Snr. Presidente, Nobres Senadores: Irmanado por um só pensamento de sincero fervor democrático, unido por um mesmo sentimento de sadio ent...

Discurso proferido no Senado Federal, em julho de 1947

Snr. Presidente, Nobres Senadores:

Irmanado por um só pensamento de sincero fervor democrático, unido por um mesmo sentimento de sadio entusiasmo cívico e envolto pelas efusões de júbilo que recobrem, como um sobrecéu de esperanças, a alma coletiva de seu povo, comemorou o Espírito Santo, no dia 26 do corrente, a promulgação de sua nova Carta Política.

Natural, portanto, que a bancada capixaba neste respeitável cenáculo, por minha obscura voz, traga ao conhecimento do Senado Federal tão auspicioso evento e solicite à Mesa sob a forma regimental de um requerimento a que se associaram nobremente alguns dos nossos ilustres pares, a Inserção, na ata dos nossos trabalhos, de um voto de congratulações, com o nobre e operoso Povo e Governo do Estado do Espírito Santo pela marcante efeméride que assinala a sua plena integração no regime constitucional que rege os destinos da nossa Pátria.

Diminuta parcela da Federação, situada na linha de convergência entre os ardores tropicais do norte e a amenidade hibernal do clima sulino, constitui o Espírito Santo região privilegiada que parece delimitar e reunir territórios diferentes congraçando duas comunidades irmãs, como se quisesse assim garantir e assegurar, para todo o sempre, a suprema e indestrutível unidade nacional. Em virtude mesmo deste imperativo geográfico que faz com que ali termine o sul e tenha começo o norte, é o capixaba padrão reconhecido de serenidade e equilíbrio, como se estivessem encarnadas no seu tipo biológico todas as virtudes e insuficiências da raça, e se concentrassem no brasileiro daquelas plagas a tranquila sobriedade e prudência dos habitantes sulinos e as ardências exuberantes dos bravos homens do norte.

Fidalgo e acolhedor nas franquias largas de sua hospitalidade, mas severo e intransigente nos seus julgamentos implacáveis; pacífico e tolerante nos seus propósitos de concórdia e harmonia, mas destemeroso e inflexível nos seus ímpetos de rebelião e de cólera; jovial e prazenteiro nas suas raras expansões de ociosidade, mas concentrado e pertinaz na infatigável constância de seu fecundo labor; resoluto e bravo nos entreveres da luta, mas indulgente e generoso na nobreza das reconciliações; simples e modesto no reconhecimento de seus insuficientes predicados, mas altivo e desassombrado na afirmação consciente de sua indômita afeição à terra natal; compreensivo e conciliador nas desinteligências e discórdias, mas extremado e irredutível na defesa de seus sagrados direitos; despretensioso e humilde na limitação de seu diminuto quadro territorial, mas exaltado e ufano na plena consciência de suas vibrações cívicas de acendrado amor ao Brasil, eis o espírito-santense que parece retratar, como um símbolo, as deficiências e grandezas, as imperfeições e virtudes de todos os brasileiros situados nos mais distantes rincões da Pátria.

Compreende-se, pois, Snr. Presidente, a atmosfera de paz e tranqüilidade com que, no Espírito Santo, cessada a procela da ardorosa luta eleitoral que ali campeou, sustentada com bravura e desenvolvida sem excessos, ferida com galhardia e encerrada sem ódios irreconciliáveis, representantes da quase unanimidade dos partidos políticos se congraçaram num só pensamento e se confundiram no mesmo e nobre propósito de trabalhar, afanosamente, no sentido de dotar o nosso Estado de uma Constituição que refletisse, em suas linhas mestras, as justas aspirações do povo capixaba e as diretrizes supremas de sua legítima vocação democrática. Esquecidos os ressentimentos e desfeitas as divergências, foi sob esta alta inspiração de sadio patriotismo que os nobres deputados da Assembleia Constituinte Estadual concluíram a sua magna tarefa de complementação constitucional do Espírito Santo, resgatando, perante o altivo eleitorado capixaba, os seus solenes compromissos de bem servir a causa pública. Rendo por isso, aqui, das culminâncias desta tribuna, as minhas sinceras e respeitosas homenagens a todos os dignos constituintes do Espírito Santo pelo seu benemérito labor, lúcido espírito de compreensão e infatigável devotamento às aspirações coletivas da nossa gente, com os votos ardentes por que continuem, doravante, no mesmo ambiente de harmonia e concórdia, integrados com o ilustre e operoso Governador Carlos Monteiro Lindenberg, na excelsa tarefa de conferir ao Espírito Santo a legislação adequada e precisa, oportuna e fiel, capaz de assegurar-lhe a ordem, construir-lhe a grandeza e corresponder, assim, aos anseios de seu radioso porvir.

Nenhuma homenagem, porém, poderia ser mais grata aos corações de todos os espírito-santenses nesta oportunidade em que prestamos o nosso tributo de admiração, confiança e respeito, pela solenidade daquela Promulgação, do que rememorar, aqui, as palavras candentes e desassombradas que um grande parlamentar capixaba, o saudoso e inesquecível Senador Moniz Freire proferiu, em agosto de 1913, neste mesmo e augusto recinto, cauterizando os vícios do regime e revelando, aos olhos da Nação, o cortejo abominável de crimes e prevaricações que campeava na época, como um estendal de corrupção, por todo o solo pátrio, e aproveitando o ensejo para preconizar, em substancioso projeto, o remédio heroico para aqueles males com a instituição do voto secreto destinado, em suas esperanças, a salvar e proteger a liberdade política do Brasil.

Permiti, pois, Snr. Presidente e nobres Senadores, que recorde agora aqueles incisivos conceitos, sepultados de há muito nos arquivos desta Casa, para deles recolhermos um exemplo e auferirmos os proveitos de salutar lição.

Assim falava o insigne Senador capixaba:

Desde as capitanias até os sertões, é uma máxima largamente admitida que ter nas mãos o poder é realmente poder tudo. A impunidade que cobre quase sempre os atentados mais hediondos dos agentes da força pública, quando cometidos no interesse dos dominadores, tem abolido uma por uma todas as garantias constitucionais, até a da vida e da propriedade. Para satisfazer os apetites de um monstro qualquer, investido de superior comando, mata-se, espolia-se, sem cerimônias, sem fórmulas e sem piedade.

A justiça, a quem cumpre velar por aquelas garantias, dar-lhe proteção e perseguir os seus violadores, está quase por toda a parte subalternizada, e entregue às mãos fiéis dos que não discutem os altos desígnios; onde há uma consciência altiva que recalcitra, intervém logo a carranca do mandonismo, removendo-o, preterindo-o, suspendendo-lhe o pagamento dos ordenados, e por último suprimindo-lhe a comarca ou processando-o. Para se manterem na posse das suas posições, os dominadores não têm por vezes recuado de violências e crimes inauditos, quando não bastam os aparelhos formidáveis de compressão e de corrupção, dos quais, mesmo os mais escrupulosos e os mais sãos, só tem que tocar o dedo à mola geradora para obter os mais amplos efeitos. Eliminação e estrangulamento das oposições pelo terror sistemático, pelo assassinato, pelo fuzilamento, pela crua perseguição aos lares, pela redução à miséria, pela impunidade ou acoroçoamento dos bandidos, pela caça ao pão do adversário, pela parcialidade tendenciosa, no lançamento e na arrecadação dos impostos, pela ação criminal, pelo banimento mal disfarçado, pela destruição dos jornais, pelo ataque aos seus redatores e suas famílias – são processos que forneceriam uma vasta biblioteca, se alguém se propusesse a escrever a narrativa detalhada dos infinitos fatos que os tem ilustrado.”

Snr. Presidente, ao ecoarem de novo neste nobre cenário, revividas pela minha voz inexpressiva, as palavras causticantes e ásperas daquele grande e saudoso parlamentar, sentimos dentro em nós, como imperativo de consciência, os generosos impulsos de copiar-lhe o exemplo nos seus patrióticos desvelos de vigilante defesa dos ideais republicanos e de livre e sincera submissão ao seu império.

Mais do que isso, porém, devemos retirar daqueles austeros conceitos uma sábia lição, ao comparar o panorama atual na esfera política com o quadro de mistificação e violências que mareava os medrosos e vacilantes ensaios dos primeiros passos da República.

É possível que daquele esboço espantoso de uma época ainda restem, na imensidão infinita da Pátria, alguns traços isolados e de todo não esmaecidos. Mas não pode restar dúvida de que eles se diluíram no tempo, apagados pelo nítido sentido evolucionista da consciência jurídica de um povo forte e altivo, que cada vez mais se agiganta nas afirmações positivas de seu progresso e de sua civilização. E neste momento de apreensões e intranquilidade, em que tantas vozes pessimistas se levantam para condenar as deficiências do regime e traduzir os receios de iminente naufrágio das nossas instituições democráticas, conforta-nos aquela comparação de dois períodos republicanos tão perto de nós e já tão afastados na distância, porque dela ressalta, de forma absoluta, a segura convicção do muito que havemos caminhado pela estrada larga e ensolarada da nossa evolução social e política.

E isto deve robustecer a nossa Fé. E cimentar a nossa indestrutível confiança nos supremos destinos da Pátria que pode, às vezes, titubear e retroagir, nas indecisões efêmeras de alguns períodos, mas sabe sempre, pelo próprio imperativo desbravador do gênio de sua raça, recobrar energias, vencer obstáculos e acelerar o passo, nas fases de ressurgimentos históricos, pelos ínvios caminhos de seu progresso material e espiritual, para a glória e para a Eternidade.

[Extraído do livro A serviço do Espírito Santo, discursos, de Jones dos Santos Neves, Vitória, 1954.]

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Jones dos Santos Neves graduou-se em Farmácia no Rio de Janeiro e, de volta a Vitória, casou-se, em 1925, com Alda Hithchings Magalhães, tornando-se sócio da firma G. Roubach & Cia, juntamente com Arnaldo Magalhães, seu sogro, e Gastão Roubach. A convite de interventor João Punaro Bley, em 1938 funda e dirige, juntamente com Mário Aristides Freire, o Banco de Crédito Agrícola (depois Banestes), tendo depois disso seu nome indicado juntamente com o de outros dois, para a sucessão na interventoria. Foi então escolhido por Getúlio Vargas como novo interventor, cargo em que permaneceu de 1943 a 1945. Em 1954 retomou seu trabalho no banco, chegando à presidência, sendo, em 1950, eleito  governador do estado. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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