preocupava em sair de onde estava para identificá-las. E sempre funcionou assim.
Para se saber da lotação do cinema bastava acompanhar a exultação e intensidade da gritaria que nele reinava durante determinado filme, compartilhada por todo o público indistintamente. Era impossível avaliar essa lotação pela saída dos frequentadores, pois os da segunda classe deixavam seus bancos sorrateiramente quando o filme estava prestes a terminar e ficavam à frente do cinema a observar e a se misturar aos que saíam da primeira classe, quando não se escafediam rumo a suas casas.
O preço da entrada da geral era metade do da primeira classe. O estudante uniformizado, de primeira ou de segunda classe, pagava metade do ingresso. Por causa disso era comum ver, à porta do cinema, pessoas trajando uniformes estudantis que certamente não lhes pertenciam, pois ou eram muito apertados ou muito folgados.
Outro dispositivo do cinema do seu Raimundo era uma campainha elétrica ligada na frente e na fachada do prédio. Ela era acionada três vezes: a primeira, quinze minutos antes do início da sessão, a segunda, dez minutos antes, e a terceira, para anunciar o início da sessão. Quando ao longe o toque da campainha não era perceptível, o jeito era correr para apanhar o início da sessão.
A grande atração da meninada nas matinês de domingo eram os seriados de aventura, com Tom Mix montado no seu cavalo branco e Flash Gordon na sua nave interplanetária. A intenção do cinema era dar a impressão de que a nave espacial desenvolvia uma velocidade espetacular, entretanto os gases desprendidos dos seus motores mais se assemelhavam aos rolos de fumaça saídos de chaminés de uma fábrica ou a baforadas sucessivas de um cachimbo. Mas nem por isso deixávamos de ficar ansiosos aguardando o domingo seguinte, para o deslinde do suspense em que parara o seriado.
O seu Raimundo, de vez em quando, principalmente na projeção dos filmes seriados de cowboy, acabava se desentendendo com o operador das máquinas cinematográficas. É que esse funcionário assumia outros compromissos em horários que coincidiam com o término das sessões e, não querendo chegar atrasado ao seu encontro, apelava. Ele acelerava a rolagem do filme e as imagens passavam a ter movimentos anormais. Quando isso acontecia seu Raimundo corria até a cabine de projeção e gritava para o seu operador:
— Jefredo, Jefredo! Mais devagar, Jefredo! Assim não dá. Os cavalos já não andam mais, correm! Os que correm, voam! Devagar, Jefredo! Pelo amor de Deus, Jefredo!
E Jofredo Novaes, o saudoso Jofredo, esquecia o seu compromisso amoroso e passava a obedecer às ordens do patrão, de quem muito precisava. Mas, quando o dono do cinema não estava presente e Jofredo tinha lá os seus compromissos, as imagens eram aceleradas, faltando pouco para saltarem da tela, sob a gritaria dos inconformados espectadores.
[In SETÚBAL, José Anchieta, Ecos de Vila Velha, Vila Velha-ES: PMVV, 2001. Reprodução parcial autorizada pelo autor.]
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José Anchieta de Setúbal nasceu em Vila Velha-ES e se formou em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Ex-prefeito e ex-vereador por Vila Velha, foi procurador substituto do Estado, sub-chefe da Casa Civil, coordenador da Defensoria Pública e secretário da Justiça. Foi membro do Conselho de Sentenças da Comarca da Capital e sócio-fundador do Rotary Club de Vila Velha.
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