Artigo 31
Nesta como em outras festas bebem cauim ou cauaba, vinho preparado com a mandioca ou aipim.É notável o processo para obter esse resultado. Reúnem-se moços, velhos, homens, mulheres, e, destacada a raiz da mandioca, cozem-na em grandes panelas. Depois de amolecida, mastigam e a lançam em cochos (paus cavados como pequenas canoas) e, lançando água, deixam por dois dias fermentar, mexendo muitas vezes com as próprias mãos... Pronto o vinho, bebem-no quente ou frio. Dentre as velhas quem tiver seu dente mal seguro, nesse processo da mastigação, pode ficar sem ele, indo parar ao cocho. E repugnante o serviço.
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Essa gente é muito tímida e inocente.
Em uma ocasião trouxeram do sertão um cadáver para ser sepultado. Ao atravessar o rio que borda a vila de Santa Cruz, a canoa, por força da viração do nordeste, virou-se e o defunto caiu ao mar, tomando um bom molho. Notando isso e supondo vestígios de algum crime, indaguei e um deles, depois de alguma hesitação, respondeu-me: “A falar as verdades, este homem morreu de duas mortes (!). Uma morte, a primeira, foi de febres, a segunda foi de afogamento no rio. Podeis fazer as devassas por testemunhas, circunstantes presentes, que aqui estão...”
Essa redundância de palavras era própria de um índio espevitado, que tomou o nome de Luís Ludovico, porque ao batizar-se o padre pronunciou Ludovice, vocativo latino que corresponde a ó Luís. Esse índio era um letrado, inspetor de quarteirão, e por força de sua autoridade, ex vi legis, quando trazia para a vila sua canoa, carregada de gêneros, dois de seus oficiais de justiça vinham remando! Fazendo uma ocasião um ofício, pôs no alto: Quartel de nossa residência em Santa Ana, mãe de Maria Nossa Senhora....
Contava-me que seu pai Miguel da Silva tinha sido vereador da câmara municipal de Vila Nova [de Almeida] no tempo do Rubim; que assinara uma representação ao imperador porque o Rubim se apresentara no paço vestido com um mandrião!!!...[ 1 ] Tanto ele como o pai sabiam ler e escrever, tendo aprendido o Ludovico com o padre Gomes, e o pai com o mestre do colégio.
Boa vida levava essa gente no doce seio da tranquilidade!
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Desde 1836 principiaram os negociantes de carne humana a iludir a vigilância do governo inglês que, por um tratado de 1831, convencionara com o Brasil extirpar o tráfico de africanos. A posição astronômica do nosso continente era a melhor possível e as enseadas, favorecidas por ilhas que punham as embarcações ao abrigo dos ventos e dos navios ingleses de grande calado que acossavam àquelas, ainda ignorantes do fundo de nossa costa, frustravam todas as tentativas de aprisionamento. Piúma, Guarapari, Vitória e Santa Cruz foram os lugares mais cômodos para os desembarques.
Passamos portanto por essas crises que entorpeceram a marcha de nossa civilização, cujas consequências de inda hoje experimentamos e por alguns anos hão de retardá-la pela reação difícil a operar-se no futuro do desenvolvimento da lavoura e comércio.
A liberdade, hoje consentida, traz uma inação, como folga a uns e represália a outros, do trabalho brutalmente forçado. O pássaro, solto depois de uma longa prisão, fica perplexo na vida a seguir e nos voos que o devem elevar. Só a necessidade fá-lo-á conhecer os meios regulares para aplicar-se ao trabalho, única garantia da vida própria e social.
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NOTA
[ 1 ] Como dito antes, roupão curto e ligeiro para uso doméstico.
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
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