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Uma parada no portal do Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu. Foto Gilson Soares, 2014. No 16º e último dia do meu Giro pelo Arco N...

Uma parada no portal do Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu. Foto Gilson Soares, 2014.
Uma parada no portal do Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu. Foto Gilson Soares, 2014.

No 16º e último dia do meu Giro pelo Arco Norte Capixaba, acabei saindo de João Neiva mais tarde do que queria.

Era sábado, 14 de junho de 2014.

E pela primeira vez no Giro eu ia transitar longamente pela movimentada (e turbulenta) BR 101.

Na saída de João Neiva, no sentido de Ibiraçu, tem um acentuado aclive. Em decorrência da oferta de mais uma pista para os carros que sobem, a via fica sem acostamento de um lado.

Se você está passando de bicicleta por ali, restam, então, duas alternativas.

Ambas arriscadas.

Ou você permanece à sua direita e sobe pedalando apertado – passando aperto! – entre os carros pesados e velozes, a valeta e o meio-fio; ou você atravessa a pista pra pegar do outro lado o acostamento na contramão.

É uma travessia perigosa já que, ali, automóveis e caminhões transitam na velocidade autorizada por sua urgência mercantil.

Tanto os que sobem, quanto os que descem.

Mesmo assim optei por atravessar a BR e escalar o tal aclive pelo lado de lá.

Enquanto esperava o momento oportuno – quer dizer, seguro – pra cruzar a via, observei que lá no topo do morro, tinha um ciclista parado, em atitude de contemplação.

Sentado no selim e com um dos pés assentado no asfalto, o cara estanque, meio cabisbaixo, estava lá, olhando, me pareceu, pro nada.

A primeira impressão que tive é que ele queria descer por ali – sem acostamento e na contramão – e estava esperando o melhor momento. Pensei até em sinalizar indicando que não considerava aquela a melhor escolha.

Esbarrei na dificuldade, por conta da distância, para tal interlocução. Mas vendo que ele estava vestido em modos de ciclista e portava uma bicicleta esportiva, concluí que não havia motivo pra preocupação.

O cara deve conhecer bem essa estrada, deduzi.

Aproveitei, então, um hiato no trânsito e atravessei.

A uma certa altura vi que o ciclista tinha abandonado sua atitude contemplativa, assumido o pedal e, como eu, mudado de lado.

Meio que espontaneamente, ao nos cumprimentarmos paramos e começamos a conversar.

Amarildo é um comerciante de João Neiva e estava encerrando o seu treino ciclístico matinal pra iniciar mais um dia de trabalho na sua loja.

Atendi à sua curiosidade e contei um pouco da minha viagem pelo Arco Norte que se encerraria ainda naquele dia.

Ele me falou de um grupo de ciclistas que eles têm em João Neiva, dos encontros que promovem e dos pedais coletivos que realizam periodicamente.

Há pouco tempo um dos integrantes daquele clube ciclístico joão-neivense tinha sido atropelado e morto exatamente ali naquele trecho da turbulenta – e truculenta – BR-101.

Amarildo tinha perdido um amigo.

Um sentimento de companheirismo e solidariedade nos aproximou fortemente e acabamos ficando ali naquela conversa improvisada de beira de estrada por mais tempo do que previa a nossa agenda para aquele sábado.

Até que nos fomos, porque tínhamos que ir.

Cada um pro seu lado.

Acabei deixando ali onde paramos pra conversar, um pouco da alegria que vinha exibindo na manhã daquele dia conclusivo.

A partir daí enveredei por pensamentos – e sentimentos – despertados por aquele encontro casual à margem da BR-101.

Estávamos ali numa linha demarcatória, numa fronteira entre dois territórios ideológicos.

Aquela via federal por onde transita – aqui mais, ali menos – boa parte do que o Capital produz e movimenta pelos costados de Pindorama, é tida e havida como uma fluente – influente – peça na engrenagem que impulsiona a máquina da economia nacional.

É ela uma estrada traçada ao longo de todo o litoral brasileiro.

Sua construção é sustentada pela ideologia do automóvel, do transporte rodoviário de riquezas, pela lei do extrativismo acelerado e voraz.

Ela em nenhum trecho da sua extensão continental oferece prioridade para o pedestre ou para o ciclista.

Por aquele palco – teatro de guerra? – desfilam vociferando os mais robustos e aguerridos produtos da engenharia automobilística a serviço do transporte de moeda corrente, nos seus variados formatos, tamanhos, pesos e medidas.

Todo o espaço desta ferramenta do desenvolvimento predatório, a rodovia, está a serviço dessa ideologia.

Ao adotar a bicicleta como meio de transporte, conscientemente ou não, estamos tomando uma atitude política. Não há dúvida.

Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014.
Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014.

Na contramão da ideologia do automóvel, da máquina, do progresso, do crescimento destrutivo.

Não temos armas, não temos escudos, não portamos artifícios de defesa ou de confronto. Por isso, como vinha fazendo em todo o percurso deste meu Giro, optamos por estradas singelas ou por trilhas pacíficas. Mas, vez ou outra, temos que transitar por esses cenários de guerra.

Como eu e Amarildo.

Como também, um dia, seu amigo.

Mas o sábado, apesar dos pensamentos – e do sentimento – que me restaram daquele encontro casual e amistoso, se desenvolveu e se findou bem próximo do que estava escrito no meu precário planejamento.

Assim, quando a noite se preparava para recolher a oeste os últimos acenos de sol que se esforçavam pra iluminar o cocuruto do Moxuara, eu transpunha as Cinco Pontes pra transitar de novo, com a solidária magrela, por ruas de Vila Velha.

Cinco Pontes, Vitória, Vila Velha. Chegando em casa. Foto Gilson Soares, 2014.
Cinco Pontes, Vitória, Vila Velha. Chegando em casa. Foto Gilson Soares, 2014.

Já estava, portanto, em casa.

Depois de um Giro pelo Arco Norte Capixaba.

Que bom.




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© 2017 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014. Quantas vezes já cientifiquei você, proficiente leitor...

Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014.
Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014.

Quantas vezes já cientifiquei você, proficiente leitor, da minha parca – quis dizer, porca – erudição?

Muitas, não é mesmo?

Faço isso, sempre, com a dolorosa sensação de estar cometendo o pecado – o grave pecado estilístico – da redundância.

Sim, pois quem convive literariamente comigo já está cansado de saber – por ver, por ler – que eu transito pela parte mais rasa – pela superfície – do conhecimento sério, científico, profundo; daquele conhecimento que é como o cimento – a base – da boa erudição.

O sagaz leitor, portanto, há muito já observou – não carece de dizer – que o que eu carrego mesmo comigo é uma vasta bagagem de ignorâncias. Santas – e tantas – as minhas ignorâncias.

Mas em determinados assuntos ostento um desconhecimento destacado. Total. Absoluto.

Um desses assuntos é a psicologia canina.

Uma ciência que desconheço tanto, a ponto de nem saber que existia. Só agora fico sabendo que existe sim, a psicologia canina.

E que tem seus cânones.

Seu status acadêmico.

E comercial, claro.

Mas por que, está perquirindo o instigado leitor, estou elucubrando aqui, agora, acerca da personalidade e do comportamento social dos cães?

Informo, então, pra você, leitor, o que qualquer ciclista viajante sabe: os cães, principalmente os que residem em sítios e fazendas de beira de estrada, têm uma indisposição declarada para com as magrelas e seus condutores.

Por isso, alimento desde os meus primeiros pedais rurais o interesse pela psicologia de cachorros e cadelas.

Mas confesso – você está certo, leitor – que eu nem me lembrava disso enquanto ia pedalando por São Domingos naquela manhã de sexta-feira, rumo à saída da cidade.

Ia eu por ali bem folgado, depois de ter passado pela EEEFM São Domingos e de ter entregado pra sua biblioteca os últimos exemplares de Minério que eu tinha levado para aquela viagem.

Agora, o que eu transportava no bagageiro da magrela era a alegre – e leve – sensação do cumprimento, na íntegra, do que me propusera a fazer naquele meu Giro pelo Arco Norte Capixaba.

Isto é: do ponto de vista da cartografia, eu tinha rabiscado com o rastro da pretinha, o enviesado desenho do Torreão Noroeste. Por outro lado, prestando minha contribuição ao mercado editorial, eu acabara, ali, de distribuir o Minério pelas bibliotecas públicas das cidades por que passei.

Ciente de que não chegaria a Vila Velha – quer dizer, em casa – naquele mesmo dia, ia então pensando em pedalar até João Neiva, onde pernoitaria.

E no sábado, 14 de junho, ancoraria por fim a magrela no atracadouro da minha casa, de onde tinha saído na manhã da sexta-feira, 30 de maio.

Nada mais me preocupava.

Como em todas as viagens, naquele Giro eu tinha também sido perseguido algumas vezes por cães.

Assim, vez ou outra eu tinha pensado, rindo sozinho, que iria me dedicar um pouco, quando pudesse – provavelmente, nunca, né? – à busca de um conhecimento mais consistente da psicologia dos cachorros. Com o objetivo de encontrar resposta para algumas perguntas.

Uma delas: por que será que os cachorros de todas as raças, culturas, procedências e endereços têm tamanha aversão aos ciclistas e aos seus silenciosos veículos de locomoção?

Outra: de onde virá aquela expressão de inimizade, de ódio, de confronto que todos os cães de beira de estrada, trazem estampada nas suas carrancas arfantes e agressivas, mal o ciclista pacífico e quieto aponta lá na curva distante da quase sempre vazia via vicinal?

Só mesmo um tratado sobre o comportamento social dos cães, pensava então com solitária ironia, poderá esclarecer essa minha demanda de conhecimento.

Mas eram outros, repito, os pensamentos que ocupavam a minha cabeça mambembe naquela manhã de – quase – fim de viagem.

Nem mesmo quando observei à minha frente uma procissão desordenada de cães vagabundos, esse tema veio à tona.

Afinal aquela pequena multidão de vira-latas que transitava por ali – talvez todos os cachorros vadios de São Domingos do Norte – estava mesmo é festejando o cio de uma cadela, pelo visto, muito cobiçada por aquela numerosa comunidade masculina.

Talvez até fosse o dela – pelo número de pretendentes ali perfilados – o cio mais esperado da região.

Não sei.

O que sei é que a minha preocupação com aquele cortejo foi nenhuma. Não penso – não pensava – que qualquer outra atração visual ou olfativa pudesse alterar o interesse decididamente sexual daquela turba canina ambulante.

Mas de repente – quem poderá entender o comportamento coletivo dos cães? – eles, unânimes, desviaram sua atenção e partiram, vorazes, pra cima de mim.

Posso pensar hoje que a iniciativa daquele ataque partiu da própria cadela que, segundo especialistas em psicologia canina, costuma apresentar no cio variações de comportamento.

Se não isso, talvez numa atitude inteligente, ela, a cadela, incomodada por aquele assédio matinal de todos os vira-latas dominguenses e percebendo a minha indiferente passagem no outro lado da rua, não pensou duas vezes: deu a ordem de ataque.

Que foi fulminante.

Tanto que, francamente, nem sei precisar qual foi o indivíduo daquele coletivo de cães – sem pedigree e sem teto – que cravou os seus afiados caninos na parte inferior da minha panturrilha direita, que sangrou imediatamente.

Pode até ter sido mesmo ela, a cadela, ciosa da liderança sobre os seus súditos, a autora da dentada certeira.

Mas não posso afirmar isso.

Pra dizer a verdade, nem deu pra identificar ali, naquela turba veloz e feroz, quem ladrava e quem mordia.

Pois cão que ladra, você sabe, não morde.

Pelo menos enquanto ladra, como ressalvou com sua inteligência – num outro tempo de irracional terror – o erudito Millôr.




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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Foto Gilson Soares, 2014. A prazerosa manhã de chuva em nada alterou o planejamento que eu tinha feito para aquela quinta-feira, 12...

Foto Gilson Soares, 2014.
Foto Gilson Soares, 2014.

A prazerosa manhã de chuva em nada alterou o planejamento que eu tinha feito para aquela quinta-feira, 12 de junho de 2014.

Para aquele dia, eu reservara um roteiro curto e fácil.

Nada mais do que um breve pedal matinal.

Sairia de Barra de São Francisco com o propósito de chegar a São Domingos do Norte ao meio do dia.

Só isso.

Ali, já daria por encerrada aquela jornada ciclística.

Depois disso eu ia relaxar e esperar o jogo de abertura da Copa do Mundo de Futebol.

Assim se fez.

No meio do percurso ainda dei uma paradinha em Águia Branca, cidade cujo topônimo, fiquei sabendo, foi recortado – com cuidado – do Brasão de Armas da Polônia e trazido de lá por um grupo de imigrantes que aqui chegou pra fundar a vila.

Sob chuva, entreguei um ou dois exemplares de Minério à biblioteca da EEEFM Águia Branca e, já saindo da cidade, me permiti uma pequena cerveja – uma latinha silenciosa e contemplativa – no já festivo bar do posto de combustível que limita ao sul aquele diminuto ajuntamento urbano.

Num aparelho de televisão, instalado ali, vi que já se iniciavam as transmissões preliminares da cerimônia de abertura da Copa.

Uma galera – a maioria deles, jovens – que encerrara as suas jornadas de trabalho mais cedo, jogava sinuca, bebia, comia e, principalmente, farreava, ali no barzinho do posto, onde certamente ficariam pra ver o jogo.

Transitando ao largo da estridente televisão e da festiva bagunça daqueles aguiabranquenses que ali digladiavam sua divertida loquacidade, fiquei por um tempo observando um canário intensamente amarelo que circulava entre os carros e motos estacionados em torno do barzinho.

O canarinho – que já foi símbolo de seleções brasileiras mais marcantes (e menos mercantes) do que aquela que se apresentaria daqui a pouco – voava de um pra outro veículo, dialogando, em melodioso trinado, com sua imagem na superfície molhada dos coloridos (e reflexivos) automóveis em que pousava (e posava).

Inquieto, ele se esforçava, com o seu canto solitário, pra expressar o deslumbre – e o espanto! – que aquela sucessiva ilusão visual lhe provocava.

Saltava então de um carro pra outro, dando bicadinhas no seu sósia e cantando alto pra ninguém, senão eu, escutar.

- Perdoem-me, pedi amistoso à águia polaca e ao canário da terra – não aos loquazes rapazes –, mas tenho que ir.

E fui.

Isso pra chegar, como cheguei, a São Domingos ainda cedo.

O que tinha planejado, era me hospedar, tomar um banho, acomodar a magrela, dar uma voltinha a pé pela cidade – pra sentir o clima – e depois, retornando ao hotelzinho, assistir, quieto e só, ao primeiro confronto daquele Mundial de Futebol – Brasil x Croácia – que aconteceria daqui a pouco.

Percebi, ao caminhar pelas poucas ruas de São Domingos, que não se repetia ali a alegre expectativa que eu tinha presenciado em Águia Branca. Nem rapazes loquazes, nem canários canoros encontrei passeando pela urbe dominicana. Isso naquela quinta-feira em que – imaginei – o Brasil inteiro exibiria um comportamento dominical.

Pelo que estava vendo, não seria bem assim.

São Domingos estava turva, vazia, úmida e silenciosa.

Talvez até constrangida, me pareceu.

O que teria se dado entre a minha festiva saída de Águia Branca e aquela chegada chué a São Domingos do Norte?

Foi com esta interrogação que encerrei o silencioso passeio pedestre e subi pro meu abrigo no hotelzinho.

Antes do jogo – enquanto eu me servia uma cerveja e buscava uma confortável acomodação – a televisão mostrava imagens e comentários da cerimônia de abertura da Copa.

Só aí fiquei sabendo do que tinha se dado naquele evento oficial.

Uma tragédia nacional. Isso, enquanto eu, desinformado, viajava sob a chuva, entre úmidas montanhas de granito e esbeltas cachoeiras pluviais.

Entendi, então, solidário, o constrangimento de São Domingos.

A cerveja ficou choca, diante de uma partida chocha.

Para uma abertura de Copa do Mundo, em casa, contra um selecionado de muito pouca expressão na história do futebol, o que se via no gramado era, com certeza, muito aquém do esperado.

Além disso, guardo a impressão de que pesava sobre todos nós um sentimento de vergonha (e dor).

Vergonha porque um grupo de brasileiros tinha transmitido para o mundo, durante a cerimônia de abertura, uma expressão, uma atitude, que não era – não é – a representação do sentimento – e do comportamento – nacional.

O xingamento que aquela minoria – habitantes do hemisfério norte do mapa social brasileiro – estava ali esganiçando aos olhos e ouvidos do mundo, não é usual no nosso convívio.

Nós não somos assim.

A maioria da população brasileira – como eu, como você civilizado leitor – não expressaria a infamante frase que a aquele grupo vociferava para espanto do mundo.

Por isso, assisti envergonhado àquele jogo.

E o que eu sentia depois da partida, andando silente pela cidade que continuava cabisbaixa, era uma sensação de angústia sem pouso, sem abrigo, sem abraço.

Sentia em algum lugar de mim – talvez na alma –, como também na cidade – que me parecia estupefata – uma dor sombria, intensa e extensa.

Uma dor imensa.

A dor da Pátria.

Envergonhada.




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Cachoeira pluvial. Foto Gilson Soares, 2014. Quando a barra do dia despontou sobre Barra de São Francisco na manhã daquela quinta-feira...

Cachoeira pluvial. Foto Gilson Soares, 2014.
Cachoeira pluvial. Foto Gilson Soares, 2014.

Quando a barra do dia despontou sobre Barra de São Francisco na manhã daquela quinta-feira, trouxe estampada na lapela uma evidente – e urgente – promessa de toró.

Eu – bem como a cordata magrela – transitava risonho e despreocupado, a caminho da saída da cidade, na primeira hora daquela manhã turva.

Mais de um motivo contribuíam para que eu – como se desdenhasse do pé-d’água que o dia anunciava – exibisse, ali, aquele semblante sereno. O primeiro é que acabara de concluir, em Barra de São Francisco, o percurso do desenho cartográfico do Torreão Noroeste do Espírito Santo.



E isso, pra minha alegria, tinha se dado com razoável proximidade do que fora previsto no meu esforçado – coitado – projeto de viagem.

No dia anterior, eu tinha chegado a São Chico – depois de romper as últimas fraldas desgrenhadas dos Aimorés – a tempo de deixar exemplares de Minério na Biblioteca Pública Municipal e na biblioteca da Escola Estadual de EEEFM João XXIII.

Além dessa tarefa, digamos, protocolar, tive tempo, ainda, de fazer um solitário passeio noturno por esta cidade que esconde, nos recônditos da sua conformação urbana, um remoto – pueril, mesmo – sentimento de admiração.

Eu, quando criança, gostava de passar por aqui e apreciar esta bela catedral de São Francisco de Assis, pousada num pequeno outeiro no centro da cidade.

Gostava também de ver a praça ajardinada que sempre exibia pequenas árvores torneadas, em diferentes formas geométricas, por algum jardineiro misterioso – e engenhoso – que eu nunca via em ação, nas minhas fugazes passagens pela cidade.

Este passeio noturno ao passado, ofertado por São Chico agora, brindava, então, o desfecho do contorno do Torreão. O arremate do passeio se deu, claro, na companhia providencial de uma silenciosa (e saborosa) cerveja num botequim francisquense.

Já o outro motivo para o meu cenho sorridente nesta manhã chuvosa é que eu gosto, mesmo, de chuva.

De chuvas.

E como eu já tinha, por precaução, agasalhado com impermeável segurança na garupa da magrela a rotunda bagagem – roupas, livros e utensílios de viagem –, estava, agora, livre para o belo banho ambulante que se me apresentava matinal e gracioso.

Por tudo isso eu, franciscano, ia, ali, sereno – lírico! – deixando pra trás São Francisco.

E olha que, àquela hora, nem me passava pela cabeça o que estava à minha espera: a profusão de cachoeiras altaneiras que iriam saltar aos meus olhos durante toda aquela manhã.

Coisa que há muito tempo eu não via.

Essas quedas d’água, feitas de enxurradas altas que despencam ziguezagueando dos cocurutos das montanhas de pedra, eu as conheço desde outros temporais.

Eram elas que ilustravam com frequência – no anfiteatro que compõe Ecoporanga – minhas sonoras e iluminadas tormentas infantis.

Entre estrondos e relâmpagos, as enxurradas deslizavam pelas montanhas de granito que circundam, ali, o vale do rio Dois.

E depois se jogavam por despenhadeiros escuros, feito efêmeras cachoeiras brancas e esguias.

Como estas que agora, pedalando pela manhã de uma quinta-feira invernosa, eu via.

Que dia!




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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Gilson Soares adotou a magrela como seu principal meio de transporte urbano, explorando, também com ela, o interior do Espírito Santo...




Gilson Soares adotou a magrela como seu principal meio de transporte urbano, explorando, também com ela, o interior do Espírito Santo. Até o ano de 2016 ele realizou três viagens: à primeira delas, parte do Projeto 2013, chamou Viagem pelo litoral sul e montanhas do Espírito Santo, à segunda, do Projeto 2014, Giro pelo arco norte do Espírito Santo, e à terceira, do Projeto 2016, Circuito Rio Doce.

Ele começou a produzir crônicas a partir do Giro pelo Arco Norte do Espírito Santo e pretende fazer o mesmo com as demais viagens.

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I - Giro pelo Arco Norte do Espírito Santo


Arco Norte Capixaba – Num giro ciclístico

Carregando Minério na bagagem

Coqueiral de Aracruz e Regência

Regentes com a mão na massa

Atravessando o Vale do Suruaca

Hieróglifos em petrobrês

Rumo às dunas de Itaúnas

Um arco em linha reta

Espírito ciclístico

Vinha, Elisa, recorde

Canário e canarinhos

Taquaras e Taquarinha

Dormi mal na "Capital"

Encontro Marcado

De menesguei

Suíte gargalhadas

Torre a ré

Cidade vazia

A deusa de Ponto Belo

O dedo mindinho

Passando por Cotaxé

Ecoporanga



Saudades de Ecoporanga (canção)

O caso do ocaso

Homem do campo

Ariranha

As cristas dos Aimorés

As cachoeiras pluviais

A dor de São Domingos

Da psicologia canina

BR-101, fim


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Foto Gilson Soares, 2014. Ariranha é, pra mim, uma dessas palavras muito bonitas com que nos deparamos na língua brasileira. - Outra...

Foto Gilson Soares, 2014.
Foto Gilson Soares, 2014.

Ariranha é, pra mim, uma dessas palavras muito bonitas com que nos deparamos na língua brasileira.

- Outras há de igual ou superior beleza.

É isso que você está afirmando, não é, lépido leitor?

- Sim, sem dúvida. É o que te respondo, também de pronto.

E acrescento: poderia, eu mesmo, enumerar aqui muitas dessas – belas! – palavras.

Mas não vou fazer isso.

Vou é propor uma consulta em que cada um envia aqui pra Estação Capixaba uma palavra que, pra seu gosto, esteja entre as mais bonitas da Língua.

Combinado? Vai ser divertido e proveitoso.

Pode enviar a sua palavra – só uma – ali no espaço de comentários.

Depois vamos divulgar o resultado da enquete.

Vai ser um conjunto de palavras com forte sotaque de poesia, não tenho dúvida.

Posso adiantar pra você, filólogo leitor, que a maioria das palavras que compõem a minha lista é proveniente das línguas nativas – e extintas – de Pindorama.

Acho até que essa lista pessoal – se eu fosse fazê-la. Não vou – receberia a chancela radical de Policarpo Quaresma.

Mas vamos aguardar as palavras que virão de você, plural leitor.

Enquanto isso – confirmando o que declarei na primeira linha ali em cima – repito que gosto de ariranha.

Primeiro, pelo raro – e agreste – prazer auditivo que esta palavra traz.

Depois, é que ao dar de cara com uma dessas onças-d’água, passeando e caçando no regaço de um regato como este, eu, ainda que nunca tivesse ouvido esta palavra, acho que não exclamaria outra coisa que não fosse ariranha.

Mais provavelmente até, ariranha! Assim, acompanhada dessa exclamação de espanto (e alegria!).

Por isso – e por aquilo – gosto desta palavra.

E tive a sorte de tê-la incorporada ao meu vocabulário ainda na infância.

Sim: é que os meus avós maternos moravam na vila – logo ali! – de Barra do Ariranha.

Ali, meus pais – ele mineiro, ela capixaba – se conheceram e – indiferentes a todas as contestações limitantes que pipocavam então – se casaram.

E foi ali, também, que deliciei as minhas primeiras – as primeirinhas, mesmo – férias escolares.

Naquele conjunto de estranhezas, surpresas e novidades que era a – pra mim – monumental casa dos meus avós, passei, com as minhas irmãs, dias amplos, abarrotados de brincadeiras vadias, banhos de rio, apresentação de ave-marias no serviço de alto-falante da vila – que era dos meus avós – e algumas pueris aventuras noturnas.

Tudo isso ali na Barra do Ariranha.

O nome da vila, informo pro leitor, relata a atraente ocorrência natural que distingue aquele lugar: o córrego Ariranha, que vem descendo miúdo e sonoro por uma das encostas da Serra dos Aimorés, entrega, ali, a sua contribuição líquida ao já meio imponente (mas não ainda indolente, como será mais abaixo) rio São Mateus. Quer dizer, a seu braço sul.

E, foi ali, agora, descendo por aquelas escarpas que compõem o leito acidentado do córrego Ariranha, que tive que fazer o que muito poucas vezes fiz na minha história ciclística: pedi arrego a uma descida.

Sim, nas subidas é mais ou menos comum o ciclista não dar conta da escalada e se ver flagrado empurrando – às vezes um pouco, às vezes muito – o seu veículo movido a – enquanto há – energia humana.

Mas pra baixo, com a proverbial contribuição gravitacional de todos os santos do calendário religioso, não existe, geralmente, dificuldade de trânsito.

Por isso é pouco comum um ciclista optar por empurrar seu camelo quando está descendo um morro. Como era o caso.

Mas ali não teve jeito: quando o íngreme se assemelha ao perpendicular e o chão além de movediço é retalhado por uma profusão de sulcos escavados por enxurradas, é melhor apear da bicicleta e transitar a pé. E contendo, com mão firme, a magrela – e a rechonchuda bagagem – na sua ânsia irracional de desembestar pelo despenhadeiro abaixo. Ali, então, pela primeira vez naquele meu giro pelo Arco Norte, confesso, pedi arrego.

Mas fazer o quê, né?

Isso acontece, num belo dia, com qualquer um.

Seja atleta, seja poeta.




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