O caso do ocaso
Ecoporanga. Foto Gilson Soares, 2014. |
Em verdade, em verdade, devo lhe confessar, confidente leitor, que eu atribuo, vez ou outra, ao acaso, alguns méritos que não são exatamente dele.
Talvez faça isso com a intenção de retribuir os benefícios que dele recebo.
Talvez faça pra esconder, sob um temperinho de ironia, a minha indisfarçável inaptidão no trato com coisas de planejamento.
Talvez, até, como – duvidoso – recurso literário.
Não sei.
O que sei é que o meu relacionamento com ele – acaso – tem sido muito bom e proveitoso.
E por eu ser um cara, talvez, brindado pela sorte, o inesperado – ele – tem me proporcionado muito mais motivos para alegrias, do que para constrangimentos.
Além de tudo isso, eu penso o seguinte: mesmo que você seja o mais competente e premiado profissional de planejamento, se algum dia você for sozinho pra estrada procure manter um convívio amistoso com o acaso.
Você vai, em algum momento, precisar da contribuição dele. Não tenha dúvida.
Pensando assim, eu nunca deixei de dar crédito às suas participações quando faço os meus relatos de viagem. E até – reafirmo – credito a ele, aqui e ali, um pouquinho mais do que lhe é de direito.
É o caso desse ocaso que presenciei ao chegar a Ecoporanga.
Em verdade não foi só o acaso que me ofereceu a oportunidade de estar ali naquela “hora de lenta agonia”.
O que aconteceu foi o seguinte:
Quando percebi que me aproximava da minha cidade, comecei a procurar, com um tom de ânsia no olhar, a Pedra da Igrejinha.
(Aproveitando que estamos, aqui, entre parênteses, vou informar pro familiar leitor que uma das primeiras iniciativas coletivas da nascente comunidade que se formou ali – às margens do rio Dois de setembro – foi a construção de uma pequena capela no cocuruto da pedra pontiaguda que estava fadada a ser o marco e a marca daquele agrupamento humano em formação. Eles, aqueles primeiros ecoporanguenses, resolveram, então, erguer na crista da montanha a bandeira da sua determinação – cristã – e do seu espírito de aventura: a igrejinha. Depois foram erguidos ali em cima cruzeiros luminosos e torres metálicas, e ela – a Pedra – foi variando de denominação de acordo com o diadema que lhe coroava o frontispício. Mas penso que se não Pedra da Igrejinha que foi o nome – sonoro e poético – que a Pedra recebeu na infância da cidade, ela deve se chamar, mesmo, é Pedra de Ecoporanga, que é o que ela é).
Mas ia eu, então – antes dos parênteses – me aproximando de Ecoporanga e procurando ver a Pedra.
Quando, já quase entrando na cidade, consegui vê-la, constatei o que estava pra acontecer: o sol já ia se pôr, ali, numa das suas fraldas laterais.
Fiquei com muita vontade de ver esse pôr-do-sol na íntegra.
Pra isso acelerei o ritmo das pedaladas.
Eu sabia exatamente o ponto privilegiado da topografia sinuosa da cidade que eu tinha que alcançar pra ver (e fotografar) aquela imagem que instantaneamente – numa velocidade muitas vezes superior à da luz – fez uma viagem de meia centena de anos pela minha memória (e pelo meu coração disparado).
Disparei.
O tempo que eu tinha – pra chegar aonde queria – era muito pequeno. Quase nada.
E se eu não conseguisse? Se eu perdesse? Se eu não alcançasse? Quando é que aconteceria outro pôr-do-sol como aquele, comigo ali?
Nenhuma dessas perguntas me ocorreu enquanto eu voava veloz ao vento vespertino.
Quer dizer, se me ocorreu alguma delas, eu nem me lembro.
O que sei é que o que eu queria – com aquele voo rasante – era chegar de frente para o ocaso, posicionar a pretinha – sempre muito fotogênica – ali naquele palco ainda meio iluminado, fazer o registro histórico e depois, relaxado, me embriagar de infância.
Consegui!
O que, francamente, não posso dizer pra você, crédulo leitor, é que aquele ocaso me foi dado só pelo acaso. Ele, o acaso, tinha prestado, como sempre, a sua contribuição no decorrer do dia.
Mas aquele sprint solitário realizado ali, na chegada de Ecoporanga, tem que ser creditado, mesmo, é à musculatura das pernas e à energia juvenil que costuma brotar de um fulgor na alma, numa hora dessas.
Essa é a verdade.
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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
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