Retomando à rota depois de uma fuga até Nanuque. Foto Gilson Soares, 2014. Quando saí de Vila Velha, em férias, para este Giro pelo arco...

Dormi mal na “Capital”

Retomando à rota depois de uma fuga até Nanuque. Foto Gilson Soares, 2014.
Retomando à rota depois de uma fuga até Nanuque. Foto Gilson Soares, 2014.
Quando saí de Vila Velha, em férias, para este Giro pelo arco norte Capixaba, saí pra passear.

Tracei, como já disse, um arremedo de roteiro e um prazo aproximado de vinte dias para cumpri-lo. O resto eu reparti com cuidado: uma parte para o que desse e a outra, para o que viesse.

Só não era, pra ser sincero, exatamente assim, porque eu tinha assumido dois compromissos – com data e hora marcadas – para serem cumpridos em meio ao percurso.

Uma das dívidas, paguei-a logo no primeiro dia de viagem.

Foi aquele convite para falar aos alunos das duas escolas de Coqueiral de Aracruz.

O segundo compromisso a que eu estava submetido, era o de me apresentar no dia 7 de junho, um sábado, na cidade de Montanha, a mais extrema do noroeste capixaba, para um encontro, às oito da noite, com Sérgio Sampaio.

Por isso, por conta desse encontro marcado com o velho bandido, fui a Três Corações (ou Taquarinha?) só pra pisar no chão daquela vila de onde se pode, num lance de olhar, avistar três estados brasileiros, e pra receber ali a medalha com que o acaso premiava a minha obsessão extremista.

Depois dessa visada, digamos, pluriestadual e já com a suposta medalha no peito, voltaria – todo gabola – para Cristal do Norte e dali rumaria para Montanha, onde deveria chegar no anoitecer daquela sexta-feira que fechava a minha primeira semana de viagem.

Você fez isso, lépido leitor?

Pois, é, nem eu.

Explico: mais de um dos meus pouco mais de dois interlocutores em Taquarinha (Três Corações?), sugeriram que, ao invés de voltar pra Cristal do Norte, eu fosse pra Nanuque, que estava bem perto dali e de lá, ainda naquele fim de tarde ou no dia seguinte, pra Montanha.

Acedi por mais de um motivo: um, é que nunca gosto de voltar – retomar um mesmo caminho em sentido oposto – ainda mais se for no mesmo dia; outro é que o Sampaio teimoso só daria as caras no sábado à noite em Montanha, portanto não havia pressa; e, por último, é que me pareceu tentador ir a Nanuque – que estava logo ali – com tempo de passear um pouco pela cidade – que, afinal, diz tratar-se da “Capital da Tríplice Fronteira” – que eu não conhecia, e pela qual guardava um antigo interesse.

Nanuque traz, pra mim, a lembrança de alguns velhos nanuqueiros na Ecoporanga da minha infância, e de uma mulher recente, de nome musical, pele negra e voz vespertina, que ronronando, de olhos fechados, orientou minhas mãos atônitas, pelo labirinto dos seus desejos.

E depois sumiu.

Decidi, assim, pernoitar em território mineiro pra, no sábado cedinho, pedalar por um trecho curto e, conforme me informaram, de boa qualidade, até reencontrar com o meu, momentaneamente desobedecido, roteiro de viagem.

No entanto, a noite em Nanuque foi mal dormida.

É que a “Capital da Tríplice Fronteira” estava entregue, só fiquei sabendo depois que cheguei lá, à sua Exposição Agropecuária anual, desta vez a ExpoAgro 2014, em vésperas da Copa da Copas.

Esse encontro de capitalistas rurais, a cada ano, ali naquela “Capital”, é, deduzi angustiado depois, uma das festas mais concorridas da região.

Eu, que por outros motivos aportava ali naquela sexta-feira, informo a você, leitor, que não tenho – nem pretendo ter – nenhuma intimidade com o agronegócio, com a pecuária, com as festas de rodeio ou com o ideário e a indumentária que vestem essas culturas.

Além disso, tranco firmemente os meus ouvidos à trilha sonora – nunca ouvi, mas sei que é ruim – que ruge nessas ocasiões. Enfim – como Chico César e Rita Lee – odeio rodeio.

Mas até aí, ainda, tudo bem: estava ali conduzido por circunstâncias de percurso e não tinha, necessariamente, que entrar na festa.

Só que pedalei por aquele resto de tarde, subindo e descendo uma margem e outra do rio Mucuri, que corta a cidade de cima em baixo, à procura de um lugar, qualquer que fosse, para me hospedar.

Sabe o que eu encontrava?

Nada.

A cidade estava lotada.

A noite de outono tropical já havia se apossado de Nanuque – depois de ter recolhido e lançado nas águas do Mucuri os resquícios de luz da tarde clara – quando consegui um cubículo insalubre para pernoitar, lado a lado, com a minha valente magrela, muda e cansada. Eu dormi pouco.

Ela, eu acho, nem dormiu, coitada.


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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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