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2/01/2016
A cegueira, não. Pelo menos, não a definitiva, mas sim a herdada da negra sala de projeção do cine-teatro Glória. Saio meio cego, tonto, chegado de Casablanca, sem lábios feitos de vermelho, não de carne, ao meu lado para me servir de guia. Para dialogar à Platão.
Vindo da caverna de Platão, cego pela luz, saio tonto do Glória e tropeço, não num paralelepípedo, mas na rua Marcelino Duarte, que se torna gente. Ou fantasma. De uma sessão freudiano-espírito-santense que transcrevo a seguir. Escrita automática dos surrealistas, velhos amigos há muito, desde o nunca, vamos lavar a roupa suja de sua existência para que, enfim, descanse em paz.
Com a rua transformada em gente, habitamos o vazio, eu e Marcelino Pinto Ribeiro Duarte (Serra-ES, 1788 — Niterói-RJ, 1860). Choroso e melancólico, como sempre, Marcelino, em respeito à poluição sonora que ameaça o nada instaurado, recusa-se a falar. Está por baixo. Subimos, então, aos céus, via Cidade Alta, favela do ouro e, como Marcelino era padre, vamos à casa paroquial oitocentista, na rua José Marcelino, seu semi-homônimo, admirador e irmão em rua. José Marcelino, também escritor, incluiu a maior parte da obra publicada de Marcelino Duarte nos dois volumes de seu Jardim poético, publicados em 1856 e 1860.
Padre e filho do padre Manoel Pinto Ribeiro Duarte, Marcelino deixou diversos filhos carnais, muitos escândalos e a fama de agitador político. Mulato, venceu a cor e se pintou como primeiro dramaturgo capixaba e um dos pioneiros da arte poética. Coração numeroso, um romântico? Um clássico perdido na estante? Não e não. Certamente um pré-romântico. O que é sem ser, a divisão, o sentimentalismo, o nacionalismo patriotário, a dor fragmentada pela técnica.
Não há escritor capixaba mais controvertido do que Marcelino Duarte. Desde que morreu, nunca mais foi visto em público. Ligo para a revista Você e de lá pedem uma matéria. Pauta: teatro, poesia, Rubim e Afonso Cláudio. Pergunto a Marcelino como tem andado.
— Morto. Comendo capim pela raiz. Imóvel, naturalmente. Subterrâneo total underground. Enterrado no trabalho. O que me permite conhecer adegas subterrâneas, de onde extraio o vinho do Porto necessário para conservar meu cérebro em álcool. Não me lembro de muita coisa. (O contra-regra traz alguns litros de vinho.)
— E Afonso Cláudio?
— Esse cara mudou minha vida. Um artigo publicador por Você, segundo número, mostra que ele reescreveu os meus poemas incluídos em sua História da literatura espírito-santense. Distorceu meus versos com sua colher torta, querendo me fazer passar por um autor clássico, um árcade, veja só!
— Mas não foi o Afonso Cláudio que te transformou em herói da resistência contra a tirania de Francisco Rubim, que governava o Espírito Santo?
— Mais ou menos. Afonso Cláudio não imprimiu a lenda nem a história. Preferiu a ficção, maior que as duas. E mudou o desfecho da trama, incluindo um final feliz. (Os litros de vinho, como nó em gota d'água, enrolam sua língua com laços de beleza. A sede, vinda de séculos de abstinência, é morta pelo ex-morto.)
— Soube, no disse-me-disse, que você não disse palavra de honra do que o Afonso Cláudio disse. (Repórteres e escritores bebem em serviço. Não tanto mas não tampouco.) E aí, qual é a verdade?
— A verdade, segundo Welles: It's all true. In vino veritas: no vinho, a verdade. Atrás da verdade, você toma a primeira garrafa de vinho e não encontra. Sem desânimo, bebe a segunda. Também não. A persistência na busca da verdade leva à terceira garrafa. Quando chega à metade, ela não importa mais. (Bastante altos, somos arrebatados em corpo e alma por anjos até a visão da "Bahia" de Vitória.) A verdade começa com minha ida ao Rio de Janeiro, em outubro de 1817, para pedir ao rei aumento de vencimentos e a concessão do "Hábito de Cristo". Quem tiver insônia pode conquistar o sono eterno lendo a história no José Schiavo — Caderno Dois de A Gazeta de 13/1/1983. Eu merecia esse dinheiro: prestei muitos serviços à monarquia, mais por esperteza do que por crença. Em 1816, por exemplo, tive de me tornar o primeiro dramaturgo nascido no Espírito Santo, a fim de comemorar a coroação de D. João com o Drama que escrevi e encenei. Pretendia passar apenas quatro meses na Corte, tempo suficiente para a grana sair. Acabei ficando dois anos pois, em fevereiro de 1818, Rubim indeferiu meu pedido e eu decidi permanecer onde poderia ganhar melhor. Como eu sou escritor e o mundo é construído com palavras, resolvi me vingar do Rubim. A verdade, meu amigo, é que não fui até o Rio apenas para reclamar do despotismo de Rubim, ruim, com D. João vi. Nem vi o passarinho verde que o Sonso Gáudio (= daqui por diante, a Afonso Cláudio) viu. Você sabe: pegaria mal usar a necessidade de dinheiro e de honrarias nos versos. Transformei o caso em luta contra a tirania do governador e descrevi a viagem em um poemão em oitava rima, cego, como Camões, a tudo que não fosse a grandiosidade da pompa e circunstância. Cego — mas de raiva — chamei de "Derrota de uma Viagem Feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817". Usei a palavra "derrota" no sentido de rota marítima percorrida por um barco. De olhos abertos, o Sonso claudicante, sem a devida autorização, por força maior de meu falecimento, enxugou deturpando para "Derrota de uma Viagem ao Rio de Janeiro em 1817". Contra os privilégios, deu igual tratamento distorcedor aos versos. (O contra-regra traz cebola e glicerina. Ele chora com a artificialidade piegas dos pré-românticos, criador de uma sensibilidade brasileira dentro da literatura capixaba que foi:)
Oh, Rio, vós, que algum dia,
Ouvistes meu terno canto,
Parai um pouco p'ra ouvires
O triste som de meu pranto.
— Sei. Naturalmente, este é seu poema "Pranto". Mas e o "Derrota"?
Minhas palavras inauguram uma revolução no visual da baía. À força da mudez lacrimosa de Marcelino, suas musas se oferecem de montaria e nos levam ao ano da graça de 1817, mês de outubro. Sabendo que poemas não foram feitos para serem declamados por boca que não seja a vista, de seus olhos escorrem faixas em que letras contêm o som mudo das palavras. É, milagre, o Canto VI do "Derrota":
Adeus, Vitória, digo então comigo,
Pátria ditosa, a mais feliz colina,
Goza amável, ah, sim, fica contigo
A encantadora mas cruel Francina: (3)
Tu sabes, não que o céu maior castigo,
Nem tormenta maior, mágoa mais fina,
Me podia causar, se não privando
De por pouco avistar seu gesto brando.
Trazida por mil das musas, surge uma nota de rodapé, de autoria do próprio Marcelino, que seria rejeitada pela revista Você: [A revista proíbe e condena o uso de notas de rodapé por ser de alto nível e contra desvios de coluna Prestes a doer.]
— (3) Uma das moças mais honestas, a quem por simpatia amei; mas não mereci dela o mais pequeno favor, e que foi aleivosamente infamada por línguas peçonhentas."
Fora de si, boquiabertocaladamente, Marcelino pede as mais mais às musas espetaculosas que nos assessoram o dom da beleza aguçado pela morte de que o poeta ressuscitou, eternidade da arte. Aleatoriamente, metralhadoras giratórias alvas, elas disparam os Cantos XII e XVI:
XII
Qual o que raio viu, eu vacilante,
Turva-se o mar, desperto do tormento,
Eis sobranceiro a mim vejo um gigante,
Imenso, horrível, feio, e corpulento,
Parecendo, qual monstruoso Atlante,
Nos ombros sustentar o firmamento;
Era este porém árduo rochedo,
Que a linguagem vulgar chama — Penedo —.
Algumas lágrimas depois, os versos ainda se desenrolam:
XVI
Gela-se o sangue, e o pálido semblante
Inculca o susto, que sufoca o pejo;
Percebe o meu terror vivo estudante,
E grita: oh, lá, oh lá do Caranguejo...
Levanto os frouxos olhos, não distante,
Pernambucano vaso avisto, e vejo;
Me saúda de lá piloto ativo,
Correspondo, porém nem sei se vivo.
As musas têm seus encantos. Com um deles, voltamos a 1993, ao real e à verdade? Marcelino parece acordar — ou dormir, sonhar talvez o ser ou não — da bebedeira:
— Cheguei a puxar o saco de D. João VI, pai do Brasil português que eu combatia e me torturava. Fiz uma ode chamando o gordo comedor de galinhas — guardava coxas de "colegas" nos bolsos — de herói, de Enéias e de Ulisses. O Sonso Gáudio inventou, como justificativa, que os versos agradeciam o afastamento, a meu pedido, do governador Francisco Rubim (...)
— Fato que a boa História não registra!
— Não tenho nada a ver com isso! Não falei que a culpa é do Sonso?! Rubim só deixou o Espírito Santo dois anos depois, em 1819, por cima de sua carne seca: foi nomeado governador do Ceará. Não sei como vocês acreditaram. D. João VI nunca atenderia às queixas de um pobre padre-mestre roceiro contra um de seus homens de confiança, um capitão de mar-e-guerra da Armada Real! Nem demoraria dois anos — de 1817, em que escrevi o "Derrota", a 1819 — para atender um pedido: a burocracia não era tão ruim naquele tempo! Nem, se tivesse me atendido, nomearia o Rubim para o honroso posto de governador do Ceará. Não tenho mais nada a declarar sobre isso. Vamos mudar de assunto. Se a vida é um palco, gosta de teatro? (Notei que você coloca alguns comentários entre parênteses, como em uma peça.)
— Dizem que sim. Mas você namorou com Melpômene antes de mim.
— Foi. Amo todas as musas com meu grande coração de vazio, mas Melpômene é a preferida entre as iguais. Ela e Calíope adoçam o sal da vida até mesmo para os mortos.
— Sem querer insistir insistindo, guardou alguma memória de Calíope que nunca mostrou ao mundo? O amor é uma forma de comungar almas de versos?
— Diversos memórias diversas conservo em conservas enlatadas pelo (e no) Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (Delirante.) Na lata 120, documento oito, jaz meu poema "Ermenoville ou o Túmulo de J.J. Rousseau". Foi há muito tempo atrás, mas tenho dela uma "Memória sobre as vantagens do estabelecimento dos novos colonos estrangeiros na província do Espírito Santo" na lata 212, documento quatro, de 1825.
— Nunca mais falou com ela?
— Só nas 37 páginas da lata 6, documento onze. Vamos mudar de assunto? Teatro? Olha, aquela sessão de poema mudo foi coisa das musas. Fazem de tudo para me agradar.
— Mesmo?
— Eu também não falo nada ou porque não quero ser chato ou porque jamais devemos discordar das mulheres. Pelo menos enquanto estão presentes. Quero cair nas graças das musas. Acho o contrário: acho que a palavra devia ser escrita como se fala. Criei uma ortografia fonética antes de Qorpo Santo, nome que ele recebeu por motivo oposto a mim: devido ao tempo em que ele viveu "completamente separado do mundo das mulheres". Em 1842, publiquei um livro dando lisõens (sic!) sufisientes (sic!!). (Delírio con fuoco) Chamei de Arte de Ler e de Escrever em Pouco Tempo a essa "Razão Filosófica da Verdadeira Ortografia, Desinfestada dos Prejuízos da Ortografia Barbaresca, ou por Outro Nome, Etimológica; que, como elementos do Sistema de Instrução Preparatória, Compôs e Oferece à Mocidade Brasileira Estudiosa. Seu patrício"...
— Quer dizer que o lance é escrever como falamos e não falar como escrevemos? Langue x parole?
— Por enquanto, o jogo está indefinido. Atuo nos dois times porque importa mais a competição do que a Vitória para que as pessoas tenham algo de fundamental a usar como remédio antitédio. Assim caminha a humanidade!... Por gostar do som da palavra, vamos virar o disco? Vamos mudar o tom de loucura para lucidez e de poesia para teatro?
— Nada contra nem a favor, muito pelo contrário...
— Isso! No entanto, não veja pedantismo onde existe apenas a sinceridade distante e indiferente dos mortos em prol da História. Que venham os touros das musas!
(Anjinhos barrocos caracterizados de touros, discutindo a sua sexualidade através de quadraturas de círculos, feitos marionetes das musas, entram em transporte e mudam o cenário do real. A passagem dos céus nos deposita entre os dias 22 e 31 de maio de 1816, em frente ao atual Palácio Anchieta, Vitória City. Nesse local, armado na praça dos antigos Colégio dos Jesuítas e Igreja de São Tiago ("hoje fundidos em um só Palácio Anchieta", cantam os anjinhos), ergue-se o teatro improvisado que o povo capixaba se acostumou a aplaudir desde o quinhentismo dos inacianos, faixa temporal de seda esticada pelas musas, vendo-se à esquerda algumas que seguram o seu começo, no século XVI, e, à direita, outras que sustentam o seu fim, no século XIX. Marcelino e seus alunos de latim representam, em monótona cantilena, o Drama que serviria de mote ao seu pedido de aumento. E à briga com Francisco Rubim. Terminado o Ato inicial, os anjinhos contra-regras, entediados, mudam o cenário para 1821. Eu e Marcelino somos toda a platéia. Podemos sentir nosso próprio futuro se plasmando no ar. Eis a sinopse da cena:
Ato I — Revolucionário membro do grupo oposicionista dos exaltados, Marcelino participa dos protestos nacionalistas responsáveis pela revolta que levou D. Pedro I a abdicar, em abril de 1831.
Ato II — Sua presença, na insurreição popular de julho desse ano, leva Diogo Feijó a ordenar sua prisão a bordo da fragata Paraguaçu.
Ato III — Enquanto está detido, sobe ao palco, no Rio de Janeiro, a comédia em três atos A Rusga da Praia Grande, ou O Quixotismo do General das Massas, de autoria de Januário da Cunha Barbosa, aliado de Feijó. (Dentro da peça, passa-se a peça. Um real dentro do outro e o universo como a tela que Deus assiste de fora. Há muitos canais e programas nos universos a cabo disponíveis contra o tédio divino. Medalha de honra ao mérito, a trama se desenvolve em torno das carnes da agitada vida amorosa de Marcelino, que morava na Praia Grande, em Niterói.)
Ato IV — Encarcerado no Paraguaçu, Marcelino escreve como resposta a comédia política O Cônego e Inês, em que satiriza Januário Barbosa (o "cônego"), Feijó (chamado de "Jeifó") e Evaristo da Veiga ("Eravisto"). A polícia naturalmente impede sua representação. (Um anjo crítico, encarregado de recolher pérolas de beleza para o Senhor, escreve do meu lado: "(...) O texto, em decassílabos, com rimas emparelhadas, de que achei por bem fazer conhecer só um fragmento, empreende uma engraçada crítica de costumes em que a história do Brasil é a pedra-de-toque impossível mas existente enquanto exercício de farsa ou de manifestações pagãs dionisíacas de loucura.")
GRAND FINALE — Eu e Marcelino somos transportados ao meu esconderijo na Gruta da Onça, Morro do Vigia. Bebemos água em pó, que patenteei recentemente como máquina de criar poetas. Basta acrescentar água e o saquinho esterilizado de pó se enche de... — água! Marcelino bebe demais, fica chapado e pega minha guitarra Pérola Negra, escolhida por Chryso Rocha sua dileta para gravar "Geração Setenta" (Afonso Abreu — Mário Ruy — Oscar Gama Filho).
Os anjos vão embora, passear no bosque porque seu lobo evém.
Ele toca lundus e improvisa modinhas usando, em geral, brasileiríssimas trovas em que os personagens são seu alter-ego Marcino, Marílias, Análias e Francinas, moda árcade que os pré-românticos seguiram. A atmosfera nacional inclui fossa, pieguice, desespero, angústia, solidão, jogos amorosos burlescos ("Tu m'afagando entre os braços, / Eu t'estalando os dedinhos" — Lira), além da indispensável fantasia de suicídio ante os olhos traidores da amada — lupicínica vingança da dor-de-cotovelo —, flashes românticos em que a dor é uma equilibrista suspensa e esquartejada entre o grotesco, o patético, o trágico, o mórbido e o cômico.
Mostro meu disco. Surpreendido, pede que eu toque. Improviso uns acordes de blues. Súbito, paro: "Não toco nada, só componho." Mostro a melodia que fiz para seu "Soneto". É um samba. Sua emoção faz com que voltemos aos "bons tempos", no passado. Era um samba. Chorou. Chorinho.
Chorou notas em forma de lágrimas negras de chorinho.
Chorou lágrimas negras em forma de notas de chorinho.
Chorou notas em forma de lágrimas negras de chorinho.
Dormir profundamente. Sonhar, talvez.
Aqui jazz.
[Transcrito da Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]
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© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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A cegueira, não. Pelo menos, não a definitiva, mas sim a herdada da negra sala de projeção do cine-teatro Glória. Saio meio cego, tonto, ch...
Chorinho com Marcelino
A cegueira, não. Pelo menos, não a definitiva, mas sim a herdada da negra sala de projeção do cine-teatro Glória. Saio meio cego, tonto, chegado de Casablanca, sem lábios feitos de vermelho, não de carne, ao meu lado para me servir de guia. Para dialogar à Platão.
Vindo da caverna de Platão, cego pela luz, saio tonto do Glória e tropeço, não num paralelepípedo, mas na rua Marcelino Duarte, que se torna gente. Ou fantasma. De uma sessão freudiano-espírito-santense que transcrevo a seguir. Escrita automática dos surrealistas, velhos amigos há muito, desde o nunca, vamos lavar a roupa suja de sua existência para que, enfim, descanse em paz.
Com a rua transformada em gente, habitamos o vazio, eu e Marcelino Pinto Ribeiro Duarte (Serra-ES, 1788 — Niterói-RJ, 1860). Choroso e melancólico, como sempre, Marcelino, em respeito à poluição sonora que ameaça o nada instaurado, recusa-se a falar. Está por baixo. Subimos, então, aos céus, via Cidade Alta, favela do ouro e, como Marcelino era padre, vamos à casa paroquial oitocentista, na rua José Marcelino, seu semi-homônimo, admirador e irmão em rua. José Marcelino, também escritor, incluiu a maior parte da obra publicada de Marcelino Duarte nos dois volumes de seu Jardim poético, publicados em 1856 e 1860.
Padre e filho do padre Manoel Pinto Ribeiro Duarte, Marcelino deixou diversos filhos carnais, muitos escândalos e a fama de agitador político. Mulato, venceu a cor e se pintou como primeiro dramaturgo capixaba e um dos pioneiros da arte poética. Coração numeroso, um romântico? Um clássico perdido na estante? Não e não. Certamente um pré-romântico. O que é sem ser, a divisão, o sentimentalismo, o nacionalismo patriotário, a dor fragmentada pela técnica.
Não há escritor capixaba mais controvertido do que Marcelino Duarte. Desde que morreu, nunca mais foi visto em público. Ligo para a revista Você e de lá pedem uma matéria. Pauta: teatro, poesia, Rubim e Afonso Cláudio. Pergunto a Marcelino como tem andado.
— Morto. Comendo capim pela raiz. Imóvel, naturalmente. Subterrâneo total underground. Enterrado no trabalho. O que me permite conhecer adegas subterrâneas, de onde extraio o vinho do Porto necessário para conservar meu cérebro em álcool. Não me lembro de muita coisa. (O contra-regra traz alguns litros de vinho.)
— E Afonso Cláudio?
— Esse cara mudou minha vida. Um artigo publicador por Você, segundo número, mostra que ele reescreveu os meus poemas incluídos em sua História da literatura espírito-santense. Distorceu meus versos com sua colher torta, querendo me fazer passar por um autor clássico, um árcade, veja só!
— Mas não foi o Afonso Cláudio que te transformou em herói da resistência contra a tirania de Francisco Rubim, que governava o Espírito Santo?
— Mais ou menos. Afonso Cláudio não imprimiu a lenda nem a história. Preferiu a ficção, maior que as duas. E mudou o desfecho da trama, incluindo um final feliz. (Os litros de vinho, como nó em gota d'água, enrolam sua língua com laços de beleza. A sede, vinda de séculos de abstinência, é morta pelo ex-morto.)
— Soube, no disse-me-disse, que você não disse palavra de honra do que o Afonso Cláudio disse. (Repórteres e escritores bebem em serviço. Não tanto mas não tampouco.) E aí, qual é a verdade?
— A verdade, segundo Welles: It's all true. In vino veritas: no vinho, a verdade. Atrás da verdade, você toma a primeira garrafa de vinho e não encontra. Sem desânimo, bebe a segunda. Também não. A persistência na busca da verdade leva à terceira garrafa. Quando chega à metade, ela não importa mais. (Bastante altos, somos arrebatados em corpo e alma por anjos até a visão da "Bahia" de Vitória.) A verdade começa com minha ida ao Rio de Janeiro, em outubro de 1817, para pedir ao rei aumento de vencimentos e a concessão do "Hábito de Cristo". Quem tiver insônia pode conquistar o sono eterno lendo a história no José Schiavo — Caderno Dois de A Gazeta de 13/1/1983. Eu merecia esse dinheiro: prestei muitos serviços à monarquia, mais por esperteza do que por crença. Em 1816, por exemplo, tive de me tornar o primeiro dramaturgo nascido no Espírito Santo, a fim de comemorar a coroação de D. João com o Drama que escrevi e encenei. Pretendia passar apenas quatro meses na Corte, tempo suficiente para a grana sair. Acabei ficando dois anos pois, em fevereiro de 1818, Rubim indeferiu meu pedido e eu decidi permanecer onde poderia ganhar melhor. Como eu sou escritor e o mundo é construído com palavras, resolvi me vingar do Rubim. A verdade, meu amigo, é que não fui até o Rio apenas para reclamar do despotismo de Rubim, ruim, com D. João vi. Nem vi o passarinho verde que o Sonso Gáudio (= daqui por diante, a Afonso Cláudio) viu. Você sabe: pegaria mal usar a necessidade de dinheiro e de honrarias nos versos. Transformei o caso em luta contra a tirania do governador e descrevi a viagem em um poemão em oitava rima, cego, como Camões, a tudo que não fosse a grandiosidade da pompa e circunstância. Cego — mas de raiva — chamei de "Derrota de uma Viagem Feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817". Usei a palavra "derrota" no sentido de rota marítima percorrida por um barco. De olhos abertos, o Sonso claudicante, sem a devida autorização, por força maior de meu falecimento, enxugou deturpando para "Derrota de uma Viagem ao Rio de Janeiro em 1817". Contra os privilégios, deu igual tratamento distorcedor aos versos. (O contra-regra traz cebola e glicerina. Ele chora com a artificialidade piegas dos pré-românticos, criador de uma sensibilidade brasileira dentro da literatura capixaba que foi:)
Oh, Rio, vós, que algum dia,
Ouvistes meu terno canto,
Parai um pouco p'ra ouvires
O triste som de meu pranto.
— Sei. Naturalmente, este é seu poema "Pranto". Mas e o "Derrota"?
Minhas palavras inauguram uma revolução no visual da baía. À força da mudez lacrimosa de Marcelino, suas musas se oferecem de montaria e nos levam ao ano da graça de 1817, mês de outubro. Sabendo que poemas não foram feitos para serem declamados por boca que não seja a vista, de seus olhos escorrem faixas em que letras contêm o som mudo das palavras. É, milagre, o Canto VI do "Derrota":
Adeus, Vitória, digo então comigo,
Pátria ditosa, a mais feliz colina,
Goza amável, ah, sim, fica contigo
A encantadora mas cruel Francina: (3)
Tu sabes, não que o céu maior castigo,
Nem tormenta maior, mágoa mais fina,
Me podia causar, se não privando
De por pouco avistar seu gesto brando.
Trazida por mil das musas, surge uma nota de rodapé, de autoria do próprio Marcelino, que seria rejeitada pela revista Você: [A revista proíbe e condena o uso de notas de rodapé por ser de alto nível e contra desvios de coluna Prestes a doer.]
— (3) Uma das moças mais honestas, a quem por simpatia amei; mas não mereci dela o mais pequeno favor, e que foi aleivosamente infamada por línguas peçonhentas."
Fora de si, boquiabertocaladamente, Marcelino pede as mais mais às musas espetaculosas que nos assessoram o dom da beleza aguçado pela morte de que o poeta ressuscitou, eternidade da arte. Aleatoriamente, metralhadoras giratórias alvas, elas disparam os Cantos XII e XVI:
XII
Qual o que raio viu, eu vacilante,
Turva-se o mar, desperto do tormento,
Eis sobranceiro a mim vejo um gigante,
Imenso, horrível, feio, e corpulento,
Parecendo, qual monstruoso Atlante,
Nos ombros sustentar o firmamento;
Era este porém árduo rochedo,
Que a linguagem vulgar chama — Penedo —.
Algumas lágrimas depois, os versos ainda se desenrolam:
XVI
Gela-se o sangue, e o pálido semblante
Inculca o susto, que sufoca o pejo;
Percebe o meu terror vivo estudante,
E grita: oh, lá, oh lá do Caranguejo...
Levanto os frouxos olhos, não distante,
Pernambucano vaso avisto, e vejo;
Me saúda de lá piloto ativo,
Correspondo, porém nem sei se vivo.
As musas têm seus encantos. Com um deles, voltamos a 1993, ao real e à verdade? Marcelino parece acordar — ou dormir, sonhar talvez o ser ou não — da bebedeira:
— Cheguei a puxar o saco de D. João VI, pai do Brasil português que eu combatia e me torturava. Fiz uma ode chamando o gordo comedor de galinhas — guardava coxas de "colegas" nos bolsos — de herói, de Enéias e de Ulisses. O Sonso Gáudio inventou, como justificativa, que os versos agradeciam o afastamento, a meu pedido, do governador Francisco Rubim (...)
— Fato que a boa História não registra!
— Não tenho nada a ver com isso! Não falei que a culpa é do Sonso?! Rubim só deixou o Espírito Santo dois anos depois, em 1819, por cima de sua carne seca: foi nomeado governador do Ceará. Não sei como vocês acreditaram. D. João VI nunca atenderia às queixas de um pobre padre-mestre roceiro contra um de seus homens de confiança, um capitão de mar-e-guerra da Armada Real! Nem demoraria dois anos — de 1817, em que escrevi o "Derrota", a 1819 — para atender um pedido: a burocracia não era tão ruim naquele tempo! Nem, se tivesse me atendido, nomearia o Rubim para o honroso posto de governador do Ceará. Não tenho mais nada a declarar sobre isso. Vamos mudar de assunto. Se a vida é um palco, gosta de teatro? (Notei que você coloca alguns comentários entre parênteses, como em uma peça.)
— Dizem que sim. Mas você namorou com Melpômene antes de mim.
— Foi. Amo todas as musas com meu grande coração de vazio, mas Melpômene é a preferida entre as iguais. Ela e Calíope adoçam o sal da vida até mesmo para os mortos.
— Sem querer insistir insistindo, guardou alguma memória de Calíope que nunca mostrou ao mundo? O amor é uma forma de comungar almas de versos?
— Diversos memórias diversas conservo em conservas enlatadas pelo (e no) Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (Delirante.) Na lata 120, documento oito, jaz meu poema "Ermenoville ou o Túmulo de J.J. Rousseau". Foi há muito tempo atrás, mas tenho dela uma "Memória sobre as vantagens do estabelecimento dos novos colonos estrangeiros na província do Espírito Santo" na lata 212, documento quatro, de 1825.
— Nunca mais falou com ela?
— Só nas 37 páginas da lata 6, documento onze. Vamos mudar de assunto? Teatro? Olha, aquela sessão de poema mudo foi coisa das musas. Fazem de tudo para me agradar.
— Mesmo?
— Eu também não falo nada ou porque não quero ser chato ou porque jamais devemos discordar das mulheres. Pelo menos enquanto estão presentes. Quero cair nas graças das musas. Acho o contrário: acho que a palavra devia ser escrita como se fala. Criei uma ortografia fonética antes de Qorpo Santo, nome que ele recebeu por motivo oposto a mim: devido ao tempo em que ele viveu "completamente separado do mundo das mulheres". Em 1842, publiquei um livro dando lisõens (sic!) sufisientes (sic!!). (Delírio con fuoco) Chamei de Arte de Ler e de Escrever em Pouco Tempo a essa "Razão Filosófica da Verdadeira Ortografia, Desinfestada dos Prejuízos da Ortografia Barbaresca, ou por Outro Nome, Etimológica; que, como elementos do Sistema de Instrução Preparatória, Compôs e Oferece à Mocidade Brasileira Estudiosa. Seu patrício"...
— Quer dizer que o lance é escrever como falamos e não falar como escrevemos? Langue x parole?
— Por enquanto, o jogo está indefinido. Atuo nos dois times porque importa mais a competição do que a Vitória para que as pessoas tenham algo de fundamental a usar como remédio antitédio. Assim caminha a humanidade!... Por gostar do som da palavra, vamos virar o disco? Vamos mudar o tom de loucura para lucidez e de poesia para teatro?
— Nada contra nem a favor, muito pelo contrário...
— Isso! No entanto, não veja pedantismo onde existe apenas a sinceridade distante e indiferente dos mortos em prol da História. Que venham os touros das musas!
(Anjinhos barrocos caracterizados de touros, discutindo a sua sexualidade através de quadraturas de círculos, feitos marionetes das musas, entram em transporte e mudam o cenário do real. A passagem dos céus nos deposita entre os dias 22 e 31 de maio de 1816, em frente ao atual Palácio Anchieta, Vitória City. Nesse local, armado na praça dos antigos Colégio dos Jesuítas e Igreja de São Tiago ("hoje fundidos em um só Palácio Anchieta", cantam os anjinhos), ergue-se o teatro improvisado que o povo capixaba se acostumou a aplaudir desde o quinhentismo dos inacianos, faixa temporal de seda esticada pelas musas, vendo-se à esquerda algumas que seguram o seu começo, no século XVI, e, à direita, outras que sustentam o seu fim, no século XIX. Marcelino e seus alunos de latim representam, em monótona cantilena, o Drama que serviria de mote ao seu pedido de aumento. E à briga com Francisco Rubim. Terminado o Ato inicial, os anjinhos contra-regras, entediados, mudam o cenário para 1821. Eu e Marcelino somos toda a platéia. Podemos sentir nosso próprio futuro se plasmando no ar. Eis a sinopse da cena:
Ato I — Revolucionário membro do grupo oposicionista dos exaltados, Marcelino participa dos protestos nacionalistas responsáveis pela revolta que levou D. Pedro I a abdicar, em abril de 1831.
Ato II — Sua presença, na insurreição popular de julho desse ano, leva Diogo Feijó a ordenar sua prisão a bordo da fragata Paraguaçu.
Ato III — Enquanto está detido, sobe ao palco, no Rio de Janeiro, a comédia em três atos A Rusga da Praia Grande, ou O Quixotismo do General das Massas, de autoria de Januário da Cunha Barbosa, aliado de Feijó. (Dentro da peça, passa-se a peça. Um real dentro do outro e o universo como a tela que Deus assiste de fora. Há muitos canais e programas nos universos a cabo disponíveis contra o tédio divino. Medalha de honra ao mérito, a trama se desenvolve em torno das carnes da agitada vida amorosa de Marcelino, que morava na Praia Grande, em Niterói.)
Ato IV — Encarcerado no Paraguaçu, Marcelino escreve como resposta a comédia política O Cônego e Inês, em que satiriza Januário Barbosa (o "cônego"), Feijó (chamado de "Jeifó") e Evaristo da Veiga ("Eravisto"). A polícia naturalmente impede sua representação. (Um anjo crítico, encarregado de recolher pérolas de beleza para o Senhor, escreve do meu lado: "(...) O texto, em decassílabos, com rimas emparelhadas, de que achei por bem fazer conhecer só um fragmento, empreende uma engraçada crítica de costumes em que a história do Brasil é a pedra-de-toque impossível mas existente enquanto exercício de farsa ou de manifestações pagãs dionisíacas de loucura.")
GRAND FINALE — Eu e Marcelino somos transportados ao meu esconderijo na Gruta da Onça, Morro do Vigia. Bebemos água em pó, que patenteei recentemente como máquina de criar poetas. Basta acrescentar água e o saquinho esterilizado de pó se enche de... — água! Marcelino bebe demais, fica chapado e pega minha guitarra Pérola Negra, escolhida por Chryso Rocha sua dileta para gravar "Geração Setenta" (Afonso Abreu — Mário Ruy — Oscar Gama Filho).
Os anjos vão embora, passear no bosque porque seu lobo evém.
Ele toca lundus e improvisa modinhas usando, em geral, brasileiríssimas trovas em que os personagens são seu alter-ego Marcino, Marílias, Análias e Francinas, moda árcade que os pré-românticos seguiram. A atmosfera nacional inclui fossa, pieguice, desespero, angústia, solidão, jogos amorosos burlescos ("Tu m'afagando entre os braços, / Eu t'estalando os dedinhos" — Lira), além da indispensável fantasia de suicídio ante os olhos traidores da amada — lupicínica vingança da dor-de-cotovelo —, flashes românticos em que a dor é uma equilibrista suspensa e esquartejada entre o grotesco, o patético, o trágico, o mórbido e o cômico.
Mostro meu disco. Surpreendido, pede que eu toque. Improviso uns acordes de blues. Súbito, paro: "Não toco nada, só componho." Mostro a melodia que fiz para seu "Soneto". É um samba. Sua emoção faz com que voltemos aos "bons tempos", no passado. Era um samba. Chorou. Chorinho.
Chorou notas em forma de lágrimas negras de chorinho.
Chorou lágrimas negras em forma de notas de chorinho.
Chorou notas em forma de lágrimas negras de chorinho.
Dormir profundamente. Sonhar, talvez.
Aqui jazz.
[Transcrito da Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]
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© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
2/01/2016
No começo do século XIX o Espírito Santo ainda era verde. A mata espessa descia da capitania de Minas Gerais até o litoral capixaba. No sertão grosso, cuja travessia fora proibida no século anterior para proteção do ouro extraído dos rios mineiros, bugres hostis, que matavam animais a dentadas, deslizavam como sombras, misturados às árvores.
Sem ímpeto desbravador, a minguada população do Espírito Santo vivia com os pés na praia e a cabeça na brisa do mar, evitando o sertão. No vale do rio Doce esplendia a floresta ancestral e magnífica. Deus e o Diabo habitavam a terra luxuriosa tolerando-se na rivalidade complacente do compadrio.
O padre Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, filho dos trópicos, filho do Espírito Santo, sabia disto e acendia uma vela a Deus e outra ao Diabo. Entre ambas as chamas exerceu seu sacerdócio à brasileira, provando com gosto "as exuberâncias pagãs" da terra, dando asas ao seu "espírito irrequieto até o arrebatamento". Palavras de Afonso Cláudio.
Filho natural do padre Manoel Pinto Ribeiro, o que significa ter nascido com o pecado original em duplicata, Marcelino foi feito sacerdote pela vontade do pai, que lhe deu nome, exemplo e futuro garantido. Além da certeza da boa instrução, a carreira sacerdotal constituía, na colônia ignara, trampolim para a ascensão social e política.
A decisão pragmática do pai iria selar o destino do filho ainda que, dentro da batina, Marcelino fosse carne e nervos. O padre-poeta chamou-o "pai impiedoso" em versos dirigidos a uma de suas musas.
Falamos do pai e do seu pátrio poder. Falemos agora da mãe, com a devida licença.
Da mãe que o pariu — e o pariu certamente mestiço, em 1788 — pouco ou nada se sabe. Com a devida licença, repito, e a se dar crédito à crença popular, a mãe deve ter virado mula sem cabeça depois de legar ao filho o temperamento fogoso que o fez femeeiro.
Esse temperamento Marcino — nome poético do padre — vazou corajosamente para sua poesia amorosa. E bota coragem nisso em tempos primevos e num ambiente social limitado e rústico.
Veja-se a vila de Nossa Senhora da Vitória, edificada em ilha, onde temos o padre Marcelino Duarte, em 1817.
A vila, em pose de cartão-postal, mostra-se risonha e franca, vistosa em sua brancura de cal, bem assentada nos limites possíveis entre encostas verdejantes e as águas mansas do mar. Nela amontoam-se casas de janelas envidraçadas, fortes, igrejas e trapiches.
Suas ruas, no entanto, são estreitas, sem praças nem passeios públicos, e nela não existem hospedarias. A chegada de um estranho açula a curiosidade geral; se chegam dois, arma-se um reboliço que só perde para o grande ajuntamento popular que provoca o aparecimento de burros, animais raros na ilha.
O alimento trivial da terra é o feijão com peixe e farinha de mandioca. O boi, abatido duas vezes na semana, é consumido moderadamente, ficando o couro esticado no varal para curtir ao sol, em meio ao moscaréu ruidoso. Ao curtume, a céu aberto, chama-se, por isso, Pelames.
Nas roças da vila planta-se e colhe-se regulando-se o serviço das lavouras pelo almanaque das luas. Empregam-se as enxadas e os ancinhos e, se faltam ambos, mãos à terra. Picadas de cobras se curam com mezinhas, sumo de limão e pólvora. É tiro certo.
Os fortes da vila são tantos, para o tamanho dela — São João, São Diogo, São Maurício, Carmo — que só de vê-los correm arrepios de medo na espinha, apesar de terem a pólvora úmida e os canhões silenciosos.
As igrejas da vila são tantas, para a modéstia dela — São Tiago, Misericórdia, São Gonçalo, São Francisco, Santa Luzia, Matriz, Carmo, Nossa Senhora da Conceição, Rosário — que só de contemplá-las purifica-se a alma em enlevos de fé. Na verdade, guarnecida para a guerra a vila de Nossa Senhora da Vitória vive em paz celestial.
Gravura de 1805 faz referência particular ao seu porto declarando-o "belo e abrigado dos ventos; o seu comércio exportativo consiste em açúcar, aguardente, algodão em rama e manufaturado, madeira, arroz, milho, feijão". Era a produção da terra onde o café ainda não dera a graça de suas ramas.
Os gêneros e mercadorias desse comércio exportativo saíam por muitos trapiches e cais — das Colunas, dos Padres, do Azambuja, do Batalha, do Santíssimo, das Lanchas, Cais Grande — onde o arroto das águas, batendo no tabuado, embalava as sestas dos negros-estivas.
Já chama a atenção a escadaria entre palmeiras, diante do palácio do governo, antigo colégio dos jesuítas. No extremo oposto da vila, a ladeira de Pernambuco dava acesso ao "lugar chamado Capixaba". Ali, fonte famosa jorrava as águas da mataria próxima. Marcelino, em versos de 1850, mencionou-a evocativo juntamente com a fonte da Lapa, gabando-lhes a pureza das águas, "o santo licor das duas fontes / que a natureza formou e inda conserva".
Mas, e o povo, por que não aparece o povo nesse cartão-postal risonho e franco?
Não aparece porque é ralo mesmo.
Saint-Hilaire, que visitou Vitória em 1818, cita apenas 4.245 habitantes. Teria contado nos dedos ou deduzido o número pelos fogos (ou seja, casas) da vila?
No dedo, porém, podiam-se apontar os dois juízes ordinários e o de órfãos; este ou aquele mestre de ler e de contar para o gasto das letras e dos números, b-a, ba, 1 + 1; o cirurgião, o rábula e o boticário ou ainda o ferreiro-dentista que um dia dava na ferradura, outro na dentadura. Quem ousasse o desafio apontasse por fim o déspota governador, Francisco Alberto Rubim, capitão de mar-e-guerra, ancorado na terra desde 1812.
Vista está a vila de Nossa Senhora da Vitória quando dela partiu o padre Marcelino Duarte em 1817. Concedo que, nessa descrição, salpiquei-lhe suaves ironias. Nada, entretanto, que distorcesse o modelo real.
Marcelino Pinto Ribeiro Duarte amou de amor sempiterno essa vila a que chamou poeticamente de "ninho carinhoso", doce ninho de amadas, de mulheres especiais com nomes arcádicos — Francinas, Análias, Marílias — possivelmente descobertas com olho de padre-mestre através das tramas obscuras dos confessionários.
Com elas deleitou-se, devido a elas purgou penas. Os amores a Anália custaram-lhe um ano de desterro em Itacibá. Foi determinação de Rubim que, guardião dos bons costumes e da ordem pública, não admitia as derrapadas amorosas de Marcino. Este jamais perdoou ao tirano, cujas arbitrariedades — e foram tantas — foi denunciar à corte. Agia em causa própria, mas não mentia.
A ida é o tema do longo poema Derrota de uma viagem ao Rio de Janeiro em 1817. Se o padre teve ou não força para remover da capitania o todo-poderoso governador, não está muito claro. Afinal, Rubim era bem cotado na administração portuguesa desfrutando do respeito e da proteção nepótica do tio, o intendente Paulo Fernandes Viana. Além disso, pontificara como administrador notável ao rasgar, sertão adentro, a estrada que pôs o litoral do Espírito Santo em ligação direta com Vila Rica.
Seja como for, o capitão de mar-e-guerra acabou removido para o Ceará, em 1819. Marcelino Duarte pôde então voltar ao ninho carinhoso, recomeçando a amar e poetar com mais desembaraço entre uma vela a Deus e outra ao Diabo.
[Transcrito da Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]
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© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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No começo do século XIX o Espírito Santo ainda era verde. A mata espessa descia da capitania de Minas Gerais até o litoral capixaba. No ser...
As chamas do padre-poeta
No começo do século XIX o Espírito Santo ainda era verde. A mata espessa descia da capitania de Minas Gerais até o litoral capixaba. No sertão grosso, cuja travessia fora proibida no século anterior para proteção do ouro extraído dos rios mineiros, bugres hostis, que matavam animais a dentadas, deslizavam como sombras, misturados às árvores.
Sem ímpeto desbravador, a minguada população do Espírito Santo vivia com os pés na praia e a cabeça na brisa do mar, evitando o sertão. No vale do rio Doce esplendia a floresta ancestral e magnífica. Deus e o Diabo habitavam a terra luxuriosa tolerando-se na rivalidade complacente do compadrio.
O padre Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, filho dos trópicos, filho do Espírito Santo, sabia disto e acendia uma vela a Deus e outra ao Diabo. Entre ambas as chamas exerceu seu sacerdócio à brasileira, provando com gosto "as exuberâncias pagãs" da terra, dando asas ao seu "espírito irrequieto até o arrebatamento". Palavras de Afonso Cláudio.
Filho natural do padre Manoel Pinto Ribeiro, o que significa ter nascido com o pecado original em duplicata, Marcelino foi feito sacerdote pela vontade do pai, que lhe deu nome, exemplo e futuro garantido. Além da certeza da boa instrução, a carreira sacerdotal constituía, na colônia ignara, trampolim para a ascensão social e política.
A decisão pragmática do pai iria selar o destino do filho ainda que, dentro da batina, Marcelino fosse carne e nervos. O padre-poeta chamou-o "pai impiedoso" em versos dirigidos a uma de suas musas.
Falamos do pai e do seu pátrio poder. Falemos agora da mãe, com a devida licença.
Da mãe que o pariu — e o pariu certamente mestiço, em 1788 — pouco ou nada se sabe. Com a devida licença, repito, e a se dar crédito à crença popular, a mãe deve ter virado mula sem cabeça depois de legar ao filho o temperamento fogoso que o fez femeeiro.
Esse temperamento Marcino — nome poético do padre — vazou corajosamente para sua poesia amorosa. E bota coragem nisso em tempos primevos e num ambiente social limitado e rústico.
Veja-se a vila de Nossa Senhora da Vitória, edificada em ilha, onde temos o padre Marcelino Duarte, em 1817.
A vila, em pose de cartão-postal, mostra-se risonha e franca, vistosa em sua brancura de cal, bem assentada nos limites possíveis entre encostas verdejantes e as águas mansas do mar. Nela amontoam-se casas de janelas envidraçadas, fortes, igrejas e trapiches.
Suas ruas, no entanto, são estreitas, sem praças nem passeios públicos, e nela não existem hospedarias. A chegada de um estranho açula a curiosidade geral; se chegam dois, arma-se um reboliço que só perde para o grande ajuntamento popular que provoca o aparecimento de burros, animais raros na ilha.
O alimento trivial da terra é o feijão com peixe e farinha de mandioca. O boi, abatido duas vezes na semana, é consumido moderadamente, ficando o couro esticado no varal para curtir ao sol, em meio ao moscaréu ruidoso. Ao curtume, a céu aberto, chama-se, por isso, Pelames.
Nas roças da vila planta-se e colhe-se regulando-se o serviço das lavouras pelo almanaque das luas. Empregam-se as enxadas e os ancinhos e, se faltam ambos, mãos à terra. Picadas de cobras se curam com mezinhas, sumo de limão e pólvora. É tiro certo.
Os fortes da vila são tantos, para o tamanho dela — São João, São Diogo, São Maurício, Carmo — que só de vê-los correm arrepios de medo na espinha, apesar de terem a pólvora úmida e os canhões silenciosos.
As igrejas da vila são tantas, para a modéstia dela — São Tiago, Misericórdia, São Gonçalo, São Francisco, Santa Luzia, Matriz, Carmo, Nossa Senhora da Conceição, Rosário — que só de contemplá-las purifica-se a alma em enlevos de fé. Na verdade, guarnecida para a guerra a vila de Nossa Senhora da Vitória vive em paz celestial.
Gravura de 1805 faz referência particular ao seu porto declarando-o "belo e abrigado dos ventos; o seu comércio exportativo consiste em açúcar, aguardente, algodão em rama e manufaturado, madeira, arroz, milho, feijão". Era a produção da terra onde o café ainda não dera a graça de suas ramas.
Os gêneros e mercadorias desse comércio exportativo saíam por muitos trapiches e cais — das Colunas, dos Padres, do Azambuja, do Batalha, do Santíssimo, das Lanchas, Cais Grande — onde o arroto das águas, batendo no tabuado, embalava as sestas dos negros-estivas.
Já chama a atenção a escadaria entre palmeiras, diante do palácio do governo, antigo colégio dos jesuítas. No extremo oposto da vila, a ladeira de Pernambuco dava acesso ao "lugar chamado Capixaba". Ali, fonte famosa jorrava as águas da mataria próxima. Marcelino, em versos de 1850, mencionou-a evocativo juntamente com a fonte da Lapa, gabando-lhes a pureza das águas, "o santo licor das duas fontes / que a natureza formou e inda conserva".
Mas, e o povo, por que não aparece o povo nesse cartão-postal risonho e franco?
Não aparece porque é ralo mesmo.
Saint-Hilaire, que visitou Vitória em 1818, cita apenas 4.245 habitantes. Teria contado nos dedos ou deduzido o número pelos fogos (ou seja, casas) da vila?
No dedo, porém, podiam-se apontar os dois juízes ordinários e o de órfãos; este ou aquele mestre de ler e de contar para o gasto das letras e dos números, b-a, ba, 1 + 1; o cirurgião, o rábula e o boticário ou ainda o ferreiro-dentista que um dia dava na ferradura, outro na dentadura. Quem ousasse o desafio apontasse por fim o déspota governador, Francisco Alberto Rubim, capitão de mar-e-guerra, ancorado na terra desde 1812.
Vista está a vila de Nossa Senhora da Vitória quando dela partiu o padre Marcelino Duarte em 1817. Concedo que, nessa descrição, salpiquei-lhe suaves ironias. Nada, entretanto, que distorcesse o modelo real.
Marcelino Pinto Ribeiro Duarte amou de amor sempiterno essa vila a que chamou poeticamente de "ninho carinhoso", doce ninho de amadas, de mulheres especiais com nomes arcádicos — Francinas, Análias, Marílias — possivelmente descobertas com olho de padre-mestre através das tramas obscuras dos confessionários.
Com elas deleitou-se, devido a elas purgou penas. Os amores a Anália custaram-lhe um ano de desterro em Itacibá. Foi determinação de Rubim que, guardião dos bons costumes e da ordem pública, não admitia as derrapadas amorosas de Marcino. Este jamais perdoou ao tirano, cujas arbitrariedades — e foram tantas — foi denunciar à corte. Agia em causa própria, mas não mentia.
A ida é o tema do longo poema Derrota de uma viagem ao Rio de Janeiro em 1817. Se o padre teve ou não força para remover da capitania o todo-poderoso governador, não está muito claro. Afinal, Rubim era bem cotado na administração portuguesa desfrutando do respeito e da proteção nepótica do tio, o intendente Paulo Fernandes Viana. Além disso, pontificara como administrador notável ao rasgar, sertão adentro, a estrada que pôs o litoral do Espírito Santo em ligação direta com Vila Rica.
Seja como for, o capitão de mar-e-guerra acabou removido para o Ceará, em 1819. Marcelino Duarte pôde então voltar ao ninho carinhoso, recomeçando a amar e poetar com mais desembaraço entre uma vela a Deus e outra ao Diabo.
[Transcrito da Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]
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© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
2/01/2016
O uso da oitava rima [no Poema mariano] provavelmente influenciou a 'Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817',[ 1 ] obra de Marcelino Pinto Ribeiro Duarte[ 2 ] que, além de se assemelhar ao Poema mariano no seu falso arcadismo pré-romântico, apresenta esse metro em suas 55 estrofes. Como explicamos, a oitava rima, empregada por Camões em Os lusíadas, é tradicionalmente destinada à abordagem do grandioso, do altissonante, do pomposo, do grandiloqüente, e não se enquadra no bucolismo, na simplicidade, na ingenuidade e na tranqüilidade do arcadismo. Apesar de se atribuir, imitando seus clichês, o criptônimo de "Marcino" e de espalhar "Análias" e "Francinas" — epítetos pastoris — pelo texto, não estamos diante de um árcade. O pré-romantismo capixaba e o nacional têm em comum o marco inicial de 1808 — em que o príncipe regente d. João tomou as medidas que produziram o surgimento da nação brasileira[ 3 ] — e o hábito de misturar a velha forma arcádica com os novos temas românticos e vice-versa. Afrânio Coutinho explica essa interpenetração de estilos com clareza:
Entre os dois momentos medeia, aliás, uma fase de transição — pré-romântica — em que lutam as tendências novas e o espírito antigo, expressa tal hesitação na mistura e interpenetração de tendências estéticas, de formas novas com temas cediços ou de assuntos novos com gêneros superados, tudo mostrando a indefinição e a incaracterização da época, dominada por um subarcadismo ou pseudoclassicismo. Correntes diferentes cruzam-se e misturam-se, barrocas, arcádicas, iluministas, neoclássicas, rococós, românticas, oriundas a maioria de fontes européias (...)[ 4 ]
Utilizando a palavra derrota no sentido de rota marítima percorrida por uma embarcação, Marcelino Duarte se propõe a narrar, embalado por entidades mitológicas, sua viagem ao Rio de Janeiro, onde pretendia se queixar a d. João VI dos desmandos, das perseguições, da crueldade, das injustiças e do despotismo do governador da capitania, Francisco Rubim. Mas o pré-romantismo do poema não se limita à ânsia de liberdade, à defesa dos oprimidos, à revolta contra a tirania e à luta pela justiça, temas que, na verdade, ocupam apenas cinco estrofes. Bem característico desse estilo é o tom brasileiramente lamentoso, magoado, sentimental, melancólico e adoecido pela saudade com que ele pinta os amores que deixa e a cidade de Vitória — chamada, repetidas vezes, de 'pátria' e em que se detém para versar, atormentado pela tristeza e pela dor, sua paisagem e seus recantos que, a contragosto, abandona. À medida que seu barco avança, o sombrio poeta descreve Vila Velha, o convento de Nossa Senhora da Penha — a que dedica quatro elogiosas estrofes —, as cruéis arbitrariedades de Rubim e os pitorescos lugares e ocorrências que emolduraram seu percurso até o Rio de Janeiro.
O cognome pastoril de 'Marília' não é suficiente para tornar arcádico — movimento antibarroco — este belo soneto de Marcelino, caracterizado justamente pelos fortes traços barrocos — e pré-românticos — oriundos da presença de metáforas, hipérboles, hipérbatos e adjetivos:
SONETO
Quando os deuses, Marília, projetaram
Tua imagem formar linda, e mimosa,
A rica pedra, a flor mais preciosa
Da natureza providos buscaram:
Teu rosto encantador ledos formaram
Do nevado jasmim, purpúrea rosa;
Os lábios, dentes, a boca graciosa
De cristais, e rubins organizaram.
Nos olhos te puseram dois brilhantes;
Os cristalinos peitos transparentes
São de alabastro globos palpitantes.
Querendo dar os deuses providentes
Clara idéia de si, stando distantes,
Teus dotes divinais temos presentes.[ 5 ]
A própria estrutura de diversos trabalhos seus está mais próxima da liberdade dos românticos do que do apuro dos árcades. Em uma de suas epístolas, por exemplo, em vez de se valer do decassílabo, metro geralmente escolhido pelos neoclássicos para essa elástica forma, Marcelino adotou inusitados tetrassílabos para os 89 quartetos de que é composta. O texto da epístola, que aborda todos os principais temas pré-românticos, sugere que ela teria sido escrita no Sítio da Saudade (quarteto 85: "Voto solene/Sagro à amizade/No da Saudade/Sítio, em que moro."), para onde fugiu (11: "Ele só fez,/Que eu fugitivo,/Qual vil cativo,/Da Pátria andasse"), perseguido por Diogo Antônio Feijó (3: "Negra maldade/D'um monstro fero,/Feijó, vil Nero,/Q'a pátria oprime;"). O governo do grupo dos moderados (6: "Cativa grei/De moderados,/São seus soldados,/Prontos para tudo."), a que Feijó pertencia, de fato prendeu muitos dos oposicionistas exaltados (36: "Sou exaltado...") que, como Marcelino, tinham participado das revoltas populares que culminaram na abdicação de d. Pedro I, em 7.4.1831 (8: "Quem foi de Abril,/Sofre, como eu/Do vil Proteu,/Guerra cruenta.") Entretanto, mesmo obrigado a se esconder, ele não desistiu de proclamar o seu patriotismo (37: "Amor constante,/Firme amizade,/Terna saudade,/Pátria, e civismo."), o seu ardor nacionalista e revolucionário (74: "'Fazei já guerra/'À traição vil;/'Viva o Brasil,/'Aos maus castigo'") e o seu ódio à tirania (89: "Aos Céus imploro,/Te estenda os anos,/Salvo aos tiranos/Da Corte. Adeus." Em seus versos, que impressionam pela modernidade cômica das onomatopéias usadas para pintar a paisagem brasileira, Marcelino revela-se de vez pré-romântico quando descreve seu refúgio no campo como desagradável, feio, mórbido, sombrio, angustiante, triste, melancólico e torturante, ao contrário dos árcades, para quem a natureza era um genuíno remédio capaz de restituir ao homem a paz de espírito e a felicidade roubadas pelos males da civilização:
EPÍSTOLA
18
O sol ativo,
Q'alegra as flores,
Meus dissabores
Azeda mais.
20
Se à noite fria
A terra enluta,
Tristeza bruta
M'investe, e mata.
42
Da noite o manto
Desprende apenas...
Q' tristes cenas!
Q'imagem feia!...
43
Já não gorjeia
Meiga e sonora,
Saudando a aurora,
Terna avezinha.
44
Com voz daninha
No charco em bando
Pan... pan... gritando,
O Sapo enjoa.
45
No vale entoa,
Que o rio banha,
Nojenta intanha
Rom, rom, rom, rom.
46
D'agudo som
O perereca
Toca a rabeca,
Crré... crré... crré... crré.
47
Saudoso bé
Solta o bezerro:
Com outro berro
A mãe responde.
48
Bem perto, aonde,
Mato sombrio
Guarnece o rio
Sibila a cobra.
49
D'aqui desdobra
Com mago estilo
Caseiro grilo
Si... si... si... si...
50
Eis que dali
Com pio frouxo
Noturno mocho
Males augura.
51
Da sombra escura
D'alta figueira,
Geme agoureira
Magra coruja.
52
Ah! fuja... fuja
Destes lugares,
Quem meus azares
De ouvir se esquiva.
53
Se a luz furtiva
Do pirilampo
Matiza o campo
Um céu d'estrelas,
54
Julgai por elas
Minha ventura,
Se vem, não dura
Curto momento.
55
Voraz tormento,
Negra agonia,
Melancolia,
Baça tristeza,
[...][ 6 ]
Como bom pré-romântico, os acontecimentos políticos nacionais freqüentemente lhe serviam de inspiração. Em 1816, por ocasião dos festejos comemorativos da coroação de d. João VI, escreveu um Drama que foi encenado entre os dias 22 e 31 de maio, em um teatro improvisado erguido em frente ao atual palácio Anchieta, em Vitória. Membro do grupo oposicionista formado pelos liberais exaltados, Marcelino participou dos protestos nacionalistas responsáveis pela revolta que levou d. Pedro I a abdicar, em abril de 1831. Em conseqüência de sua presença nos distúrbios que, em julho desse ano,[ 7 ] provocaram uma nova insurreição popular, Diogo Feijó ordenou que ele fosse preso a bordo da fragata Paraguaçu — de onde fugiria mais tarde. Enquanto estava detido, segundo Wilson Martins, subiu ao palco, no Rio de Janeiro, a comédia em três atos A rusga da Praia Grande, ou O quixotismo do general das massas, de autoria de Januário da Cunha Barbosa, aliado de Feijó. A peça aludia à agitada vida amorosa de Marcelino,[ 8 ] que morava na Praia Grande, em Niterói. Informado da estréia, escreveu como resposta, mesmo encarcerado na Paraguaçu, a comédia política O cônego e Inês, em que satiriza Januário Barbosa (o 'cônego'), Feijó (chamado em cena de 'Jeifó') e Evaristo da Veiga ('Eravisto'). A polícia — sempre a serviço dos poderosos — naturalmente impediu sua representação. O texto, em decassílabos, com rimas emparelhadas, de que se conhece apenas um fragmento,[ 9 ] empreende uma engraçada crítica de costumes em que a história nacional ocupa lugar de destaque. Contudo, os inegáveis bons momentos de seu humor ficam fora do alcance do grande público, que não possui os conhecimentos históricos necessários para compreendê-los.
A lira que apresentamos em seguida é um poema tipicamente pré-romântico. Seu tom sombrio, noturno, irreal, povoado pela visão lúgubre da saudade, espelha o tormento do poeta que, longe da amada, se vê possuído por sonhos ruins, se desespera, se angustia e se entristece. A melancolia e a solidão que o torturam são vazadas em uma linguagem emotiva e adjetivada que expressa com habilidade o sentimentalismo brasileiro:
LIRA
Acaso eu dormia
Já frouxo, e cansado,
De andar todo o dia
Buscando o meu gado.
Um sonho me pinta
De linda donzela,
A imagem mais bela,
Mais triste a chorar.
Ao vê-la me inspira,
Oh céus, que pesar!
Os olhos não tira
Do chão lagrimosa,
Soluça, e suspira
A deusa formosa.
Nas vestes inculca
Pesar, e desgosto,
C'um véu cobre o rosto
De arminho na cor.
Minha alma então sinto
Partir-se de dor.
Marília, não minto,
Gemia eu dormindo,
Q'a imagem, que pinto
O mesmo sentindo
Forcejo, e não posso
Sufocar o pranto,
Q'a dor pode tanto,
Q' julgo morrer,
Choraras, se visses
O meu padecer.
Se ao filho de Ulisses
Não deixa um Mentor,
Meus dias felizes
Empece-me a dor.
Quem sois, eu pergunto
À triste deidade,
"Eu sou a saudade"
A deusa me diz,
Eu só te persigo,
Te faço infeliz.
Não basta, lhe digo,
Contra mim, oh! Nume,
P'ra meu mor castigo
Amor, e ciúme?...
Se vejo a Marília
Amor me persegue,
Se a deixo, me segue
Ciúme infernal.
Ah! tu inda mais
Duplicas meu mal!...
Suspiros, mil ais
Do peito arrancando,
Ah! diz, não te faz
Mais meigo, e mais brando?...
Tem dó de meu pranto,
Do mal, que suporto,
Se queres-me morto
Demora não tem.
Marília... repito;
Marília... meu bem...
A causa de aflito
Gemeres, chorares,
Sou eu, teu delito
Teu mal, teus pesares
Vai ver a Marília
Que chora, qual gemes,
Que o mesmo, que temes
Te julga infiel
Assim me responde
O Nume cruel
Acordo, e se esconde,
Suponho em meu peito,
Pois apalpo a onde
Estava, era o leito.
Em pranto afogado
A Deusa procuro
Um véu negro escuro
Só mostra-me horror.
São estes, Marília,
Prodígios de amor.[ 10 ]
'Pranto' é um trabalho que comprova a sua importância na criação de uma sensibilidade brasileira dentro da literatura capixaba. Inspirando-se em uma forma popular, a trova — originalmente formada por uma só quadra de versos heptassílabos em que o segundo e o quarto versos são obrigados a rimar —, Marcelino consegue um ritmo bem adequado à atmosfera de seu poema, cheio de fossa, de pieguice, de desespero, de angústia, de vazio existencial, de saudade, de solidão, de jogos amorosos burlescos ("Tu m'afagando entre os braços,/Eu te estalando os dedinhos"), de fantasia de suicídio ante os olhos traidores da amada — lupicínica vingança da dor-de-cotovelo —, flashes românticos em que a dor é uma equilibrista suspensa e esquartejada entre o grotesco, o patético, o trágico, o mórbido e o cômico:
PRANTO
Ouvistes meu terno canto,
Parai um pouco p'ra ouvires
O triste som de meu pranto.
Mil vezes, ah! venturoso,
Olhando a vossa corrente,
Os belos dons de Marília
Cantou Marcino contente,
Mas hoje, oh! céus! que essa ingrata
Motiva minha amargura,
Ouvireis entre soluços
Minha cruel desventura.
Essa com quem tantas vezes
Me vistes ledo brincando,
Ela tão meiga entre as outras
Furtivos beijos me dando,
Que só mostrava prazer,
Quando contente me via,
Que, eu só gemendo, chorava,
Eu só me rindo, se ria,
Mudou-se enfim; só m'ostenta
Um ar pesado e sisudo,
Já não me chama mimoso,
Seu bem, seu mimo, seu tudo.
Outro merece os afagos
De seu cruel coração,
Eu só mereço seu ódio,
Seu desprezo, e ingratidão.
Eu morro... ah! vil!... já não posso
Suportar tanta esquivança!
Marília; oh! céu! me despreza!...
Quem motivou tal mudança?...
Marília!... o Nume por quem,
Desprezei patrícios lares,
O néctar mais saboroso
Nos meus tiranos pesares!...
Matai-me, céus, nem viver
Um só momento desejo;
Acabai, Rio, meus males,
Se algum dia o meu desejo.
Envolvei nas vossas águas,
Levai nas vossas correntes,
O mais triste, e desgraçado,
Mais infeliz dos viventes,
Ânsia, raiva, amor, ciúme,
Todas as fúrias do Averno,
Exasperam meu tormento,
Duplicam meu mal eterno.
Ah! Marília, e como ingrata,
Pôde em ti tão vil traição?
Tu, que mil vezes chorando
Mostravas tanta paixão?
Mudaste em fim [sic]; não me adoras...
Toda és fúria contra mim,
Inda mais fera que um tigre,
Raivosa mais que o Rubim.
Não me tiveste, cruel,
Sempre submisso a teu mando,
As leis sagradas de amor
Fielmente executando?
Aquelas tardes passadas
Entre amorosos carinhos,
Tu m'afagando entre os braços,
Eu te estalando os dedinhos.
Onde estão, cruel Marília?...
Quem me roubou tal ventura?...
Foi sim, ingrata, meu fado;
Foi minha pouca ventura.
Um vesúvio o mesmo inferno
Abrasam meu peito aflito.
Não bramem, não choram tanto
As almas no vil cocito.
Eu morro... Oh Céus! já percebo
Da morte o frio desmaio;
Vem ver ao menos, tirana,
Como d'aqui morro, e caio.
Vós, Rio, que entre os peixinhos
Tão saudoso murmurais,
Que enternecido comigo
Tão tristemente chorais,
Cobri, cobri compassivo
Meu corpo com vossas águas,
Nelas acabe Marcino,
Com ele pesar, e mágoas.[ 11 ]
A obra de Marcelino parece ter constituído uma espécie de modelo para os autores pré-românticos que o sucederam. Seus recursos técnicos, seu sentimentalismo, seu nacionalismo, seu patriotismo e seus lugares-comuns de falso árcade ressurgem em José Gonçalves Fraga e em João Luís da Fraga Loureiro de forma diluída e sem o talento que o caracterizava. Até mesmo a bajulação apologética, a que deu início com sua ode a d. João VI, é reproduzida ad nauseam por ambos e piorada — se isso for possível.
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[In GAMA FILHO, Oscar, Razão do Brasil em uma sociopsicanálise da literatura capixaba. Rio de Janeiro / Vitória: José Olympio / Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1991, p. 57-70.]
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© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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O uso da oitava rima [no Poema mariano] provavelmente influenciou a 'Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817...
Análise da obra
O uso da oitava rima [no Poema mariano] provavelmente influenciou a 'Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817',[ 1 ] obra de Marcelino Pinto Ribeiro Duarte[ 2 ] que, além de se assemelhar ao Poema mariano no seu falso arcadismo pré-romântico, apresenta esse metro em suas 55 estrofes. Como explicamos, a oitava rima, empregada por Camões em Os lusíadas, é tradicionalmente destinada à abordagem do grandioso, do altissonante, do pomposo, do grandiloqüente, e não se enquadra no bucolismo, na simplicidade, na ingenuidade e na tranqüilidade do arcadismo. Apesar de se atribuir, imitando seus clichês, o criptônimo de "Marcino" e de espalhar "Análias" e "Francinas" — epítetos pastoris — pelo texto, não estamos diante de um árcade. O pré-romantismo capixaba e o nacional têm em comum o marco inicial de 1808 — em que o príncipe regente d. João tomou as medidas que produziram o surgimento da nação brasileira[ 3 ] — e o hábito de misturar a velha forma arcádica com os novos temas românticos e vice-versa. Afrânio Coutinho explica essa interpenetração de estilos com clareza:
Entre os dois momentos medeia, aliás, uma fase de transição — pré-romântica — em que lutam as tendências novas e o espírito antigo, expressa tal hesitação na mistura e interpenetração de tendências estéticas, de formas novas com temas cediços ou de assuntos novos com gêneros superados, tudo mostrando a indefinição e a incaracterização da época, dominada por um subarcadismo ou pseudoclassicismo. Correntes diferentes cruzam-se e misturam-se, barrocas, arcádicas, iluministas, neoclássicas, rococós, românticas, oriundas a maioria de fontes européias (...)[ 4 ]
Utilizando a palavra derrota no sentido de rota marítima percorrida por uma embarcação, Marcelino Duarte se propõe a narrar, embalado por entidades mitológicas, sua viagem ao Rio de Janeiro, onde pretendia se queixar a d. João VI dos desmandos, das perseguições, da crueldade, das injustiças e do despotismo do governador da capitania, Francisco Rubim. Mas o pré-romantismo do poema não se limita à ânsia de liberdade, à defesa dos oprimidos, à revolta contra a tirania e à luta pela justiça, temas que, na verdade, ocupam apenas cinco estrofes. Bem característico desse estilo é o tom brasileiramente lamentoso, magoado, sentimental, melancólico e adoecido pela saudade com que ele pinta os amores que deixa e a cidade de Vitória — chamada, repetidas vezes, de 'pátria' e em que se detém para versar, atormentado pela tristeza e pela dor, sua paisagem e seus recantos que, a contragosto, abandona. À medida que seu barco avança, o sombrio poeta descreve Vila Velha, o convento de Nossa Senhora da Penha — a que dedica quatro elogiosas estrofes —, as cruéis arbitrariedades de Rubim e os pitorescos lugares e ocorrências que emolduraram seu percurso até o Rio de Janeiro.
O cognome pastoril de 'Marília' não é suficiente para tornar arcádico — movimento antibarroco — este belo soneto de Marcelino, caracterizado justamente pelos fortes traços barrocos — e pré-românticos — oriundos da presença de metáforas, hipérboles, hipérbatos e adjetivos:
SONETO
Quando os deuses, Marília, projetaram
Tua imagem formar linda, e mimosa,
A rica pedra, a flor mais preciosa
Da natureza providos buscaram:
Teu rosto encantador ledos formaram
Do nevado jasmim, purpúrea rosa;
Os lábios, dentes, a boca graciosa
De cristais, e rubins organizaram.
Nos olhos te puseram dois brilhantes;
Os cristalinos peitos transparentes
São de alabastro globos palpitantes.
Querendo dar os deuses providentes
Clara idéia de si, stando distantes,
Teus dotes divinais temos presentes.[ 5 ]
A própria estrutura de diversos trabalhos seus está mais próxima da liberdade dos românticos do que do apuro dos árcades. Em uma de suas epístolas, por exemplo, em vez de se valer do decassílabo, metro geralmente escolhido pelos neoclássicos para essa elástica forma, Marcelino adotou inusitados tetrassílabos para os 89 quartetos de que é composta. O texto da epístola, que aborda todos os principais temas pré-românticos, sugere que ela teria sido escrita no Sítio da Saudade (quarteto 85: "Voto solene/Sagro à amizade/No da Saudade/Sítio, em que moro."), para onde fugiu (11: "Ele só fez,/Que eu fugitivo,/Qual vil cativo,/Da Pátria andasse"), perseguido por Diogo Antônio Feijó (3: "Negra maldade/D'um monstro fero,/Feijó, vil Nero,/Q'a pátria oprime;"). O governo do grupo dos moderados (6: "Cativa grei/De moderados,/São seus soldados,/Prontos para tudo."), a que Feijó pertencia, de fato prendeu muitos dos oposicionistas exaltados (36: "Sou exaltado...") que, como Marcelino, tinham participado das revoltas populares que culminaram na abdicação de d. Pedro I, em 7.4.1831 (8: "Quem foi de Abril,/Sofre, como eu/Do vil Proteu,/Guerra cruenta.") Entretanto, mesmo obrigado a se esconder, ele não desistiu de proclamar o seu patriotismo (37: "Amor constante,/Firme amizade,/Terna saudade,/Pátria, e civismo."), o seu ardor nacionalista e revolucionário (74: "'Fazei já guerra/'À traição vil;/'Viva o Brasil,/'Aos maus castigo'") e o seu ódio à tirania (89: "Aos Céus imploro,/Te estenda os anos,/Salvo aos tiranos/Da Corte. Adeus." Em seus versos, que impressionam pela modernidade cômica das onomatopéias usadas para pintar a paisagem brasileira, Marcelino revela-se de vez pré-romântico quando descreve seu refúgio no campo como desagradável, feio, mórbido, sombrio, angustiante, triste, melancólico e torturante, ao contrário dos árcades, para quem a natureza era um genuíno remédio capaz de restituir ao homem a paz de espírito e a felicidade roubadas pelos males da civilização:
EPÍSTOLA
18
O sol ativo,
Q'alegra as flores,
Meus dissabores
Azeda mais.
20
Se à noite fria
A terra enluta,
Tristeza bruta
M'investe, e mata.
42
Da noite o manto
Desprende apenas...
Q' tristes cenas!
Q'imagem feia!...
43
Já não gorjeia
Meiga e sonora,
Saudando a aurora,
Terna avezinha.
44
Com voz daninha
No charco em bando
Pan... pan... gritando,
O Sapo enjoa.
45
No vale entoa,
Que o rio banha,
Nojenta intanha
Rom, rom, rom, rom.
46
D'agudo som
O perereca
Toca a rabeca,
Crré... crré... crré... crré.
47
Saudoso bé
Solta o bezerro:
Com outro berro
A mãe responde.
48
Bem perto, aonde,
Mato sombrio
Guarnece o rio
Sibila a cobra.
49
D'aqui desdobra
Com mago estilo
Caseiro grilo
Si... si... si... si...
50
Eis que dali
Com pio frouxo
Noturno mocho
Males augura.
51
Da sombra escura
D'alta figueira,
Geme agoureira
Magra coruja.
52
Ah! fuja... fuja
Destes lugares,
Quem meus azares
De ouvir se esquiva.
53
Se a luz furtiva
Do pirilampo
Matiza o campo
Um céu d'estrelas,
54
Julgai por elas
Minha ventura,
Se vem, não dura
Curto momento.
55
Voraz tormento,
Negra agonia,
Melancolia,
Baça tristeza,
[...][ 6 ]
Como bom pré-romântico, os acontecimentos políticos nacionais freqüentemente lhe serviam de inspiração. Em 1816, por ocasião dos festejos comemorativos da coroação de d. João VI, escreveu um Drama que foi encenado entre os dias 22 e 31 de maio, em um teatro improvisado erguido em frente ao atual palácio Anchieta, em Vitória. Membro do grupo oposicionista formado pelos liberais exaltados, Marcelino participou dos protestos nacionalistas responsáveis pela revolta que levou d. Pedro I a abdicar, em abril de 1831. Em conseqüência de sua presença nos distúrbios que, em julho desse ano,[ 7 ] provocaram uma nova insurreição popular, Diogo Feijó ordenou que ele fosse preso a bordo da fragata Paraguaçu — de onde fugiria mais tarde. Enquanto estava detido, segundo Wilson Martins, subiu ao palco, no Rio de Janeiro, a comédia em três atos A rusga da Praia Grande, ou O quixotismo do general das massas, de autoria de Januário da Cunha Barbosa, aliado de Feijó. A peça aludia à agitada vida amorosa de Marcelino,[ 8 ] que morava na Praia Grande, em Niterói. Informado da estréia, escreveu como resposta, mesmo encarcerado na Paraguaçu, a comédia política O cônego e Inês, em que satiriza Januário Barbosa (o 'cônego'), Feijó (chamado em cena de 'Jeifó') e Evaristo da Veiga ('Eravisto'). A polícia — sempre a serviço dos poderosos — naturalmente impediu sua representação. O texto, em decassílabos, com rimas emparelhadas, de que se conhece apenas um fragmento,[ 9 ] empreende uma engraçada crítica de costumes em que a história nacional ocupa lugar de destaque. Contudo, os inegáveis bons momentos de seu humor ficam fora do alcance do grande público, que não possui os conhecimentos históricos necessários para compreendê-los.
A lira que apresentamos em seguida é um poema tipicamente pré-romântico. Seu tom sombrio, noturno, irreal, povoado pela visão lúgubre da saudade, espelha o tormento do poeta que, longe da amada, se vê possuído por sonhos ruins, se desespera, se angustia e se entristece. A melancolia e a solidão que o torturam são vazadas em uma linguagem emotiva e adjetivada que expressa com habilidade o sentimentalismo brasileiro:
LIRA
Acaso eu dormia
Já frouxo, e cansado,
De andar todo o dia
Buscando o meu gado.
Um sonho me pinta
De linda donzela,
A imagem mais bela,
Mais triste a chorar.
Ao vê-la me inspira,
Oh céus, que pesar!
Os olhos não tira
Do chão lagrimosa,
Soluça, e suspira
A deusa formosa.
Nas vestes inculca
Pesar, e desgosto,
C'um véu cobre o rosto
De arminho na cor.
Minha alma então sinto
Partir-se de dor.
Marília, não minto,
Gemia eu dormindo,
Q'a imagem, que pinto
O mesmo sentindo
Forcejo, e não posso
Sufocar o pranto,
Q'a dor pode tanto,
Q' julgo morrer,
Choraras, se visses
O meu padecer.
Se ao filho de Ulisses
Não deixa um Mentor,
Meus dias felizes
Empece-me a dor.
Quem sois, eu pergunto
À triste deidade,
"Eu sou a saudade"
A deusa me diz,
Eu só te persigo,
Te faço infeliz.
Não basta, lhe digo,
Contra mim, oh! Nume,
P'ra meu mor castigo
Amor, e ciúme?...
Se vejo a Marília
Amor me persegue,
Se a deixo, me segue
Ciúme infernal.
Ah! tu inda mais
Duplicas meu mal!...
Suspiros, mil ais
Do peito arrancando,
Ah! diz, não te faz
Mais meigo, e mais brando?...
Tem dó de meu pranto,
Do mal, que suporto,
Se queres-me morto
Demora não tem.
Marília... repito;
Marília... meu bem...
A causa de aflito
Gemeres, chorares,
Sou eu, teu delito
Teu mal, teus pesares
Vai ver a Marília
Que chora, qual gemes,
Que o mesmo, que temes
Te julga infiel
Assim me responde
O Nume cruel
Acordo, e se esconde,
Suponho em meu peito,
Pois apalpo a onde
Estava, era o leito.
Em pranto afogado
A Deusa procuro
Um véu negro escuro
Só mostra-me horror.
São estes, Marília,
Prodígios de amor.[ 10 ]
'Pranto' é um trabalho que comprova a sua importância na criação de uma sensibilidade brasileira dentro da literatura capixaba. Inspirando-se em uma forma popular, a trova — originalmente formada por uma só quadra de versos heptassílabos em que o segundo e o quarto versos são obrigados a rimar —, Marcelino consegue um ritmo bem adequado à atmosfera de seu poema, cheio de fossa, de pieguice, de desespero, de angústia, de vazio existencial, de saudade, de solidão, de jogos amorosos burlescos ("Tu m'afagando entre os braços,/Eu te estalando os dedinhos"), de fantasia de suicídio ante os olhos traidores da amada — lupicínica vingança da dor-de-cotovelo —, flashes românticos em que a dor é uma equilibrista suspensa e esquartejada entre o grotesco, o patético, o trágico, o mórbido e o cômico:
PRANTO
Ouvistes meu terno canto,
Parai um pouco p'ra ouvires
O triste som de meu pranto.
Mil vezes, ah! venturoso,
Olhando a vossa corrente,
Os belos dons de Marília
Cantou Marcino contente,
Mas hoje, oh! céus! que essa ingrata
Motiva minha amargura,
Ouvireis entre soluços
Minha cruel desventura.
Essa com quem tantas vezes
Me vistes ledo brincando,
Ela tão meiga entre as outras
Furtivos beijos me dando,
Que só mostrava prazer,
Quando contente me via,
Que, eu só gemendo, chorava,
Eu só me rindo, se ria,
Mudou-se enfim; só m'ostenta
Um ar pesado e sisudo,
Já não me chama mimoso,
Seu bem, seu mimo, seu tudo.
Outro merece os afagos
De seu cruel coração,
Eu só mereço seu ódio,
Seu desprezo, e ingratidão.
Eu morro... ah! vil!... já não posso
Suportar tanta esquivança!
Marília; oh! céu! me despreza!...
Quem motivou tal mudança?...
Marília!... o Nume por quem,
Desprezei patrícios lares,
O néctar mais saboroso
Nos meus tiranos pesares!...
Matai-me, céus, nem viver
Um só momento desejo;
Acabai, Rio, meus males,
Se algum dia o meu desejo.
Envolvei nas vossas águas,
Levai nas vossas correntes,
O mais triste, e desgraçado,
Mais infeliz dos viventes,
Ânsia, raiva, amor, ciúme,
Todas as fúrias do Averno,
Exasperam meu tormento,
Duplicam meu mal eterno.
Ah! Marília, e como ingrata,
Pôde em ti tão vil traição?
Tu, que mil vezes chorando
Mostravas tanta paixão?
Mudaste em fim [sic]; não me adoras...
Toda és fúria contra mim,
Inda mais fera que um tigre,
Raivosa mais que o Rubim.
Não me tiveste, cruel,
Sempre submisso a teu mando,
As leis sagradas de amor
Fielmente executando?
Aquelas tardes passadas
Entre amorosos carinhos,
Tu m'afagando entre os braços,
Eu te estalando os dedinhos.
Onde estão, cruel Marília?...
Quem me roubou tal ventura?...
Foi sim, ingrata, meu fado;
Foi minha pouca ventura.
Um vesúvio o mesmo inferno
Abrasam meu peito aflito.
Não bramem, não choram tanto
As almas no vil cocito.
Eu morro... Oh Céus! já percebo
Da morte o frio desmaio;
Vem ver ao menos, tirana,
Como d'aqui morro, e caio.
Vós, Rio, que entre os peixinhos
Tão saudoso murmurais,
Que enternecido comigo
Tão tristemente chorais,
Cobri, cobri compassivo
Meu corpo com vossas águas,
Nelas acabe Marcino,
Com ele pesar, e mágoas.[ 11 ]
A obra de Marcelino parece ter constituído uma espécie de modelo para os autores pré-românticos que o sucederam. Seus recursos técnicos, seu sentimentalismo, seu nacionalismo, seu patriotismo e seus lugares-comuns de falso árcade ressurgem em José Gonçalves Fraga e em João Luís da Fraga Loureiro de forma diluída e sem o talento que o caracterizava. Até mesmo a bajulação apologética, a que deu início com sua ode a d. João VI, é reproduzida ad nauseam por ambos e piorada — se isso for possível.
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NOTAS
[ 1 ] Esse é o título original, segundo o Jardim poético (op. cit., p. 39). Afonso Cláudio, não contente em distorcer os versos de Marcelino Duarte nas pp. 57-76 de sua História da literatura espírito-santense (op. cit.) realizando alterações desnecessárias que ele, entretanto, afirma serem "indispensáveis" (veja a p. 57), transformou o título em 'Derrota de uma viagem ao Rio de Janeiro em 1817' (p. 57). A erudição de José Augusto Carvalho efetuou, em seu Panorama das letras capixabas, a melhor transcrição integral — a partir do texto do Jardim poético — da 'Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817' ao alcance do leitor moderno. Veja José Augusto Carvalho, 'Panorama das letras capixabas', Revista de Cultura — Ufes, Vitória, Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 7 (21):63-76, 1982.
[ 2 ] Marcelino Pinto Ribeiro Duarte (Serra, 18.6.1788 — Niterói, 7.6.1860), professor de latim, poeta, político, primeiro dramaturgo nascido no Espírito Santo, não deixou que o fato de ser padre — e filho de padre — se tornasse um obstáculo à movimentada vida amorosa registrada pelos seus versos. De temperamento arrebatado, revoltou-se, em 1817, contra o despotismo do governador Francisco Rubim. Viveu no Rio de Janeiro de 1817 a 1830. Pertenceu ao grupo oposicionista de liberais exaltados cujos protestos nacionalistas contra os portugueses foram o estopim das revoltas populares de 1831. Segundo Afonso Cláudio (ibid., p. 89), elegeu-se deputado pelo Espírito Santo em 1838. Seus poemas estão distribuídos pelos dois volumes do Jardim poético. Sob a forma de ensaio, publicou a curiosa Arte de ler e escrever em pouco tempo, em 1842, pela tipografia Niteroiense, em que propunha uma ortografia fonética. E autor das peças Drama, de 1816, e O cônego e Inês, de 1831. Sua personalidade panfletária fica parcialmente exposta em um folheto de 16 páginas impresso na tipografia Nacional, no Rio de Janeiro, em 1822, e intitulado O Brasil indignado contra o projeto anticonstitucional sobre a privação das duas atribuições, por um filopátrico. Os dados fornecidos a seu respeito por Afonso Cláudio devem ser analisados com cautela antes de serem acolhidos.
[ 3 ] Marcelino é autor de uma ode em que bajula d. João VI, chamando-o de herói e comparando-o a Enéias e a Ulisses — veja J. M. P. Vasconcelos, Jardim poético, Segunda Série, Vitória, tipografia de Pedro Antônio d'Azeredo, 1860, pp. 65-6. Daqui por diante o denominaremos de Jardim poético II para diferenciá-lo do tomo de 1856, que continuará a ser citado sem algarismos romanos. Afonso Cláudio (op. cit., pp. 77-8) justifica sua atitude, afirmando — ou inventando, possivelmente — que os versos foram feitos para agradecer o afastamento, a seu pedido, do governador Francisco Rubim, o que não é registrado pelos bons historiadores. Rubim só deixaria o Espírito Santo dois anos após sua briga com Marcelino, em 1819, por ter sido nomeado governador do Ceará (veja José Teixeira de Oliveira, op. cit., p. 259). Ora, não se concebe que d. João VI desse ouvidos às reclamações de um desconhecido padre mestre do interior contra um de seus homens de confiança, capitão-de-mar-e-guerra da Armada Real, nem um pedido, se aceito, demoraria dois anos para ser executado — considerando que o próprio Marcelino Duarte data de 1817 sua viagem ao Rio de Janeiro com esse objetivo — nem, se atendido, é crível que lhe fosse dado o novo e honroso posto de governador do Ceará.
[ 4 ] Afrânio Coutinho, 'O movimento romântico', em: — A literatura no Brasil, 3ª ed., Rio de Janeiro/Niterói, José Olympio/Universidade Federal Fluminense, vol. 3, 1986, p. 16.
[ 5 ] M. P. R. Duarte, apud J. M. P. Vasconcelos, Jardim poético II, op. cit., p. 43. Afonso Cláudio (op. cit., p. 79) também deturpa este soneto e, de presente, confere-lhe um título inexistente no original.
[ 6 ] Ibid., pp. 107-15.
[ 7 ] Caio Prado Júnior relata os acontecimentos de julho de 1831: "O mês de julho assinala o início da série de golpes que encheriam todo o período da Menoridade. Logo nos primeiros dias deste mês, é a capital do Império teatro de arruaças, a que se juntam os soldados, que, desrespeitando os oficiais e abandonando os quartéis, fazem causa comum com o povo amotinado. No dia 14, depois de vários dias de distúrbios, reúnem-se tropa e povo sublevados no Campo da Aclamação e enviam ao governo suas condições: reformas democráticas da Constituição, suspensão dos funcionários nascidos em Portugal, deportação de uns cem cidadãos, entre os quais figuravam senadores, militares, magistrados e outras pessoas de destaque; exoneração do ministro da justiça; proibição da imigração portuguesa por dez anos. Como era de se esperar, a Assembléia nem tomou conhecimento da representação, estranhando mesmo que o ministro lha tivesse apresentado." Veja Caio Prado Júnior, Evolução política do Brasil e outros estudos, 5ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1966, p. 59.
[ 8 ] Wilson Martins, História da inteligência brasileira, 2ª ed., São Paulo, Cultrix, vol. II, 1978, p. 195.
[ 9 ] A História do teatro capixaba: 395 anos (op. cit.) transcreve esse fragmento nas pp. 68-72.
[ 10 ] M. P. R. Duarte, apud J. M. P. Vasconcelos, Jardim poético II, op. cit., pp. 58-60. Em nossas transcrições, limitamo-nos a atualizar a ortografia. Decidimos não eliminar outras falhas evidentes, como as de pontuação, por enxergarmos nelas um certo valor histórico.
[ 11 ] Ibid., pp. 123-7.
[In GAMA FILHO, Oscar, Razão do Brasil em uma sociopsicanálise da literatura capixaba. Rio de Janeiro / Vitória: José Olympio / Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1991, p. 57-70.]
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© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
2/01/2016
BIOBIBLIOGRAFIA
VITRINE DE TEXTOS
Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817
FORTUNA CRÍTICA
GAMA Filho. Análise da obra [In GAMA FILHO, Oscar, In Razão do Brasil em uma sociopsicanálise da literatura capixaba. Rio de Janeiro / Vitória: José Olympio / Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1991, p. 57-70.]
___. Chorinho com Marcelino [In Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]
SANTOS NEVES, Luiz Guilherme. As chamas do padre-poeta [In Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]
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© 2001 Estação Capixaba.
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BIOBIBLIOGRAFIA VITRINE DE TEXTOS Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817 FORTUNA CRÍTICA GAMA Filho. ...
Marcelino Duarte - Repertório Literário
BIOBIBLIOGRAFIA
VITRINE DE TEXTOS
Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817
FORTUNA CRÍTICA
GAMA Filho. Análise da obra [In GAMA FILHO, Oscar, In Razão do Brasil em uma sociopsicanálise da literatura capixaba. Rio de Janeiro / Vitória: José Olympio / Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1991, p. 57-70.]
___. Chorinho com Marcelino [In Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]
SANTOS NEVES, Luiz Guilherme. As chamas do padre-poeta [In Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]
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© 2001 Estação Capixaba.
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2/01/2016
Nota ao título[ 1 ]
Seguiu-se aqui, com pequenas variações, a versão do Jardim poético, conforme transcrita no Panorama das letras capixabas de José Augusto Carvalho. A versão incluída na História da literatura espírito-santense é, segundo o próprio Afonso Cláudio, a do Jardim poético, "com as alterações que julguei indispensáveis, para melhor conhecimento das qualidades do vate espírito-santense, reproduzindo, entretanto, suas notas pessoais, porque formam-lhe a autopsicologia." As alterações que Afonso Cláudio chamou de indispensáveis parecem ditadas, em sua maior parte, pela intenção de elevar o texto de Marcelino aos padrões estéticos do próprio crítico. Incluímos em rodapé apenas aquelas que parecem sugerir uma melhor leitura do original e aquelas que surpreendem pelo inusitado. Incorporamos também algumas das informações que Afonso Cláudio adicionou às notas de Marcelino, quando nos pareceram de interesse. As notas são de Marcelino Duarte exceto quando indicado.
De outubro vinte e sete era contado,
Dia sempre pra mim saudoso e triste;
De nove alunos meus acompanhado,
E dum, que na viagem inda me assiste:
Levando o coração de dor cortado,
Que à mágoa, e que à saudade mal resiste,
Deixei no amável lar doce janela,
Donde alegre avistei Francina bela.
II
Ao cais me dirigi bem conhecido,
Se o nome se lhe dá de muito Santo,[ 2 ]
Aí me vi de novo acometido,
Dum desmaio cruel, mortal quebranto;
E suposto que à mágoa sucumbido
Posso a custo suster o terno pranto,
Té pra mais ocultar o meu tormento,
No semblante fingi contentamento.
III
Por essas horas já descia alado,
O ligeiro — Jardim —, que assim se chama
O barco no qual devo ser levado
À corte do Brasil, que Rei aclama:
Já rubicundo Febo era montado
No coche de cristal, que ao mundo inflama,
Quando eu salto veloz n'alta canoa;
Toda a turba pré-dita à mesma voa.[ 3 ]
IV
D'africana progênie assaz ligeiro
Lança a mão d'alto remo, cobiçoso
De se ver, qual pratica o vil sendeiro,
Isento do trabalho preguiçoso;
Não sente o negro audaz bruto e grosseiro,
Os efeitos de amor mais extremoso,
Pois pra mais aumentar minha aflição
Forceja, empurra, grita, mas em vão.
V
Porque o lenho parece que sentindo,
Quanto dura me era esta partida,
À triplicada força resistindo,
Imóvel se oferece à brutal lida;[ 4 ]
Mas o teimoso arrais não desistindo,
Com alma pertinaz e enfurecida,
Com raivoso semblante n'água cai,
Lança mão da canoa, empurra e sai.
VI
Adeus, Vitória, digo então comigo,
Pátria ditosa, a mais feliz colina,
Goza amável, ah, sim, fica contigo
A encantadora, mas cruel Francina;[ 5 ]
Tu sabes, não que o céu maior castigo,
Nem tormento maior, mágoa mais fina,
Me podia causar, se não privando
De por pouco avistar seu gesto brando.
VII
E quantas vezes, oh, quando a não via,
Onde alegre me faz meiga assistência,
Impacientemente me vestia,
Não podendo sofrer tão dura ausência;
Disfarçado passeio dirigia,
Té onde tem a doce residência;
Me recolhendo enfim, em vão sorrindo,
Se chegava a avistar seu gesto lindo.
VIII
E como poderei por quatro meses[ 6 ]
(Tanto devo existir na pátria alheia)
Da saudade sofrer tantos reveses,
Sem Francina avistar que me recreia?
Pois não bastava já por duas vezes
Ter deixado saudoso a minha aldeia,
Para agora querer a crueldade,
Por meu gosto sentir de uma saudade?
IX
Deste modo comigo me queixava
No transporte de dor mais extremoso;
Eis que o lenho veloz se emparelhava
do Batalha chamado ao cais anoso;[ 7 ]
Inda vejo o meu lar, donde admirava
De Francina o gentil rosto mimoso;
Não a vendo porém minha alma aflita,
Volvo os olhos então onde ela habita.
X
Primeiramente avisto alta morada,[ 8 ]
Onde imberbe passei anos sombrios,
Sem de amores sentir paixão danada,
Té que Anália avistei de honestos brios;[ 9 ]
Seu majestoso olhar, face engraçada,
Me fez sentir de amor mil desvarios,
Vindo enfim a sofrer sorte e destino,
Qual Ovídio sofreu no Ponto Euxino.
XI
Nela os olhos fitei; bem perto dela,
Mora a causa feliz dos meus cuidados;
Tão ingrata porém, quanto de bela
Tem nos travessos olhos engraçados;
Na fantasia então pareço vê-la,
Face de rosas, ombros delicados,
E os peitos virginais, donde Cupido
Feriu meu coração, inda ferido.
XII
Qual o que raio viu, eu vacilante,
Turva-se o mar, desperto do tormento,
Eis sobranceiro a mim vejo um gigante,
Imenso, horrível, feio, e corpulento,
Parecendo, qual monstruoso Atlante,
Nos ombros sustentar o firmamento;
Era este porém árduo rochedo,
Que a linguagem vulgar chama — Penedo —.[ 10 ]
XIII
Corro os olhos daí, toda contemplo
Da linda pátria a face majestosa;
No alto dela está pomposo templo,[ 11 ]
Da Vitória padrão mais gloriosa;
Alta torre dali me lembra o exemplo[ 12 ]
Da cidade feliz, mas populosa,
Pois que ao longe inda a imagem representa,
De Tróia altiva, ou Tebas opulenta.[ 13 ]
XIV
Já vejo a Este a rara fortaleza,
Que o sacro nome tem de — São João —;
Corre o lenho veloz e com destreza
À Pedra d'Água vai, foge o Romão;
Ilha das Cobras com igual presteza,
E das Pombas também correndo vão;
Desaparece a Ilha do Vigário,
O mesmo a do Minhoca, ou Boticário.
XV
A canoa que até então corria,
Com quase imperceptível movimento,
No montanhoso mar, que ora se abria,
Desce à terra, ora sobe ao firmamento;
Por entre as grutas vãs roncar se ouvia,
O mar que impele assaz anfíbio vento;[ 14 ]
Alta vaga dali eis se me antolha,
Rola, bate daqui, me açoita, e molha.
XVI
Gela-se o sangue, e o pálido semblante
Inculca o susto, que sufoca o pejo;
Percebe o meu terror vivo estudante,
E grita: oh, lá, oh lá do Caranguejo...[ 15 ]
Levanto os frouxos olhos, não distante,
Pernambucano vaso avisto, e vejo;
Me saúda de lá piloto ativo,
Correspondo, porém, nem sei se vivo.[ 16 ]
XVII
Contra o iroso mar seguro abrigo
Implora pertinaz Vieira esperto;[ 17 ]
Salta à lancha veloz com gesto amigo
O bom piloto então, e já bem perto[ 18 ]
De salvar-nos ao hórrido perigo
Que consternados já contamos certo;
Eis me aparece ao sul, e se emparelha
A triste habitação de Vila Velha.
XVIII
Na frente tem do mar sobre alva areia
A residência vil dos desgraçados,
Por criminosos conta esta cadeia
De ratos dez milhões encarcerados;
Ao sul fica a matriz, escura, e feia;
Palhoças muitas tem, poucos telhados;
Só três cousas conserva em sei perfeitas,
Venuzina gentil, Vigário, e Freitas.[ 19 ]
XIX
Ao leste se apresenta alta colina
De bem talhada, e regular figura,
Alcantilada rocha dura e fina,
Inacessível faz na imensa altura;
Sobre esta conserva a Mãe divina
Noble templo de rica arquitetura[ 20 ]
Com toda a perfeição, só com o defeito
D'à Franciscana prole estar sujeito.
XX
Ali compete a sábia natureza
Com a indústria, invenção, ardil, e arte;
Se d'ouro e mármore aqui brilha a riqueza,
A obra se admira em qualquer parte;
Sacra imagem d'angélica beleza
Com os aflitos mortais mil dons reparte,
A devoção e o culto desempenha
Maravilhosos dons desta áurea Penha.
XXI
Que prodígios não conta a antigüidade
Desta Penha feliz, e milagrosa!
Ali conforto encontra a orfandade,[ 21 ]
Que o pai, e mãe perdeu linda, e mimosa;
Se o consorte supõe na tempestade,
Ali chorando sobe a aflita esposa;
Sobe o nauta da vela carregado
Que escapou ao furor do leste irado.
XXII
O definhado enfermo escapo há pouco
À descarnada mão da morte dura,
Descalço sobe ali cansado e rouco
De louvores cantar à Virgem pura;
O aleijado, o cego, surdo, e louco,
Medicina ali têm pronta e segura,
E o Campista rival anualmente
Vem gostoso ofertar rico presente.[ 22 ]
XXIII
Nas fraldas desta Penha um tanto ao norte
Guarda um castelo a barra pedregosa,
Piratininga só no nome forte,
Eis da Vitória uma arce[ 23 ] respeitosa;
Ali me apresentei com o passaporte[ 24 ]
Do grão Rubim, cautela preciosa;[ 25 ]
Como acaso falei neste herói belo,
Parece justo dar a conhecê-lo.
XXIV
Havia um rei piedoso, um rei clemente
Mandado a governar a terra minha
Albuquerque Tovar, sábio, prudente,[ 26 ]
Ilustre sucessor d'ímpio marinha;[ 27 ]
Mas inveja cruel que não consente
Ditoso povo algum que ela adivinha,
Do mar surge outra vez um monstro feio,
Do governo lhe entrega a rédea, e freio.
XXV
Apenas vê d'um povo humilde e brando
A pronta submissão, sujeito a tudo;[ 28 ]
Pra melhor inculcar feliz comando,
Faz no culto d'um Deus de um Deus estudo;
Gemendo o povo aqui, ali chorando,
Não sabe se queixar; calado, e mudo
Só pede, só suplica a um Deus amigo
Permita renascer o tempo antigo.
XXVI
Agrilhoado ali geme o consorte,
Lamenta o preso pai tenro filhinho;[ 29 ]
Aqui preso outro enfim soube com a morte
Perder da linda esposa o bom carinho;
E o mísero Luís... que horrível sorte!...[ 30 ]
Sofre um desterro tétrico e daninho,
Té que das fúrias hórridas tentado
Dispara contra si fulgúreo brado.
XXVII
Este foge ao furor do monstro horrível,[ 31 ]
Vai aquele abrigar-se em terra alheia,[ 32 ]
Outro prostra-se aos pés d'um rei sensível,[ 33 ]
Do monstro conta a ação horrenda e feia;
Não desiste o cruel, quanto é possível,
De ao longe consternar a própria aldeia,
Té a índia pra servir este inclemente,
Manietada atrás vem mensalmente.[ 34 ]
XXVIII
Mas tornando outra vez ao meu proposto,
Embarco enfim na lancha já chegada;
Entregue da saudade ao mor desgosto,
Deixo a praia de conchas matizada;
Com semblante alegre, com risonho rosto
Chego ao Jardim; minha alma consternada
Inda pode ocultar quanto saudoso
Deixo da pátria o porto majestoso.
XXIX
Apenas chego ao barco assaz veleiro,
Qual puxa o ferro, qual sustenta [a] amura;
Eis sobe ao mastro grande hábil gajeiro,
Sobre outro ao mastaréu de imensa altura,
Longevo já, mas ágil marinheiro
Corre ao leme veloz, rege, e segura;
Gritava o bom Ferreira cá debaixo —[ 35 ] Leva o traquete acima, iça o velacho.
XXX
Refresca a viração, enfuna o pano,
Corre, voa o Jardim, que já bordeja;[ 36 ]
Pra tormento maior, meu maior dano,
A linda pátria ao longe inda branqueja;
Aperto a destra ao bom Pernambucano,[ 37 ]
E à prole Minerval de Gnido inveja;[ 38 ]
A mesma voz de adeus me impede a mágoa,
Ponho um lenço nos olhos cheios d'água.
XXXI
Voava o bom Jardim; numa bordada
o rumo procurou do Lés-sueste;
Eis camba a vela grande, e já cambada
Foi noutro bordo um tanto a Noroeste;
Mareia a vela; apenas mareada
Noutro bordo que fez a barra investe,
Vencemos finalmente neste ensaio,
Ilhas do Bode, Boi e Papagaio.[ 39 ]
XXXII
Bem perto do zênite fogoso Etonte
Pelos dourados fins do céu sereno
Rege o coche infeliz, do qual Faetonte[ 40 ]
As águas foi beber do Pó ameno.
Já só o mar e céu vejo defronte,
Já vejo ao sudoeste alto Moreno;[ 41 ]
Eis já Marcino enfim triste e saudoso[ 42 ]
Vê de Anfitrite o reino pavoroso.
XXXIII
Roncava o fofo mar na proa ingente,
Já sibilante Norte enfuna a vela,
Das frias possessões do Deus Tridente
Fugindo as terras vão que o peito anela;
Pouco a pouco se vai mui sutilmente
Sumindo a Penha, já pequena estrela,
Até que pra meu mal, pra maior mágoa,
De todos se escondeu, sumiu-se n'água.
XXXIV
Enfermo Febo então já procurava,
De Tétis linda o reino majestoso,
Onde a deusa gentil lhe aparelhava,
Um leito de cristal rico e pomposo;
Assombra o mar, e céu, que se espalhava
Da noite o manto frio, e pavoroso;
Quando a bela Diana se apresenta,[ 43 ]
Alveja a vela então, o mar se argenta.
XXXV
Depois dum bom lutar com o meu cuidado,
Que não me deixa em paz um só momento,
Busco o vil camarote inda fechado
Onde tréguas procuro ao meu tormento;
De suspirar em vão frouxo e cansado,
Deixo de todo o lúgubre aposento,
Onde aflito passei a noite inteira
Té a fresca manhã de terça-feira.
XXXVI
Não bem a roxa aurora aparecia
Dourando o espaço azul do céu brilhante,
Onde Febo feliz adormecia
No colo encantador da linda amante,
Quando eu, que esperto, espero aclare o dia,
Me figurando um século um só instante
Do feio camarote abro o postigo,
Que cinco dias foi meu vil jazigo.
XXXVII
Regia o leme então Chagas prudente[ 44 ]
Que viagem feliz nos assegura;
Eu cheio de prazer, ledo, e contente
Indago dele o vento, o rumo, e altura;
Se a idéia não m'engana, e me não mente,
Ao que vejo me diz, se me figura
Nos baixos estarmos já, senão bem perto;[ 45 ]
O prumo mostrará se eu falo certo.
XXXVIII
Mostro o prumo fiel ser verdadeiro
Quanto o Chagas nos diz belo e jocoso;
Lá se vai finalmente um dia inteiro,
Entre histórias que conta gracioso:
Já perto Febo está lindo e fagueiro
Do Netunino reino tenebroso;
Ao longe pela proa eis avistamos,
Um pequeno batel com quem falamos.[ 46 ]
XXXIX
Ao mar das ilhas d'Âncora chamado,
Que em três léguas se faz, responde a lancha:
As cristalinas águas prateadas
Negra nuvem lá vem que suja, e mancha;
As tristes horas já eram chegadas
Em que a turba marítima se arrancha;
Vão se escondendo os Pólos pouco a pouco,
O mar se empola assaz soberbo e rouco.
XL
Cresce a minha aflição, que mais se aumenta,
Vendo o céu se envolver em manto escuro;
Grossa saraiva cai, troveja e venta,
Teme o Ferreira já sábio e seguro;
Origem foi cruel desta tormenta,
Um sudoeste assaz teimoso, e duro,[ 47 ]
Por evitar prudente algum perigo,
Deu-se a popa veloz ao vento imigo.
XLI
Por entre o negro véu que não consente
Ígneo astro brilhar no firmamento,
Voa entregue o Jardim à força ingente
Do proceloso mar, raivoso vento;
A noite toda, enfim, noite inclemente,
Passamos sem dormir, no mor tormento,
Até que Febo alegre despontando,
Serena o vento, o mar abrilhantando.
XLII
À tormentosa noite horrenda e feia,
Sucede áurea manhã de quarta-feira;
Com meiga, doce voz, linda sereia
Nos augurou feliz nova carreira;
Louro cabelo a Deusa aformoseia,[ 48 ]
No rosto belo, e face prazenteira;
É virgem a mais gentil té a cintura,
De feio peixe o mais tem a figura.
XLIII
As filhas de Nereu vêm graciosas[ 49 ]
Ofertar-nos do mar rico produto;
Não laranjas, limões, maçãs cheirosas,
Impróprias produções de um reino bruto;
Nem são de nédia rês as saborosas
Carnes, de um bom pastor gostoso fruto,
Dez pargos são os dons das Deusas belas,
Que apreciamos mais que dez vitelas.
XLIV
Não festejaram tanto esses Troianos
Vendo os cervos que Enéias prosternaram,
Quando escapo do mar à fúria e dano
A vez primeira em terra descansaram;[ 50 ]
Quanto contentes nós ledos, e ufanos
Com os gordos pargos dez, que se pescaram:[ 51 ]
Quem prepará-los venha não se chama,
Este pega, outro corta, e aquele escama.
XLV
Toma o Chagas a se dispor à janta,[ 52 ]
Que preparada foi com desempenho;
O rude marinheiro alegre canta
Ao sibilante som do alado lenho;
Meu companheiro Antunes se levanta,
Traz do Porto o melhor, do bom que eu tenho;[ 53 ]
Jantamos finalmente nesta altura,
Se com grandeza não, mas com fartura.
XLVI
Já manso o mar, o céu claro e sereno
Bafeja mansamente o Lés-sueste,
Já feito um campo está vistoso, ameno
Um monstro estrugidor que nos investe,
Até que o bom Jardim frágil, pequeno,
Pra fúria sustentar do altivo Leste,
N'outro bordo se faz, procura a terra,
Rompe montes do mar que ronca e berra.
XLVII
Nesta carreira vence aquela noite,
Quanto um barco vencer pode à bolina,
Do bombordo sofrendo o fero açoite
Do monstruoso mar que nos empina;
Insta o Ferreira então que a mais se afoite:
A linda estrela d'alva diamantina
Doura o baço horizonte alegre, e pinta
A formosa manhã da feira quinta.
XLVIII
Cresce o dia, e o Leste impetuoso
Não afraca o furor que impele a nave,
Trepa colinas mil do mar undoso,
Desce outras tantas mil mansa, e suave,
Não pode o mar, e vento furioso
Ao Ferreira iludir de gesto grave,
Mais providente, sábio, e mais seguro,
Qual Acates não foi, nem Palinuro.
XLIX
Às horas em que o Sol buscava enfermo
No colo descansar da linda Tétis,
Qual monge que deixa há pouco o ermo,
Ou escapa ao furor do undoso Letes,
Sobre hirsuto o José do mastro ao termo.[ 54 ]
Vê, lhe digo, oh José, se me prometes
Ver o Pico amanhã, Paço ou GamboDDUV
TerrDDUV, terrDDUV, gritou, terra na proa.
L
Bem como o mercador, que espera aflito
O navio que tem na Angola adusta,[ 55 ]
De sinal no castelo ao leve dito
Sobe à pressa o mirante, e não lhe custa,
Eu contente também de — terra — ao grito
Subo o mastro veloz, e não me assusta,
Imperceptível sombra vejo aonde
Se acabou céu e mar, e o sol se esconde.
LI
Tinha da noite o véu feio, e sombrio
Enegrecido o mar, e o firmamento;
Inda raivoso sopra o Leste frio,
Inda revolto está o equóreo assento;
Enregelado eu de exposto ao dio,[ 56 ]
Busco o Morfeu no mádido aposento,
Donde desperto, e salto ao outro dia
Aos gritos de prazer, e de alegria.
LII
Formoso Adamastor de hirsuta pele[ 57 ]
Se me antolhou no mar equilibrado,
Da parte austral porém bem perto dele
Pequeno filho traz ao destro lado, Estende o braço ao Este, e então com aquele Outro gigante aponta alto, engrazado,[ 58 ] Soberto defensor do urbense rio, Se aquele nadador é Cabo Frio.
LIII
Surge há pouco dali a Ponta Negra,[ 59 ]
As Maricanas ilhas se levantam,[ 60 ]
O pont'agudo Pico nos alegra,[ 61 ]
Saltam gostosos, ávidos não jantam
Sórdidos nautas do comer sem regra,
Redonda e Paios sem cessar decantam,[ 62 ]
Eis Santa Cruz de alegre perspectiva
D'Hio Soberbo, quando Tróia aviva.
LIV
De um lado o Pão d'Açúcar sobranceiro,
D'outro esta arce de hórrida beleza;
Fala à buzina marcial guerreiro,
Responde o barco com igual presteza;[ 63 ]
Alto castelo se antolhou fronteiro,
Passa-se a Lage, chega à Fortaleza,
Donde, pondo-se à capa, espera quedo,
Chega a visita, que chegou não cedo.
LV
Por trás da altiva Gávea se escondia
Já de Latona o filho moribundo;
Do grão Janeiro enfim n'alta baía
Surto o barco se fez, quando deu fundo;
Raiava de Novembro o primo dia,
Com rosto alegre nós, áureo, jucundo,
Saltamos na cidade a mais gentil,
Corte sublime do ínclito Brasil.
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Nota ao título [ 1 ] Seguiu-se aqui, com pequenas variações, a versão do Jardim poético , conforme transcrita no Panorama das letras capi...
Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817
Nota ao título[ 1 ]
Seguiu-se aqui, com pequenas variações, a versão do Jardim poético, conforme transcrita no Panorama das letras capixabas de José Augusto Carvalho. A versão incluída na História da literatura espírito-santense é, segundo o próprio Afonso Cláudio, a do Jardim poético, "com as alterações que julguei indispensáveis, para melhor conhecimento das qualidades do vate espírito-santense, reproduzindo, entretanto, suas notas pessoais, porque formam-lhe a autopsicologia." As alterações que Afonso Cláudio chamou de indispensáveis parecem ditadas, em sua maior parte, pela intenção de elevar o texto de Marcelino aos padrões estéticos do próprio crítico. Incluímos em rodapé apenas aquelas que parecem sugerir uma melhor leitura do original e aquelas que surpreendem pelo inusitado. Incorporamos também algumas das informações que Afonso Cláudio adicionou às notas de Marcelino, quando nos pareceram de interesse. As notas são de Marcelino Duarte exceto quando indicado.
Reinaldo Santos Neves.
* * *
De outubro vinte e sete era contado,
Dia sempre pra mim saudoso e triste;
De nove alunos meus acompanhado,
E dum, que na viagem inda me assiste:
Levando o coração de dor cortado,
Que à mágoa, e que à saudade mal resiste,
Deixei no amável lar doce janela,
Donde alegre avistei Francina bela.
II
Ao cais me dirigi bem conhecido,
Se o nome se lhe dá de muito Santo,[ 2 ]
Aí me vi de novo acometido,
Dum desmaio cruel, mortal quebranto;
E suposto que à mágoa sucumbido
Posso a custo suster o terno pranto,
Té pra mais ocultar o meu tormento,
No semblante fingi contentamento.
III
Por essas horas já descia alado,
O ligeiro — Jardim —, que assim se chama
O barco no qual devo ser levado
À corte do Brasil, que Rei aclama:
Já rubicundo Febo era montado
No coche de cristal, que ao mundo inflama,
Quando eu salto veloz n'alta canoa;
Toda a turba pré-dita à mesma voa.[ 3 ]
IV
D'africana progênie assaz ligeiro
Lança a mão d'alto remo, cobiçoso
De se ver, qual pratica o vil sendeiro,
Isento do trabalho preguiçoso;
Não sente o negro audaz bruto e grosseiro,
Os efeitos de amor mais extremoso,
Pois pra mais aumentar minha aflição
Forceja, empurra, grita, mas em vão.
V
Porque o lenho parece que sentindo,
Quanto dura me era esta partida,
À triplicada força resistindo,
Imóvel se oferece à brutal lida;[ 4 ]
Mas o teimoso arrais não desistindo,
Com alma pertinaz e enfurecida,
Com raivoso semblante n'água cai,
Lança mão da canoa, empurra e sai.
VI
Adeus, Vitória, digo então comigo,
Pátria ditosa, a mais feliz colina,
Goza amável, ah, sim, fica contigo
A encantadora, mas cruel Francina;[ 5 ]
Tu sabes, não que o céu maior castigo,
Nem tormento maior, mágoa mais fina,
Me podia causar, se não privando
De por pouco avistar seu gesto brando.
VII
E quantas vezes, oh, quando a não via,
Onde alegre me faz meiga assistência,
Impacientemente me vestia,
Não podendo sofrer tão dura ausência;
Disfarçado passeio dirigia,
Té onde tem a doce residência;
Me recolhendo enfim, em vão sorrindo,
Se chegava a avistar seu gesto lindo.
VIII
E como poderei por quatro meses[ 6 ]
(Tanto devo existir na pátria alheia)
Da saudade sofrer tantos reveses,
Sem Francina avistar que me recreia?
Pois não bastava já por duas vezes
Ter deixado saudoso a minha aldeia,
Para agora querer a crueldade,
Por meu gosto sentir de uma saudade?
IX
Deste modo comigo me queixava
No transporte de dor mais extremoso;
Eis que o lenho veloz se emparelhava
do Batalha chamado ao cais anoso;[ 7 ]
Inda vejo o meu lar, donde admirava
De Francina o gentil rosto mimoso;
Não a vendo porém minha alma aflita,
Volvo os olhos então onde ela habita.
X
Primeiramente avisto alta morada,[ 8 ]
Onde imberbe passei anos sombrios,
Sem de amores sentir paixão danada,
Té que Anália avistei de honestos brios;[ 9 ]
Seu majestoso olhar, face engraçada,
Me fez sentir de amor mil desvarios,
Vindo enfim a sofrer sorte e destino,
Qual Ovídio sofreu no Ponto Euxino.
XI
Nela os olhos fitei; bem perto dela,
Mora a causa feliz dos meus cuidados;
Tão ingrata porém, quanto de bela
Tem nos travessos olhos engraçados;
Na fantasia então pareço vê-la,
Face de rosas, ombros delicados,
E os peitos virginais, donde Cupido
Feriu meu coração, inda ferido.
XII
Qual o que raio viu, eu vacilante,
Turva-se o mar, desperto do tormento,
Eis sobranceiro a mim vejo um gigante,
Imenso, horrível, feio, e corpulento,
Parecendo, qual monstruoso Atlante,
Nos ombros sustentar o firmamento;
Era este porém árduo rochedo,
Que a linguagem vulgar chama — Penedo —.[ 10 ]
XIII
Corro os olhos daí, toda contemplo
Da linda pátria a face majestosa;
No alto dela está pomposo templo,[ 11 ]
Da Vitória padrão mais gloriosa;
Alta torre dali me lembra o exemplo[ 12 ]
Da cidade feliz, mas populosa,
Pois que ao longe inda a imagem representa,
De Tróia altiva, ou Tebas opulenta.[ 13 ]
XIV
Já vejo a Este a rara fortaleza,
Que o sacro nome tem de — São João —;
Corre o lenho veloz e com destreza
À Pedra d'Água vai, foge o Romão;
Ilha das Cobras com igual presteza,
E das Pombas também correndo vão;
Desaparece a Ilha do Vigário,
O mesmo a do Minhoca, ou Boticário.
XV
A canoa que até então corria,
Com quase imperceptível movimento,
No montanhoso mar, que ora se abria,
Desce à terra, ora sobe ao firmamento;
Por entre as grutas vãs roncar se ouvia,
O mar que impele assaz anfíbio vento;[ 14 ]
Alta vaga dali eis se me antolha,
Rola, bate daqui, me açoita, e molha.
XVI
Gela-se o sangue, e o pálido semblante
Inculca o susto, que sufoca o pejo;
Percebe o meu terror vivo estudante,
E grita: oh, lá, oh lá do Caranguejo...[ 15 ]
Levanto os frouxos olhos, não distante,
Pernambucano vaso avisto, e vejo;
Me saúda de lá piloto ativo,
Correspondo, porém, nem sei se vivo.[ 16 ]
XVII
Contra o iroso mar seguro abrigo
Implora pertinaz Vieira esperto;[ 17 ]
Salta à lancha veloz com gesto amigo
O bom piloto então, e já bem perto[ 18 ]
De salvar-nos ao hórrido perigo
Que consternados já contamos certo;
Eis me aparece ao sul, e se emparelha
A triste habitação de Vila Velha.
XVIII
Na frente tem do mar sobre alva areia
A residência vil dos desgraçados,
Por criminosos conta esta cadeia
De ratos dez milhões encarcerados;
Ao sul fica a matriz, escura, e feia;
Palhoças muitas tem, poucos telhados;
Só três cousas conserva em sei perfeitas,
Venuzina gentil, Vigário, e Freitas.[ 19 ]
XIX
Ao leste se apresenta alta colina
De bem talhada, e regular figura,
Alcantilada rocha dura e fina,
Inacessível faz na imensa altura;
Sobre esta conserva a Mãe divina
Noble templo de rica arquitetura[ 20 ]
Com toda a perfeição, só com o defeito
D'à Franciscana prole estar sujeito.
XX
Ali compete a sábia natureza
Com a indústria, invenção, ardil, e arte;
Se d'ouro e mármore aqui brilha a riqueza,
A obra se admira em qualquer parte;
Sacra imagem d'angélica beleza
Com os aflitos mortais mil dons reparte,
A devoção e o culto desempenha
Maravilhosos dons desta áurea Penha.
XXI
Que prodígios não conta a antigüidade
Desta Penha feliz, e milagrosa!
Ali conforto encontra a orfandade,[ 21 ]
Que o pai, e mãe perdeu linda, e mimosa;
Se o consorte supõe na tempestade,
Ali chorando sobe a aflita esposa;
Sobe o nauta da vela carregado
Que escapou ao furor do leste irado.
XXII
O definhado enfermo escapo há pouco
À descarnada mão da morte dura,
Descalço sobe ali cansado e rouco
De louvores cantar à Virgem pura;
O aleijado, o cego, surdo, e louco,
Medicina ali têm pronta e segura,
E o Campista rival anualmente
Vem gostoso ofertar rico presente.[ 22 ]
XXIII
Nas fraldas desta Penha um tanto ao norte
Guarda um castelo a barra pedregosa,
Piratininga só no nome forte,
Eis da Vitória uma arce[ 23 ] respeitosa;
Ali me apresentei com o passaporte[ 24 ]
Do grão Rubim, cautela preciosa;[ 25 ]
Como acaso falei neste herói belo,
Parece justo dar a conhecê-lo.
XXIV
Havia um rei piedoso, um rei clemente
Mandado a governar a terra minha
Albuquerque Tovar, sábio, prudente,[ 26 ]
Ilustre sucessor d'ímpio marinha;[ 27 ]
Mas inveja cruel que não consente
Ditoso povo algum que ela adivinha,
Do mar surge outra vez um monstro feio,
Do governo lhe entrega a rédea, e freio.
XXV
Apenas vê d'um povo humilde e brando
A pronta submissão, sujeito a tudo;[ 28 ]
Pra melhor inculcar feliz comando,
Faz no culto d'um Deus de um Deus estudo;
Gemendo o povo aqui, ali chorando,
Não sabe se queixar; calado, e mudo
Só pede, só suplica a um Deus amigo
Permita renascer o tempo antigo.
XXVI
Agrilhoado ali geme o consorte,
Lamenta o preso pai tenro filhinho;[ 29 ]
Aqui preso outro enfim soube com a morte
Perder da linda esposa o bom carinho;
E o mísero Luís... que horrível sorte!...[ 30 ]
Sofre um desterro tétrico e daninho,
Té que das fúrias hórridas tentado
Dispara contra si fulgúreo brado.
XXVII
Este foge ao furor do monstro horrível,[ 31 ]
Vai aquele abrigar-se em terra alheia,[ 32 ]
Outro prostra-se aos pés d'um rei sensível,[ 33 ]
Do monstro conta a ação horrenda e feia;
Não desiste o cruel, quanto é possível,
De ao longe consternar a própria aldeia,
Té a índia pra servir este inclemente,
Manietada atrás vem mensalmente.[ 34 ]
XXVIII
Mas tornando outra vez ao meu proposto,
Embarco enfim na lancha já chegada;
Entregue da saudade ao mor desgosto,
Deixo a praia de conchas matizada;
Com semblante alegre, com risonho rosto
Chego ao Jardim; minha alma consternada
Inda pode ocultar quanto saudoso
Deixo da pátria o porto majestoso.
XXIX
Apenas chego ao barco assaz veleiro,
Qual puxa o ferro, qual sustenta [a] amura;
Eis sobe ao mastro grande hábil gajeiro,
Sobre outro ao mastaréu de imensa altura,
Longevo já, mas ágil marinheiro
Corre ao leme veloz, rege, e segura;
Gritava o bom Ferreira cá debaixo —[ 35 ] Leva o traquete acima, iça o velacho.
XXX
Refresca a viração, enfuna o pano,
Corre, voa o Jardim, que já bordeja;[ 36 ]
Pra tormento maior, meu maior dano,
A linda pátria ao longe inda branqueja;
Aperto a destra ao bom Pernambucano,[ 37 ]
E à prole Minerval de Gnido inveja;[ 38 ]
A mesma voz de adeus me impede a mágoa,
Ponho um lenço nos olhos cheios d'água.
XXXI
Voava o bom Jardim; numa bordada
o rumo procurou do Lés-sueste;
Eis camba a vela grande, e já cambada
Foi noutro bordo um tanto a Noroeste;
Mareia a vela; apenas mareada
Noutro bordo que fez a barra investe,
Vencemos finalmente neste ensaio,
Ilhas do Bode, Boi e Papagaio.[ 39 ]
XXXII
Bem perto do zênite fogoso Etonte
Pelos dourados fins do céu sereno
Rege o coche infeliz, do qual Faetonte[ 40 ]
As águas foi beber do Pó ameno.
Já só o mar e céu vejo defronte,
Já vejo ao sudoeste alto Moreno;[ 41 ]
Eis já Marcino enfim triste e saudoso[ 42 ]
Vê de Anfitrite o reino pavoroso.
XXXIII
Roncava o fofo mar na proa ingente,
Já sibilante Norte enfuna a vela,
Das frias possessões do Deus Tridente
Fugindo as terras vão que o peito anela;
Pouco a pouco se vai mui sutilmente
Sumindo a Penha, já pequena estrela,
Até que pra meu mal, pra maior mágoa,
De todos se escondeu, sumiu-se n'água.
XXXIV
Enfermo Febo então já procurava,
De Tétis linda o reino majestoso,
Onde a deusa gentil lhe aparelhava,
Um leito de cristal rico e pomposo;
Assombra o mar, e céu, que se espalhava
Da noite o manto frio, e pavoroso;
Quando a bela Diana se apresenta,[ 43 ]
Alveja a vela então, o mar se argenta.
XXXV
Depois dum bom lutar com o meu cuidado,
Que não me deixa em paz um só momento,
Busco o vil camarote inda fechado
Onde tréguas procuro ao meu tormento;
De suspirar em vão frouxo e cansado,
Deixo de todo o lúgubre aposento,
Onde aflito passei a noite inteira
Té a fresca manhã de terça-feira.
XXXVI
Não bem a roxa aurora aparecia
Dourando o espaço azul do céu brilhante,
Onde Febo feliz adormecia
No colo encantador da linda amante,
Quando eu, que esperto, espero aclare o dia,
Me figurando um século um só instante
Do feio camarote abro o postigo,
Que cinco dias foi meu vil jazigo.
XXXVII
Regia o leme então Chagas prudente[ 44 ]
Que viagem feliz nos assegura;
Eu cheio de prazer, ledo, e contente
Indago dele o vento, o rumo, e altura;
Se a idéia não m'engana, e me não mente,
Ao que vejo me diz, se me figura
Nos baixos estarmos já, senão bem perto;[ 45 ]
O prumo mostrará se eu falo certo.
XXXVIII
Mostro o prumo fiel ser verdadeiro
Quanto o Chagas nos diz belo e jocoso;
Lá se vai finalmente um dia inteiro,
Entre histórias que conta gracioso:
Já perto Febo está lindo e fagueiro
Do Netunino reino tenebroso;
Ao longe pela proa eis avistamos,
Um pequeno batel com quem falamos.[ 46 ]
XXXIX
Ao mar das ilhas d'Âncora chamado,
Que em três léguas se faz, responde a lancha:
As cristalinas águas prateadas
Negra nuvem lá vem que suja, e mancha;
As tristes horas já eram chegadas
Em que a turba marítima se arrancha;
Vão se escondendo os Pólos pouco a pouco,
O mar se empola assaz soberbo e rouco.
XL
Cresce a minha aflição, que mais se aumenta,
Vendo o céu se envolver em manto escuro;
Grossa saraiva cai, troveja e venta,
Teme o Ferreira já sábio e seguro;
Origem foi cruel desta tormenta,
Um sudoeste assaz teimoso, e duro,[ 47 ]
Por evitar prudente algum perigo,
Deu-se a popa veloz ao vento imigo.
XLI
Por entre o negro véu que não consente
Ígneo astro brilhar no firmamento,
Voa entregue o Jardim à força ingente
Do proceloso mar, raivoso vento;
A noite toda, enfim, noite inclemente,
Passamos sem dormir, no mor tormento,
Até que Febo alegre despontando,
Serena o vento, o mar abrilhantando.
XLII
À tormentosa noite horrenda e feia,
Sucede áurea manhã de quarta-feira;
Com meiga, doce voz, linda sereia
Nos augurou feliz nova carreira;
Louro cabelo a Deusa aformoseia,[ 48 ]
No rosto belo, e face prazenteira;
É virgem a mais gentil té a cintura,
De feio peixe o mais tem a figura.
XLIII
As filhas de Nereu vêm graciosas[ 49 ]
Ofertar-nos do mar rico produto;
Não laranjas, limões, maçãs cheirosas,
Impróprias produções de um reino bruto;
Nem são de nédia rês as saborosas
Carnes, de um bom pastor gostoso fruto,
Dez pargos são os dons das Deusas belas,
Que apreciamos mais que dez vitelas.
XLIV
Não festejaram tanto esses Troianos
Vendo os cervos que Enéias prosternaram,
Quando escapo do mar à fúria e dano
A vez primeira em terra descansaram;[ 50 ]
Quanto contentes nós ledos, e ufanos
Com os gordos pargos dez, que se pescaram:[ 51 ]
Quem prepará-los venha não se chama,
Este pega, outro corta, e aquele escama.
XLV
Toma o Chagas a se dispor à janta,[ 52 ]
Que preparada foi com desempenho;
O rude marinheiro alegre canta
Ao sibilante som do alado lenho;
Meu companheiro Antunes se levanta,
Traz do Porto o melhor, do bom que eu tenho;[ 53 ]
Jantamos finalmente nesta altura,
Se com grandeza não, mas com fartura.
XLVI
Já manso o mar, o céu claro e sereno
Bafeja mansamente o Lés-sueste,
Já feito um campo está vistoso, ameno
Um monstro estrugidor que nos investe,
Até que o bom Jardim frágil, pequeno,
Pra fúria sustentar do altivo Leste,
N'outro bordo se faz, procura a terra,
Rompe montes do mar que ronca e berra.
XLVII
Nesta carreira vence aquela noite,
Quanto um barco vencer pode à bolina,
Do bombordo sofrendo o fero açoite
Do monstruoso mar que nos empina;
Insta o Ferreira então que a mais se afoite:
A linda estrela d'alva diamantina
Doura o baço horizonte alegre, e pinta
A formosa manhã da feira quinta.
XLVIII
Cresce o dia, e o Leste impetuoso
Não afraca o furor que impele a nave,
Trepa colinas mil do mar undoso,
Desce outras tantas mil mansa, e suave,
Não pode o mar, e vento furioso
Ao Ferreira iludir de gesto grave,
Mais providente, sábio, e mais seguro,
Qual Acates não foi, nem Palinuro.
XLIX
Às horas em que o Sol buscava enfermo
No colo descansar da linda Tétis,
Qual monge que deixa há pouco o ermo,
Ou escapa ao furor do undoso Letes,
Sobre hirsuto o José do mastro ao termo.[ 54 ]
Vê, lhe digo, oh José, se me prometes
Ver o Pico amanhã, Paço ou GamboDDUV
TerrDDUV, terrDDUV, gritou, terra na proa.
L
Bem como o mercador, que espera aflito
O navio que tem na Angola adusta,[ 55 ]
De sinal no castelo ao leve dito
Sobe à pressa o mirante, e não lhe custa,
Eu contente também de — terra — ao grito
Subo o mastro veloz, e não me assusta,
Imperceptível sombra vejo aonde
Se acabou céu e mar, e o sol se esconde.
LI
Tinha da noite o véu feio, e sombrio
Enegrecido o mar, e o firmamento;
Inda raivoso sopra o Leste frio,
Inda revolto está o equóreo assento;
Enregelado eu de exposto ao dio,[ 56 ]
Busco o Morfeu no mádido aposento,
Donde desperto, e salto ao outro dia
Aos gritos de prazer, e de alegria.
LII
Formoso Adamastor de hirsuta pele[ 57 ]
Se me antolhou no mar equilibrado,
Da parte austral porém bem perto dele
Pequeno filho traz ao destro lado, Estende o braço ao Este, e então com aquele Outro gigante aponta alto, engrazado,[ 58 ] Soberto defensor do urbense rio, Se aquele nadador é Cabo Frio.
LIII
Surge há pouco dali a Ponta Negra,[ 59 ]
As Maricanas ilhas se levantam,[ 60 ]
O pont'agudo Pico nos alegra,[ 61 ]
Saltam gostosos, ávidos não jantam
Sórdidos nautas do comer sem regra,
Redonda e Paios sem cessar decantam,[ 62 ]
Eis Santa Cruz de alegre perspectiva
D'Hio Soberbo, quando Tróia aviva.
LIV
De um lado o Pão d'Açúcar sobranceiro,
D'outro esta arce de hórrida beleza;
Fala à buzina marcial guerreiro,
Responde o barco com igual presteza;[ 63 ]
Alto castelo se antolhou fronteiro,
Passa-se a Lage, chega à Fortaleza,
Donde, pondo-se à capa, espera quedo,
Chega a visita, que chegou não cedo.
LV
Por trás da altiva Gávea se escondia
Já de Latona o filho moribundo;
Do grão Janeiro enfim n'alta baía
Surto o barco se fez, quando deu fundo;
Raiava de Novembro o primo dia,
Com rosto alegre nós, áureo, jucundo,
Saltamos na cidade a mais gentil,
Corte sublime do ínclito Brasil.
_____________________________
NOTAS
[ 1 ] Afonso Cláudio começa por reduzir o título do poema para "Derrota de uma viagem ao Rio de Janeiro em 1817". [Nota de Reinaldo Santos Neves.]
[ 2 ] Antigo cais, chamado na Vitória — Cais do Santíssimo, posteriormente Cais Municipal e hoje, Parque de Diversões. [Afonso Cláudio emenda o verso para "Que o nome lhe dão de muito santo", que parece ter mais sentido. Nota de Reinaldo Santos Neves.]
[ 3 ] Os estudantes que me acompanharam até a barra.
[ 4 ] Afonso Cláudio melhorou o verso para "Imóvel se oferece à bruta lida". [Nota de Reinaldo Santos Neves.]
[ 5 ] Uma das moças mais honestas, a quem por simpatia amei, sem dela merecer o menor favor, e que foi aleivosamente infamada por línguas peçonhentas.
[ 6 ] Não me demoraria mais de quatro meses no Rio: imprevistos motivos obrigaram-me a demorar vinte e oito.
[ 7 ] O cais do Batalha conhecido pelas obras do mesmo.
[ 8 ] Casas sitas na entrada da praça nova, onde passei a minha mocidade.
[ 9 ] Jovem, a quem amei muito no tempo de estudante, e por causa de quem estive degradado perto de um ano em Itacibá.
[ 10 ] Monte granítico em forma de pão de açúcar, fronteiro à fortaleza de São João, na Vitória. [Nota de Afonso Cláudio.]
[ 11 ] Matriz da Vitória.
[ 12 ] Torre do palácio dos Governadores, hoje dos Presidentes.
[ 13 ] É inegável a linda perspectiva, que oferece a vila da Vitória (hoje cidade), a quem olha do mar.
[ 14 ] Viração chamo vento anfíbio.
[ 15 ] Barco de Pernambuco.
[ 16 ] Afonso Cláudio inverteu o sentido do verso: "Correspondo ao cumprimento e sei que vivo!" [Nota do Neples.]
[ 17 ] Um dos amigos que me acompanharam, meu discípulo e estudante A.G.V. da Vitória. [Afonso Cláudio esclarece: "Era o estudante Antônio José Vieira, da Vitória, o descobridor da seda indígena em 1810, na então capitania.". Sacramento Blake, em seu Dicionário bibliográfico brasileiro, dá-o como Antônio José Vieira da Vitória, autor de uma Memória sobre o bicho da seda e sua cultura e falecido "pelo ano de 1830".]
[ 18 ] O piloto do barco de Pernambuco.
[ 19 ] A primeira era uma jovem cheia de encantos e magia; o segundo e terceiro, pessoas seletas do lugar. [Nota de Afonso Cláudio.]
[ 20 ] O convento de Nossa Senhora da Penha sobranceiro à barra.
[ 20 ] O convento de Nossa Senhora da Penha sobranceiro à barra.
[ 20 ] O convento de Nossa Senhora da Penha sobranceiro à barra.
[ 21 ] São indubitáveis os prodígios acontecidos por influência da Senhora da Penha, donde vem a grande devoção que se lhe tem, até da vila de Campos (hoje cidade).
[ 22 ] Na época a que se reporta o poeta, havia na cidade de Campos o costume de fazerem as pessoas abastadas romarias à Capitania de que aquela cidade era então um município. Eram esses romeiros Campistas, que traziam presentes de valor à Santa, em cumprimento de promessas anteriores. [Nota de Afonso Cláudio.]
[ 23 ] Em sua edição do poema, no Panorama das letras capixabas, José Augusto Carvalho admite não saber o significado da palavra arce. E sugere: "É bem possível que se trate de arse ou arsis (e não arce), que deve estar aqui como sinônimo de montanha, elevação." O Aurélio dá "ársis" como sendo, "na versificação latina, a parte do pé (em geral uma sílaba longa) marcada pelo acento métrico." Uma segunda acepção é "elevação do tom ou da voz". Afonso Cláudio, também intrigado com o termo, simplesmente alterou-o para vedeta. Considerando o sentido de "guarita de sentinela em lugar alto; vigia" que lhe confere o Aurélio, o termo se encaixa.
[ 24 ] Em Piratininga, sob o regime colonial, eram os navios visitados e exigidos os passaportes, mesmo para quem viajava para os portos brasileiros. [Nota de Afonso Cláudio.]
[ 25 ] Governador do Espírito Santo.
[ 26 ] Antecessor de Rubim. [Afonso Cláudio: "Manoel Vieira de Albuquerque Tovar, fidalgo da Casa Real, coronel de infantaria de milícias, foi o segundo Governador da Capitania, a partir de 17 de dezembro de 1804."]
[ 27 ] Pontes, antecessor de Tovar. [Afonso Cláudio: "O vocábulo marinha, aqui designa a origem portuguesa do primeiro Governador Colonial, Antônio Pires da Silva Pontes, que os documentos do tempo inculcam homem violento."]
[ 28 ] São indisputáveis os despotismos praticados pelo vil governador do ano de 1812 a 1819.
[ 29 ] Mateus Bandeira, que preso 17 meses, teve da cadeia a notícia da morte da mulher e filhos.
[ 30 ] O alferes Luís Correia que, desesperado, matou-se com um tiro.
[ 31 ] Venceslau Ferreira Lopes, que perseguido pelo Governador, deixou mulher e filhos, e se acha refugiado em Cabo Frio.
[ 32 ] A vila de são Mateus, e Campos, e mesmo o Rio de Janeiro estão cheios de desertores corridos pelo déspota.
[ 33 ] João Felipe Calmon, e o padre M.P.R. Duarte.
[ 34 ] Pode ser que "índia" aí tenha sentido coletivo, o que teria motivado a mudança feita por Afonso Cláudio nos dois versos: "Do sertão pra servir este inclemente / Manietados vêm índios mensalmente." Ou então a mudança foi feita por pudor mesmo. [Nota de Reinaldo Santos Neves.]
[ 35 ] O sábio e previdente mestre do barco em que vim.
[ 36 ] O barco.
[ 37 ] Capitão do — Caranguejo — embarcação de Pernambuco.
[ 38 ] Afonso Cláudio alterou o verso para "E à turba que de mim cultura almeja," acrescentando uma nota para informar que se trata dos "estudantes, discípulos do poeta". [Nota de Reinaldo Santos Neves.]
[ 39 ] Ilhas espalhadas pela barra.
[ 40 ] Seria meio-dia quando saímos à barra.
[ 41 ] Promontório bem na barra de Vitória.
[ 42 ] Marcino é o equivalente arcádico de Marcelino (o poeta). [Nota de Afonso Cláudio.]
[ 43 ] A lua que saiu pelas oito horas, ou antes.
[ 44 ] Francisco das Chagas, companheiro de viagem.
[ 45 ] Alusão aos Baixos de São Tomé. [Nota de Afonso Cláudio.]
[ 46 ] Uma lancha de pescaria. [Afonso Cláudio acrescenta: "vulgarmente chamada garoupeira".]
[ 47 ] Pelas seis horas da tarde caiu uma grande pancada de chuva, a que seguiu-se valente sudoeste. [Afonso Cláudio: "É sabido que à medida que os navios se aproximam de Cabo Frio, há quase sempre vento contrário."]
[ 48 ] Ficção única.
[ 49 ] Metáfora.
[ 50 ] Não escapou a Afonso Cláudio a sintaxe canhestra dessa estrofe, razão por que deu aos seis primeiros versos a seguinte leitura: "Não festejaram tanto idos troianos / Vendo os cervos qu'Enéias prosternara, / Quando escapo do mar à fúria e danos, / A vez primeira em terra descansara; / Quant'alegres nós, ledos, ufanos, / Os peixes que o mar nos outorgara." [Nota de Reinaldo Santos Neves.]
[ 51 ] Síntese.
[ 52 ] A versão de Afonso Cláudio soa melhor que a do Jardim poético: "Toma o Chagas a si dispor a janta." [Nota de Reinaldo Santos Neves.]
[ 53 ] Vinho do Porto, que trazia Francisco Antunes de Siqueira, estudante que me acompanhou até o Rio de Janeiro, já seminarista.
[ 54 ] Um da companhia que trazia a barba bastantemente crescida.
[ 55 ] O abolicionista Afonso Cláudio alterou o verso para: "O navio que foi à Índia adusta." [Nota de Reinaldo Santos Neves.]
[ 56 ] Dium, substantivo latino, que em português significa o sereno.
[ 57 ] Cabo Frio, que tem outro pequeno rochedo, a quem chamam filho.
[ 58 ] Pão d'Açúcar a oeste do cabo.
[ 59 ] Ponta ao poente do cabo, e nascente da barra do Rio.
[ 60 ] As ilhas de Maricá.
[ 61 ] Penhasco sobranceiro à fortaleza de Santa Cruz.
[ 62 ] Ilhas na barra do Rio de Janeiro.
[ 63 ] Era de antigo uso serem os navios interrogados pela fortaleza de Santa Cruz, quando demandavam a entrada do porto, a respeito da procedência e da viagem que traziam, estado sanitário de bordo, etc. Essa praxe foi abolida mais ou menos em 1880, quando o comércio marítimo principiou a ter o desenvolvimento que estamos contemplando e o telégrafo elétrico dispensou a vexatória inquirição. [Nota de Afonso Cláudio.]
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