Ilustração de Manuel de Andrade de Figueiredo, Nova escola para aprender a ler, escrever e contar, 1722 (fac-símile). Afonso Cláudio...

Introdução: Questão de limites

1/01/2016 0 Comentários

Ilustração de Manuel de Andrade de Figueiredo, Nova escola para aprender a ler, escrever e contar, 1722 (fac-símile).
Ilustração de Manuel de Andrade de Figueiredo, Nova escola
para aprender a ler, escrever e contar, 1722 (fac-símile).



Afonso Cláudio de Freitas Rosa (1859-1934) foi o primeiro estudioso a produzir uma análise sistematizada da produção literária do Espírito Santo. Figura de muitas faces, como político chegou à presidência do Estado e como homem de estudo deixou obras pioneiras, entre elas Insurreição do Queimado, Trovas e cantares capixabas e História da literatura espírito-santense. Esta última, que é a que interessa aqui, foi concluída em 1907 mas impressa somente em 1912, nas Oficinas do Comércio do Porto; a razão – de cunho político – por que a impressão foi feita na Europa, em vez de na Imprensa Nacional, como estava previsto, o autor dá numa “Explicação preliminar” que integra o livro. Uma segunda edição fac-similada inaugurou, em 1981, a Biblioteca Reprográfica Xerox, com tiragem de 2.000 exemplares e apresentação de Clóvis Ramalhete. Quais os autores classificáveis, na opinião de Afonso Cláudio, como pertencentes à “literatura espírito-santense”? Ele o diz na introdução à sua obra:

[…] incluí entre os nomes de quantos contribuíram para a formação e desenvolvimento literários, os de muitos que não tiveram a região por berço de nascimento, mas nela formaram interesses por tempo mais ou menos longo.
A consideração a que atendi parece-me justificada por todos os motivos.
No caso sujeito, os estímulos trazidos por outros brasileiros ao desenvolvimento local, influíram no curso das idéias.
Foram espíritos que alentaram a cultura por dilatados anos e conquanto no território não tivessem o berço, todavia aí constituíram família, aí tiveram amigos, aí assistiram ao êxito ou ao descalabro de suas aspirações, à efetividade dos seus anelos e desilusões; consequentemente, aí atuaram de qualquer modo.
Justo é, portanto, que os reivindique ao berço do nascimento — aliás arbitrário e ocasional — o berço da afeição ou da adaptação, elegível, deliberado e adotado por uma série de atos inequívocos.
Não seria obra meritória, preterir por um requinte de nativismo irritante, quem quer que do país ou do estrangeiro, viesse com a sua cooperação profícua fecundar a seara intelectual de uma das menores circunscrições territoriais da pátria.[ 1 ]

O próximo a fazer um estudo abrangente da produção literária do Espírito Santo foi José Augusto Carvalho, que em 1982 publicou, nos números 21, 22 e 23 da Revista de Cultura da Ufes, o seu Panorama das letras capixabas, título que acabou prevalecendo sobre o do projeto de pesquisa original, que era História da literatura no Espírito Santo. Ao justificar as razões do título adotado, diz o autor:

Chamar “literatura capixaba” à produção literária local seria uma temeridade que faria pressupor a existência no Espírito Santo de uma atividade poética autônoma que a tornasse diferente e distante da literatura brasileira como um todo. Ora, como não se pode falar em “literatura baiana”, “carioca” ou “paulista”, também não se pode falar em “literatura capixaba”. E o nome História da literatura no Espírito Santo, se não omitisse o caráter incompleto de nossa abordagem (sempre e sempre um tonel das Danaides, pelo fato de haver a constante pressuposição de que nem tudo se pode dizer a respeito de coisa alguma) pelo menos poderia enganar o leitor com a promessa de um trabalho mais completo. Assim, o título Panorama já dá uma ideia de incompletude, e a continuação — das letras capixabas — sugere uma abordagem mais ampla que poderia incluir até mesmo o que não é necessariamente literário. Mais que um rótulo cômodo, pela possibilidade de eliminar teorizações, Panorama das letras capixabas pode sugerir o conjunto da produção dos autores locais, sem que isso implique um bolsão literário independente e presunçosamente sui-generis, mas que deixe claro o caráter específico de nossa abordagem.[ 2 ]

Oscar Gama Filho, no prefácio do mesmo Panorama, não deixou de especular sobre a questão:

— Em primeiro lugar surge uma indagação: o que é literatura capixaba? É o conjunto das obras produzidas no Espírito Santo? É o conjunto das obras escritas por capixabas natos? É o conjunto das obras que versam sobre o Espírito Santo? É o conjunto das obras esteticamente significativas para o Brasil? É o conjunto das obras esteticamente significativas para o Espírito Santo? Não é verdadeira a primeira opção porque, caso contrário, deveriam ser omitidos autores capixabas que escreveram a maior parte dos seus livros fora do Espírito Santo, como é o caso de Rubem Braga. Não é verdadeira a segunda opção porque, caso contrário, muitos que aqui passaram parte de sua vida não seriam mencionados, como é o caso de Ciro Vieira da Cunha (paulista de nascimento). Não é verídica a terceira opção porque, caso contrário, deveriam ser incluídos os viajantes estrangeiros, como Saint-Hilaire e Biard, e seus livros informativos sobre o Estado. Não é verdadeira a quarta porque temos poucos nomes ocupando posição de destaque no cenário nacional. Parece que apenas a última é adequada, apesar do grau de subjetividade que encerra.[ 3 ]

Neste Mapa incluímos os autores nascidos no Espírito Santo, tanto aqueles que produziram sua obra no Estado natal como fora dele, embora admitamos que, dentre estes últimos, nem todos tenham permeado sua obra, como fizeram Rubem Braga e José Carlos Oliveira, de uma carga palpável de referencialidade regional. Seguindo a lição de Afonso Cláudio, incluímos também aqueles autores que, embora nascidos fora do Espírito Santo, produziram aqui uma parte importante de suas obras, contribuindo para “fecundar a seara intelectual” do Estado. Seguindo a lição de Oscar Gama Filho, tentamos dar uma idéia, no presente trabalho, do que seria um “conjunto de obras esteticamente significativas para o Espírito Santo”, aceitando como inevitável o alto grau de subjetividade que implica essa escolha, como bem acentua Oscar. Por fim, divergindo de Afonso Cláudio e de Oscar Gama Filho, preferimos acatar a opinião de José Augusto Carvalho e fugir de formulações como “literatura espírito-santense”, “literatura capixaba” e “literatura do Espírito Santo”. Cremos que o conceito “literatura brasileira feita no Espírito Santo” (apesar de não abarcar os autores capixabas escrevendo fora de seu Estado, presentes neste trabalho) é adequado para o que se produziu de literatura nesta que é “uma das menores circunscrições territoriais da pátria”. Quanto aos objetivos do presente trabalho, pode-se dizer que o Mapa pretende, primordialmente, oferecer uma atualização do Panorama de José Augusto Carvalho, publicado há quase vinte anos. Diferente do Panorama, não inclui amostra da obra dos autores citados, mesmo porque isso será feito em verbetes dedicados a autores específicos e também destinados a veiculação nesta página. Se a estrutura do trabalho pode por vezes parecer de relevo acidentado, isso se deve, em parte, à opção de se agregarem ao texto certas informações de acesso mais difícil para o leitor possivelmente interessado, como os dados sobre o caso sui-generis do poeta Antônio Dias Tavares Bastos e os detalhes sobre o concurso do príncipe dos poetas capixabas. Deu-se ênfase, ainda, à transcrição de textos pontuais para o estudo de tendências diversas, como editoriais de revistas e manifestos de grupos literários. A apreciação crítica foi feita em doses homeopáticas, sobretudo na base de citações, já que ensaios críticos deverão integrar os verbetes individuais dos autores. Entendemos este trabalho como tendo função essencialmente informativa sobre a literatura brasileira feita no Espírito Santo. Aqui o interessado – desde o curioso pertinente até o estudante de qualquer grau de ensino – poderá encontrar pistas para o que de mais significativo se produziu no Estado como contribuição, aliás, não só à literatura brasileira mas também àquilo que Wilson Martins chamou de “inteligência brasileira”. Caberia até, não fosse a presunção do conceito, sugerir que o que está aqui é um roteiro da inteligência espírito-santense. Lembramos que o Mapa foi produzido especificamente para divulgação na internet, onde foi ao ar no primeiro semestre de 2001. Esta publicação compreende uma versão corrigida do texto original e atualizada até o ano de 2003 inclusive. Por fim, registramos nosso agradecimento à colaboração preciosa que, na composição deste trabalho, recebemos de Renato Pacheco, Oscar Gama Filho e Fernando Achiamé, pesquisadores associados do Neples.

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NOTAS


[ 1 ] Afonso Cláudio [1912], p. xxxiii/xxxiv.
[ 2 ] José Augusto Carvalho [1982], n. 21, p. 53-4.
[ 3 ] Oscar Gama Filho [1982], n. 21, p. 48.


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Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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