Primórdios do futebol
Olímpico Esporte Clube, Vila Velha, ES, 1947. Revista Sport Ilustrado. |
Vila Velha não poderia ficar a reboque de Vitória sem ter pelo menos um time desse esporte. O pontapé inicial teria que ser dado. Fez-se então uma reunião com alguns aficionados, dentre eles Durval Araújo (Dongo), Aureliano Falcão Filho e Carlos Queiroz. Depois de tudo arranjado, foram convidados os companheiros que com aqueles vinham treinando em campo aberto e traves improvisadas. A partir de um consenso estabeleceu-se o nome da agremiação, homenageando-se o terceiro presidente da República do Brasil. Restava ainda escolher e demarcar o campo. Perto da residência de Durval Araújo, localizada no bairro Olaria, onde hoje funciona o Hospital Maternidade Dr. Antônio Bezerra de Faria, havia um local propício que precisaria ser preparado com antecedência. Primeiramente seriam arrancados alguns tocos que afloravam à terra e aplainadas pequenas saliências. Arrancado o capim existente outro o substituiria, sendo este obtido num pasto ao lado para que o transplante fosse bem sucedido. Concluída essa primeira etapa, as traves foram levantadas e demarcadas as quatro linhas do campo conforme as regras do jogo.
A inauguração aconteceu com festa, dela participando um dos clubes de Vitória, na certeza de que iria infligir uma fragorosa derrota ao time estreante. A vontade de fazer bonito na primeira partida encheu de brio os jogadores do Campos Salles. A defesa por parte dos backs deixou muito a desejar no início do jogo, obrigando o goalkeeper Aureliano a fazer defesas importantes para delírio dos entusiasmados torcedores. Mesmo assim, no começo do segundo tempo o placar registrava 2x0 para os visitantes. Reiniciada a peleja, o center-forward Carino brigava como um leão na área do adversário, sendo alimentado nas investidas pelo ponta-esquerda Alberto Queiroz e o meia-esquerda Carlinhos Queiroz. Sendo um jogador forte e impetuoso, Carino não demorou a marcar o primeiro gol do seu time. Antes que o juiz apitasse o final da partida, com aplausos do público presente, Carino marcava o segundo e último gol.
Não venceu o Campos Salles, mas para um clube estreante o resultado estava pra lá de bom. Só o fato de não tomar a goleada prometida fora um grande feito. Desse primeiro jogo não conseguimos identificar a escalação completa do team de Vila Velha.
Assim foi o Campos Salles. Sabemos, com certeza, da sua existência e das pessoas interessadas em sua fundação, da localização de sua quadra esportiva, do nome de alguns jogadores e alguns de seu feitos, mas não conseguimos identificar ainda três dos componentes desse brioso time. Quem sabe alguém, mais tarde, tomando conhecimento desse nosso esforço e pesquisando, não identificará o team completo? Estaremos torcendo.
Os nomes dos ex-integrantes do Campos Salles de que dispomos são os seguintes:
a) backs ou zagueiros – o direito, Clovis Ramires, e o esquerdo, Dorval Almeida;
b) linha média – Durval Araújo (Dongo) seria o half direito ou lateral direito; o half esquerdo ou lateral esquerdo é desconhecido para nós; e o center half ou centro médio, José Loureiro (Tamandaré);
c) linha de frente – tivemos conhecimento de Carino Duarte de Freitas como center-forward ou centro-avante; de Alberto Carlos Queiroz (Bebé) como ponta-esquerda; e de Carlinhos Queiroz na meia-esquerda;
d) goalkeeper – Aureliano Falcão.
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As partidas eram disputadas com equipes de Vitória e o acontecimento virava festa. As denominações das posições dos jogadores ainda se mantinham no inglês, a não ser as da linha de frente, que logo foram traduzidas para pontas esquerda e direita e meia esquerda e direita. A de center-forward só bem mais tarde passou para a de centro-avante. A linha média, constituída de half esquerdo e direito e center-half, o centro médio ou laterais esquerdo e direito avançados. A linha média hoje se confunde com os armadores e a linha de frente com um ou dois atacantes e, às vezes, até três. A zaga, de backs esquerdo e direito, um deles se jogar mais recuado é chamado de líbero. E o goalkeeper de goleiro.
Quanto às regras, permaneciam as denominações antigas: corner, escanteio; offside, impedimento; lateral, lateral mesmo; penalty, penalidade máxima; hand, mão; foul, falta; goal, gol, etc.
A vida do Campos Salles teve duração efêmera, mas a equipe deixou suas marcas jogando contra os grandes plantéis da capital. Em certa ocasião, numa disputa com o Vitória F. C., campeão da capital, como se diz na gíria, botou terra nas suas comemorações, ao lograr vencê-lo nos seus próprios domínios. Foi um feito e tanto. Segundo nos contou Milton Caldeira, o poeta Mário Ferreira Queiroz, irmão de Carlos Queiroz, ficou tão entusiasmado que idealizou uma trovinha que passaria a ser cantada pelos torcedores canelas-verde. Era assim: "Campos Salles, Campos Salles, / É um team de memória / [esqueceu o 3° verso] / Deu fumaça no Vitória". Fumaça era gíria da época equivalente a surra, lavagem etc.
O troféu conquistado pelo Campos Salles era sui generis em se tratando de esporte e de uma partida de football, podendo antes destinar-se a uma exposição canina, servindo de prêmio ao mais bem colocado, principalmente se fosse uma cadela. Quem nos relata isso é Milton Caldeira: "Eu me lembro de ter visto, quando criança, na casa de Dario Araújo, na rua do Torrão, um troféu ganho pelo Campos Salles: uma cadelinha amamentando dois filhotes, em bronze ou imitação." Isso nos leva a crer que Dario Araújo tivesse sido presidente do clube ou participado da sua diretoria.
O Campos Salles também revelou cracks. Carino Duarte de Freitas foi para o Vitória F. C., atuando como um dos seus mais importantes jogadores, goleador na posição de center-forward.
Mais tarde apareceram outros clubes de futebol. Um deles, sobre o qual pouco sabemos, era o Botafogo F. C., cujo campo de futebol tinha entrada pela rua Luciano das Neves, na Toca. O Vasco Coutinho F. C. atuou com a mesma formação entre os anos de 1931 e 1934. Quatro de seus integrantes ainda se encontram vivos: Milton Caldeira, Floriano Santos, Ernesto Vereza e Elmar Duarte. O plantel desse clube tinha os seguintes jogadores: Juca e mais tarde Odilon Amaral, goleiros; Ernesto Vereza, zagueiro direito; Elmar Duarte (Titiu), zagueiro esquerdo; Floriano Santos, Milton Caldeira e Moacyr Lofêgo, linha média; João Carneiro, Lindolphinho, Horácio, Joaquim e Rubens Rezende (Bacalhau), atacantes.
Reis Novaes, já falecido, destacou a atuação de dois desses jogadores: do centro-médio Milton Caldeira e do centro-avante Horácio de Inhoá. Segundo ele, Milton Caldeira dominava e passava a bola como um verdadeiro maestro, armando e alimentando jogadas. Do segundo jogador, Horácio de Inhoá, nos falou o próprio Milton Caldeira, que o apontou como um dos melhores centro-avantes que viu jogar. Rápido e de jogadas imprevisíveis, Horácio deixava a defesa e o goleiro adversários em polvorosa e quando menos se esperava a bola ia para o fundo da rede, ou, melhor dizendo, para o fundo do terreno, onde estavam assentadas as traves.
Antes ou depois do Vasco Coutinho muitos outros times despontaram em Vila Velha, como o Santos, o Leopoldina, o América de Aribiri, o Vila-velhense, mais tarde o Social, o Atlético, o Olímpico, o Ideal, o Tupi e tantos outros mais novos ou, quem sabe, mais velhos do que estes.
A bola
O instrumento mais importante para a realização de uma partida de futebol, por certo, é a bola de couro. No começo do século XX, por mais esmerada que fosse a sua fabricação, ela não tinha uma forma perfeitamente redonda, apresentando inevitavelmente deformidades, como proeminências ou calosidades. Por uma abertura permanente era introduzida a câmara de ar, e pelo seu formato, quando vazia, assemelhava-se a uma grande carambola de quatro gomos. Para enchê-la, no seu prolongamento havia embutida e colada uma mangueira fina, de uns cinco centímetros de comprimento. Com a câmara de ar introduzida na bola e a mangueirinha voltada para fora, enchia-se esse recipiente elástico até que este se expandisse suficientemente. Com a bola assim cheia, dobrava-se rapidamente ao meio a pequena mangueira, amarrando-a fortemente para que não escapasse nenhum ar. A mangueira ereta pela metade e para cima era depois empurrada para dentro da bola com os dedos.
A pelota, como também era chamada, carecia de cuidados em seu acabamento e, antes mesmo de se introduzir a câmara de ar, prendia-se, por um pequeno nó na ponta, uma tira fina de couro que, enfiada numa agulha grossa e própria, costurava ambas as bordas da abertura, passando por todos os furos dos dois lados até chegar ao último. À medida que a agulha ia costurando, percorrendo os buracos afora, o encarregado dessa tarefa procurava unir o mais que pudesse as duas laterais, para que a forma final se aproximasse ao máximo da ideal, ou seja, o mais redonda quanto possível.
Essa bola de futebol dos nossos antepassados era também conhecida como bola de costura. Quando o chute atingia a parte irregular da costura ou a calosidade formada pela mangueirinha, causava grande dor, principalmente se forte e dado de mal jeito. O goleiro, nas suas defesas, se ressentia por demais, dependendo da violência do chute e da posição em que agarrava a bola.
[In SETÚBAL, José Anchieta, Ecos de Vila Velha, Vila Velha-ES: PMVV, 2001. Reprodução parcial autorizada pelo autor.]
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José Anchieta de Setúbal nasceu em Vila Velha-ES e se formou em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Ex-prefeito e ex-vereador por Vila Velha, foi procurador substituto do Estado, sub-chefe da Casa Civil, coordenador da Defensoria Pública e secretário da Justiça. Foi membro do Conselho de Sentenças da Comarca da Capital e sócio-fundador do Rotary Club de Vila Velha.
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