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Uma parada no portal do Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu. Foto Gilson Soares, 2014. No 16º e último dia do meu Giro pelo Arco N...

Uma parada no portal do Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu. Foto Gilson Soares, 2014.
Uma parada no portal do Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu. Foto Gilson Soares, 2014.

No 16º e último dia do meu Giro pelo Arco Norte Capixaba, acabei saindo de João Neiva mais tarde do que queria.

Era sábado, 14 de junho de 2014.

E pela primeira vez no Giro eu ia transitar longamente pela movimentada (e turbulenta) BR 101.

Na saída de João Neiva, no sentido de Ibiraçu, tem um acentuado aclive. Em decorrência da oferta de mais uma pista para os carros que sobem, a via fica sem acostamento de um lado.

Se você está passando de bicicleta por ali, restam, então, duas alternativas.

Ambas arriscadas.

Ou você permanece à sua direita e sobe pedalando apertado – passando aperto! – entre os carros pesados e velozes, a valeta e o meio-fio; ou você atravessa a pista pra pegar do outro lado o acostamento na contramão.

É uma travessia perigosa já que, ali, automóveis e caminhões transitam na velocidade autorizada por sua urgência mercantil.

Tanto os que sobem, quanto os que descem.

Mesmo assim optei por atravessar a BR e escalar o tal aclive pelo lado de lá.

Enquanto esperava o momento oportuno – quer dizer, seguro – pra cruzar a via, observei que lá no topo do morro, tinha um ciclista parado, em atitude de contemplação.

Sentado no selim e com um dos pés assentado no asfalto, o cara estanque, meio cabisbaixo, estava lá, olhando, me pareceu, pro nada.

A primeira impressão que tive é que ele queria descer por ali – sem acostamento e na contramão – e estava esperando o melhor momento. Pensei até em sinalizar indicando que não considerava aquela a melhor escolha.

Esbarrei na dificuldade, por conta da distância, para tal interlocução. Mas vendo que ele estava vestido em modos de ciclista e portava uma bicicleta esportiva, concluí que não havia motivo pra preocupação.

O cara deve conhecer bem essa estrada, deduzi.

Aproveitei, então, um hiato no trânsito e atravessei.

A uma certa altura vi que o ciclista tinha abandonado sua atitude contemplativa, assumido o pedal e, como eu, mudado de lado.

Meio que espontaneamente, ao nos cumprimentarmos paramos e começamos a conversar.

Amarildo é um comerciante de João Neiva e estava encerrando o seu treino ciclístico matinal pra iniciar mais um dia de trabalho na sua loja.

Atendi à sua curiosidade e contei um pouco da minha viagem pelo Arco Norte que se encerraria ainda naquele dia.

Ele me falou de um grupo de ciclistas que eles têm em João Neiva, dos encontros que promovem e dos pedais coletivos que realizam periodicamente.

Há pouco tempo um dos integrantes daquele clube ciclístico joão-neivense tinha sido atropelado e morto exatamente ali naquele trecho da turbulenta – e truculenta – BR-101.

Amarildo tinha perdido um amigo.

Um sentimento de companheirismo e solidariedade nos aproximou fortemente e acabamos ficando ali naquela conversa improvisada de beira de estrada por mais tempo do que previa a nossa agenda para aquele sábado.

Até que nos fomos, porque tínhamos que ir.

Cada um pro seu lado.

Acabei deixando ali onde paramos pra conversar, um pouco da alegria que vinha exibindo na manhã daquele dia conclusivo.

A partir daí enveredei por pensamentos – e sentimentos – despertados por aquele encontro casual à margem da BR-101.

Estávamos ali numa linha demarcatória, numa fronteira entre dois territórios ideológicos.

Aquela via federal por onde transita – aqui mais, ali menos – boa parte do que o Capital produz e movimenta pelos costados de Pindorama, é tida e havida como uma fluente – influente – peça na engrenagem que impulsiona a máquina da economia nacional.

É ela uma estrada traçada ao longo de todo o litoral brasileiro.

Sua construção é sustentada pela ideologia do automóvel, do transporte rodoviário de riquezas, pela lei do extrativismo acelerado e voraz.

Ela em nenhum trecho da sua extensão continental oferece prioridade para o pedestre ou para o ciclista.

Por aquele palco – teatro de guerra? – desfilam vociferando os mais robustos e aguerridos produtos da engenharia automobilística a serviço do transporte de moeda corrente, nos seus variados formatos, tamanhos, pesos e medidas.

Todo o espaço desta ferramenta do desenvolvimento predatório, a rodovia, está a serviço dessa ideologia.

Ao adotar a bicicleta como meio de transporte, conscientemente ou não, estamos tomando uma atitude política. Não há dúvida.

Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014.
Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014.

Na contramão da ideologia do automóvel, da máquina, do progresso, do crescimento destrutivo.

Não temos armas, não temos escudos, não portamos artifícios de defesa ou de confronto. Por isso, como vinha fazendo em todo o percurso deste meu Giro, optamos por estradas singelas ou por trilhas pacíficas. Mas, vez ou outra, temos que transitar por esses cenários de guerra.

Como eu e Amarildo.

Como também, um dia, seu amigo.

Mas o sábado, apesar dos pensamentos – e do sentimento – que me restaram daquele encontro casual e amistoso, se desenvolveu e se findou bem próximo do que estava escrito no meu precário planejamento.

Assim, quando a noite se preparava para recolher a oeste os últimos acenos de sol que se esforçavam pra iluminar o cocuruto do Moxuara, eu transpunha as Cinco Pontes pra transitar de novo, com a solidária magrela, por ruas de Vila Velha.

Cinco Pontes, Vitória, Vila Velha. Chegando em casa. Foto Gilson Soares, 2014.
Cinco Pontes, Vitória, Vila Velha. Chegando em casa. Foto Gilson Soares, 2014.

Já estava, portanto, em casa.

Depois de um Giro pelo Arco Norte Capixaba.

Que bom.




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© 2017 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014. Quantas vezes já cientifiquei você, proficiente leitor...

Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014.
Ponte da Passagem, chegando a Vitória no fim da tarde. Foto Gilson Soares, 2014.

Quantas vezes já cientifiquei você, proficiente leitor, da minha parca – quis dizer, porca – erudição?

Muitas, não é mesmo?

Faço isso, sempre, com a dolorosa sensação de estar cometendo o pecado – o grave pecado estilístico – da redundância.

Sim, pois quem convive literariamente comigo já está cansado de saber – por ver, por ler – que eu transito pela parte mais rasa – pela superfície – do conhecimento sério, científico, profundo; daquele conhecimento que é como o cimento – a base – da boa erudição.

O sagaz leitor, portanto, há muito já observou – não carece de dizer – que o que eu carrego mesmo comigo é uma vasta bagagem de ignorâncias. Santas – e tantas – as minhas ignorâncias.

Mas em determinados assuntos ostento um desconhecimento destacado. Total. Absoluto.

Um desses assuntos é a psicologia canina.

Uma ciência que desconheço tanto, a ponto de nem saber que existia. Só agora fico sabendo que existe sim, a psicologia canina.

E que tem seus cânones.

Seu status acadêmico.

E comercial, claro.

Mas por que, está perquirindo o instigado leitor, estou elucubrando aqui, agora, acerca da personalidade e do comportamento social dos cães?

Informo, então, pra você, leitor, o que qualquer ciclista viajante sabe: os cães, principalmente os que residem em sítios e fazendas de beira de estrada, têm uma indisposição declarada para com as magrelas e seus condutores.

Por isso, alimento desde os meus primeiros pedais rurais o interesse pela psicologia de cachorros e cadelas.

Mas confesso – você está certo, leitor – que eu nem me lembrava disso enquanto ia pedalando por São Domingos naquela manhã de sexta-feira, rumo à saída da cidade.

Ia eu por ali bem folgado, depois de ter passado pela EEEFM São Domingos e de ter entregado pra sua biblioteca os últimos exemplares de Minério que eu tinha levado para aquela viagem.

Agora, o que eu transportava no bagageiro da magrela era a alegre – e leve – sensação do cumprimento, na íntegra, do que me propusera a fazer naquele meu Giro pelo Arco Norte Capixaba.

Isto é: do ponto de vista da cartografia, eu tinha rabiscado com o rastro da pretinha, o enviesado desenho do Torreão Noroeste. Por outro lado, prestando minha contribuição ao mercado editorial, eu acabara, ali, de distribuir o Minério pelas bibliotecas públicas das cidades por que passei.

Ciente de que não chegaria a Vila Velha – quer dizer, em casa – naquele mesmo dia, ia então pensando em pedalar até João Neiva, onde pernoitaria.

E no sábado, 14 de junho, ancoraria por fim a magrela no atracadouro da minha casa, de onde tinha saído na manhã da sexta-feira, 30 de maio.

Nada mais me preocupava.

Como em todas as viagens, naquele Giro eu tinha também sido perseguido algumas vezes por cães.

Assim, vez ou outra eu tinha pensado, rindo sozinho, que iria me dedicar um pouco, quando pudesse – provavelmente, nunca, né? – à busca de um conhecimento mais consistente da psicologia dos cachorros. Com o objetivo de encontrar resposta para algumas perguntas.

Uma delas: por que será que os cachorros de todas as raças, culturas, procedências e endereços têm tamanha aversão aos ciclistas e aos seus silenciosos veículos de locomoção?

Outra: de onde virá aquela expressão de inimizade, de ódio, de confronto que todos os cães de beira de estrada, trazem estampada nas suas carrancas arfantes e agressivas, mal o ciclista pacífico e quieto aponta lá na curva distante da quase sempre vazia via vicinal?

Só mesmo um tratado sobre o comportamento social dos cães, pensava então com solitária ironia, poderá esclarecer essa minha demanda de conhecimento.

Mas eram outros, repito, os pensamentos que ocupavam a minha cabeça mambembe naquela manhã de – quase – fim de viagem.

Nem mesmo quando observei à minha frente uma procissão desordenada de cães vagabundos, esse tema veio à tona.

Afinal aquela pequena multidão de vira-latas que transitava por ali – talvez todos os cachorros vadios de São Domingos do Norte – estava mesmo é festejando o cio de uma cadela, pelo visto, muito cobiçada por aquela numerosa comunidade masculina.

Talvez até fosse o dela – pelo número de pretendentes ali perfilados – o cio mais esperado da região.

Não sei.

O que sei é que a minha preocupação com aquele cortejo foi nenhuma. Não penso – não pensava – que qualquer outra atração visual ou olfativa pudesse alterar o interesse decididamente sexual daquela turba canina ambulante.

Mas de repente – quem poderá entender o comportamento coletivo dos cães? – eles, unânimes, desviaram sua atenção e partiram, vorazes, pra cima de mim.

Posso pensar hoje que a iniciativa daquele ataque partiu da própria cadela que, segundo especialistas em psicologia canina, costuma apresentar no cio variações de comportamento.

Se não isso, talvez numa atitude inteligente, ela, a cadela, incomodada por aquele assédio matinal de todos os vira-latas dominguenses e percebendo a minha indiferente passagem no outro lado da rua, não pensou duas vezes: deu a ordem de ataque.

Que foi fulminante.

Tanto que, francamente, nem sei precisar qual foi o indivíduo daquele coletivo de cães – sem pedigree e sem teto – que cravou os seus afiados caninos na parte inferior da minha panturrilha direita, que sangrou imediatamente.

Pode até ter sido mesmo ela, a cadela, ciosa da liderança sobre os seus súditos, a autora da dentada certeira.

Mas não posso afirmar isso.

Pra dizer a verdade, nem deu pra identificar ali, naquela turba veloz e feroz, quem ladrava e quem mordia.

Pois cão que ladra, você sabe, não morde.

Pelo menos enquanto ladra, como ressalvou com sua inteligência – num outro tempo de irracional terror – o erudito Millôr.




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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Foto Gilson Soares, 2014. A prazerosa manhã de chuva em nada alterou o planejamento que eu tinha feito para aquela quinta-feira, 12...

Foto Gilson Soares, 2014.
Foto Gilson Soares, 2014.

A prazerosa manhã de chuva em nada alterou o planejamento que eu tinha feito para aquela quinta-feira, 12 de junho de 2014.

Para aquele dia, eu reservara um roteiro curto e fácil.

Nada mais do que um breve pedal matinal.

Sairia de Barra de São Francisco com o propósito de chegar a São Domingos do Norte ao meio do dia.

Só isso.

Ali, já daria por encerrada aquela jornada ciclística.

Depois disso eu ia relaxar e esperar o jogo de abertura da Copa do Mundo de Futebol.

Assim se fez.

No meio do percurso ainda dei uma paradinha em Águia Branca, cidade cujo topônimo, fiquei sabendo, foi recortado – com cuidado – do Brasão de Armas da Polônia e trazido de lá por um grupo de imigrantes que aqui chegou pra fundar a vila.

Sob chuva, entreguei um ou dois exemplares de Minério à biblioteca da EEEFM Águia Branca e, já saindo da cidade, me permiti uma pequena cerveja – uma latinha silenciosa e contemplativa – no já festivo bar do posto de combustível que limita ao sul aquele diminuto ajuntamento urbano.

Num aparelho de televisão, instalado ali, vi que já se iniciavam as transmissões preliminares da cerimônia de abertura da Copa.

Uma galera – a maioria deles, jovens – que encerrara as suas jornadas de trabalho mais cedo, jogava sinuca, bebia, comia e, principalmente, farreava, ali no barzinho do posto, onde certamente ficariam pra ver o jogo.

Transitando ao largo da estridente televisão e da festiva bagunça daqueles aguiabranquenses que ali digladiavam sua divertida loquacidade, fiquei por um tempo observando um canário intensamente amarelo que circulava entre os carros e motos estacionados em torno do barzinho.

O canarinho – que já foi símbolo de seleções brasileiras mais marcantes (e menos mercantes) do que aquela que se apresentaria daqui a pouco – voava de um pra outro veículo, dialogando, em melodioso trinado, com sua imagem na superfície molhada dos coloridos (e reflexivos) automóveis em que pousava (e posava).

Inquieto, ele se esforçava, com o seu canto solitário, pra expressar o deslumbre – e o espanto! – que aquela sucessiva ilusão visual lhe provocava.

Saltava então de um carro pra outro, dando bicadinhas no seu sósia e cantando alto pra ninguém, senão eu, escutar.

- Perdoem-me, pedi amistoso à águia polaca e ao canário da terra – não aos loquazes rapazes –, mas tenho que ir.

E fui.

Isso pra chegar, como cheguei, a São Domingos ainda cedo.

O que tinha planejado, era me hospedar, tomar um banho, acomodar a magrela, dar uma voltinha a pé pela cidade – pra sentir o clima – e depois, retornando ao hotelzinho, assistir, quieto e só, ao primeiro confronto daquele Mundial de Futebol – Brasil x Croácia – que aconteceria daqui a pouco.

Percebi, ao caminhar pelas poucas ruas de São Domingos, que não se repetia ali a alegre expectativa que eu tinha presenciado em Águia Branca. Nem rapazes loquazes, nem canários canoros encontrei passeando pela urbe dominicana. Isso naquela quinta-feira em que – imaginei – o Brasil inteiro exibiria um comportamento dominical.

Pelo que estava vendo, não seria bem assim.

São Domingos estava turva, vazia, úmida e silenciosa.

Talvez até constrangida, me pareceu.

O que teria se dado entre a minha festiva saída de Águia Branca e aquela chegada chué a São Domingos do Norte?

Foi com esta interrogação que encerrei o silencioso passeio pedestre e subi pro meu abrigo no hotelzinho.

Antes do jogo – enquanto eu me servia uma cerveja e buscava uma confortável acomodação – a televisão mostrava imagens e comentários da cerimônia de abertura da Copa.

Só aí fiquei sabendo do que tinha se dado naquele evento oficial.

Uma tragédia nacional. Isso, enquanto eu, desinformado, viajava sob a chuva, entre úmidas montanhas de granito e esbeltas cachoeiras pluviais.

Entendi, então, solidário, o constrangimento de São Domingos.

A cerveja ficou choca, diante de uma partida chocha.

Para uma abertura de Copa do Mundo, em casa, contra um selecionado de muito pouca expressão na história do futebol, o que se via no gramado era, com certeza, muito aquém do esperado.

Além disso, guardo a impressão de que pesava sobre todos nós um sentimento de vergonha (e dor).

Vergonha porque um grupo de brasileiros tinha transmitido para o mundo, durante a cerimônia de abertura, uma expressão, uma atitude, que não era – não é – a representação do sentimento – e do comportamento – nacional.

O xingamento que aquela minoria – habitantes do hemisfério norte do mapa social brasileiro – estava ali esganiçando aos olhos e ouvidos do mundo, não é usual no nosso convívio.

Nós não somos assim.

A maioria da população brasileira – como eu, como você civilizado leitor – não expressaria a infamante frase que a aquele grupo vociferava para espanto do mundo.

Por isso, assisti envergonhado àquele jogo.

E o que eu sentia depois da partida, andando silente pela cidade que continuava cabisbaixa, era uma sensação de angústia sem pouso, sem abrigo, sem abraço.

Sentia em algum lugar de mim – talvez na alma –, como também na cidade – que me parecia estupefata – uma dor sombria, intensa e extensa.

Uma dor imensa.

A dor da Pátria.

Envergonhada.




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Cachoeira pluvial. Foto Gilson Soares, 2014. Quando a barra do dia despontou sobre Barra de São Francisco na manhã daquela quinta-feira...

Cachoeira pluvial. Foto Gilson Soares, 2014.
Cachoeira pluvial. Foto Gilson Soares, 2014.

Quando a barra do dia despontou sobre Barra de São Francisco na manhã daquela quinta-feira, trouxe estampada na lapela uma evidente – e urgente – promessa de toró.

Eu – bem como a cordata magrela – transitava risonho e despreocupado, a caminho da saída da cidade, na primeira hora daquela manhã turva.

Mais de um motivo contribuíam para que eu – como se desdenhasse do pé-d’água que o dia anunciava – exibisse, ali, aquele semblante sereno. O primeiro é que acabara de concluir, em Barra de São Francisco, o percurso do desenho cartográfico do Torreão Noroeste do Espírito Santo.



E isso, pra minha alegria, tinha se dado com razoável proximidade do que fora previsto no meu esforçado – coitado – projeto de viagem.

No dia anterior, eu tinha chegado a São Chico – depois de romper as últimas fraldas desgrenhadas dos Aimorés – a tempo de deixar exemplares de Minério na Biblioteca Pública Municipal e na biblioteca da Escola Estadual de EEEFM João XXIII.

Além dessa tarefa, digamos, protocolar, tive tempo, ainda, de fazer um solitário passeio noturno por esta cidade que esconde, nos recônditos da sua conformação urbana, um remoto – pueril, mesmo – sentimento de admiração.

Eu, quando criança, gostava de passar por aqui e apreciar esta bela catedral de São Francisco de Assis, pousada num pequeno outeiro no centro da cidade.

Gostava também de ver a praça ajardinada que sempre exibia pequenas árvores torneadas, em diferentes formas geométricas, por algum jardineiro misterioso – e engenhoso – que eu nunca via em ação, nas minhas fugazes passagens pela cidade.

Este passeio noturno ao passado, ofertado por São Chico agora, brindava, então, o desfecho do contorno do Torreão. O arremate do passeio se deu, claro, na companhia providencial de uma silenciosa (e saborosa) cerveja num botequim francisquense.

Já o outro motivo para o meu cenho sorridente nesta manhã chuvosa é que eu gosto, mesmo, de chuva.

De chuvas.

E como eu já tinha, por precaução, agasalhado com impermeável segurança na garupa da magrela a rotunda bagagem – roupas, livros e utensílios de viagem –, estava, agora, livre para o belo banho ambulante que se me apresentava matinal e gracioso.

Por tudo isso eu, franciscano, ia, ali, sereno – lírico! – deixando pra trás São Francisco.

E olha que, àquela hora, nem me passava pela cabeça o que estava à minha espera: a profusão de cachoeiras altaneiras que iriam saltar aos meus olhos durante toda aquela manhã.

Coisa que há muito tempo eu não via.

Essas quedas d’água, feitas de enxurradas altas que despencam ziguezagueando dos cocurutos das montanhas de pedra, eu as conheço desde outros temporais.

Eram elas que ilustravam com frequência – no anfiteatro que compõe Ecoporanga – minhas sonoras e iluminadas tormentas infantis.

Entre estrondos e relâmpagos, as enxurradas deslizavam pelas montanhas de granito que circundam, ali, o vale do rio Dois.

E depois se jogavam por despenhadeiros escuros, feito efêmeras cachoeiras brancas e esguias.

Como estas que agora, pedalando pela manhã de uma quinta-feira invernosa, eu via.

Que dia!




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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Gilson Soares adotou a magrela como seu principal meio de transporte urbano, explorando, também com ela, o interior do Espírito Santo...




Gilson Soares adotou a magrela como seu principal meio de transporte urbano, explorando, também com ela, o interior do Espírito Santo. Até o ano de 2016 ele realizou três viagens: à primeira delas, parte do Projeto 2013, chamou Viagem pelo litoral sul e montanhas do Espírito Santo, à segunda, do Projeto 2014, Giro pelo arco norte do Espírito Santo, e à terceira, do Projeto 2016, Circuito Rio Doce.

Ele começou a produzir crônicas a partir do Giro pelo Arco Norte do Espírito Santo e pretende fazer o mesmo com as demais viagens.

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I - Giro pelo Arco Norte do Espírito Santo


Arco Norte Capixaba – Num giro ciclístico

Carregando Minério na bagagem

Coqueiral de Aracruz e Regência

Regentes com a mão na massa

Atravessando o Vale do Suruaca

Hieróglifos em petrobrês

Rumo às dunas de Itaúnas

Um arco em linha reta

Espírito ciclístico

Vinha, Elisa, recorde

Canário e canarinhos

Taquaras e Taquarinha

Dormi mal na "Capital"

Encontro Marcado

De menesguei

Suíte gargalhadas

Torre a ré

Cidade vazia

A deusa de Ponto Belo

O dedo mindinho

Passando por Cotaxé

Ecoporanga



Saudades de Ecoporanga (canção)

O caso do ocaso

Homem do campo

Ariranha

As cristas dos Aimorés

As cachoeiras pluviais

A dor de São Domingos

Da psicologia canina

BR-101, fim


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Foto Gilson Soares, 2014. Ariranha é, pra mim, uma dessas palavras muito bonitas com que nos deparamos na língua brasileira. - Outra...

Foto Gilson Soares, 2014.
Foto Gilson Soares, 2014.

Ariranha é, pra mim, uma dessas palavras muito bonitas com que nos deparamos na língua brasileira.

- Outras há de igual ou superior beleza.

É isso que você está afirmando, não é, lépido leitor?

- Sim, sem dúvida. É o que te respondo, também de pronto.

E acrescento: poderia, eu mesmo, enumerar aqui muitas dessas – belas! – palavras.

Mas não vou fazer isso.

Vou é propor uma consulta em que cada um envia aqui pra Estação Capixaba uma palavra que, pra seu gosto, esteja entre as mais bonitas da Língua.

Combinado? Vai ser divertido e proveitoso.

Pode enviar a sua palavra – só uma – ali no espaço de comentários.

Depois vamos divulgar o resultado da enquete.

Vai ser um conjunto de palavras com forte sotaque de poesia, não tenho dúvida.

Posso adiantar pra você, filólogo leitor, que a maioria das palavras que compõem a minha lista é proveniente das línguas nativas – e extintas – de Pindorama.

Acho até que essa lista pessoal – se eu fosse fazê-la. Não vou – receberia a chancela radical de Policarpo Quaresma.

Mas vamos aguardar as palavras que virão de você, plural leitor.

Enquanto isso – confirmando o que declarei na primeira linha ali em cima – repito que gosto de ariranha.

Primeiro, pelo raro – e agreste – prazer auditivo que esta palavra traz.

Depois, é que ao dar de cara com uma dessas onças-d’água, passeando e caçando no regaço de um regato como este, eu, ainda que nunca tivesse ouvido esta palavra, acho que não exclamaria outra coisa que não fosse ariranha.

Mais provavelmente até, ariranha! Assim, acompanhada dessa exclamação de espanto (e alegria!).

Por isso – e por aquilo – gosto desta palavra.

E tive a sorte de tê-la incorporada ao meu vocabulário ainda na infância.

Sim: é que os meus avós maternos moravam na vila – logo ali! – de Barra do Ariranha.

Ali, meus pais – ele mineiro, ela capixaba – se conheceram e – indiferentes a todas as contestações limitantes que pipocavam então – se casaram.

E foi ali, também, que deliciei as minhas primeiras – as primeirinhas, mesmo – férias escolares.

Naquele conjunto de estranhezas, surpresas e novidades que era a – pra mim – monumental casa dos meus avós, passei, com as minhas irmãs, dias amplos, abarrotados de brincadeiras vadias, banhos de rio, apresentação de ave-marias no serviço de alto-falante da vila – que era dos meus avós – e algumas pueris aventuras noturnas.

Tudo isso ali na Barra do Ariranha.

O nome da vila, informo pro leitor, relata a atraente ocorrência natural que distingue aquele lugar: o córrego Ariranha, que vem descendo miúdo e sonoro por uma das encostas da Serra dos Aimorés, entrega, ali, a sua contribuição líquida ao já meio imponente (mas não ainda indolente, como será mais abaixo) rio São Mateus. Quer dizer, a seu braço sul.

E, foi ali, agora, descendo por aquelas escarpas que compõem o leito acidentado do córrego Ariranha, que tive que fazer o que muito poucas vezes fiz na minha história ciclística: pedi arrego a uma descida.

Sim, nas subidas é mais ou menos comum o ciclista não dar conta da escalada e se ver flagrado empurrando – às vezes um pouco, às vezes muito – o seu veículo movido a – enquanto há – energia humana.

Mas pra baixo, com a proverbial contribuição gravitacional de todos os santos do calendário religioso, não existe, geralmente, dificuldade de trânsito.

Por isso é pouco comum um ciclista optar por empurrar seu camelo quando está descendo um morro. Como era o caso.

Mas ali não teve jeito: quando o íngreme se assemelha ao perpendicular e o chão além de movediço é retalhado por uma profusão de sulcos escavados por enxurradas, é melhor apear da bicicleta e transitar a pé. E contendo, com mão firme, a magrela – e a rechonchuda bagagem – na sua ânsia irracional de desembestar pelo despenhadeiro abaixo. Ali, então, pela primeira vez naquele meu giro pelo Arco Norte, confesso, pedi arrego.

Mas fazer o quê, né?

Isso acontece, num belo dia, com qualquer um.

Seja atleta, seja poeta.




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Mapa da Província do ES, 1856 - Biblioteca Digital Luso-brasileira O que os primeiros cartógrafos a serviço da Coroa informaram – com ...

Mapa da Província do ES, 1856 - Biblioteca Digital Luso-brasileira
Mapa da Província do ES, 1856 - Biblioteca Digital Luso-brasileira


O que os primeiros cartógrafos a serviço da Coroa informaram – com suas linhas de fácil leitura e com seus desenhos que descrevem topografias e hidrografias evidentes – é que os cocurutos dos montes alinhados ao longo desta serrania, por onde passo, é que estabeleciam os limites a oeste do território do Spirito Sancto.

Isto é: a linha demarcatória da divisa entre esta província e a das Minas Geraes teria que ser desenhada pegando, de crista em crista, a sucessão de montanhas que compõem a Serra dos Aimorés.

Assim, todas as águas que vertem para leste seriam águas capixabas. Bem como as terras que compõem os seus respectivos vales, desde as cumeeiras desta cordilheira fronteiriça.

O desenho esfrangalhado com que o Torreão Noroeste é retratado agora é resultado de disputas que se resolveram, ao longo da história, ao sabor da força política nacional dos contendores e das, por algum tempo, recorrentes escaramuças locais.

Nosso estado que, sempre teve pouca representação no conjunto que se constituiria federativamente, foi estrepado amiúde.

É o caso, por exemplo, do que aconteceu quando a riqueza que era arrancada das minas gerais começou a se esgotar. Os mineiros, em diáspora, vieram se bandeando pra este lado de cá, até acharem anchos nacos devolutos deste vilão farto, na virada da Serra.

Aí, ali, as fronteiras se moveram.

Os geógrafos e historiadores – disponíveis numa superficial navegação inquiridora pela rede – acabam de ensinar pra este ciclista aprendiz que as fronteiras – econômicas, políticas, culturais – são móveis, sim.

E por conta do movimento delas, os limites, as divisas – geográficas – também se deslocam.

No realinhamento, geralmente, há tensão.

Neste confronto quem sai – quem saiu, aqui – perdendo é o nativo que sempre esteve ali ou o agricultor que chegou, plantou suas raízes e dali colhia o seu sustento.

O nativo, a sua cultura e a sua língua foram dizimados, extintos.

O homem do campo foi expulso pra uma nova fronteira agrícola ou pra periferia de uma grande cidade.

Os donos do poder se abraçaram num pomposo encontro oficial, assinaram papéis e brindaram ao final.

Os novos donos oficiais das terras – os de sempre, confortavelmente instalados – aplaudiram.

Agora era só revisar os mapas e o seu desenho informativo.

Ao fim das contas, incontestável leitor, o que a cartografia de agora tem para nos oferecer é este Torreão escalafobético.

Não há o que discutir.

Assim, obedecendo ao que está escrito ali, ao descer esta Serra margeando o Ariranha, já estamos – eu e a indiferente magrela – entrando, de novo, em território mineiro.

Depois de uma jornada ao meu passado mais remoto – e de um almoço frugal – em Barra do Ariranha, cheguei no meio da tarde a Mantena.

A cidade, sonora e colorida, me recebeu numa atitude festiva.

O que não era de se esperar.

Naquela tarde de quarta-feira, 11 de junho de 2014, em que eu vinha ainda buscando chão para retornar de uma visita à infância, o comportamento da fronteiriça cidade me surpreendeu.

Mantena, capital não só do município, mas de todo o grupo de pequenas cidades que estão no território deste visível enclave mineiro que entorta, ali, o Torreão, também abriga algumas das minhas lembranças infantis.

Mas o que me chamou mesmo a atenção e merece registro foi o brado festivo com que a cidade veio ao meu encontro.

Por conta das cores, do ritmo e da retumbante sonoridade com que me deparei, atribuí logo aquela ambientação à expectativa para a Copa das Copas, no Brasil, que começaria no dia seguinte, 12 de junho.

Por isso elegi, imediatamente, Mantena como A cidade mais Festiva daquela Copa brasileira.

Claro que eu tinha que considerar que chegava ali no dia que antecedia a tão esperada data de abertura dos jogos. Mas mesmo assim, aquela festa exuberante e com visível chancela oficial, superava em muito, tudo o que eu vinha vendo até então.

Assim, já tinha destinado a Mantena o título – e o prêmio! – pela sua distinção entre os municípios que compunham o roteiro daquele meu Giro pelo Arco Norte Capixaba.

Afinal, considerar que Mantena possa estar num terreno invadido, não podia ser motivo para negar sua superioridade no quesito alegoria pra Copa das Copas.

Só depois de anunciar o resultado – pra mim mesmo, o único sabedor do concurso – é que fui informado de que, embora paramentada no estilo torcida organizada, o que a cidade estava comemorando mesmo era o seu aniversário de fundação, que acontece no dia 13 de junho, depois de amanhã pra quem, como eu, passava por ali naquele dia 11.

Os mantenenses, deduzi então, vibravam naquela tarde de quarta-feira rotineira é com a divertida – e rara – oportunidade de antecipar a festividade natalícia da sua cidade.

Informado disso, retirei educadamente a medalha que acabara de lhe outorgar; fiquei por ali um pouco tentando, em vão, identificar por baixo da sua roupa festiva algum aspecto da cidade esquecida na infância; assisti, bem abrigados – eu e a pretinha –, à passagem de uma rápida e volumosa chuva que chegara das brumas do inusitado; e, finalmente, piquei a mula – quer dizer, o camelo para o território oficial do Espírito Santo, no caso, Barra de São Francisco.

É lá que eu tinha combinado com a pretinha que íamos, sossegados e pacíficos, dormir.

E foi lá que dormimos.




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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Ecoporanga. Foto Gilson Soares, 2014. Quando cheguei a Ecoporanga a segunda-feira já definhava. Passando por aquelas ruas que certame...

Ecoporanga. Foto Gilson Soares, 2014.
Ecoporanga. Foto Gilson Soares, 2014.

Quando cheguei a Ecoporanga a segunda-feira já definhava.

Passando por aquelas ruas que certamente guardam ainda rastros empoeirados dos meus pedais pueris, observei espantado que o dia, num derradeiro esforço de luz, murmurava seus estertores: restos resistentes de claridade se agarravam, com finos dedos dourados, a uma das laterais do grande cone de granito escuro – a Pedra da Igrejinha – que concede distinção ao pôr-do-sol em Ecoporanga.

Cheguei, portanto, a tempo de ver um espetáculo que guardo – bem guardado – na memória da infância.

E isso – aquele ocaso ocasional, ali – se deu, como sempre, por conta do acaso.

Saí da vila de Cotaxé logo depois do almoço e vim dando muito pouca atenção à pressa, que, por hábito, costuma acossar o ciclista na estrada.

Passei passeando por Imburana, vila que tem guardada nas suas poucas ruas e no seu casario comum uma expressão de simpatia que deixei escondida por ali, sem ninguém saber, desde os dominicais passeios infantis.

Para a pequena extensão de estrada que liga Imburana a Ecoporanga, eu dispensei todo o tempo que minha memória – sentimental – pediu.

Não dava para ficar indiferente ao grande tráfego de máquinas, caminhões e tratores que com sofreguidão removiam, mastigavam e cuspiam, num vai e vem estrondoso, grandes porções de terra, pedra, areia e vegetação por ali.

É que aquela era mais uma das estradas que, com muito esforço, tentava-se pavimentar a tempo de angariar votos, naquele ano eleitoral de 2014.

Eu entendo esses procedimentos instituídos.

Assim, fui pedalando sem pressa e recordando que quando por ali passava, há coisa de meia centena de anos, aquela estrada – se vista do alto – era, na maior parte do seu percurso, um estreito risco de terra nua cortando a floresta virgem.

Pensei, mas nem me arrisquei a falar disso para alguns daqueles muitos trabalhadores que ali estavam operando aquelas monstruosas máquinas – roedoras, mastigadoras, trituradoras.

Não tentei falar com eles por dois motivos. O primeiro é que eles não parariam para dar ouvidos a um ciclista vadio. O segundo é que eles não acreditariam no que eu iria lhes contar.

Como que em cinquenta anos se destrói uma floresta inteira?

Como que em tão pouco tempo se mata uma mata?

Perguntariam rindo – e até zombando, talvez – se eu parasse por ali, para lhes contar o que vi.

Assim eu, bisonho, não lhes contaria que, criança, vi – via todo dia – aquela mata inteira indo embora.

E nem contaria que em grandes carretas atadas a caminhões ferozes, os troncos decapitados daquelas matas, passavam em decúbito pelas ruas de Ecoporanga a caminho da mutilação fatal.

E não contaria ainda que eu, criança, não conseguia entender – não conseguia ver com os meus olhinhos infantis – que agarradas àqueles troncos trucidados, iam ali, também – silenciosas, invisíveis – as almas de rios e cachoeiras; onças, veados, quatis; beija-flores e macucos; traíras, piaus, lambaris.

Como contar isso numa conversa rápida, na beira daquela estrada revirada por máquinas, tratores e caminhões?

Não dava pra contar. Pra explicar.

É melhor, pensei, que eu continue pedalando calado – entre crateras e perambeiras – até chegar à minha cidade, que há mais de quinze anos eu não vejo e está logo ali.

O que eu não sabia – não podia prever – é que esse reencontro ia se dar, como se deu, exatamente naquela hora “tristonha e serena” – como cantava meu pai – em que a tarde cai sobre Ecoporanga “em macio e suave langor”.



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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Ecoporanga lua cheia, pedra negra meu peito escuta enternecido uma canção, canta meu pai: - Sertaneja, vou-me embora a saud...




Ecoporanga
lua cheia, pedra negra
meu peito escuta enternecido
uma canção,
canta meu pai:
- Sertaneja, vou-me embora
a saudade vem agora...
talvez eu não volte mais.

Adeus meu rio,
guardei a sua canção
hoje ando só
e você não canta mais,
resta um retrato
envelhecido na parede
cinzas do verde
e a saudade do meu pai.

Minha cidade,
o que é da pedra?
O que é da mata?
O que é do rio da infância?
Do banho nu?
O que é dos sonhos,
das certezas de criança?
E o que foi feito
do canto do inhambu?

A dor insiste
quando escrevo nunca-mais
e um xitã triste
poe-miza o meu lamento
enquanto o vento
divulga pelos quintais,
em serenata,
a voz grave do meu pai.

Chegada a hora
eu também devo partir
num fim de tarde
de domingo, qual meu pai
levo tua pedra e teu rio
em meu olhar
e no meu peito
a canção do teu luar.

Minha cidade,
o que é da pedra?
O que é da mata?
O que é do rio da infância?
Do banho nu?
O que é dos sonhos,
das certezas de criança?
O que foi feito
do canto do inhambu?




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A EEEFM Ecoporanga e a Pedra da Igrejinha. Foto Gilson Soares, 2014. Minha paixão pelo jornalismo começou a se desenvolver ainda na inf...

A EEEFM Ecoporanga e a Pedra da Igrejinha. Foto Gilson Soares, 2014.
A EEEFM Ecoporanga e a Pedra da Igrejinha. Foto Gilson Soares, 2014.

Minha paixão pelo jornalismo começou a se desenvolver ainda na infância, em Ecoporanga, no início da década de 1960.

Meu pai, comerciante, tinha uma loja de tecidos, confecções, calçados, utilidades domésticas e armarinho na nascente cidade – Ecoporanga se emancipou no mesmo ano em que nasci, 1955.

Quando de suas viagens para as compras que sustentavam os estoques da loja, ele, meu pai, sempre trazia revistas e jornais, que eu recebia ansioso: O Cruzeiro, Revista do Esporte e O Jornal, eram as nossas publicações preferidas.

Por um período meu pai chegou a assinar O Jornal, que chegava a Ecoporanga – na melhor concatenação possível das logísticas envolvidas – em três ou quatro dias depois da publicação. Quando não, uma semana.

E tinha o Rádio, claro, que era a nossa fonte mais rotineira e imediata de informação.

Assim, sempre tive o jornalismo, antes até que a literatura, como um sonho, um ideal de realização. E cheguei a trabalhar na imprensa e no Rádio por curtos períodos e em épocas distintas.

Só muito tempo depois – e bem lentamente – fui deixando que essa paixão infantil se desfizesse.

Aliás, nem fui eu que deixei.

Na verdade o rumo que tomou o jornalismo no Brasil é que foi destruindo em mim esse sonho, esse ideal.

Naquele período, mesmo, de 2014 – que antecedeu esta viagem realizada em junho – o jornalismo brasileiro dera uma aberrante demonstração da sua crescente desfaçatez.

A grande imprensa empresarial brasileira trabalhou com um afinco descarado pra que aquela Copa do Mundo – que se realizou no Brasil depois de 64 anos da Copa de 50 – fosse um fracasso.

Ou até mesmo para que a Copa não acontecesse.

Diziam – sustentados unicamente por contraposições partidárias – que os estádios não estariam prontos e que nós não tínhamos preparado a infraestrutura necessária para receber um dos maiores eventos esportivos do planeta.

Noticiário este que gerou desconfiança e até um certo desinteresse do público brasileiro pela Copa.

Foi preciso que a mídia internacional descobrisse que o país estava preparado sim e que aquela poderia ser – como foi – uma Copa do Mundo que se destacaria na história do futebol, a Copa das Copas.

A isenção, o equilíbrio honesto e justo na construção do relato informativo, atitudes que estão na raiz do conceito de bom jornalismo – daquele jornalismo sonhado na infância em Ecoporanga – desapareceram do cenário jornalístico brasileiro.

Isso começou a ficar mais evidente no período posterior à ditadura civil-militar, que amordaçara a imprensa nacional. Quando a democracia política e eleitoral – mesmo que longe da democracia social – permitiu que as ideias chegassem ao espaço do debate e da discussão, cada um tomou o seu lugar.

Aí as grandes empresas do mercado de informação, que se consolidaram exatamente no – e com as benesses do – regime ditatorial, mostraram as suas caras ferozes e assumiram o seu posto de cães de guarda da estrutura capitalista.

Agora, já neste século, a imprensa brasileira entrou decididamente na disputa partidária e eleitoral.

Só que usando os recursos da mentira e da hipocrisia.

Assim, quer enganar – e o que é pior, engana – a um grande número de pessoas desatentas ou desinformadas.

Digo isso, leitor, porque depois de aproveitar o presente que o acaso me deu – aquele pôr-do-sol sem igual de Ecoporanga – tive tempo ainda de entregar exemplares de Minério para a biblioteca da EEEFM Ecoporanga – que se chamava Colégio Pio XII, quando ali estudei – e para a Biblioteca Pública da cidade.

Feito isso me hospedei, arranjei uma acomodação – sempre meio improvisada – para a minha valente magrela e me preparei para um noturno passeio pedestre por esta cidade a que me dou o direito de chamar de minha.

Mas antes de botar o pé na rua – a noite só começava – considerei conveniente – a sede exigia – tomar uma cerveja na calçada privilegiada do hotelzinho que me hospedou, o histórico Hotel, Bar e Restaurante do Dico.

Minha intenção era só ficar ali naquela calçada quieto, observando a cidade e rememorando a história – a minha história – cuja locação estava ali, feito quadro vivo, à minha frente.

Mas o acaso tinha um pouco mais a me oferecer.

Foi só eu me sentar que chegou, como se estivesse ali só pra conversar comigo, o Vilmar.

Na infância e adolescência nós o chamávamos, não me pergunte por que, de Toboi.

Logo de início ele me informa – me atualiza – que agora o seu nome oficial é Tô.

Abreviaram o apelido.

Tô é um repórter, um cronista da cidade.

O tempo que permanecemos ali, não foi muito diferente de uma hora. Se mais, pouco. Se menos, muito pouco.

E só não se alongou indefinidamente, porque eu queria fazer o meu passeio pedestre pela cidade noturna.

E pegar a estrada cedo, no dia seguinte.

Mas foi tempo suficiente pra que ele, Tô, me deixasse atualizado da revista social da cidade.

A sua memória cronológica, a precisão das informações, e a isenção – o que constatei mais de uma vez na nossa conversa – que ele mantém no decorrer dos relatos não me deixaram dúvida: eis aí Tô, um jornalista, um espírito, uma consciência jornalística, que o jornalismo brasileiro precisa conhecer e adotar.

Talvez ele nem sonhe em ser jornalista, não sei.

Mas, ele, abstêmio – só eu bebi enquanto conversávamos – encara, talvez, diariamente, a dura rotina dos bares, das praças, das ruas ofertando a sua inteligência, a sua capacidade de diálogo e de atenção, e a sua memória para levar e buscar a informação que sustenta a história da cidade.

Com honestidade, justiça, isenção e o visível prazer de realizar tão importante trabalho.

Que no caso dele é espontâneo e voluntário.

Como talvez pudesse ser o velho e heroico jornalismo com que sonhei ainda na infância ali, em Ecoporanga.




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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Na estrada, próximo a Água Doce do Norte. Foto Gilson Soares, 2014. Saí de Ecoporanga, na primeira hora da manhã da terça-feira, 10 de ...

Na estrada, próximo a Água Doce do Norte. Foto Gilson Soares, 2014.
Na estrada, próximo a Água Doce do Norte. Foto Gilson Soares, 2014.

Saí de Ecoporanga, na primeira hora da manhã da terça-feira, 10 de junho de 2014.

Qualquer viajante normalmente rumaria, dali, diretamente para Barra de São Francisco.

É o caminho mais curto, lógico e funcional.

Mas não foi o que fiz.

Não que eu queira ser ou seja, mesmo, anormal. Não.

Essa minha, aparentemente obtusa, decisão se deu por um motivo que o costumeiro leitor já deve estar cansado de saber: o meu empenho em seguir margeando a linha que faz o desenho cartográfico do Torreão. Por conta daquela admoestação que me foi feita pelo Costura de Ponto Belo – naquela noite amena de domingo (você se lembra, leitor?) em que por lá, dubitativo, vadiava e bebia –, tive que me afastar, um pouco, da borda e transpor o coração do Torreão (e da minha história): a cidade de Ecoporanga.

Pra retomar a marginalidade do percurso eu decidi, então – na transparente manhã de outono tropical – descambar pros lados de Água Doce do Norte, onde me propunha a dormir naquela terça-feira.

Na manhã seguinte transporia os costados da fronteiriça Serra dos Aimorés, passaria por Mantena – um dos contestados enclaves mineiros em solo historicamente capixaba – e só então retornaria ao Espírito Santo, em Barra de São Francisco.

Assim fiz.

Na estrada entre Ecoporanga e Água Doce. Foto Gilson Soares, 2014.
Na estrada entre Ecoporanga e Água Doce.
Foto Gilson Soares, 2014.
Ciente eu estava – quando elaborei o planejamento do dia – de que chegaria a Água Doce ainda muito cedo, mesmo parando com frequência para apreciar – e fotografar – as montanhas de granito vizinhas daquelas estradinhas que circulam – descalças, algumas – por ali.

A extensão do tempo que me foi oferecido para permanecer em Água Doce permitiu que eu realizasse com folga as três importantes tarefas que eu tinha pra cumprir ali.

Primeiro localizei a Biblioteca Pública Municipal da cidade e ofereci um exemplar de Minério para o seu acervo.

Depois procurei (e achei com facilidade) uma oficina de bicicletas.

É que a pretinha já pedia há algum tempo uma atenciosa revisão. Deixei-a aos cuidados do cara da oficina por toda a tarde.

Ele trabalhou muito bem e, o que é melhor, por um preço aquém do que eu supunha que iria gastar.

E por fim – talvez o mais importante –: fui procurar saber como sair de Água Doce do Norte, na manhã seguinte, transpondo as bordas da Serra dos Aimorés, passando por Mantena e retornando ao Espírito Santo, em Barra de São Francisco.

Que é o que eu queria fazer.

E fiz.

Se entre Ecoporanga e Água Doce do Norte eu transitei entre o conjunto de montanhas de pedra que mais me chamou a atenção durante toda esta viagem, agora, nesta manhã de quarta-feira, 11 de junho de 2014, logo depois de sair de Água Doce, eu subi (e desci) a mais extensa e íngreme serra que me foi imposta no decorrer deste pedal pelo Arco Norte capixaba.

Transpondo a Serra dos Aimorés no extremo Noroeste do Espírito Santo. Foto Gilson Soares, 2014.
Transpondo a Serra dos Aimorés no extremo Noroeste do
Espírito Santo. Foto Gilson Soares, 2014.
Naquela estradinha de chão solitária e acobertada, em boa parte do percurso, por uma mata fechada e sonora, caminhei mais do que pedalei – tanto subindo, quanto descendo – um sopé tanto longo, quanto acentuado da Serra dos Aimorés.

E assim, caminhando de mãos dadas com a magrela por aquelas escarpas pude ouvir toda a sonoridade da mata e ver cores, flores, árvores e pássaros que nunca vira.

E se não fosse assim, eu não teria visto, também, um recado – de alguém, pra não sei quem – colado ao mourão de madeira de uma cerca lateral.

– Vamos tentar ser homem do campo? Eu disse homem do campo. Campo.

Numa folha arrancada de uma agenda, um pai ou um amigo – ou um desafeto? – deixou ali uma carta aberta (tanto que eu pude ler) estrategicamente postada para o seu destinatário.

Eu, que não tinha nada com isso, li, entendi o recado, fiz o registro fotográfico seduzido pelo inusitado daquele sistema de comunicação e prossegui o trajeto anormal de percurso que escolhi para aquele dia.

Carta aberta postada à beira da estrada. Foto Gilson Soares, 2014.
Carta aberta postada à beira da estrada. Foto Gilson Soares, 2014.



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Ecoporanga. Foto Gilson Soares, 2014. Em verdade, em verdade, devo lhe confessar, confidente leitor, que eu atribuo, vez ou outra, ao ...

Ecoporanga. Foto Gilson Soares, 2014.
Ecoporanga. Foto Gilson Soares, 2014.


Em verdade, em verdade, devo lhe confessar, confidente leitor, que eu atribuo, vez ou outra, ao acaso, alguns méritos que não são exatamente dele.

Talvez faça isso com a intenção de retribuir os benefícios que dele recebo.

Talvez faça pra esconder, sob um temperinho de ironia, a minha indisfarçável inaptidão no trato com coisas de planejamento.

Talvez, até, como – duvidoso – recurso literário.

Não sei.

O que sei é que o meu relacionamento com ele – acaso – tem sido muito bom e proveitoso.

E por eu ser um cara, talvez, brindado pela sorte, o inesperado – ele – tem me proporcionado muito mais motivos para alegrias, do que para constrangimentos.

Além de tudo isso, eu penso o seguinte: mesmo que você seja o mais competente e premiado profissional de planejamento, se algum dia você for sozinho pra estrada procure manter um convívio amistoso com o acaso.

Você vai, em algum momento, precisar da contribuição dele. Não tenha dúvida.

Pensando assim, eu nunca deixei de dar crédito às suas participações quando faço os meus relatos de viagem. E até – reafirmo – credito a ele, aqui e ali, um pouquinho mais do que lhe é de direito.

É o caso desse ocaso que presenciei ao chegar a Ecoporanga.

Em verdade não foi só o acaso que me ofereceu a oportunidade de estar ali naquela “hora de lenta agonia”.

O que aconteceu foi o seguinte:

Quando percebi que me aproximava da minha cidade, comecei a procurar, com um tom de ânsia no olhar, a Pedra da Igrejinha.

(Aproveitando que estamos, aqui, entre parênteses, vou informar pro familiar leitor que uma das primeiras iniciativas coletivas da nascente comunidade que se formou ali – às margens do rio Dois de setembro – foi a construção de uma pequena capela no cocuruto da pedra pontiaguda que estava fadada a ser o marco e a marca daquele agrupamento humano em formação. Eles, aqueles primeiros ecoporanguenses, resolveram, então, erguer na crista da montanha a bandeira da sua determinação – cristã – e do seu espírito de aventura: a igrejinha. Depois foram erguidos ali em cima cruzeiros luminosos e torres metálicas, e ela – a Pedra – foi variando de denominação de acordo com o diadema que lhe coroava o frontispício. Mas penso que se não Pedra da Igrejinha que foi o nome – sonoro e poético – que a Pedra recebeu na infância da cidade, ela deve se chamar, mesmo, é Pedra de Ecoporanga, que é o que ela é).

Mas ia eu, então – antes dos parênteses – me aproximando de Ecoporanga e procurando ver a Pedra.

Quando, já quase entrando na cidade, consegui vê-la, constatei o que estava pra acontecer: o sol já ia se pôr, ali, numa das suas fraldas laterais.

Fiquei com muita vontade de ver esse pôr-do-sol na íntegra.

Pra isso acelerei o ritmo das pedaladas.

Eu sabia exatamente o ponto privilegiado da topografia sinuosa da cidade que eu tinha que alcançar pra ver (e fotografar) aquela imagem que instantaneamente – numa velocidade muitas vezes superior à da luz – fez uma viagem de meia centena de anos pela minha memória (e pelo meu coração disparado).

Disparei.

O tempo que eu tinha – pra chegar aonde queria – era muito pequeno. Quase nada.

E se eu não conseguisse? Se eu perdesse? Se eu não alcançasse? Quando é que aconteceria outro pôr-do-sol como aquele, comigo ali?

Nenhuma dessas perguntas me ocorreu enquanto eu voava veloz ao vento vespertino.

Quer dizer, se me ocorreu alguma delas, eu nem me lembro.

O que sei é que o que eu queria – com aquele voo rasante – era chegar de frente para o ocaso, posicionar a pretinha – sempre muito fotogênica – ali naquele palco ainda meio iluminado, fazer o registro histórico e depois, relaxado, me embriagar de infância.

Consegui!

O que, francamente, não posso dizer pra você, crédulo leitor, é que aquele ocaso me foi dado só pelo acaso. Ele, o acaso, tinha prestado, como sempre, a sua contribuição no decorrer do dia.

Mas aquele sprint solitário realizado ali, na chegada de Ecoporanga, tem que ser creditado, mesmo, é à musculatura das pernas e à energia juvenil que costuma brotar de um fulgor na alma, numa hora dessas.

Essa é a verdade.



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Foto Gilson Soares, 2014. Na manhã da sexta-feira, 6 de junho, quando completava uma semana que havia saído de Vila Velha, eu deixei Pe...

Foto Gilson Soares, 2014.
Foto Gilson Soares, 2014.

Na manhã da sexta-feira, 6 de junho, quando completava uma semana que havia saído de Vila Velha, eu deixei Pedro Canário com destino a Cristal do Norte.

O arremedo de planejamento que orienta as minhas viagens, indicava que ao final daquele dia, eu ancoraria a magrela em Montanha, onde tinha um compromisso importante, no sábado à noite.

Mas não foi o que aconteceu. Veja só.

Cheguei a Cristal ainda pela manhã.

Pedalei um pouco pela vila, conversei, comi uma coisa, bebi outra, e dali parti para o meu objetivo mais importante daquele dia: Três Corações.

Enfim, posso, agora que estamos chegando, esclarecer pra você, leitor, o motivo do meu interesse por esse lugarejo, de cuja existência ficara sabendo naquela conversa de botequim – você se lembra? – na mais que pretérita Itaúnas.

É que Três Corações, que também atende pelo nome de Taquarinha, é uma pequena vila, distrito de Mucuri, portanto em território baiano, que está assentada no extremo oeste daquela linha reta fronteiriça que se estica pelo norte capixaba, a partir do mar.

Em um ponto da periferia de Taquarinha essa linha-lâmina, estranha à cartografia, esbarra numa aresta de chão mineiro. E para.

Dá-se então ali uma tríplice fronteira estadual: Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia.

Na minha viagem ciclística de 2013, havia descoberto, também meio sem querer, a Fazenda Três Estados, no município de Dores do Rio Preto, que abriga nossa tríplice fronteira sul: Espírito Santo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Lá a linha é líquida, límpida e curvilínea: o rio São João que começa a descer, cortando o costado do Caparaó pelo lado mineiro, encontra-se com o rio Preto que desce com comportamento parecido, só que do lado capixaba. Desse encontro dos dois rios recém-nascidos, forma-se o Itabapoana, que, desde ali, até o mar, marca a divisão dos territórios capixaba e fluminense.

Esse encontro fluvial demarcatório pode ser observado de um terreiro grande à frente do vistoso casarão mais que centenário que sedia a tal fazenda. O que autoriza que ele, o casarão, ostente, na lapela, o nome de batismo da propriedade: Fazenda Três Estados.

Não fica, então, difícil para o leitor entender o meu imediato interesse por Três Corações, quando, em Itaúnas, tomei conhecimento da existência desta vila.

Pedalando, eu concluía ali – quase ao meio daquela sexta-feira junina, na silenciosa Taquarinha – uma linha imaginária e torta, que tracei, ao acaso, entre as duas tríplices fronteiras que distinguem a cartografia do nosso estado: da Fazenda Três Estados até a Vila de Três Corações.

E curioso é que aquele mesmo ponto à margem do vilarejo, marca também, a fronteira de quatro municípios: Mucuri, pelo lado baiano; Nanuque – cidade que se apresenta como a “Capital da Tríplice Fronteira” – pelo lado mineiro; e Pedro Canário e Montanha, pelo lado capixaba.

Se bem deduzi, a história do duplo topônimo da vila em que me encontrava, é a seguinte: dada sua situação político-geográfica diferenciada, houve-se por bem, em algum momento de sua história que Taquarinha passasse a ser nominada oficialmente de Três Corações.

Taquarinha é o riacho que corre – ou corria? - por ali até encontrar o córrego Taquaras, que por sua vez leva a sua modesta contribuição para avolumar o braço norte do Rio Itaúnas.

Antes de chegar a Taquarinha, passei por Taquaras, vila do município de Pedro Canário, que talvez só perca para Itabaiana, Mucurici, o importante título de núcleo populacional mais setentrional do Espírito Santo.

Embora eu não tenha encontrado muitos interlocutores em Taquarinha, guardei a impressão de que há controvérsias, talvez veladas, quanto a alteração do seu nome original.

Que nos peitos daqueles tricordianos que me recebiam taciturnos, pulsam – e, certamente, se entrelaçam – corações baianos, corações mineiros e corações capixabas, disso não há dúvida. Mas tanto pra uns, quanto pra outros, pode parecer, me pareceu, mais conveniente o tradicional – e fluvial – nome da vila.

Eu, embora não tenha sido convidado a opinar e não tenha nenhuma simpatia auditiva por diminutivos, confesso que Taquarinha, o nome primevo daquela vila que se me apresentou introvertida, açoda minha audição com cativante alegria.



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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)