Rumo ao norte
Se pensasse melhor, Benedicto Lacerda teria mudado há muito tempo o nome com que o falecido Sinhô batizou o seu conjunto: Gente do Morro. Neste 1934 ainda são muitos os prenceitos contra as populações lá de cima, o pessoal pobre que se empilha em centenas, milhares de barracos de paredes de caixote. Não é por acaso que os preconceituosos membros das famílias de classe média ou alta, quando querem ressaltar a má educação de alguém, costumam dizer com desprezo: “Parece gente do morro.”
Mas Benedicto Lacerda não pensou nisso. Seu conjunto, embora com a formação de grupo de choro — ele na flauta, Canhoto no cavaquinho, Carlos Lentine e Gorgulho nos violões, Russo no pandeiro — vem se dedicando cada vez mais ao samba, influência que Benedicto traz dos seus tempos de Estácio, onde foi criado entre os meninos de morro que mais tarde mudariam os rumos da música popular carioca. A inclusão de Russo — por sinal, também criado no Estácio — e outros ritmistas em seu grupo de choro atende a essa caminhada em direção ao samba. O nome Gente do Morro tem a ver com ela.
Nos primeiros dias de março de 1934, surge a possibilidade de uma excursão de artistas cariocas a algumas cidades do norte fluminense e Espírito Santo. João Cantuária, bom camarada, simpático, que sonha em tornar-se grande empresário (sonho que jamais realizará), procura Benedicto para propor a organização de pequena companhia de músicos, humoristas, cantores, para apresentações em várias cidades. A começar por Campos, na medida em que as coisas forem correndo bem, a companhia irá se dirigindo para o norte, Espírito Santo, Minas, talvez Bahia, Pernambuco, Ceará, um roteiro bastante ambicioso. O flautista se anima. E se incumbe da parte musical, enquanto Cantuária se encarrega da administrativa.
Benedicto encontra, porém, dificuldades. Por motivos diversos, Lentine e Gorgulho não querem sair do Rio por tanto tempo (afinal, não há data prevista para o término da excursão, tudo dependendo das bilheterias que conseguirem). Assim, seu regional começa desfalcado. Se estava em seus planos levar algum cantor de sucesso, um Francisco Alves, um Mário Reis, um Sílvio Caldas, uma Carmem Miranda, a ideia não passa disso. A viagem tem muito de aventura e nenhum cartaz do rádio há de trocar o certo pelo duvidoso, o emprego fixo por uma atividade itinerante e temporária. Esses problemas obrigam Benedicto e Cantuária a algumas improvisações. Privado de seus dois excelentes violonistas, o flautista contrata o amigo Macrino Medeiros e pede que o cômico Coringa, além das piadas e emboladas, ajude com seu violão no acompanhamento. Na parte humorística, aproveitando que Coringa e seu companheiro de dupla, Grijó Sobrinho, vão levar as mulheres, as duas serão utilizadas em sketches. Por fim, os cantores. Foi de Cantuária a sugestão de convidarem Itamar de Souza, morena bonita, voz afinada, mas quase desconhecida, que por estar atrás de uma chance não fará exigências maiores. A indicação do cantor é de Benedicto:
— Que tal o Noel Rosa?
NOEL e Benedicto Lacerda conhecem-se há tempos. Antes de tornarem-se profissionais, fizeram serenatas juntos em Vila Isabel. A amizade cresceu quando Noel começou a frequentar o Estácio e mais ainda quando, ambos decididos a viver de música, passaram a se encontrar em programas de rádio, gravações, espetáculos em cinema e teatro. No dia 17 de janeiro, os dois participaram de um recital beneficente do Sindicato Brasileiro de Artistas de Rádio, no mesmo programa da revista Eva Querida, no Recreio. Eles, Almirante, Sílvio Caldas, Manezinho Araújo, Ary Barroso, Custódio Mesquita, Jorge Murad, Nonô, Renato Murce, João Petra de Barros, Sylvio Vieira, Sylvia de Toledo e o conjunto do Sindicato dirigido por Pereira Filho. Nestas ocasiões, Noel canta não só sucessos como trabalhos que pretende tornar conhecidos. É o caso de Para Atender a Pedido:
Para atender a pedido
Tudo o que eu tenho sofrido
Eu preciso esquecer
Pois é preciso esquecer
Pra poder te perdoar
Antes de te visitar.
Deves te acostumar
A fazer o que eu mandar
E a me respeitar
Fica estabelecido
Que não mentes nunca mais
Para atender a pedido.
Antes de esquecer
O teu triste proceder
Que me fez padecer
Eu já tinha me convencido
Que havia de voltar
Para atender a pedido.
E também Por Você Sou Capaz, onde se encontra — além do prazer da vadiagem, da aversão ao trabalho e até da rendição do malandro capaz de apanhar por amor — uma referência a vovô Eduardo, tão avesso aos jogos de azar desde a época do mexicano Zevada.
Por você fico cego, surdo e mudo
Por você eu passo fome até morrer
Por você sou capaz de tudo
Até o trabalho sou capaz de experimentar
Pra conhecer
Eu não sou mau rapaz
Não procuro brigar
Por você sou capaz
De gostar de apanhar!
Eu padeço demais
Sem me desabafar
Por você sou capaz
De aprender a chorar!
Meu avô que odiava
Esses jogos de azar
Por você arriscava
Um tostão no milhar!
Neste espetáculo, Benedicto Lacerda e seus companheiros (Lentine, Gorgulho, Canhoto e Russo) apresentaram-se como Conjunto Guanabara. Agora, como o grupo é efetivamente outro (saíram Gorgulho e Lentine, entraram Macrino, Coringa e os cantores, além de Doidinho para reforçar o ritmo com seu ganzá) e como Benedicto pretende que o samba, o samba tipicamente do Estácio, São Carlos, Favela, Saúde, Gamboa, seja o forte do repertório, troca o Guanabara pelo antigo Gente do Morro. Já se verá, um erro estratégico.
Benedicto Lacerda é um músico formidável. Como flautista, um virtuose diplomado na escola dos chorões, mas que aprendeu muito também como músico de banda e mais ainda em seu convívio com o pessoal do samba. Esta será sua grande marca. Enquanto Pixinguinha, por exemplo, segue a tradição de um Patápio Silva, soprando sua flauta em choros, valsas, polcas e maxixes, Benedicto criará sua própria tradição, a de primeiro ( e talvez único) flautista do samba, descobridor de introduções e contrapontos que vão enriquecer o gênero, sobretudo através das muitas gravações que fará acompanhando os maiores cantores desta e de futuras épocas. Como líder, é homem de personalidade, inteligente, atento, de muita perspicácia e poucos escrúpulos. Como Francisco Alves, também é de percorrer a cidade atrás de sambistas anônimos, disposto a comprar ou a apropriar-se sem cerimônia de suas composições inéditas. É absolutamente verídico aquele seu golpe com Baiaco nas mesas de café do Mangue.
Noel Rosa também é grande cartaz e normalmente teria os motivos de Francisco Alves, Mário Reis, Sílvio Caldas, Carmem Miranda, para não querer sair do Rio em troca do certo pelo duvidoso. No entanto, aceita o convite de Benedicto. Por quê? Não há a menor garantia de que ganhará dinheiro lá fora. Nem de que a jornada o fará mais conhecido em outros pontos do país. Na verdade, sequer sabe ao certo aonde vão, Cantuária seguindo na frente para fazer contatos na próxima cidade incluída no roteiro. E mesmo este roteiro é uma abstração. Está decidido que principiarão por Campos, mas por onde acabarão? E por quais lugares passarão? Noel, contudo, não parece dar importância a essas questões. Quem sabe não vê na viagem boa oportunidade para afastar-se do Rio por longo tempo, de estar tanto quanto possível livre dos problemas com Lindaura? A ausência do Rio poderá trazer-lhe apoquentações, pois é justamente durante a viagem que se dará aquela transação entre Zé Pretinho, Kid Pepe e Mário Reis em torno de Tenho Raiva de Quem Sabe. Mas como adivinharia?
No dia 15 de março, quinta-feira, embarcam todos no trem noturno para Campos. Pouco antes Noel limitou-se a dizer para Lindaura:
— Vou ali na esquina comprar cigarro.
E partiu rumo ao norte. Ele e uma troupe de dez que se vão juntar ao empresário Cantuária (por enquanto ele prefere ser chamado de “secretário”, pois suas tarefas são arranjar hotel, acertar detalhes com os cinemas e teatros locais, cuidar da bilheteria, proceder à partilha dos eventuais ganhos, coisas mais burocráticas do que empresariais). Os dez são aqueles que Cantuária e Benedicto haviam combinado: os quatro do Gente do Morro (Benedicto, Canhoto, Russo e Macrino), mais Coringa e senhora, Grijó Sobrinho e senhora, Itamar de Souza e Noel.
Em Campos, Cantuária informa-lhes de saída que não foi possível programar espetáculos nas principais casas da cidade: estavam todas sem data. O remédio foi procurar o Antônio de Mattos, gerente do Coliseu dos Recreios, e acertar com ele uma série de funções de sábado, 17, a sexta-feira, 24, incluindo três ou quatro matinês. O Coliseu dos Recreios é um cine-teatro popular, quase um poeira, não exatamente o que merecem grandes cartazes do rádio carioca. Em todo caso…
A estada em Campos permite a Noel rever e conhecer parentes que se orgulham de pertencerem à família do compositor de O orvalho vem caindo. São os Pachecos, todos morando no 157 da Rua 13 de Maio. Gastão Meirelles de Freitas Pacheco, agente ferroviário, é o dono da casa. Ele, a mulher, Julieta, e os sete filhos — Haydée, Célia, Jacy, Lygia, Nelie, Lourdes e Luís Carlos — recebem o primo do Rio com agrados. Principalmente Célia e Jacy, ela pianista, ele poeta, e portanto mais identificados com o compositor popular Noel Rosa.
A estréia no Coliseu dos Recreios está longe de ser o que se costuma chamar de começo com o pé direito: pouca gente para uma noite de sábado, justamente quando se esperava que o velho teatro ficasse lotado. E o interesse parece estar muito mais na exibição do filme Abraça-me bem (Hold me Tight), com James Dunn e Sally Eilers, do que no Gente do Morro. Só nos dias que se seguem os campistas ficam sabendo que os artistas cariocas que os visitam não são um grupo folclórico formado nos morros do Rio, ritmistas de escola de samba e suas cabrochas, batuqueiros e negras velhas cultores de pontos e outros sons de terreiro. Escolas de samba e macumba são coisas que o campista de classe média ainda não gosta de ouvir falar. Por não as conhecer, fica longe delas. Quem há de querer pagar três ou quatro mil réis para ver gente de morro batendo atabaques, tocando primitivamente suas violas e cavacos?
O equívoco não tardará a ser desfeito. Em parte pela propaganda que farão do espetáculo os poucos que lá estiveram, uma propaganda de boca, do tipo: “São ótimos estes artistas do Rio!” E em parte também porque a imprensa vai falar não só com mais entusiasmo mas com mais clareza sobre a espécie de espetáculo em cartaz no Coliseu. Por exemplo, no dia da estréia, o único jornal da cidade a noticiá-la, A Folha do Comércio, o fez nestes termos:
Compositor laureado e intérprete inigualável do que é seu, do que é nosso, está Noel Rosa em nossa cidade, animando, ao lado do consagrado flautista, também compositor, Benedicto Lacerda, a troupe de variedades que se encontra no Coliseu dos Recreios. Criador de uma escola, conseguiu aliar à poesia dolente de sua idade [sic] a marcação crioula do batuque. O samba de Noel Rosa é nascido de um consórcio feliz do Morro com a Avenida. Tem a sutilidade [sic] maviosa da menina elegante e a cadência malandra da catita bacana. |
Mais adiante:
O autor de Três Apitos compõe um samba para cada mulher que conhece. Acontece, porém, que mais de dez mulheres se dão a conhecer ao saberem do samba. Noel Rosa é um paradoxo. Tem 23 anos de idade e mais de 300 [sic] composições o contemplam. Chegou a cursar medicina. Parou no meio porque o Salgueiro fica distante da Praia Vermelha.[ 1 ] |
Um registro elogioso, sem dúvida, mas falando demais em morro, em marcação crioula do batuque, em catita bacana, num jovem de 23 anos sem juízo o bastante para trocar o anel de doutor pela música do Salgueiro. Para o leitor campista, não ficou muito claro o que estava em cartaz no Coliseu dos Recreios.
Três dias depois, O Monitor Campista esclarece:
De fato, Gente do Morro merece um destaque especial no seu gênero. É um verdadeiro conjunto regional, interpretando com fidelidade toda a série de músicas nacionais, desde o samba cadenciado até a valsa sentimental e querida dos pierrôs e colombinas. E tudo isso eles fazem com arte, ritmo e uma naturalidade espantosa, que arrancam palmas estrepitosas, bis seguidos. Noel Rosas [sic] é o homem que, parece, nasceu para o gênero. Canta, com muita alma, todas as canções que o conjunto executa com mestria.[ 2 ] |
Essa história de valsas sentimentais, pierrôs e colombinas agrada bem mais às famílias campistas. E o Coliseu dos Recreios, a partir de terça-feira, passa a receber um público digno dos artistas cariocas. Daí para o sucesso é um pulo. Sucesso de todo o grupo, mas especialmente de Noel Rosa. O excelente centrista de cavaquinho, Canhoto, jamais esquecerá como Noel domina a platéia com sua arte. Uma platéia que, invariavelmente, faz pouca fé nele, ao ver e ouvir Grijó Sobrinho apresentar, um a um, os integrantes do grupo. São muitas as palmas para Benedicto Lacerda. Deliram as pessoas quando Russo, em vez de uma mesura, responde aos aplausos fazendo rodar seu pandeiro na ponta do indicador. Gargalhadas e mais palmas para Coringa. Palmas também para Macrino, Doidinho e os humoristas. Até o próprio Canhoto — menos conhecido que outros canhotos como Américo Jacomino e Rogério Guimarães, e não sabendo ainda se se entrega exclusivamente à música ou se mantém o emprego de mata-mosquitos que o sustenta — pois até este modesto Canhoto é saudado entusiasticamente. Mas, chegada a hora de Noel, Grijó anunciando: “E aqui Noel Rosa, o Bernard Shaw do Samba”, a reação é outra. Uns riem, outros esboçam tímidas palmas, outros mais murmuram comentários que traduzem desapontamento: “Puxa, não sabia que era tão feio!” Tudo isso até que caiba ao desajeitado Noel, o corpo franzino, o ombro meio de lado, debruçar-se ao violão para, no segundo ou terceiro número da noite, cantar um de seus sambas:
Fiz um poema pra te dar
Cheio de rimas que acabei de musicar
Se por capricho
Não quiseres aceitar,
Tenho que jogar no lixo
Mais um samba popular.
Eu bem sei que tu condenas
O estilo popular
Sendo as notas sete apenas
Mais eu não posso inventar.
Se acaso não gostares
Eu me mato de paixão
Apesar de teus pesares
Meu samba merece aprovação.
Por motivos bem diversos
Escrevi meu samba assim
Fiz o coro após os versos
E a introdução eu fiz no fim.
E o Coliseu dos Recreios estremece com tantas palmas e assovios.
Mais Um Samba Popular foi feito pouco antes da viagem, mas só será lançado oficialmente no ano que vem por um crioulinho que virá de Minas para o Rio convencido de que pode fazer carreira no teatro. Um artista de circo chamado Sebastião Bernardes de Souza Prata, de 19 anos, mais conhecido pelos colegas pelo pseudônimo de Grande Othelo. O samba de Noel será cantado por ele em sua segunda experiência nos palcos cariocas, a revista de Jardel Jércolis e Geysa Boscoli, Estupenda!, encenada no Teatro João Caetano. Uma peça que por sinal marcará muito a vida do mineiro Sebastião, pelo samba de Noel e por ter ele sofrido ali o primeiro pito profissional de sua vida. Tendo de aparecer num dos sketches ao lado de um comediante já bastante popular, o espanhol Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Tereza y Díaz — ou simplesmente Oscarito — vai se esquecer de que este é o “cabeça-de-quadro” e tentar roubar o show. como poderá se atrever a dividir uma cena com Oscarito este tal de Grande Othelo? Jardel o repreenderá.
Mas isso só vai acontecer no ano que vem. Por ora, Mais Um Samba Popular é pouco conhecido, quase inédito. Tem melodia de Vadico, que um dia mostrou-a a Noel, a primeira parte toda pronta, letra do próprio pianista:
Eu fiz um samba pra te dar
Feio ou bonito, faça força pra gostar
Se não gostares
Eu só posso te dizer:
“Meu benzinho, me perdoe,
Que melhor não sei fazer.
Noel, com aquele jeito todo seu de não dizer claramente quando não gosta de alguma coisa (nem precisava), perguntou a Vadico se podia fazer uma letra inteiramente nova. O parceiro concordou, nascendo assim o novo samba que só terá sua primeira gravação daqui a muito tempo.[ 3 ]
Gastão Meirelles de Freitas Pacheco trabalha muito e ganha pouco. Mal tem tempo para sorrir. Noel esbarra com seu ar fechado e o desmorona numa frase:
— Primo, enquanto a gente estiver aqui você vai Ter que deixar sua caturrice de lado. Nós vamos invadir sua casa. Por nossa conta.
E Gente do Morro de fato invade o lar dos Pachecos. Com música e alegria, no tempo em que estiverem em Campos, promovendo ali alguns saraus.
Sarau campista Nossa casa se enche de moças e rapazes, de intelectuais, músicos, boêmios, gente do povo. Caras conhecidas. Caras estranhas. Os penetras. Eram todos de casa, naquela noite. Lá para as 20 horas chegam dois barris de chope. Na sala de visitas Célia toca piano e a dança tem início. Noel chega com Benedicto Lacerda e os demais elementos do Gente do Morro. Entra em ação a flauta mágica, o pandeiro do Russo. O baile se anima. Pouco depois, a sala vai se esvaziando, enquanto a copa está intransitável. Por que motivo o pessoal se desloca da sala para o interior da casa? Ah! O Noel está junto ao barril de chope, pegado num tremendo desafio com o poeta Claudinier Martins. Então podemos apreciar versos saborosíssimos, que são improvisados pelos dois artistas. Forma-se a roda. Em seguida, as moças puxam Noel para a sala de visitas e obrigam-no a empunhar o violão. Pedem que ele faça uma quadrinha para cada uma delas. Noel forma um perfumado círculo feminino. Entra na roda. Canta. Aponta para os brincos de uma e improvisa versos de bela feitura. Sobre os cabelos louros de outra, os olhos negros daquela outra, faz uma segura demonstração de seu talento poético, monopolizando atenções e aplausos. Sua agilidade mental é espantosa. As moças pedem bis, querem copiar os versos que ele improvisa, guardar de lembrança os galanteios. De madrugada, quando a festa terminou, a rapaziada acompanhou Noel na serenata que se seguiu, até o sol iluminar a planície… Jacy Pacheco Noel Rosa e Sua Época |
Todas as madrugadas são madrugadas para Noel. No Rio de Janeiro ou em Campos. Aqui, de noite, pouco importa a que horas tenha começado o espetáculo, quanto tenha durado, se está ou não cansado, seu rumo nunca é o do Hotel Gaspar, na Praça São Salvador, onde estão hospedados. Não antes das cinco, seis da manhã. Até Russo, boêmio incorrigível, desses que vivem batendo recordes de noites em claro na Lapa e outras plagas, tem dificuldades em acompanhar o ritmo do amigo.
Russo — na verdade Antônio Cardoso Martins — é alegre, cheio de espírito. Virou pandeirista por acaso. Vendia medalhinhas milagrosas nos domingos de festa da Penha, uma forma de complementar seu esquálido salário como mecânico e depois como vendedor de inseticida Flit, quando teve a atenção atraída por um grupo de choro que se apresentava numa das barraquinhas. Viu um pandeiro largado sobre a cadeira, pegou-o, brincou com ele. Um dos músicos do grupo gostou, achou que Russo tinha bossa e convidou-o a entrar para a turma. Desde então, não largou mais o instrumento. Tão ligado está a ele que, daqui a algum tempo (e para sempre), ficará conhecido não como Antônio, ou mesmo Russo, mas como Russo do Pandeiro.
Russo passa a recusar os convites de Noel para as madrugadas campistas. Não tem fôlego para tanto. Conforme ficara acertado por Cantuária com Antônio Mattos, o Gente do Morro deveria fazer várias matinês no Coliseu. Noel, sempre dormindo, recuperando-se da noite em claro, jamais participou de uma matinê. Grijó Sobrinho dirigia-se ao público para explicar tal ausência, uma vez que o nome de Noel estava no programa.
— Senhoras e senhores, lamento informar-lhes que, por motivos de saúde, nossa principal atração, o grande Noel Rosa, o Bernard Shaw do samba, não estará conosco esta tarde. À noite, porém, nós o teremos aqui cantando como ninguém os seus sambas.
Toda matinê a mesma coisa. Muitos dos que vão ao Coliseu à tarde o fazem porque trabalham à noite. E acabam saindo frustrados com a repetida ausência de Noel Rosa. Um desses trabalhadores noturnos, na terceira ou quarta vez em que Grijó recomeça suas explicações, “Senhoras e senhores, lamento informar-lhes…”, interrompe lá das torrinhas:
— Já sei, não precisa dizer. O homem está doente!
A estada de Noel Rosa e o Gente do Morro em Campos é, por muitos motivos, agradável. Os boêmios da terra tentam acompanhar Noel, ouvem-no cantar na zona boêmia, ficam impressionados com seu jeito de levar na conversa, entre um samba e outro, mulheres escoladas, aparentemente imunes a qualquer tipo de lábia. Os amigos de Jacy se aproximam dele. Como o Claudinier Martins, poeta também. Meio doente, sifilítico, estranho.
— Vou me matar! — costuma exclamar durante uma conversa.
Jamais cumprirá a ameaça. Mas uma noite, Noel e todos os outros acompanhando-o num passeio à margem do Paraíba, Claudinier levará um susto. Primeiro, repete:
— Hoje eu vou mesmo me matar!
Os companheiros todos o agarram, gritando:
— Ou você se joga no rio, ou o jogamos nós!
Claudinier, apavorado, consegue desvencilhar-se. E sumir em disparada na noite campista.
Jacy Pacheco escreve um artigo sobre os artistas cariocas. Tem conhecidos na imprensa, os jornais abrem-lhe espaço:
Ninguém contesta. Noel Rosa e Benedicto Lacerda não precisam mais de reclame. Estão imortalizados em inúmeros discos com suas belas composições. No último carnaval, tivemos, de Noel, O Orvalho Vem Caindo, Você Por Exemplo e outras cousas boas que iriam encher muitas linhas se fosse mencioná-las aqui.[ 4 ] |
Arêas Júnior, sob o pseudônimo de Aristarco II, publica em sua seção Picolé Singelo uma quadrinha que revela estar superado o insucesso dos primeiros dias, o Coliseu dos Recreios, propriedade de Antônio Mattos, lotado a cada apresentação:
Sobre o fato não discorro
Digo sem espalhafatos:
— A turma do Gente do Morro
Foi trazida pelo Mattos.[ 5 ]
Na quinta-feira, dia 22 de março, o espetáculo dos artistas do Rio é enriquecido com a participação do pessoal da terra. Jacy Pacheco sobe ao palco para recitar um soneto caipira de sua autoria. “Ele não é caipira”, esclarecerá uma vez mais a Folha do Comércio, “mas a Gente do Morro também não é do morro”.[ 6 ] Outros músicos e poetas campistas aproveitam a oportunidade para mostrar o que sabem: Cássio Chaves, José Honório de Almeida, Oswaldo Aguiar, Claudinier.
Com pessoal da terra ou não, o líder da tournée é mesmo Benedicto Lacerda. Que sabe manter a disciplina a qualquer preço. Na fala mansa ou no braço, como fez com o Russo no dia em que este andou saindo da linha. Benedicto aplicando-lhe tabefes em frente ao hotel e o pobre do Russo chorando como menino.
Sábado, dia 24, o espetáculo tem lugar no Clube Tenentes de Plutão. Para uma platéia seleta, porém menor. De domingo a terça-feira, 27, mais três funções, desta feita no Cine-Teatro Trianon. No dia seguinte, seguem viagem para Muqui. Deixam Campos e os campistas com saudades. Noel principalmente. Jacy Pacheco dirá seu adeus numa quadra publicada exatamente no dia em que o primo se vai:
Este sambista tem fama
Na capital gloriosa
Cada mulher que ele ama
Um samba faz… — Noel Rosa![ 7 ]
MUQUI, já no Espírito Santo, é uma pequena cidade da Zona Serrana do Sul, a pouco mais de 200 metros de altitude, com população de mil e poucas pessoas, hospitaleiras e muito religiosas. No roteiro traçado por Cantuária e Benedicto Lacerda, outro equívoco. Como dirá Noel Rosa, daqui a alguns meses, em carta à prima Célia, “um lugar horrível”. Não tanto pelo lugar em si ou por seus habitantes, mas pelo que o Gente do Morro vai passar aqui.
Chegam a Muqui na quarta-feira. Na noite seguinte, 29 de março, Quinta-feira Santa, dá-se a estréia no único cinema da cidade. Durante todo o dia, porém, o padre local percorreu as ruas, bateu de porta em porta, advertindo as ovelhas de seu rebanho sobre os pecados de se ir ver e ouvir sambistas de morro, boêmios da cidade grande, cultores de uma música profana, justamente nos dias sagrados da Semana Santa. Resultado: o cinema fica vazio. Até no sábado de Aleluia — quando todos os moradores do município de São João de Muqui costumam vir à cidade para uma prosa, um passeio na praça, um cinema — ninguém quis saber do Gente do Morro. Pecado é pecado, inclusive sob as bênçãos da Aleluia.
Será ainda na carta a Célia que Noel vai contar a mania que Russo pegou, ao passar por esta cidade tão insensível à arte do Gente do Morro: “O Russo pandeirista, quando quer xingar alguém, chama de ‘tipo muquiense’. O Russo está com a razão.”
VITÓRIA. Bonita cidade, crescendo muito, estação de rádio, cinemas, bondes, lugares bonitos, praças, praias. O Palácio Anchieta, onde está o túmulo do célebre jesuíta. A chácara do Barão de Monjardim e tudo mais. Uma população de quase 30 mil habitantes. Gente próspera, classe média em ascensão, atenta à moda e à cultura que vêm do Rio. Para adotá-las, é claro.
A história se repete na capital capixaba, o nome Gente do Morro afugentando o público, muitos supondo tratar-se de um grupo improvisado e malvestido de sambistas da Favela.[ 8 ] O gerente do melhor cine-teatro da cidade, o Glória, nem quis receber João Cantuária. Imagine se sua casa de espetáculos, tão respeitável, ia descer ao nível da gente do morro! A solução é recorrer ao Politeama, outro poeira, tão ou mais velho e arruinado que o Coliseu dos Recreios. Só que desta vez Benedicto Lacerda e sua turma não contarão com propagandas de boca, muito menos com o apoio da imprensa. E as coisas se complicarão.
A estréia em Vitória é na noite de 4 de abril, quarta-feira. Será o bastante para Benedicto concluir que toda essa excursão é um erro. Se perto do Rio, em Campos, Muqui, Vitória, tudo é difícil, o público abandonando-os, o que dizer do norte do país, Bahia, Pernambuco, Ceará, onde talvez ninguém jamais ouviu falar dele e de Noel Rosa?
Todos os membros da caravana se preocupam com esse fracasso. Benedicto, o pessoal do Gente do Morro, Grijó Sobrinho, Coringa, Itamar, as outras mulheres. Todos, menos Noel. Para ele, estar em Vitória é antes de tudo uma oportunidade de descobrir novos ambientes, novas pessoas. Ainda que os ambientes e as pessoas sejam muito parecidos com os que ele conhece no Rio. Continua no seu ritmo de vida, desaparecendo nas madrugadas depois do espetáculo, passando as noites em cabarés e prostíbulos, só chegando à Pensão São Luís, onde estão hospedados, pelas cinco, seis da manhã. Nos primeiros dias, Russo e Canhoto tentam acompanhá-lo. Como de hábito, perdem o fôlego e acabam desistindo.
Noel gosta de Vitória. Curiosamente, sente-se bem aqui. Como se a distância do Rio o deixasse livre de Lindaura e de todos os problemas. Faz amizades, especialmente no Félix, cabaré de quinta categoria freqüentado por boêmios, marinheiros e malandros. Costuma sair diretamente do Politeama para o tal cabaré, onde muitas vezes sobe ao palco — não mais que um estrado de madeira para os músicos de uma orquestrinha da categoria do lugar — e ali canta. Ou se acompanhando ao violão ou empunhando um megafone que, à falta de um microfone de verdade, leva sua voz fraca a todos os cantos da sala. Depois da quinta ou sexta cerveja, improvisa versos a pedido dos presentes. Como esta quadrinha dedicada a uma das mulheres, de nome Yolanda, o mesmo da popular marca de cigarro:
É você a que comanda
E o meu coração conduz
Salva a dona Yolanda
Rainha da Souza Cruz.[ 9 ]
Quando não está no Félix, pode ser encontrado na Pensão do Badu, lugar que não deve sequer ser mencionado por gente de família, quanto mais freqüentado. É ali que conhece Alagoano. É ali também que vai conhecer Isaura, uma das melhores coisas que lhe aconteceram nesta viagem. Alagoano é um moreno alto, magro, cara de mau, amigo de gente influente do lugar. Mais que isso, é um desses muitos capangas que os coronéis do interior têm a seu serviço. Só anda armado e um de seus prazeres é provocar gente da polícia, espécie de prova de fogo em que ele, costas largas, acaba sempre levando a melhor. Alagoano fica amigo de Noel. E vai esperá-lo todas as noites à saída do Politeama. Benedicto, Russo, Canhoto, ninguém mais do grupo participa desses programas que se prolongam até de manhã. Russo só vai uma vez, dança na Pensão do Badu, canta, bebe e com o sol surgindo acompanha Noel em seu passeio diário até o Mercado Municipal, onde ostras frescas com limão são o café da manhã do amigo.
— Tomo isso todos os dias. É o que me dá forças — explica Noel.
Canhoto também só vai uma vez. Para nunca mais. Passam pelo cabaré, bebem, saem para tomar ar na Praça Independência, a principal da cidade.[ 10 ] Estão os três sentados no banco de pedra quando Noel diz:
— Alagoano, onde é o banheiro mais perto?
— Pra quê?
— Dor de barriga.
Alagoano vê se aproximar o guarda que faz a ronda por ali, todas as noites. Há muito tempo vinha aguardando oportunidade para provocá-lo, medir forças com ele, ver qual dos dois tem mais vocação para dono da cidade. O guarda se aproxima, passa pelo banco onde estão os três, cumprimenta-os. Alagoano não perde a oportunidade:
— Noel, tu não tava com vontade de ir ao banheiro?
— Estou.
— Pois então faz aqui mesmo no meio da praça.
— Aqui?
— Isto, no meio da praça.
O guarda olha, um pouco assustado. Noel fica sem saber o que fazer.
— Anda, Noel. Eu tou mandando. Faz aqui mesmo.
Noel obedece. Começa a soltar o cinto. O guarda olhando, imóvel, sem dizer nada, e ele desabotoando a calça.
— Anda logo, Noel. Não faz cerimônia. A praça é sua. Quem manda nesta cidade sou eu, o Alagoano.
E assim, sorriso amarelo, diante de um Alagoano mal-encarado e de um Canhoto perplexo, o guarda vê Noel desapertar-se em plena Praça Independência.
Ao fim da primeira semana em Vitória, ainda há esperanças de que a excursão tome pé. Mais que isso, os planos de seguir em frente, rumo ao norte, são mantidos. O que está bastante claro no programa que o Clube dos Democráticos faz distribuir pelas ruas de Vila Velha anunciando a única apresentação do Gente do Morro naquela cidade: “…antes de partir para a Bahia, onde deverá estrear no Teatro Jandaia.”
Vila Velha, ex-Espírito Santo, é outra pequena cidade. Ao sul de Vitória, pouco mais de cinco mil habitantes, uma vida pacata em frente à praia mansa, um dia será tragada pelo crescimento da capital. Por enquanto, porém, tem vida própria, cinema, clube, a praça, o belo outeiro onde está o Convento de Nossa Senhora da Penha. Mas o Gente do Morro não tem tempo para ver nada disso. Vem, toca nos Democráticos, volta para Vitória. Nos dias que se seguem, Benedicto, antes de todos os outros, chega à conclusão de que quanto mais cedo voltarem ao Rio, melhor. O Politeama vive vazio, ninguém parece interessado em samba, a idéia de aumentar o preço dos ingressos na esperança de arrecadar mais também não surtiu efeito. Pelo contrário, afastou mais o público. Noel mantém-se mais ou menos alheio a essas questões empresariais. Dorme de dia, sai de noite. Bebe muito, come pouco, as ostras com limão pela manhã, dois ovos fritos à tarde. Só quer saber de noitadas, Alagoano a tiracolo. Félix, a Pensão do Badu, violão, samba, cerveja, mulheres, Isaura.
Diversamente de Benedicto, está gostando da viagem. Não concorda em voltar. Ele e Doidinho — que também arranjou mulher na Pensão do Badu — têm planos para ir até Colatina, ou tentar a sorte em outras cidades. Cachoeiro de Itapemirim, por exemplo. Não, eles não vão voltar ao Rio tão cedo.
— Pois nós viajamos amanhã — diz Benedicto para os demais.
Gente do Morro e seus adendos estão sem dinheiro. Não têm sequer para pagar a Pensão São Luís. Cantuária descobre que a Leopoldina dispõe de sistema muito interessante de venda de passagens: um desconto de cinqüenta por cento para quem comprar dez. Ele, Benedicto, Russo e Canhoto levantam algum emprestado com o gerente do Politeama, compram as dez passagens e vão para a porta da estação vender seis. Desse jeito, pagarão o que devem, viajarão de graça e ainda ficam com o dinheiro de uma passagem.
— E a pensão? Como é que vamos pagar? — pergunta Canhoto.
— Não vamos — diz Benedicto, categórico.
Decidem dar um “cano de ferro” no proprietário. De madrugada, quando todos estiverem dormindo, pegarão as malas e sairão de fino. Farão hora em algum lugar até embarcarem. Só que, na confusão, além de suas malas, pegam por engano a de Doidinho que dormia com sua mulher na Pensão do Badu. De manhã cedo, o tocador de ganzá fica uma fera. Nem Gente do Morro, nem sua mala. Vai à polícia e faz queixa. O delegado se mobiliza. Que seus colegas em todo o estado interceptem quatro passageiros assim, assim, um deles com uma flauta, outro com um pandeiro, o terceiro com um cavaquinho, o quarto com uma mala preta. Além de deixarem Vitória sem pagar o dono da pensão, levam uma valise roubada. O trem, que deve fazer uma viagem de 22 horas até o Rio, vai parando em Argolas, Viana, Marechal Floriano, Araguaia, Sagrada Família. Quando chega a Matilde, uma estação antes de Cachoeiro, os quatro são presos.
Na delegacia de Vitória, tudo é esclarecido. Doidinho pede desculpas aos amigos, o delegado passa-lhes um brando carão e diz que está tudo bem, desde que paguem o que devem à Pensão São Luís. Mas cadê dinheiro? A notícia espalha-se pela cidade: os simpáticos músicos do Gente do Morro precisam de ajuda. Onde está a tão decantada hospitalidade capixaba? Um grupo de pessoas interessadas em música popular inicia um movimento destinado a reabilitar Benedicto Lacerda e seus companheiros. À frente deste movimento, descendente do barão, de família ilustre, está Alcebíades Monjardim,[ 11 ] que se dispõe a organizar uma festa no Hotel Imperial, a preços salgados, naturalmente mais voltados para a sociedade local. Todo o dinheiro arrecadado será para os músicos. A imprensa também ajuda. E na noite de 18 de abril, apesar do temporal, faz-se o espetáculo, Benedicto executando suas valsas e choros, Noel cantando seus sambas, Coringa mostrando suas emboladas, Grijó as suas anedotas. Sucesso.
No dia seguinte, a caravana se divide em duas. Benedicto Lacerda (que esquecerá o nome Gente do Morro para sempre, passando a dar o seu próprio ao regional que lidera), Canhoto, João Cantuária, Macrino e Itamar voltam para o Rio. Noel, Russo, Grijó, Coringa e respectivas mulheres tentam ganhar mais algum trocado em cidades próximas. Fazem um espetáculo em Cachoeiro de Itapemirim, outro em Colatina. Ganham apenas para as despesas e voltam a Vitória. Em pouco tempo, o único vestígio que restará da passagem por aqui de um certo conjunto Gente do Morro serão Noel Rosa e Doidinho, cada qual com sua mulher na Pensão do Badu. Casa, comida e amor de graça. Tudo como no seu samba Eu Não Preciso Mais do Seu Amor:
Eu não preciso mais do seu amor,
Mas posso precisar do seu favor
A minha fuga tem o seu porquê:
Disseram que eu dependo de você.
Em troca do amor que eu jurei
Ganhei quatro paredes para morar
O que você me deu eu aceitei
Mas não pedi nem fiz você me dar.
Não nego que você me dava almoço
Jantar e mata-bicho como quê
Agora estou com a corda no pescoço
Disseram que eu dependo de você.
Eu sei que você tem dinheiro à beça
Mas isso quase nada me interessa
Desejo que seu dinheiro cresça
Cresça e no meu bolso apareça.
Eu vou deixar sua companhia
Sem cerimônia e sem fazer chiquê
Talvez na minha nova moradia
Não digam que eu dependo de você.
Noel e Doidinho acham melhor continuar por aqui, cada qual com seu par.
Isaura. Pouco se saberá dela daqui a alguns anos. De Alagoano ainda se falará muito, sobretudo quando, poucos meses depois daquela prosaica cena na Praça Independência, ele morrer anavalhado numa feia briga de botequim. Mas de Isaura, nada. Paixão que Noel alimentou por pouco tempo, pois Martha, ao saber no Rio que o filho não quer mais voltar — e que deixou desamparada a pobre Lindaura — não pensa duas vezes: toma um trem para Vitória, entra decidida na Pensão do Badu, fecha os olhos para o que não quer ver e manda Noel fazer as malas.
A falta de juízo, deve ter pensado, tem limites. E por mais liberdade que arranque da vida, Noel sabe que a mãe está certa.
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NOTAS
[ 1 ] Folha do Comércio, Campos, 17 de março de 1934.
[ 2 ] Monitor Campista, 20 de março de 1934.
[ 3 ] O samba, escrito em fins de 1933, começo de 1934, só seria gravado em 1954 por Ana Cristina com o conjunto de Luís Bittencourt, no antigo selo Sinter. De volta de uma longa permanência nos Estados Unidos, só então Vadico o desarquivou.
[ 4 ] Folha do Comércio, 25 de março de 1934.
[ 5 ] Ibidem.
[ 6 ] Ibidem.
[ 7 ] Ibidem.
[ 8 ] Diz Canhoto em depoimento aos autores, a 13 de março de 1981: “As pessoas nos perguntavam nas ruas se a gente tocava tamanco, como os sambistas de morro.”
[ 9 ] Cantada pelo saxofonista José Miranda Pinto, o Coruja, a Jacy Pacheco, e transcrita por este em seu livro O Cantor da Vila (página 113).↵
[MÁXIMO, João, DIDIER, Carlos. Rumo ao norte. In Noel Rosa – Uma biografia (íntegra, do capítulo 30). Brasília: Linha Gráfica Editoria/Editora Universidade de Brasília, 1990, p. 297-307. Reprodução autorizada pelos autores através de Rogério Coimbra.]
[ 10 ] Atual Praça Costa Pereira.
[ 11 ] Pai de Maysa Figueira Monjardim, mais tarde a cantora e compositora Maysa Matarazzo.
[MÁXIMO, João, DIDIER, Carlos. Rumo ao norte. In Noel Rosa – Uma biografia (íntegra, do capítulo 30). Brasília: Linha Gráfica Editoria/Editora Universidade de Brasília, 1990, p. 297-307. Reprodução autorizada pelos autores através de Rogério Coimbra.]
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João Máximo Ferreira Alves nasceu em 1935, em Friburgo, RJ, é jornalista, escritor, pesquisador e crítico musical. Colaborou em diversos jornais em colunas de esporte e de música.
Carlos Didier nasceu no Rio de Janeiro, em 1954, é compositor, cantor, violinista, historiador e pesquisador da música popular brasileira. Conhecido também pelo pseudônimo Caola, seus primeiros estudos foram sobre Noel Rosa, Sinhô, Ismael Silva e a música do carnaval carioca. Trabalhou como pesquisador na Fundação Rio, em uma série de programas produzidos por Haroldo Costa, para Rádio MEC; lecionou História da Música Popular Brasileira no Conservatório de Música; publicou "Tempo de bambas - o carnaval da Praça Onze, segundo o traço de Alfredo Herculano", pela Rio Arte; e foi responsável pela gestão de informação do Portal da Fundação Nacional de Arte, sendo autor de um projeto cultural na mesma instituição.
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