Uma parada no portal do Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu. Foto Gilson Soares, 2014. No 16º e último dia do meu Giro pelo Arco N...

BR-101, fim

Uma parada no portal do Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu. Foto Gilson Soares, 2014.
Uma parada no portal do Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu. Foto Gilson Soares, 2014.

No 16º e último dia do meu Giro pelo Arco Norte Capixaba, acabei saindo de João Neiva mais tarde do que queria.

Era sábado, 14 de junho de 2014.

E pela primeira vez no Giro eu ia transitar longamente pela movimentada (e turbulenta) BR 101.

Na saída de João Neiva, no sentido de Ibiraçu, tem um acentuado aclive. Em decorrência da oferta de mais uma pista para os carros que sobem, a via fica sem acostamento de um lado.

Se você está passando de bicicleta por ali, restam, então, duas alternativas.

Ambas arriscadas.

Ou você permanece à sua direita e sobe pedalando apertado – passando aperto! – entre os carros pesados e velozes, a valeta e o meio-fio; ou você atravessa a pista pra pegar do outro lado o acostamento na contramão.

É uma travessia perigosa já que, ali, automóveis e caminhões transitam na velocidade autorizada por sua urgência mercantil.

Tanto os que sobem, quanto os que descem.

Mesmo assim optei por atravessar a BR e escalar o tal aclive pelo lado de lá.

Enquanto esperava o momento oportuno – quer dizer, seguro – pra cruzar a via, observei que lá no topo do morro, tinha um ciclista parado, em atitude de contemplação.

Sentado no selim e com um dos pés assentado no asfalto, o cara estanque, meio cabisbaixo, estava lá, olhando, me pareceu, pro nada.

A primeira impressão que tive é que ele queria descer por ali – sem acostamento e na contramão – e estava esperando o melhor momento. Pensei até em sinalizar indicando que não considerava aquela a melhor escolha.

Esbarrei na dificuldade, por conta da distância, para tal interlocução. Mas vendo que ele estava vestido em modos de ciclista e portava uma bicicleta esportiva, concluí que não havia motivo pra preocupação.

O cara deve conhecer bem essa estrada, deduzi.

Aproveitei, então, um hiato no trânsito e atravessei.

A uma certa altura vi que o ciclista tinha abandonado sua atitude contemplativa, assumido o pedal e, como eu, mudado de lado.

Meio que espontaneamente, ao nos cumprimentarmos paramos e começamos a conversar.

Amarildo é um comerciante de João Neiva e estava encerrando o seu treino ciclístico matinal pra iniciar mais um dia de trabalho na sua loja.

Atendi à sua curiosidade e contei um pouco da minha viagem pelo Arco Norte que se encerraria ainda naquele dia.

Ele me falou de um grupo de ciclistas que eles têm em João Neiva, dos encontros que promovem e dos pedais coletivos que realizam periodicamente.

Há pouco tempo um dos integrantes daquele clube ciclístico joão-neivense tinha sido atropelado e morto exatamente ali naquele trecho da turbulenta – e truculenta – BR-101.

Amarildo tinha perdido um amigo.

Um sentimento de companheirismo e solidariedade nos aproximou fortemente e acabamos ficando ali naquela conversa improvisada de beira de estrada por mais tempo do que previa a nossa agenda para aquele sábado.

Até que nos fomos, porque tínhamos que ir.

Cada um pro seu lado.

Acabei deixando ali onde paramos pra conversar, um pouco da alegria que vinha exibindo na manhã daquele dia conclusivo.

A partir daí enveredei por pensamentos – e sentimentos – despertados por aquele encontro casual à margem da BR-101.

Estávamos ali numa linha demarcatória, numa fronteira entre dois territórios ideológicos.

Aquela via federal por onde transita – aqui mais, ali menos – boa parte do que o Capital produz e movimenta pelos costados de Pindorama, é tida e havida como uma fluente – influente – peça na engrenagem que impulsiona a máquina da economia nacional.

É ela uma estrada traçada ao longo de todo o litoral brasileiro.

Sua construção é sustentada pela ideologia do automóvel, do transporte rodoviário de riquezas, pela lei do extrativismo acelerado e voraz.

Ela em nenhum trecho da sua extensão continental oferece prioridade para o pedestre ou para o ciclista.

Por aquele palco – teatro de guerra? – desfilam vociferando os mais robustos e aguerridos produtos da engenharia automobilística a serviço do transporte de moeda corrente, nos seus variados formatos, tamanhos, pesos e medidas.

Todo o espaço desta ferramenta do desenvolvimento predatório, a rodovia, está a serviço dessa ideologia.

Ao adotar a bicicleta como meio de transporte, conscientemente ou não, estamos tomando uma atitude política. Não há dúvida.

Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014.
Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014.

Na contramão da ideologia do automóvel, da máquina, do progresso, do crescimento destrutivo.

Não temos armas, não temos escudos, não portamos artifícios de defesa ou de confronto. Por isso, como vinha fazendo em todo o percurso deste meu Giro, optamos por estradas singelas ou por trilhas pacíficas. Mas, vez ou outra, temos que transitar por esses cenários de guerra.

Como eu e Amarildo.

Como também, um dia, seu amigo.

Mas o sábado, apesar dos pensamentos – e do sentimento – que me restaram daquele encontro casual e amistoso, se desenvolveu e se findou bem próximo do que estava escrito no meu precário planejamento.

Assim, quando a noite se preparava para recolher a oeste os últimos acenos de sol que se esforçavam pra iluminar o cocuruto do Moxuara, eu transpunha as Cinco Pontes pra transitar de novo, com a solidária magrela, por ruas de Vila Velha.

Cinco Pontes, Vitória, Vila Velha. Chegando em casa. Foto Gilson Soares, 2014.
Cinco Pontes, Vitória, Vila Velha. Chegando em casa. Foto Gilson Soares, 2014.

Já estava, portanto, em casa.

Depois de um Giro pelo Arco Norte Capixaba.

Que bom.




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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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