Transportes - O bonde
Bonde na Prainha, Vila Velha. anos 1940. |
Vila Velha primitiva dispunha, além de seu núcleo central, de três aglomerados urbanos importantes na sua formação, sendo eles Aribiri, Paul e Argolas. Aribiri e Paul surgiram em decorrência da inauguração da linha de bondes, em 1910, enquanto Argolas, das estações de trem da Leopoldina e da Vitória a Minas.
Aribiri localizava-se mais ou menos no meio da linha de bondes e Paul no fim, às margens da baía de Vitória. O outro extremo da linha ficava em Piratininga, na entrada para o Batalhão do 3º BC, antes 50º BC e hoje Batalhão Tibúrcio. Este ponto era parada obrigatória e ensejava o desembarque e embarque de pracinhas e oficiais, que entravam no Batalhão para as suas obrigações militares ou dele saíam. Dificilmente uma pessoa à paisana, sem assunto a tratar naquela paragem, tomava o bonde para no mesmo retornar no percurso de volta. Geralmente ela o aguardava na pracinha da Matriz — Igreja Nossa Senhora do Rosário —, próximo ao famoso e conhecido bar Ponto Chic. Ao lado desse estabelecimento comercial ficava a casa paroquial onde, além do pároco da cidade, hospedavam-se autoridades católicas, principalmente em dias festivos da Santa Sé.
O bonde proveniente de Paul fazia a sua última parada para apanhar ou deixar passageiros no ponto que antecedia Piratininga, nas proximidades do bar Ponto Chic, seguindo daí, sem mais parar, até Piratininga. Coincidindo com o horário da saída dos militares do 3º BC, a condução era aguardada com ansiedade, transportando-os até outros pontos de Vila Velha, ou mesmo até Paul, final da linha, de onde seguiam com destino a Vitória. Chegado o bonde, os passageiros acotovelavam-se por um lugar sentado. Aqueles que não conseguiam esse conforto apinhavam-se pelos estribos, pendurados em seus balaústres, mas uma coisa era certa: soldado raso, cabo ou sargento estavam impedidos de se assentar nos três primeiros bancos, que somente podiam ser ocupados pela oficialidade e permaneciam vazios caso nenhum oficial estivesse presente por ocasião do embarque, uma das exigências da rígida disciplina militar. Aqueles que desobedecessem a essa ordem ficavam sujeitos a penalidades como advertência, recolhimento ao quartel e outras mais severas. Os passageiros comuns ocupavam os lugares que melhor lhes aprouvessem.
Bastante interessante era o final da linha, em Paul. O bonde deixava os passageiros pelo lado esquerdo, com o estribo sobre o beiral de uma casa comercial, sem tocá-lo e, pelo lado direito o estribo, nas mesmas condições do primeiro, sobre calçada a céu aberto, com uma mureta de proteção ao cais de bote abaixo, sustentada por pilares de cimento armado traspassados por dois canos galvanizados. Tanto de um lado como de outro os passageiros que saltavam do bonde tinham acesso livre ao abrigo da estação das lanchas, fosse para tomar a lancha de imediato, fosse para aguardá-la, se ainda não estivesse atracada.
A casa comercial que mencionamos anteriormente abrigava um modesto bar onde podiam fazer pequenos lanches aqueles que aguardavam a chegada do bonde ou das barcas. O fato é que todos os fregueses desse pequeno estabelecimento comercial eram passageiros do sistema.
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As manobras para engate e desengate do reboque ao bonde eram demoradas. Até concluí-las o motorneiro usava quatro vezes a cabine de comando. Só então partia em sua rota imutável. Essa operação um tanto quanto demorada dava-se apenas em dois lugares: em Paul e no centro Vila Velha, atrás da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Essas manobras aconteciam quando o bonde conduzia o reboque e o deixava nos lugares mencionados anteriormente para ganhar os seus trilhos principais em demanda dos respectivos pontos extremos: Paul e Piratininga.
Nós, como estudantes do Ginásio Espírito Santo — como era conhecido o Colégio Estadual do mesmo nome —, tomávamos o bonde das onze horas para com folga chegar ao educandário, cuja entrada para as salas de aula se dava ao meio-dia. E como fazíamos? Já devidamente paramentados com o absurdo uniforme exigido, ficávamos na espreita e na escuta aguardando o bonde, cuja chegada era denunciada pelo ranger dos trilhos na curva fechada da confluência da avenida Jerônimo Monteiro com a rua Luciano das Neves.
A sua passagem ficava evidenciada no sentido Piratininga pelo cantar em alto e bom som de suas rodas de aço em atrito apertado com os trilhos. Em assim ouvindo, nesse exato momento encontrávamo-nos a mais de um quilômetro de distância. Morávamos num sítio à margem e um pouco para dentro da estrada que naquele tempo ligava Vila Velha à Barra do Jucu, hoje avenida Professora Francelina Carneiro Setúbal, nome de nossa saudosa e querida mãe, na região chamada de Apicum do Poço, agora denominada genericamente como bairro Itapoã, onde atualmente se encontra um posto de gasolina com o mesmo nome.
A esse sinal das rodas em atrito com os trilhos, de pasta escolar ora na mão, ora embaixo do braço, corríamos esbaforido para alcançar o famoso bonde da estudantada, que passava às onze horas, num ponto que antecedia o da ruidosa curva. Na verdade nunca o perdíamos, pois a manobra de soltar e engatar o reboque proporcionava-nos o tempo necessário para alcançá-lo.
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Para falar dos bondes temos que falar também de sua tripulação, que era composta de motorneiro, condutor, fiscal e fiscal geral. Essas categorias distinguiam-se umas das outras pelas indumentárias. Embora todos trajassem uniformes cáqui e quepes do mesmo tecido, havia uma leve distinção, quase imperceptível para os desavisados, entre as categorias. No quepe, de base marrom, estava a maior diferença no que se referia à fiscalização. Se nessa base houvesse uma só listra fina e branca, tratava-se de um fiscal iniciante; se duas, de um fiscal graduado; se três, de um fiscal geral.
O motorneiro tinha a função e a responsabilidade de acionar o motor do bonde e conduzi-lo. E o condutor? Seria ele um outro motorneiro menos graduado? O nome dava a idéia de quem conduzia alguma coisa para lhe dar movimento, entretanto tratava-se apenas do cobrador de passagens.
O fiscal permanecia quase todo o tempo na parte traseira do bonde, geralmente de pé, observando tudo. Autorizava a partida do veículo e também a parada, quando não o fazia o passageiro. Acompanhava e fiscalizava as cobranças efetuadas pelo condutor que, por sua vez, registrava-as num relógio fixo, preto e grande, localizado no interior do bonde, no alto e ao fundo, à vista dos passageiros. Ficavam estes passageiros de frente ou de costas para ele, dependendo da posição do motor que impulsionava o bonde, que dispunha de dois, um em cada extremidade, revezados sempre nos percursos de ida ou de volta.
O tilintar de cada passagem registrada era estridente, acionada por uma corda fina de couro embutida no relógio ao alcance dos seus operadores. Se o condutor deixava de fazer o registro das passagens a contento do fiscal este, com a sua autoridade inquestionável, depois de contar movimentava o relógio até atingir o número de passageiros por ele verificado na viagem.
O fiscal geral era o fiscal dos fiscais. Vagava de um bonde para outro, sem hora determinada, examinando os boletins de ocorrência e apondo o seu visto. Fazia e desfazia escalas de serviço. Era o todo poderoso do transporte de bondes.
O condutor procedia às cobranças sob quaisquer condições de tempo. Fizesse sol, chuva ou frio, locomovia-se de banco em banco, por fora, pelos estribos do bonde, agarrando-se aos balaústres, ágil e sem dificuldades, isso quando não havia passageiros nas laterais. Em havendo, o que era comum nos horários de pique, o condutor tornava-se um malabarista. Roçava de modo inconveniente e encurvado sobre os passageiros que, por instinto, viravam-se de frente à sua passagem forçada.
O trabalho do condutor exigia no correr do dia um esforço físico incomum. Atestavam essa afirmativa as mãos calejadas que ostentava. Esses calos estendiam-se até os pulsos porque as mãos fechadas, que seguravam as moedas, dobravam-se para que os punhos sustentassem na pegada dos balaústres o seu corpo. Eram calos consolidados. Só o condutor os tinha. A responsabilidade da arrecadação da grana era toda sua. No seu mister atuava com muita agilidade e vivacidade para que nenhum passageiro furtivo escapasse da cobrança. Por conveniência da profissão, na hora do troco e da cobrança da passagem sustentava as pesadas moedas em circulação — os réis — empalmadas junto aos dedos. Desse jeito, ao mover as articulações, movia também as moedas umas contra as outras num retinir que, ao estender a mão, soava aos ouvidos do passageiro como um gesto de cobrança. Além das moedas que portava, era comum ver, dobradas e enlaçadas em seu dedo médio, cédulas de papel de valor maior, só recolhidas ao bolso depois de passado o troco aos passageiros de quem as tinha recebido. Os ponguistas também propiciavam ao condutor uma luta inglória, pois nunca conseguia cobrar-lhes a passagem. Eles tomavam o bonde longe do condutor para saltar um pouco mais adiante, burlando a sua ação.
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Mulher não viajava nos estribos do bonde. Se o veículo estivesse lotado e não houvesse lugar para ela sentar, quase sempre alguém se levantava, comportamento muito próprio da época. Caso isso não acontecesse, viajava em pé, entre os bancos.
A passagem do bonde custava, por pessoa, quatrocentos réis. A metade do percurso até Aribiri, em ambos os sentidos, custava duzentos réis. No reboque, considerada condução de segunda classe, pagava-se metade desses valores. Os estudantes gozavam, nas passagens, de um desconto de cinqüenta por cento controlado pela Companhia Central Brasileira de Força Elétrica com fornecimento de carteiras de passes destinadas a durar exatamente o período escolar de um mês. Para que esses passes fossem renovados, mensalmente o educandário dava o visto nas carteiras prestes a expirar, comprovando que os seus portadores realmente eram estudantes em atividade escolar.
Tripulantes e passageiros, pelos encontros constantes no vaivém das viagens, acabavam se familiarizando uns com os outros. Da nossa parte gravamos os nomes e as imagens de alguns desses profissionais. Como condutores: João de Jaburuna, Maurício, Floriano — apelidado de Beija-Flor — e João Cabeção. Como motorneiro lembramos Alarico, residente em Aribiri e conhecido por ser um nordestino muito falante e também pelas suas meias-paradas dos bondes, favorecendo o embarque e desembarque de passageiros fora do ponto. O seu Hermínio, um fiscal sempre atencioso para com a clientela, retinha o veículo sob a sua responsabilidade se alguém mais distante necessitasse pegá-lo.
Se uns são lembrados pelos seus favores, outros marcaram ponto em sentido contrário. Nesse rol incluímos a figura pouco simpática, pelo menos para nós quando estudante, de um fiscal cujo nome não nos ocorre. Sabemos que tinha uma das vistas vazada e por isso, pejorativamente, era conhecido como Galo Cego. Entretanto, ninguém ousava chamá-lo pelo apelido, muito mais por respeito que por medo.
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Segundo Milton Caldeira, ao conseguirem as autoridades militares a extensão da linha de bondes até o 50º BC, alguns anos após a instalação dessa praça de guerra em Piratininga, em 1917, essas mesmas linhas adentravam os seus domínios, terminando à frente dos alojamentos. A verdade é que os bondes não se limitaram, no começo do seu trajeto, a Piratininga, como nas últimas e incontáveis viagens que iam até a sua guarita. As suas linhas teriam sido retiradas de dentro dessa unidade de guerra, acredita-se, por uma questão de estratégia e de segurança. Com certeza os comandos daquele batalhão, por dedução própria ou determinação da região militar a que estavam subordinados, tomariam tal decisão.
A partir de então os bondes se limitaram a chegar até à guarita do Batalhão, como inicialmente se fazia. Hoje, com a vigilância mais rígida, antes de se chegar àquele portal de entrada, passa-se por uma primeira guarita localizada bem próximo à gruta de Frei Pedro Palácios, ao lado da entrada da ladeira de pedras do Convento da Penha.
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O bonde era um transporte soberano. O seu rastro, os trilhos, eram respeitados. Nenhum outro veículo se opunha ao seu trajeto porque andava na linha, que às vezes ocupava uma ou as duas margens das calçadas, quando não o fazia pelo centro de ruas e avenidas. Não dividia espaço com os outros veículos, não porque não o quisesse, mas o seu sistema é que ditava tais limitações. Como andar na linha era o seu lema e os concorrentes, em grande profusão, não necessitavam fazê-lo, rodando livremente por qualquer lugar e em qualquer sentido, aos poucos foi sendo empurrado para os seus abrigos até que não mais circulou.
Ponto final: Paul
Comércio
O ponto final de bonde, em Paul, por ser um local de espera para embarque e desembarque, ensejava ali e em suas adjacências a existência de um pequeno comércio. Além do barzinho que já mencionamos, havia cerca de meia dúzia de barraquinhas toscas de madeira e cobertas de zinco e vendedores ambulantes, que também tiravam proveito do local. Ali compravam-se bananas, laranjas e outras frutas.
A cana caiana era vendida de um modo muito engenhoso. Depois de descascada e cortada, suas rodelas eram espetadas na própria casca da cana. Essa casca era preparada em tiras largas e cuidadosamente aberta em várias lascas sem que a sua base fosse atingida. Da base, que servia para segurar, se abriam cinco tiras com as pontas afiadas onde se espetavam as rodelas descascadas da cana, formando com essa disposição uma espécie de buquê. Ao invés de flores, as saborosas rodelas, macias e doces que nem açúcar.
A estudantada, na espera do bonde, vindo de bote ou de barca até Paul, era grande consumidora desse produto, como também das laranjas Bahia, pêra e seleta.
Foi nessa época, na década de 40, que surgiu a máquina de descascar laranja. Com ela os laranjeiros aumentaram consideravelmente a venda dessas frutas. Com essa máquina descascavam laranjas com presteza e uniformidade, tirando fitas finas e deixando-as sem nenhum ferimento nos seus gomos, produzindo um bagaço inteiriço depois de chupadas. Com esse bagaço a meninada desocupada ou mesmo os ambulantes que mantinham ali o seu ponto faziam embaixadas, controlando-o com um dos pés descalços, disputando quem mais vezes nele batia sem deixar cair no chão, como se fora uma bola.
Nesse comércio ambulante uma guloseima muito festejada eram as cocadas vendidas em tabuleiros. A nossa preferida tinha o sabor de laranja, um paladar de que até hoje não encontramos igual. O amendoim torrado, o bolo de aipim, o cuscuz, tudo fazia do ponto de espera um meio para satisfazer o nosso apetite voraz de criança, de adolescente mesmo, e estimular o gasto das nossas parcas economias em tostões. Até os passes escolares, nesse mercado da comilança, viravam moeda.
Telefonia
Os atrasos de bondes ou lanchas permitiam que os seus usuários testemunhassem, nesse tempo, como funcionava a telefonia entre Vila Velha e Vitória, haja vista que ao lado do bar, em Paul, funcionava a estação de recebimento e transmissão das chamadas telefônicas entre as duas cidades.
As telefonistas, ao atender e completar ligações pedidas ou recebidas, o faziam em voz alta e a conversação era ouvida por quem estivesse na pequena plataforma aguardando o bonde. O timbre das suas vozes ditava a boa ou má qualidade das chamadas. Se elas falavam alto e repetiam a recepção ou a retransmissão, isso significava que havia irregularidades numa das pontas dessa linha ou mesmo nas duas, quiçá em todo o sistema, o que não raro acontecia.
Telefonar de Vila Velha para Vitória era como fazer uma ligação interurbana, não comparável às de hoje, mas àquelas em que as ligações nem sempre se completavam ou acabavam não acontecendo. Em certas ocasiões seria preferível mandar um recado a falar de Vila Velha para Vitória e vice-versa por causa da demora. Segundo os entendidos, toda essa complicação era causada pela sobrecarga das linhas, ocupadas pelos usuários, embora o número de aparelhos nas duas cidades fosse pouco mais de duas centenas.
Em Vitória ficava a central, que polarizava todas as chamadas. Vila Velha e Paul eram subestações. Além do aparelho, a telefonista era peça chave desse sistema. Com um fone colado ao ouvido, o aparelho transmissor fixo à sua frente, uma manivela para acionamento e fios de conexão, estava preparada essa operadora para entrar em atividade.
Para comunicar-se com Vitória o usuário, do seu telefone residencial ou comercial, acionava o posto telefônico de Vila Velha, estabelecendo com a funcionária de plantão mais ou menos o seguinte diálogo:
— Telefonista, por favor, quero uma ligação para Vitória.
— Um momento, — era a resposta da telefonista, que em seguida acionava a manivela junto ao aparelho retransmissor conectado à subestação de Paul, dizendo:
— Paul, telefonista de Vila Velha chamando.
— Estou ouvindo, fala Vila Velha.
Não sendo a resposta compreensível, a telefonista instada voltava a se manifestar:
— Vila Velha, Paul falando! Fale mais alto, não estou ouvindo. O bonde acaba de chegar. O barulho do pessoal descendo e o motor do bonde ligado não me deixam ouvir direito. Favor repetir.
Caprichando na voz, Vila Velha respondia:
— Paul, quero uma ligação para Vitória, para o telefone 85 (poderia ser um outro qualquer).
E tome manivela.
— Entendido, Vila Velha! Aguarde um momento, por favor, vou chamar a central.
— Vitória central, Vitória central, Paul chamando! Por favor, Vila Velha quer falar com Vitória.
— O número do telefone, por favor!
— 85, central!
E a resposta vinha de lá, a toque de manivela:
— Paul, aguarde. Vou verificar se a linha está disponível.
— Entendido, central.
E Paul aguardava o retorno. Se fosse favorável, Vitória voltava ao circuito dizendo:
— Paul, central chamando! Central chamando, Paul!
— Pode falar, Central.
— Linha 85 à sua disposição! Linha 85 à sua disposição!
— Obrigada, central.
E a telefonista entrava em contato com o telefone 85, dizendo:
— Aguarde um momento, por favor. Vou passar a sua ligação para Vila Velha.
Conectando Vila Velha, acionando a manivela, falava:
— Vila Velha, Paul chamando! Alô, Vila Velha, Paul chamando! Linha 85 disponível.
— Obrigada, Paul!
Mas se a linha estivesse ocupada, tudo voltaria a se repetir e tome tempo de espera.
Com a linha aberta para Vitória, a telefonista de Vila Velha mais que depressa transferia a ligação:
— Alô, minha senhora ou meu senhor, a sua chamada para o telefone 85 foi completada. Favor falar.
Se a telefonista já houvesse identificado o dono ou a dona do telefone ou a sua voz, não dizia senhor ou senhora. Declinava o nome do cliente, o que era muito comum. A fala dele ou dela, sendo familiar, tornava fácil a identificação. Se o assunto interessava à telefonista, no correr da conversa ela metia o bedelho arriscando um palpite entre os interlocutores, fosse chamada ou não a fazê-lo.
Rechaçada ou dispensada da participação, ninguém poderia impedi-la de continuar ouvindo o diálogo estabelecido, a menos que por livre e espontânea vontade tirasse o fone do ouvido. Por isso as telefonistas eram consideradas como as pessoas mais bem informadas da praça e, embora apresentassem ares de discrição, novidade era com elas mesmas. Pelo visto, a conversação múltipla que hoje é usada também usavam-na as nossas telefonistas do passado, como precursoras que bisbilhotavam a vida alheia.
Ambiente e tipos humanos
O meandro desse espaço estava delimitado pelos cais das barcas e dos botes, de frente para a baía de Vitória; pelo lado leste, com o sopé do morro do Atalaia terminando em uma pedreira, com um dos lados em declive de fácil acesso onde se assentava a meninada durante a espera do bonde. Enquanto isso conversavam, comiam ou bebiam alguma coisa. Pelo lado oeste ficava a fábrica de laminados de madeira Brasil-Holanda e, pelo sul, o espaço aberto em que se assentava a linha de bondes. Em toda essa área pululavam pessoas e animais domésticos conhecidos pelo comportamento e presença constantes.
Atraídos pelos bagaços de cana e de laranja, cascas de banana e restos de outras frutas ou verduras, cabras e bodes desciam o morro do Atalaia para ali se alimentarem. Dentre esses animais, um se destacava pelo seu porte, apresentando cor preta luzidia com um ligeiro queimado, chifres proeminentes e grande cavanhaque no mesmo tom da sua pelugem. Tratava-se do famoso bode Cheiroso. Apesar do aspecto de poucos amigos, tornara-se amistoso, deixando-se mesmo tocar quando lhe era oferecido algum alimento.
Quanto aos elementos humanos, perambulava nesse delimitado espaço um que era muito notado, sendo considerado especial e olhado com respeito dada a sua fragilidade e desempenho na busca pela sobrevivência. Ele era pedinte e ao mesmo tempo trabalhador. Tratava-se de um menino franzino, branco, cabelo curto espinhado, quase raspado, com ligeira atrofia numa das pernas e no braço esquerdo, o que não lhe permitia estendê-lo por completo. Sua boca, quase sempre entreaberta, mostrava os lábios molhados, principalmente quando falava. Sua voz era pausada e as palavras pronunciadas muitas vezes de maneira incompleta, mas assim mesmo ele se comunicava, fazendo-se entender. Pelos defeitos físicos descritos, o seu andar era normalmente lento e claudicante, com um ligeiro puxar de perna. Tinha, quando o conhecemos, uns dez anos de idade, aparentando, no entanto, menos, e, apesar de seus olhos não o denunciarem, era um excepcional voluntarioso.
Desconhecíamos, como as demais pessoas que por ali circulavam, o seu nome, mas todos o tratávamos por Piúca. O seu modo de vestir era sempre o mesmo: trajava um macacão de algodão ou brim, listrado, inteiriço, de mangas e calças curtas, com bolsos dispostos na frente e atrás. A abertura era na frente, com botões até a altura da cintura. Essa indumentária deixava-o livre dentro dela, permitindo-lhe movimentar-se com facilidade. Durante anos o vimos naquela paragem e, às vezes, perambulando pelo lado de fora dos armazéns do cais do porto de Vitória. Nunca o encontramos vestindo outro tipo de roupa. Ele aparentava uma felicidade própria, pois andava livre sem que ninguém lhe seguisse os passos ou ordenasse faça ou não faça isso. Não se queixava. Todos entendiam e respeitavam o seu modo de vida.
Piúca dirigia-se às pessoas somente para pedir, e seu pedido era um só: estendendo a mão, principalmente aos passageiros que saltavam do bonde ou se encontravam à espera.
— Me dá um tutão pra comprá um pão!
E assim ia juntando os trocados e comprando o seu pão de cada dia.
Quando estava mais inspirado, ao dirigir-se a uma senhora para fazer o seu costumeiro peditório, dizia tranqüilamente:
— Mamãe, me dá um tutão pra comprá um pão!
Algumas dessas pessoas se compadeciam e davam o trocado solicitado. Outras, pelo contrário, o espantavam, dizendo:
— Vê lá se eu tenho idade para ter um filho desse tamanho?
Ou então:
— Cruz, credo ! Os meus filhos estão em casa. Saia daqui menino.
Havia senhoras que, dependendo do estado de espírito, se emocionavam com o pedido do Piúca, quando ele as chamava de mãe. Certa feita uma bela moça, abraçada ao seu namorado ou noivo, enlevada por aquele momento romântico e de ternura que só quem vivenciou ou vivencia sabe entender, ficou sensibilizada e envaidecida quando o menino Piúca a ela se dirigiu chamando-a de mãe e fazendo o mesmo pedido de sempre. Ali por perto rondava o bode Cheiroso, comendo as migalhas do chão ou que lhe eram oferecidas por alguém. A jovem mulher, apanhada de surpresa ao ser chamada de mamãe, voltou sua atenção para o pedinte e, grudada mais do que nunca ao seu par, toda melosa, exclamou:
— Veja, bem, que gracinha este menino me chamando de mamãe. Não é cativante o comportamento de uma criança como ele?
— Claro, — retrucou o parceiro, participando com sua amada da tirada do pedinte. Encorajada com a aquiescência, a moça resolveu fazer uma pergunta ao Piúca, na certeza de que a resposta que ia ouvir recairia na pessoa do seu amado:
— Meu filho, vou lhe dar o seu tostão, mas você vai me responder uma coisa: se eu sou a sua mãe, quem é o seu pai?
E Piúca, sem se fazer de rogado, apontou para o bode Cheir-oso e foi categórico na resposta, apesar de sua fala mole e arrastada:
— É o bode ali, mamãe!
E foi saindo de fininho com a boca entreaberta, um sorriso maroto e os lábios molhados de saliva, sem esperar nem pelo tostão prometido nem pela resposta decepcionante que lhe deveria dar a sua mãe postiça.
Dissemos que Piúca, além de pedinte, era um menino trabalhador. O seu trabalho consistia em catar grãos de café nos armazéns do porto de Vitória, caídos dos caminhões durante as cargas e descargas. Piúca se colocava perto deles e ali, abaixadinho, passava horas e horas juntando de grão em grão o café que escapava entre as linhas do tecido das sacas por sobre a cabeça dos estivadores, ou quando as sacas eram empilhadas umas sobre as outras. Outros grãos também escapavam da agulha do conferente, à porta de entrada dos armazéns, na conferência do produto e na verificação de sua mostra. De um em um, pacientemente, Piúca ia recolhendo os grãos de café e colocando-os em saquinhos de pano que levava para isso. Ao fim dessa cansativa tarefa, quase diária, apresentava os grãos a um freguês certo. Diz o ditado que "de grão em grão a galinha enche o papo." Piúca, de grão em grão, sem que se apercebesse, no correr dos anos, deve ter juntado dezenas e mais dezenas de sacas de café. Segundo algumas pessoas que o acompanhavam mais de perto, foi com os recursos amealhados em seu trabalho que seus familiares adquiriram uma casa na qual se abrigaram e ao Piúca.
Essas foram as últimas notícias que tivemos dele. Nas ruas, nunca mais o vimos. Não sabemos se isso aconteceu pelo agravamento do seu estado de saúde ou porque estava escrito nas estrelas!
Macarroni! Macarroni! Macarroni!
Foram muitos os acontecimentos relacionados com os bondes. Uns alegres e pitorescos, outros tristes e marcantes. Vamos contar um dos casos pitorescos.
Os estudantes que pegavam o bonde das onze horas em Vila Velha preferiam, na sua grande maioria, ocupar o reboque por causa da passagem mais barata e também por ser menos elitizado, permitindo à meninada maior descontração para, em algazarra, brincar entre si. Ali eram trocados apelidos, corria-se nos estribos do reboque passando de balaústre em balaústre, saltava-se e pegava-se a condução em movimento. As travessuras se repetiam e se alternavam uma após outra. No reboque das onze horas fazia-se uma festa, já que na sua lotação predominavam os estudantes.
Essa brincadeira e essa liberdade se disseminaram de tal modo que por causa de uma delas experimentamos severa reprimenda da direção do Ginásio Espírito Santo, onde estudávamos, mais precisamente no salão nobre desse educandário. Antes que essa penalidade acontecesse, o chefe de disciplina, Tenente Josias, da Polícia Militar, determinou que um dos inspetores de classe fosse às salas de aula para convocar um a um os estudantes moradores de Vila Velha que tomavam o bonde antes do ponto Ataíde, conduzindo-os sem maiores explicações àquela sala de reuniões.
Compreendemos que, fosse lá por que fosse, a convocação dos estudantes estava atrelada a determinado trecho da linha de bonde em que eles o tomavam. Havia uma exclusão cujo motivo ignorávamos. Depois de acomodados nas cadeiras do salão nobre, apresentou-se o chefe de disciplina, para lá de sisudo e sério, no alto do seu um metro e sessenta mais ou menos, comunicando-nos que acabara de receber uma queixa registrada contra os estudantes de Vila Velha, referente a um determinado trecho da linha, formulada por um estudante do Colégio Americano conhecido como Barrinhos. Ele alegava que o sossego da sua família, especialmente do seu avô, estava sendo perturbado. Dissera que os estudantes, passageiros do reboque, ao passarem em frente à casa desse senhor — justamente na hora do almoço — deixavam-no atordoado em meio à gritaria dirigida a ele.
O local em que isso ocorria chamava-se ponto Cavalieri, e era o segundo após a estação de Aribiri. Antes de alcançá-lo, passava-se por um estreito corte de pedras, tão junto ao bonde que um passageiro desavisado que viajasse no estribo seguro ao balaústre levava um tremendo susto na impressão de que o paredão alcançaria suas costas. Esse corte, com mais de cem metros de extensão, de pedras irregulares, rasgado a ferro e a fogo, era um lugar sombrio de onde uma água escorria e gotejava permanentemente por entre as suas fendas ou ranhuras. Ambas as laterais, de altura duas vezes superior à do bonde, compostas de rochedos irregulares e úmidos, com a penetração, nas suas aberturas, de húmus envolvido com terra, permitiam que ali brotassem capins e outros vegetais que eram cortados pelos conservadores da linha de ferro, que, quando disso cuidavam, advertiam passageiros e a própria condução do iminente perigo de atingi-los.
Na saída desse corte de pedras deparava-se com um ponto de bonde e a casa dos Cavalieri. Constituía-se, na verdade, de duas casas tipo chalé, geminadas. Ambas as casas faziam frente para o ponto de bonde e uma delas, a do lado esquerdo, ostentava uma espécie de varanda embutida, de onde se viam instaladas no interior uma grande mesa, cadeiras, armário e guarda-louças, indicativos de uma sala de refeições, como na verdade era. Esse ambiente era especialmente devassado pelos bondes e não muito para quem passava a pé.
Coincidentemente, quando o bonde por ali passava, beirando as onze e meia, a família Cavalieri estava almoçando, e com ela o chefe do clã, um senhor de cabelos brancos rebaixados e vasto bigode também branco. Devia ser um desses muitos italianos que imigraram para o Brasil.
Um dia, no horário do almoço, o bonde repleto de estudantes, a família estava fazendo sua refeição junto a outros comensais e mais o velho Cavalieri. Sentado de frente para o reboque, ele saboreava uma suculenta macarronada. Comia e ao mesmo tempo abria um largo sorriso para os passageiros do bonde enquanto introduzia na boca generosas garfadas. Durante algum tempo os estudantes ficaram calados e impressionados com a sua avidez e apetite enquanto comia a macarronada, deixando-a pender pelos cantos da boca antes de encaminhá-la ao seu destino final com a ajuda do garfo.
A partida do bonde, no entanto, quebrou a mudez da moçada. Enquanto estavam parados ninguém se manifestara, mas aos primeiros movimentos das rodas sobre os trilhos assanharam-se os estudantes. Um deles deu um primeiro grito e os demais fizeram coro em alto e bom som, dirigido ao velho Cavalieri: Macarroni! Macarroni! Macarroni! O bonde sumia na curva, mas ainda ecoavam os repetidos gritos dos estudantes.
Na primeira vez o Cavalieri recebera a manifestação um tanto quanto surpreso, mas nos dias seguintes o coro se repetia estivesse o bonachão do Cavalieri comendo ou não a sua macarronada. Em lá estando o italiano, como sempre acontecia no horário de almoço, os colegiais esperavam a partida do bonde para começar a gritar. E era o mesmo refrão: Macarroni! Macarroni! Macarroni!
O pobre homem vinha até quase a porta de saída da sala de refeições, olhando a rua, gesticulando e bradando alguma coisa inaudível e abafada pelos gritos insistentes da garotada em euforia: Macarroni! Macarroni! Macarroni!
De fato, a brincadeira desrespeitosa não poderia durar mais tempo. Dever-se-ia estabelecer uma trégua para que se desse sossego ao saudável italiano. Nem trégua, mas um tratado de paz amistoso e incondicional a favor da parte prejudicada. Isso dependia de nós estudantes em não provocá-lo. Seu parente, o estudante Barrinhos, agiu muito bem ao levar o fato ao conhecimento da direção do Ginásio Espírito Santo e cremos que se procedeu da mesma forma com alunos de outros estabelecimentos de ensino de Vitória que andavam no visado reboque das onze horas, partícipes dessas provocações. Só assim o sossego voltaria a reinar à mesa de refeições dos Cavalieri.
O fato é que o chefe de disciplina, Tenente Josias, no salão nobre, não podendo punir discriminadamente a todos os indisciplinados que envergavam o uniforme do Ginásio durante a ocorrência por não identificá-los, já que o denunciante inteligentemente não os apontara, resolveu, no lugar da punição, aplicar uma severa advertência, sendo explícito: "Hoje ninguém será punido, mas se uma só queixa relacionada ao caso chegar novamente ao meu conhecimento, estejam certos de que todos vocês aqui presentes, com os seus respectivos nomes anotados, serão exemplarmente punidos com a suspensão das aulas por três dias." E arrematou: "E as conseqüências serão imprevisíveis se reincidirem nessa injustificável provocação."
Valeu. Sabíamos que tinha autoridade para assim proceder. Foi como água fria na fervura. O silêncio no ponto de bonde do Cavalieri na hora do almoço, durante a passagem do reboque das onze horas saído de Vila Velha, voltou a imperar. Até o próprio ofendido mostrava não acreditar no que os seus sentidos através dos olhos e ouvidos lhe transmitiam. Voltara a comer sorridente a sua macarronada. Encarava os estudantes do reboque com aquele mesmo sorriso que ostentava antes de ser molestado no seu sossego. Sem mais perturbações, às vezes chegava à mureta da sala de refeições e, sorridente, acenava para a meninada estudantil como se estivesse celebrando a paz e esta, se redimindo do malfeito, retribuía-lhe o mesmo gesto, com largos sorrisos que, por certo, enchiam de alegria o coração do velho e simpático italiano!
[In SETÚBAL, José Anchieta, Ecos de Vila Velha, Vila Velha-ES: PMVV, 2001. Reprodução parcial autorizada pelo autor.]
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José Anchieta de Setúbal nasceu em Vila Velha-ES e se formou em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Ex-prefeito e ex-vereador por Vila Velha, foi procurador substituto do Estado, sub-chefe da Casa Civil, coordenador da Defensoria Pública e secretário da Justiça. Foi membro do Conselho de Sentenças da Comarca da Capital e sócio-fundador do Rotary Club de Vila Velha.
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