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A imaginação é como a neblina  – limite entre a luz e o abismo. Diria que  é um mergulho no pólen mas sem a sutileza das abelhas que o t...



A imaginação é como a neblina  – limite entre a luz e o abismo. Diria que  é um mergulho no pólen mas sem a sutileza das abelhas que o transportam; mergulhar, indistintamente, como homens famintos farejam no lixo o que lhes apetece, ou como quaisquer animais se atiram sobre suas reses abatidas. A imaginação dos poetas tem sua carga de fome, como a gênese do corpo e a origem dos sonhos tem sua carga de universo: um poema em outro poema, mimetizados, extraídos de duas essências, limítrofes, tecidas as linhas entre uma e outra manhã, entre um texto e outro que, porventura, entrelace outras mãos, conduza os seus pássaros em rodopios, desfiando os medos e as prisões.

Nunca hei de saber o momento exato em que me apaixonei pela poesia, ou seja lá por que razão eu a tenha surpreendido em quase tudo o que fiz.

Quando era pequena, saía de mãos dadas com minha avó Maria Jesuína, e caminhávamos pelo bairro Bom Pastor. Nascida em Juiz de Fora, cercada por morros e vegetações, gostava de vislumbrar as manhãs mineiras de um dos pontos mais altos da cidade. Havia nos arredores da casa uma trilha estreita que levava até os barrancos, de onde se avistavam de um outro ângulo os bairros mais distantes.  Nada sei dos sonhos nem o tanto que recriei de universos, mas da vegetação me lembro perfeitamente: em sua maioria eram pequenas ervas, capim – gordura, mamonas, algumas árvores ornamentais de floração amarela, touças de capim fino crescendo ao longo das calçadas, plantados aos montes no jardim inclinado, sob a rampa que dava acesso à varanda de nossa casa.

Juiz de Fora é uma cidade fabril – talvez por essa razão, ou porque fossem comuns as tempestades no fim dos dias, era, para mim, uma cidade em preto e branco. Mas foi ali, exatamente em seu arco-íris cinzento, que descobri as primeiras pinceladas de cores, traçadas ou não pela pequena poetisa, surgindo dos jardins, entre o cheiro das dálias e dos gerânios, nos canteiros de hortaliças, perscrutando nas bananeiras ao fundo do quintal. Não raro saíamos mamãe vovó e eu para colher, entre as fartas ramagens, algumas abóboras, das mais novas, e eu me punha a olhar as aboboreiras, as flores dos quiabeiros com seu miolo de um vermelho escuro e raro. Muitas vezes as acompanhei, nesses passeios pelos terrenos além de nossa propriedade, enquanto colhiam as abobrinhas, trazendo junto um molhe de serralhas e outro de cebolinha. Minha avó crescera no campo e minha mãe, numa cidade pequena, em casa de assoalho e paredes rudimentares – no banheiro, sentia-se o odor do cimento molhado, absorvido com perfume dos sabonetes; da cozinha desprendia-se o cheiro fresco de temperos, de bifes regados a um caldo acebolado e gotas de pimenta, possivelmente nunca mais perceptíveis em nenhum canto imaginável deste mundo. Da avó vieram todos os nomes de planta, o odor indecifrável da marcela, as descobertas de pequenas ervas, e de todos os tipos de folhagens e flores.

Havia sempre um lugar para se explorar naqueles dias intermináveis. Da janela do meu quarto viam-se os primeiros raios da manhã, e o acender das luzes, ao cair da noite, às vezes misturado aos odores de plantas, aos aromas da cozinha e à música dos Beatles.

Os verões não eram tão longos e as férias começavam mais cedo, sempre associadas, na minha euforia, à florescência exacerbada das rosas e dos ipês, ao cheiro de carne assada e à visão dos bambuzais ao vento, em contraste com o azul quase impermeável do céu.

Semelhante a esse azul, algumas doses de alegria pontuavam dias perfeitos, no sabor das balas compradas na venda da esquina, nos ramos sortidos de brincos de princesa, nos tecidos novos dos primeiros uniformes escolares. Lembro-me de minha mãe sentada ao meu lado, de tardezinha, ambas recostadas em algum lugar ou fronteira de mundos, e ela lia “As mais belas Histórias” para mim. Quando me levava ao dentista, íamos a uma padaria do Centro comer sonhos. Eu atravessava as avenidas olhando os fios, os pardais, repetindo, baixinho, os versos de Henriqueta Lisboa: “Andorinha no fio contou-me um segredo...”, mais ou menos assim.

Comecei a escrever de fato aos dezoito anos, copiando capítulos inteiros da novela O Profeta, de Ivani Ribeiro. Copiava e recriava das cenas o que eu lembrava em detalhes os mais sutis. Depois comecei a escrever poemas líricos. Percebi, na minha ingenuidade, que eram profundos, mas não sabia o quando ainda mergulharia naquele universo indivisível, em sua linguagem e emoção. Quando iniciei os estudos na universidade, conheci segredos de lagarta; depois, um tempo demorado de casulo, até que se me desprenderam as asas úmidas.

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Foto Maria Clara Medeiros Santos Neves, 2015. FICHA TÉCNICA Coordenação Reinaldo Santos Neves Pesquisa e transcrição de entre...

Foto Maria Clara Medeiros Santos Neves, 2015.
Foto Maria Clara Medeiros Santos Neves, 2015.


FICHA TÉCNICA


Coordenação
Reinaldo Santos Neves


Pesquisa e transcrição de entrevistas
Inês Aguiar dos Santos Neves
Reinaldo Santos Neves
Rogério Coimbra

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SUMÁRIO



Memorial descritivo

Vitória, ES: Cidade pontual no início do milênioFernando Antônio de Moraes Achiamé

Entrevistas (2004-2008)





















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© 2014 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Lúcia e Michael Carasso com seus dois filhos.  "Era uma manhã, bem cedo, como outra qualquer, quando de repente bateram à porta e ...


Lúcia e Michael Carasso com seus dois filhos.
Lúcia e Michael Carasso com seus dois filhos.
 "Era uma manhã, bem cedo, como outra qualquer, quando de repente bateram à porta e disseram em alemão: ‘Fora! Fora de casa agora!’

Nós éramos sete. Meu pai, minha mãe, eu e mais quatro irmãos. Saímos do jeito que estávamos, com a roupa do corpo. Todos, com armas em punho,  nos levaram para o carro. Foi uma longa viagem de trem, interminável, de  Salonica, Grécia, para a Polônia. Todo mundo em pé, igual gado, quase sem se mexer, de tão lotado que estava. Fazia frio... Sentíamos fome, sede, medo, desespero, tudo! Não entendíamos o que estava acontecendo.

Nosso destino foi um campo de concentração na Polônia. Lá eles separaram os homens das mulheres, as mães de seus filhos, a minha mãe de mim e dos meus irmãos. Só não me separaram da minha irmã Mary, que esteve comigo durante todo o tempo e saiu viva de lá também. Meus outros irmãos eu nunca mais vi.

As crianças, na maioria dos casos, eram descartadas. Eu era muito nova, a filha caçula, não tinha nem 12 anos, mas sobrevivi porque era grande e esperta, boa para trabalhar. Além disso, tinha facilidade com línguas e aprendi a falar alemão lá dentro, o que me fez ser a tradutora oficial dos nazistas: traduzia do alemão para o grego ou espanhol. Facilitando a comunicação entre eles e nós, prisioneiras.

Os principais campos em que passei foram de Auschwitz-Birkenau, Dahau e Bergen-Belsen, na Alemanha, de onde fui salva.

O trabalho era inútil, praticamente com o objetivo de acabar com nossa força e ânimo: destruíamos casas novas, lindas, que eram dos judeus, tirando janelas, portas, tudo... As peças de valor eram separadas. Também cavávamos terra, andávamos muito, íamos e voltávamos de um lugar a outro. E sempre com gente nos vigiando. Quem parasse de trabalhar apanhava. Para podermos descansar, nós nos vigiávamos. Quando os nazistas estavam chegando, um avisava ao outro para todo mundo voltar a trabalhar. Começávamos cedo e só parávamos à noite, totalmente sem energia.

Banho era com água gelada e o sabonete era feito com os corpos das pessoas que eles matavam, ou de pancadas, ou com tiros ou nas câmaras de gás. Mas só descobrimos isso muito tempo depois... Tínhamos que estar limpinhos e arrumados no outro dia. Mas como? Lavávamos a roupa à noite, mas não dava tempo de secar. Por vezes tínhamos que torcer e colocar embaixo do colchão. Claro que não ficava seca. E aí, muitas vezes, dormíamos nus.

Da família só sobramos eu e minha irmã Mary. Muitas vezes ela dava a comida dela para mim, como um reforço, e acho que isso me ajudou a sobreviver. Com um jeitinho que não “era brasileiro”, muitas vezes ela pedia às chefes do nosso bloco algo a mais para comer, alegando qualquer desculpa. Algumas meninas, que não eram tão ruins, acabavam nos ajudando. No almoço era um caldo ralo, parecendo sujo, feito de casca de batata, sobras dos alemães. E esse caldo era muito salgado, uma forma de tortura também, porque não podíamos beber água a hora que quiséssemos. De manhã, era um café ralo apenas e, à noite, nem sempre tinha algo pra comer. Às vezes uns pedaços de pão tipo caseiro para dividir entre todas nós e só.

Dentro do campo de concentração de Auschwitz tocava uma sirene e ninguém sabia o que era aquilo. Depois, subia uma fumaça e um cheiro horrível. Só depois as pessoas foram desconfiando o que era aquilo. Eram os crematórios.

As pessoas lá dentro eram conhecidas como números. Tenho um número tatuado no braço até hoje: 39.422. Eu era uma dentre milhões de pessoas que estiveram sob a mira furiosa dos SS. Pessoas não! Porque pra eles éramos “sticks”, ou seja, peças. Nunca quis apagar esta tatuagem porque olhando para meu braço eu sei que sobrevivi.

O dia mais feliz daqueles dois anos e meio em que fiquei presa, foi quando os soldados do exército americano chegaram e gritaram: “Estão livres!” Saiu todo mundo gritando, de euforia, de surpresa, de gratidão, de alegria! Gente soltando as ferramentas de trabalho que tinham nas mãos, se jogando no chão, xingando, correndo desesperadamente de um lado pro outro, se juntando, dando as mãos... Teve gente que não acreditou.

Aí, nos levaram para o campo de refugiados na própria Alemanha. Depois, fomos para um refeitório, onde tinha lugar para todo mundo tomar banho e se vestir. Foi ali que encontrei minha felicidade! Conheci Michael, meu falecido marido, que também era grego e esteve preso como eu. E foi amor à primeira vista... Minha irmã também se apaixonou pelo melhor amigo do meu marido, se casaram e foram para os EUA.
 

Eu e Michael fomos para a Grécia. Ele queria ver se encontrava alguém da família dele e eu também tinha esperança de encontrar alguém da minha. Mas não achamos ninguém. Nós nos casamos e tivemos dois filhos, mas, em 1950/1951 fomos para Israel, onde meu marido tinha alguns familiares. Lá ficamos por cerca de três anos.

Pensando em sair de Israel, fomos numa agência de turismo e vimos cartazes de vários países. O do Brasil tinha uma bananeira e uma arara linda! Aquilo chamou nossa atenção, já que sempre gostamos da natureza. Vimos que ali podíamos ser felizes com nossos filhos. Foram mais de vinte dias de uma viagem terrível de navio.

Fomos para São Paulo, mas o navio parou no Rio de Janeiro e a primeira imagem que vimos foi o Cristo Redentor de braços abertos. Então tivemos certeza de que seríamos felizes aqui. Chegamos em 21 de abril de 1954, meu marido falava que era o dia do renascimento da gente. E foi mesmo! Até hoje não sei quantos anos eu tenho! rsrsrsrsr


Em São Paulo, meu marido foi camelô. Depois, viemos para Vila Velha. Ele foi camelô aqui também. Montou uma loja e fomos crescendo na vida. Construímos tudo aqui. Dois filhos, seis netos e cinco bisnetos. As últimas palavras do meu marido para mim foram: ‘Lúcia, não se esqueça da minha promessa’. A promessa era a de colocar nossa história no mundo, para que atrocidades como o holocausto nunca mais aconteçam.

Nossa história é muito triste, mas com um final muito feliz."

Lúcia Carasso.

[Depoimento especial dado à Estação Capixaba. Reprodução autorizada pela depoente.]

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Mantive com Renato Pacheco uma parceria na autoria de vinte livros, reunindo títulos sobre história, obras didáticas e de literatura infanti...

Mantive com Renato Pacheco uma parceria na autoria de vinte livros, reunindo títulos sobre história, obras didáticas e de literatura infantil. Alguns desses trabalhos contaram também com a colaboração da professora Léa Brígida Rocha de Alvarenga Rosa e de meu irmão Reinaldo.

Dos livros infantis, dois, integrantes de uma trilogia iniciada com Tião Sabará, publicado pela Editora Moderna, permanecem inéditos. Além destes, um último romance, ao qual, por minha culpa, minha máxima e exclusiva culpa, não consegui dar seguimento, ficou inacabado.

E é dele que desejo tratar, na tentativa de expiar um pouco essa culpa, embora talvez a única forma de me redimir com a memória de meu amigo e parceiro fosse atacar a obra com fôlego de sete gatos, e fazer a parte que me coube na empreitada.

Não que eu não tivesse tentado. Mas o caminho pelo qual enveredei mostrou-se ser uma vertente diferente da que Renato seguiu e, pela primeira vez em nossa parceria de autores e amigos, comecei a sentir dificuldade para sintonizar o texto que eu redigia e o que Renato me entregara. Aí parei, para me dar um tempo, mas sem pedir isola a Renato. Por isso, volta e meia, ele me cobrava o romance, enquanto eu ficava na moita.

Com a sua morte, senti-me desamparado de vez para prosseguir a história, porque, independentemente do que ele já havia escrito e do que eu escrevi ou pudesse escrever, a sua presença ao alcance das minhas consultas, como fonte de informações ao vivo, era de fundamental importância para a conclusão do livro, pelo menos naquilo que me dizia respeito, segundo o projeto que havíamos idealizado.

E que livro era este?

Bateu na telha de Renato escrever um romance policial centrado no Radium Hotel, tendo por cenário a cidade de Guarapari, por volta dos anos 50. Ao livro, ele deu o nome preliminar de Crime no Radium Hotel. Mas, desde logo, percebi que gostaria que fosse um título definitivo.

O Rádium Hotel e Guarapari formariam, assim, o "ambiente" nuclear da trama policialesca (!), que teria como principal personagem um médico improvisado em detetive, Dr. Silva Pontes.

Em mensagem prévia a que denominou "Duas Palavras", dirigida aos futuros leitores, Renato confessou, conforme está nos manuscritos em meu poder: "O Dr. Silva Pontes foi inspirado no famoso e humanitário médico Dr. Silva Mello (1896-1973), tragicamente morto por seu mordomo, e descobridor das maravilhas curativas de Guarapari [nos manuscritos, desenvolvendo a sua parte do romance, Renato chegou até a grafar Silva Mello, ao invés de Silva Pontes]."

Renato era um grande admirador do médico, a quem se referia como o propagandista pioneiro das virtudes medicinais e curativas das areias da Cidade Saúde, no tratamento natural para alguns tipos de reumatismo. Silva Mello teria, portanto, mais do que ninguém, lugar privilegiado no romance, sob o manto diáfano de Silva Pontes.

A descrição do personagem, Renato a tirou da própria pessoa de Silva Mello, a quem chegou a conhecer em Guarapari: "... uma figura altiva, de pincenê, costeletas bem aparadas, botinas, e cabelos visivelmente pintados de roxo."

E, no romance, a descoberta da Cidade Saúde por Silva Pontes, Renato a foi buscar na obra Guarapari, Maravilha da Natureza, da autoria de Silva Mello:

O Dr. Silva Pontes soubera, na Suíça, das virtudes radiotivas das praias de Guarapari e resolvera visitar a pacata localidade de pescadores, 60 km ao sul de Vitória [...] Silva Pontes pegou seu Ford 29 e enfrentando a falta de estradas saiu do Rio e foi a Muriaé, em Minas Gerais, ao norte, desceu para leste, em São Miguel do Veado, Cachoeiro de Itapemirim, e, três dias depois e dois pneus trocados, chegou à paradisíaca cidade, então com cerca de 400 moradores, a maioria de pescadores. Examinou detidamente as condições de salubridade, as virtudes radioativas da monazita e ilmenita, abundantes nas praias da cidade, e voltando ao Rio, passou a receitar para seus doentes de reumatismo que viessem enterrar-se nas areias de Guarapari.

Numas das muitas achegas que escreveu, depois de já me haver entregue o eixo básico do romance, na vertente que produziu, Renato me passou a seguinte sugestão, sob a pergunta "que acha?": "À moda do Inspetor Morse, Silva Pontes pode, de vez em quando, fazer umas citações: Shakespeare, Dante, Camões, Manoel Bandeira (amigo dele)..." E me recheou de citações que poderiam ser colocadas na boca do nosso médico-detetive.

Outras figuras reais também estão contempladas nos originais de Renato: Jayme Santos Neves, Rubem Braga, Heliomar Carneiro da Cunha, Boris Ackermann — gerente da Mibra, Monazitique e Ilmenite du Brésil, o cantor Sílvio Caldas... A presença de Sílvio Caldas aparece diretamente ligada ao cassino que funcionava no Radium Hotel.

O Cabloquinho querido, como era chamado, viera, em outubro, cantar no hotel, sob o patrocínio de Heitor Latorraca, arrendatário do cassino (clandestino) e tolerado pela polícia e pela Justiça. Gostara da cidade e dois meses depois ainda se deixava ficar, comendo, bebendo e cantando. Dizia que já lançara suas músicas de carnaval, e voltaria para o Rio depois do tríduo momesco.

Além dos nomes citados (afora outros mais), participa da narrativa, como verdadeiro ator coadjuvante, o célebre padre Manezinho — Manoel do Nascimento ("cuja vida é descrita em A Centopéia, de Jayme Santos Neves, Vitória, edição do autor, 1989, p. 81 a 85"), diz Renato, nas "Duas Palavras".

Já no primeiro capítulo, "Um corpo no jardim", da versão inicial do manuscrito de 58 páginas que me legou (fora as que acrescentou depois, para que eu as incluísse onde coubessem), ocorre a menção aos dois personagens principais do romance, Silva Pontes e padre Manezinho. Vale a transcrição (este primeiro capítulo, Renato modificou em parte, posteriormente):

Os cães da rua, invadindo o amplo jardim do Radium Hotel, à beira da praia da Areia Preta, é que, com seus latidos, deram o alarme. Já lambiam e mordiscavam um cadáver desnudo.
Dona Maria Silveira, a cozinheira-chefe, e suas duas auxiliares, vieram correndo para ver que tanto barulho era aquele.
Encontraram o cadáver de uma hóspede, Dona Marinalva Cunha, em decúbito dorsal, sobre uma moita de azaleias.
Dona Maria gritou:
"Socorro! Socorro!"
As auxiliares, Pretinha e Jorete, correram para o interior do hotel, em busca de ajuda. Logo uma pequena multidão de hóspedes, empregados e curiosos se formou em torno do corpo. O gerente, Delduque Bonfim, telefonou para a delegacia e, peremptório, disse:
"Afastem-se. Não mexam em nada..."
Num jipe velho, o delegado leigo Manoel Lyra chegou e dispersou os curiosos.
Soube que era hóspede do hotel o famoso médico carioca Dr. Silva Pontes e logo o convidou para presidir a autópsia.
O médico, descobridor das areias radioativas, se desculpou com sua próxima viagem para o Rio, e eximiu-se da função.
"Então," disse o delegado, "como faço sempre, vou chamar o sacristão e o padre Manezinho para peritos..." E se justificou: "O sacristão fez até o 3° ano de medicina..."
Silva Pontes, embora tendo se desobrigado do encargo, observou detidamente o local em que o corpo caíra, o possível ponto de queda na varanda do segundo andar do hotel, e, com surpresa, ao virar-se o corpo, verificou tratar-se de uma quase paralítica, sempre em cadeira de rodas, vítima de avançado reumatismo.

Ainda sobre o padre Manezinho, que em vida foi personagem que deu o que falar quando vigário na Serra e depois de Guarapari, Renato espalha pelos seus originais várias informações que retratam o temperamento franco e o modo de vida escandaloso do sacerdote. Puxemos, do capítulo 10, uma passagem ilustrativa:

Uma bela afro-brasileira, jovem baixinha e gordota, chegou à porta e disse:
"Senhor padre, o almoço está servido..."
O padre convidou o médico para acompanhá-lo no repasto de peixe frito, mas este, polidamente recusou.
"Então o senhor fica intimado para a sexta-feita que vem. A Maria vai fazer uma torta capixaba, ouviu falar?"
E à guisa de despedida disse:
"A Maria eu não posso apresentar ao senhor como minha esposa, porque a Santa Igreja Católica não deixa. Mas não posso dizer que é minha empregada porque ela dorme comigo..."

Pelo trecho acima, e pelo início do capítulo I, antes transcrito, pode-se depreender a linha que Renato Pacheco pretendia fosse imprimida ao "nosso romance", ou seja, à novela que teria motivação policial, mas apenas como chamarisco, para épater le bourgeoisie, como gostava de dizer, já que visava, principalmente, a reconstituição da época de ouro do Radium Hotel, em Guarapari. Além de, naturalmente, prestar-se a um divertissement para os seus dois autores.

Este toque de divertissement Renato o quis deixar claro, penso eu, na pequena introdução que escreveu para o romance: "Este livro, à moda de Ellery Queen, é fruto de antiga e fraternal associação criativa entre Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco. Realiza, a quatro mãos, o primeiro romance policial "capixaba" do século XXI, e talvez o primeiro romance policial "capixaba" de todos os tempos, se não levarmos em conta o livro de Azambuja Suzano do século XIX."

Generosa visão dourada, do meu parceiro e amigo!

No capítulo segundo, intitulado "O Radim Hotel", confirma-se, pelo manuscrito em meu poder, a proeminência que Renato desejava dar, sem prejuízo da trama, ao principal hotel de Guarapari na década de 50 do século passado. (E aí podemos enxergar a mão do historiador impulsionando o romancista. Neste sentido, juntou aos seus originais várias informações históricas, para caracterizar a época do romance.) Vamos ao trecho que ilustra esta afirmação:

Não se pode dizer que o prédio do Radium Hotel é bonito. Grande, isto ele é, um sobradão em forma de V com mais de dois mil metros quadrados de jardim em torno.
Sua construção fora planejada por um amazonense que estudara em Vitória, Adalberto Ferreira do Vale, presidente da Previdência Capitalização. Na falta de recursos, ele vendeu o prédio, ainda no esqueleto, ao Governo do Estado, que o concluiu, aproveitando a planta previamente desenhada.
O hotel competia com os outros dois hotéis da localidade: o Veranistas e o Guará, menores e não tão bem localizados.

Mais tarde, vieram novos acréscimos sobre o Radium Hotel, para serem aproveitados onde fossem cabíveis. Um deles, sob a forma de capítulo a mais, transcrevo a seguir:

Silva Pontes sabia que havia, no hotel, um cassino clandestino. Desde o governo do general Dutra, dizem que a pedido de sua esposa, Dona Santinha, católica e ultraconservadora, todos os jogos de azar — isto é, aqueles que não dependem de talento ou habilidade, e simplesmente de sorte para o ganho — estavam proibidos no Brasil, desde o popular e tolerado jogo do bicho, inventado no fim do século XIX pelo Barão de Drumond, para sustentar o Jardim Botânico. A polícia, no entanto, fazia vista grossa, permitindo que, aqui e ali, proliferassem casas de tavolagem. Não os magníficos cassinos que o médico conheceu em Monte Carlo, mas tugúrios mal iluminados, onde os jogadores satisfaziam as suas necessidades psicológicas de emoções fortes.
Silva Pontes achou — ele mesmo se considerava um casmurro — que o jogo era coisa de crianças, para se adequarem às regras da vida, ou de adultos imaturos. Porém, por curiosidade, foi visitar o cassino do Radim Hotel, situado numa ala lateral do prédio, com entrada franca para maiores.
Admirou-se do luxo e do bom gosto. Grandes cortinas não deixavam que a luz passasse para a rua e ventiladores de teto arejavam o ambiente. Muita gente bem vestida tentando a sorte. Duas roletas, uma mesa de bacará, diversas mesas de pôquer, e, no fundo, mais afastado, um bingo eletrônico, novidade no Brasil, com predominância de apostadores idosos.
Deu uma pequena volta pelo local, observou fisionomias tensas. O gerente convidou-o para uma roda de baralho, mas, delicadamente, recusou, e foi saindo de fininho. Por certo, aquele não era seu ambiente...
Soube que, de quando em vez, quando a imprensa denunciava, ou em época de eleições, havia batidas policiais, adredemente avisadas: "Dia tal vamos fechar o jogo."
O cassino ficou fechado dois a três dias e reabriu logo. Graças ao cassino é que grandes artistas internacionais e nacionais como Lucho Gatica, Sílvio Caldas, Orquestra Severino Araújo, tinham se apresentado no teatro do Hotel.
Consta que, certa feita, numa das investidas da polícia, uma velhinha solicitou:
"Ah, seu guardinha, deixa cantar mais uma pedra. Estou pela boa..."
Nas suas matutações, meio dormindo, meio acordado, Silva Pontes se perguntava: — Por que os legisladores não regulamentam logo essa porcaria do jogo de azar, que deveria chamar-se jogo da sorte?
Ele sabia o porquê, mas calado ficava.

Na folha de abertura dos seus originais, precedida de um croquis à mão reconstituindo Guarapari na época do romance, Renato assinalou três datas: 20.02.2001, 07.01.2002 a 10.01.2002. Era um velho hábito que tinha, de datar seus escritos. Como se lançava com obsessão àquilo que se propunha fazer, fazendo-o de uma arrancada, enquanto o tema lhe batia a passarinha (ele se confessava um obcecado, quando tinha de fazer alguma coisa), passava-me em seguida o material que terminava e assumia a posição de cobrador do que desejava que fizéssemos juntos. "Já fiz a minha parte, falta a sua," costumava dizer, atenuando a cobrança com a liberdade que me dava para alterar tudo, como eu bem entendesse, sem que se preocupasse em nada com o sofrimento intelectual em que me deixava, espremido no córner de um ringue que ele mesmo armava.

No caso do Crime no Radium Hotel foi exatamente assim. Deixou em meu poder os manuscritos produzidos no ímpeto da inspiração, sem preocupações estilísticas, sem um maior rigor narrativo, embalado pelo projeto que o entusiasmara ("a gente deve ter sempre um projeto em execução, para espantar a morte"), que era praticamente um roteiro destinado a agir no meu ânimo como o impulso inicial, o chute na bola, o starting point do romance. O caráter de roteiro fica evidente em muitas passagens do manuscrito, em que a narrativa se faz quase telegráfica, fixando pontos e insinuando sugestões a serem aprofundadas e desenvolvidas para se chegar ao texto final.

Quando começou a sentir que eu me retardava em meter a mão no Crime no Radium Hotel, a pressão passou a ser explícita para que eu esquentasse as turbinas: num envelope branco, para cartas, onde subscritou "Feliz Páscoa, votos extensivos a Terezinha e família", e onde colocou a data 30.03.2002, premiou-me com a transcrição digitada da entrevista que se segue, feita com o sr. Antônio Vieira, 70 anos, aposentado do Radium Hotel, endereço Rua José Barcello de Mattos, 1000, Guarapari, fone 33615188:

Guarapari 28 de março de 2002

O entrevistado começou a trabalhar no Radium Hotel em outubro de 1953. O estabelecimento foi inaugurado em 8 de dezembro de 1953, dia de Nossa Senhora da Conceição e dia da cidade. O prédio pertencia ao Estado que o arrendou a Alberto Bianchi. Primeiro gerente: Manuel Jantzen Fom. Outros servidores: o depoente, o motorista Libonati, o almoxarife Ângelo Forastieri e o chefe de cozinha Ovídio Chagas.
O cassino (clandestino) funcionou desde antes da inauguração oficial. Como a luz (da cidade) era desligada às 22 horas, os jogadores seguiam à base de lampiões. O contrato com Bianchi, de 10 anos, findos os quais as benfeitorias passariam para o Estado, foi prorrogado por Hélcio Cordeiro, por mais dez anos, em dezembro de 1961. Em dezembro de 1968, Christiano Dias Lopes, então governador, tomou o hotel na marra.
Havia 18 apartamentos, 30 quartos e o sótão chamado república, onde não havia divisões. Mais tarde ficaram apenas 49 apartamentos, inclusive a suíte do Governo do Estado, eliminando-se os quartos.
O auge do funcionamento do Radium foi até 1963, e o cassino funcionava de acordo com a maior ou menor complacência das autoridades.
No cassino havia bacará, campista, roleta, street flash, este um jogo violentíssimo de que participavam poucos jogadores. Uma vez Gaturamo ganhou na roleta quatro vezes em seguida no número ZERO. Pessoal do pif paf, selecionados entre os maiores jogadores: Joelmir, de Cachoeiro, Aprígio Gomes, Graciano Espíndula, José Tristão. Chegavam sexta-feira à tarde e saíam segunda-feira de madrugada. Graciano mandou vir de Vitória um barbeiro, pagando a corrida de 50 km, e fez a barba sem levantar-se da mesa de jogo. Outros jogadores: Márcio Vivacqua, Adamastor Bomfim, os Pretti (Gato e Pelota).
Sobre Silva Mello: ficou duas temporadas no Radium, mas ele preferia um hotel mais modesto, o Guarapari (onde hoje está o Edifício Caparaó, na praça Central, do sr. João Pessoa). Inicialmente, além de estudar as areias pretas, ele fez um pequeno estudo sobre a longevidade de três centenárias irmãs, que moravam perto do Canal, na rua das Bonecas. Uma vez ele disse, no Hotel, que o asfalto tirava a radioatividade das ruas. Nessa época ele trouxe americanos e o padre Xavier, da PUC do Rio, que estudaram os pendores curativos das areias monazíticas. Famosos que, nesse tempo, estiveram no Hotel: Tenório Cavalcante com sua filha e o genro Hércules de Freitas Lima (que foi o deputado federal mais novo na época); Elza Soares, cantora, com seu marido Garrincha; Maysa Monjardim, que bebia gin logo cedo, e ficou seis meses no Hotel; o conde Matarazzo e sua esposa; o dono das Casas da Banha e muitos outros. Na semana santa o dono dava de 40 a 50 "cortesias" para pessoas gradas virem comer torta capixaba no Radium. Outros que se hospedavam no Radium, como convidados: General Amauri Kruel; senhores Genaro Pinheiro e João Batista Pinheiro, com sua esposa. Como os quartos eram geminados, o porteiro Alfredo encaminhava a turma da república para espreitar no apartamento vizinho casais em lua de mel. Sobre o padre Manoel: Um amigo dele, Ciríaco Ramalhete, arranjou-lhe um rapaz para auxiliá-lo em sua casa. Todas as noites o padre ouvia a BBC de Londres. Uma noite, o informante estava jogando víspora nas vizinhanças quando apareceu o empregado do padre, todo rasgado, dizendo que o padre o quisera violentar.

Não parou aí. No Natal de 2003, presenteou-me com um exemplar do livro de Silva Mello, Guarapari, Maravilha da Natureza, que havia encontrado no sebo da rua 13 de Maio, e que me deu, com a dedicatória: "Para Luiz Guilherme, na esperança de que o Silva Mello inspire o Conan Doyle Jr. Com abraços do velho amigo Renato".

Eu já havia lido o livro graças a um exemplar que Ivan Borgo me emprestara, para que pudesse — no dizer de Renato —, ir me inspirando para a tarefa que me estava sendo firmemente cobrada. Mas aquele presente que, diga-se de passagem, recebi com enorme prazer, não só porque pude devolver o exemplar de Ivan, como também por poder usar o meu com a liberdade de rabiscá-lo à vontade, foi uma estocada a mais de Renato, no lado esquerdo do peito, me convocando para concluir o nosso compromisso, quebrando o passo de cágado que eu imprimia ao romance.

No entanto, apesar de pressionado e encurralado "tão discretamente", continuei driblando o meu amigo até o fim (literalmente falando, do que não me vanglorio), com o Crime no Radium Hotel. Em grande parte, como já disse, por incompetência pessoal em compor o romance a quatro mãos; outro tanto, por certa macunaímica preguiça em juntar as pontas do que Renato escreveu com o que eu já tinha escrito e ainda restava por escrever; e, finalmente, devido àquela vã tranqüilidade de quem achava que podia deixar para amanhã o que estava sendo pedido hoje, acreditando que o amanhã fosse contornável a ponto de torná-lo imperecível. Por minha culpa, minha máxima culpa, claudicou a "antiga e fraternal associação criativa entre Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco." E por negligência minha, perdi o compasso no contrapé de uma procrastinação, indesculpável e perdulária.


***

Seguem-se:

1) Texto corrido extraído da primeira versão manuscrita do romance, com 58 folhas numeradas, escritas na frente e no verso.

2) Diversos textos, também manuscritos, apresentados posteriormente por Renato, quase todos com a indicação "onde couber". (Resolvi deixar soltos e não encaixar na forma inicial do manuscrito.)

3) Diversos subsídios e sugestões para possível aproveitamento.

4) Finalmente, os capítulos que cheguei a produzir, nos quais fiz alguns ajustes para a eventual divulgação. Não fui além do que está apresentado.

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

É o diabo tentar falar assim, de cara lavada e em corpo 12, sobre o quem fui, quem sou, um sujeito/personagem que não se considera à altura...


É o diabo tentar falar assim, de cara lavada e em corpo 12, sobre o quem fui, quem sou, um sujeito/personagem que não se considera à altura de tal autor, de tal leitor. Mas vamos ahead, quae sera tamen, mais tamen do que quae sera, o que quer o que pode esse cara chamado Bith, que organizou esse seminário e me impôs expor-me à língua cúpida de nossas meias dúzias de leitores cada, que esse negócio de literatura nunca mereceu mesmo muita atenção por parte do distinto grande público cá por essas bandas. E ainda bem.

Devo confessar que minhas leituras iniciais já me conduziam ao caminho que agora trilho com razoáveis serenidade e segurança (notaram a concordância, que bonita?). Antes de desaguar, impávido colosso, nos braços de Shakespeare, Bernard Shaw e Joyce (No original! No original! — graças ao Mário); dos românticos ingleses (graças à Aurélia) e de Edward Albee, Arthur Miller e Tennessee Williams (graças ao Carrozzo), pois, antes disso, eu já estava impregnado de Umberto Eco, Fernando Pessoa, Camões, Günter Grass, Machado de Assis, José J. Veiga, Drummond, Gilberto Mendonça Teles (o poeta) e arredores.

Mas meus dois autores favoritos de adolescente, os que me puseram no, ahn, digamos assim, caminho da boa literatura, foram (que Borges, que nada!) Marcial Lafuente (M.L.) Stefania e… sabe que esqueci o nome do outro? Agora, que os livros dele tinham uma heroína formidável, e isso é o que importa, lá isso tinham: Brigitte Montfort, filha de Giselle, a espiã nua que abalou Paris. Perdi a conta das vezes que me escondi debaixo do lençol, imaginando-me um daqueles espiões russos (eu sempre gostei de ser do mal) que ela seduzia com seu corpo sedento, seus olhos verdes, sua boca molhada… quantas vezes eu quis possuir um segredo atômico qualquer só pra ser perseguido por Brigitte Montfort, com aquelas coxas grossas, que, ao final, terminaria por usar, depois de abusar sexualmente de mim, para quebrar meu pescoço, com uma torção absolutamente precisa. Que época! Foi assim, sob a influência de Brigitte Montfort, aliciadora de minhas fantasias adolescentes, que descobri minha atriz favorita, logo que a censura foi defenestrada (“pela janela”, diria um amigo meu, todo cheio de pleonasmo): Georgina Spelvin. Aos cultores daqueles inteligentíssimos filmes tchecos e franceses, permito-me lembrar que se trata de uma atriz americana, protagonista de O diabo na carne de Mrs. Jones (co-estrelado por John Holmes, eu acho) e — um cult! — Garganta Profunda. Por este último, aliás, tal o grau de realismo que imprimiu ao seu personagem, ela deveria ter ganhado um Oscar (Frances McDormand não ganhou, só por ficar repetindo “yeah!”, em Fargo, com aquela cara da Família Buscapé dos hillbilllies americanos?).

Tá bom, voltando à vaca frígida, eu confesso. Minha primeira vez foi aos 6, 7 anos, mas acho que nem a idade me redime de ter lido então As aventuras de Tibicuera. E onde é que entra a tão ansiosamente aguardada parte de “construção” do poeta? Aí é que está. Não entra. Deixo isso aos meus biógrafos, se houverem (o plural foi de propósito, só pra chatear). Tomara que nenhum deles me pegue vivo. Eu sei lá do poeta, mas lembro bem de um professor de Geografia, desse eu me lembro, por duas razões: uma, que me livraria de uma prova final chatíssima, sobre aspectos geológicos sabe Deus de onde, se eu fosse capaz de dizer as capitais de uns tantos países esquisitos que ele escolheria aleatoriamente. Isso era no dia seguinte e, por conta de ter passado a noite em cima de um atlas velho e ensebado, é que sei até hoje que a capital do Laos é Luang Prabang. Pára de ler este parágrafo e pergunta a alguém aí do lado se sabe qual a capital do Laos. Ou do Chade. Duvido. Ninguém mais sabe. E a segunda coisa é que, um dia, o Ozílio Rubim (é o nome do professor), enquanto eu olhava distraído para o meu futuro pela janela da casa dele na avenida Santo Antônio, me joga nos braços um livro e diz: “Lê. Você vai gostar.” Que livro? Nada menos que Cem anos de solidão. Ele jogou uma obra-prima da literatura aos pés dos meus 14 anos. Te devo essa, Ozílio. Este talvez tenha sido o acontecimento mais importante da minha adolescência, exceto, talvez, o fato de ter testemunhado Jorge Reis, goleiro do Rio Branco, bater o recorde (eu prefiro record, mas vá lá que seja recorde) mundial de tempo sem tomar gol: 1.609 minutos invicto.

Pois é. O título (do livro, não do Rio Branco) me fascinou, a primeira frase me fascinou, as ilustrações de Carybé; o realismo fantástico me pegou no colo, me jogou na parede, me chamou de meu amor. Não consegui nunca mais desgrudar um olho desse tamanho de qualquer lugar onde vejo escritas as palavras mágicas Gabriel García Márquez. Se eu tivesse que plagiar um livro… se alguém, um conselho, tiver que plagiar um livro, ou parte de, que seja esse Cem anos de solidão, qualquer coisa menos não vale o esforço, meu bem. E pega mal.

Daí pra frente é mole. Quem se apaixona por García Márquez aos 14 anos não consegue ficar só olhando, impassível, para o Saara de uma folha em branco, tem que mergulhar nas dunas, sentir o sol, a areia nos olhos, na boca, nos dentes, e ficar frustrado com a imensidão intransponível, mais ou menos como o gato do Reinaldo [Santos Neves] que, ao se deparar com as dunas de Itaúnas, pensou que nem se vivesse eternamente conseguiria cagar o suficiente para usar aquele areal todo.

Depois de GGM, por linhas tortas, conheci o Oscar [Gama Filho] (acho tão chiques esses colchetes!). Ele estava experimentando uma linguagem poética meio maluca, mas tremendamente inovadora para o local (Vitória) e a época (fins de 78), baseado em estudos sérios (o Oscar sempre levou a literatura a sério, talvez um pouco a sério demais, em alguns momentos) sobre o stream of consciousness de James Joyce e Virginia Woolf. Enquanto Vitória nos olhava com espanto, sem entender nada (às vezes nem nós mesmos entendíamos, eu acho que), colhíamos um elogiozinho do Drummond aqui, de Jorge Amado ali (mas esse é suspeito), do Gilberto Mendonça Teles adiante, e sentávamos praça com Reinaldo Santos Neves, José Augusto Carvalho, Renato Pacheco, Marcos Tavares e Luiz Busatto no Grupo e na Revista Letra (sem esquecer do Luiz Guilherme Santos Neves, o membro de fora do Grupo).

Assim, como quem não quer nada, fui-me construindo, sem léu nem chapéu, este que excessivamente assim sou, já li isso em algum lugar. Deve ter sido em Dédalo, meu último livro. Ah, sim. Os meus livros.

Comecei plagiando e declamando uns poemas de Kipling no programa policial Ronda da Cidade, apresentado pelo então radialista Gérson Camata, vocês sabem, o marido da deputada Rita Camata (parece que ele também foi eleito pra alguma coisa aí), o qual, por não entender lhufas de literatura, nem desconfiava de que eu roubava aqueles poemas do Tesouro da Juventude, que lia aos borbotões na Biblioteca Pública da PMV, em tardes de nunca mais. Camata não entendia de literatura, mas logo, logo, arrumou um jeitinho de ficar rico, enquanto eu continuo ralando (e tendo dúvidas sobre se sei algo do assunto).

Depois disso, escrevi meus próprios poemas. Três livros vieram em mimeógrafo: De amor à política (o livro, acreditem, é bem melhor que o título), com Oscar Gama Filho; A fuga e o vento e Exercício do corpo, que uma garota uma vez me perguntou se se tratava de um manual de Educação Física. Aí, o Reinaldo, pra meu azar, era editor da FCAA/Ufes e se recusava terminantemente a publicar os amigos mais chegados, com medo de ser acusado de alguma espécie de sacanagem. De modo que precisei de uma menção honrosa em concurso para publicar Os mortos estão no living (contos). Para publicar os poemas de Lição de Labirinto, então, precisei vencer o concurso.

Então, que o espaço tá ficando curto, escrevi Tanto Amar, um livro com só l4 poemas falando sobre a paixão, meu tema de sempre favorito, que a Vera Viana, na Secretaria de Cultura da PMV, abençoada por Vítor Buaiz, publicou, junto com a CEF. Foi lançado em 91. Naquele ano, conheci uma mulher, ao redor da qual circulei, embevecido, apatetado, os próximos quase 5 anos, até que, em princípios de 96, o bom senso dela prevaleceu pela primeira vez e ela me deixou, o que me obrigou a voltar a escrever – para exorcizar meus fantasmas (pra me “imolar em público”, disse o Adilson Vilaça).

Ela me rendeu, ao menos isso, um livro: Sonetos da despaixão, que inaugurou, em julho, a minha editora, Flor & Cultura, logo seguido, em novembro, por Dédalo. A tal mulher? Dela nada mais sei nem me seja perguntado. Que a neve de Munique lhe seja leve.

In a nutshell, isso que era pra ser uma tomada de posição diante da literatura já virou um esboço de autobiografia. Mas literatura pra mim é oração sem sujeito nem objeto. Mal, mal, cabe aí uma interjeição atualmente. Tamos num vale-tudo desgraçado e eu é que vou ficar queimando pestana com isso? Neca de núncaras. Vou é parar de fazer o pé-de-alferes a essa senhora dama inacessível chamada palavra, dar-lhe umas bordoadas pra ela ver quem é que manda, como sugere o Luís Fernando Veríssimo, e pôr-me ao fresco, que eu quero mesmo é ir ver o Hale-Bopp todas as noites, às 18:32, senão, só daqui a 4.000 anos e eu não sei se estarei acordado até lá.


[In revista Você, nº 45, de maio de 1997. O depoimento faz parte de um conjunto de textos organizado pelo Prof. Wilberth Salgueiro, da Ufes, e intitulado “A poesia-perto e o punctum capixaba”. Reprodução autorizada.]


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Miguel Arcanjo Marvilla de Oliveira nasceu em Marataízes, ES, em 29 de setembro de 1959 e faleceu em Vitória, em 2009. Mudou-se com os pais para Vitória em 1964. Poeta, concluiu em 1996 o curso de graduação em Letras-Inglês na Ufes e cursou o mestrado em História na mesma universidade. Publicou diversos livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)

Preso em Trancoso blues, Trancado, não pelo repouso contínuo no pus, Mas sim pelo descanso eterno no supercílio:      — No soco direto d...


Preso em Trancoso blues,
Trancado, não pelo repouso contínuo no pus,
Mas sim pelo descanso eterno no supercílio:
     — No soco direto da aranha venenosa na trilha do rio
fui a nocaute por medo da cegueira de Borges e Homero.

Porém não quero ser cego assum negro Otelo
para assim cantar melhor o que quero:
     — Cantando a meio vapor pelo rio
já sou mais rápido do que a visão fugidia que a mira
líquida da crítica divisa em meu exílio.

Morrendo de saudade por bolhas de varíola
trazidas pelas picadas da aranha em lugar de olhos,
Prefiro não ficar cego por enquanto
e por enquanto se torna bastando,
Bastante, o bastante.
Basta antes.

Ando tão ocupado vendo,
Que não tenho tido tempo para envelhecer.
Como você, Renato Pacheco,
Por isso não lhe escrevi antes.
Antes foi o bastante.

A arte da guerra
é a da espera.
Temos de sobreviver por eras
à espera que o inimigo pereça
pelo mal que reside em seu destino e que o envenena,
Não por nossas mãos, pois em peçonhência a ele nos igualaríamos.
Tal como a cura psicanalítica,
Garantida em um prazo de duzentos anos,
Temos de sobreviver a ele
lutando a "guerra sem travá" do Ticumbi,
Pois na "guerra travada" com as armas do mal ele seria vencido no segundo
tornando-nos os herdeiros reais do reino decaído,
Paraíso perdido contra o qual nos voltamos
em revolta que lançamos contra ele tudo em volta.
Tudo volta.
Tudo volta em outros
miltons, renatos, vicos:
     — Em nós, seus filhos, em eterno retorno do viço.

Em você, Renato, renasço o re-nato renascido
por mandinga trazida do berço Pendragon
étimo, étnico, genético, agônico,
A eles sobrevivendo se transformando em sabedoria
que vai além da livraria
com que te sepultariam
— se você coubesse dentro de uma poesia —
e de que você se livraria
com seu sorriso largo sábio aberto
que, anterior ao pensamento, o entenderia.

Renato renascido pela Palavra
do belo não é o que se mata,
É o que ressurge da assassina faca
da fênix que vem refazê-lo menino
para que possa cumprir o seu destino:

     — Renascer por autoconcepção
do saber

em moto-perpétuo partenogênese.

A arte da guerra é a da espera.
Temos de saber sobreviver por eras.
Estar no inferno sem desesperar
é o mesmo que estar no céu em espera.
Sabê-lo, eis o segredo
para se manter atualizado no degredo
do lar perpétuo.

A arte da guerra é a da espera.
Você continua ganhando o jogo.
Espere e verá.

Por eras, seguindo seu exemplo, não terei tempo para envelhecer,
Por eras, a arte da guerra foi e era a espera.
E a esperança não se desespera.
Espera, neném — ah, veja, olhe lá!
Abre-se a esfera da Terra:
     — A arte da guerra é a da espera!

Não tenho tempo para envelhecer.
A arte da guerra é a da espera.

Espera em paz.

Trancoso, 11 de janeiro de 2005.

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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)