Navegação no Rio Doce, dezembro de 1815. Aquarela de autoria do príncipe  Maximilian Von Wied.  (Oferecida ao Instituto pelo sócio cor...

Informação que Francisco Manoel da Cunha deu sobre a província, então capitania, do Espírito Santo, ao ministro de Estado Antônio de Araújo Azevedo, 23/6/1811.

Navegação no Rio Doce, dezembro de 1815. Aquarela de autoria do príncipe  Maximilian Von Wied.
Navegação no Rio Doce, dezembro de 1815. Aquarela de autoria do príncipe  Maximilian Von Wied. 

(Oferecida ao Instituto pelo sócio correspondente,
o senhor Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva)


Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor — Pesar as forças respectivas dos Estados, discutir os interesses dos soberanos, estudar suas pretensões, observar suas rivalidades, peneirando através do véu que encobre a política dos gabinetes, possuir a fundo os costumes, o caráter, o gênio das nações, os talentos e a capacidade dos particulares distinguidos em cada estado, e decidir sabiamente num golpe de vista infalível, das finanças, da guerra, da marinha, da história, justiça, religião, prerrogativas e direitos do soberano; eis aqui, Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor, os sinais característicos, que distinguem a Vossa Excelência, e o justo elogio, que lhe consagram todos aqueles que amam o estado e a nação.

Certificado pois pela experiência nestes princípios, tenho a honra de apresentar a Vossa Excelência uma verdadeira pintura da capitania do Espírito Santo, cujo quadro mostra a origem do rio Doce, onde Vossa Excelência observará os principais obstáculos que dificultam a intentada navegação daquele rio, que seria de grande utilidade para as províncias da Bahia e Minas Gerais se a mesma navegação tivesse o desejado êxito.

O rio Piranga e São José do Sipotó, o ribeirão do Carmo, que passa pela cidade de Mariana, e que ambos fazem barra no lugar denominado Matias Barbosa, são os progenitores do rio Doce: alguns pequenos córregos e regatos assoberbam o curso deste rio até o de Antônio Dias, donde descem as canoas. Não me esquece dizer, Excelentíssimo Senhor, que existem várias cachoeiras impraticáveis antes de chegar a este arraial. Cinco léguas distante do porto de Antônio Dias vê-se a primeira cachoeira, denominada Alegre; oito léguas mais abaixo descobre-se a chamada Escura; aqui, o rio de Santo Antônio dos Ferros (inavegável) vem depositar as águas. Daí a dez léguas aparecem as duas cachoeiras de Bagari: nesta posição, os rios dos Bugres e da Corrente baralham-se com o rio Doce. Na distância de oito léguas acham-se os rochedos de Bituruna, e defronte destes penedos vem desaguar o rio Suçuí[ 1 ] Grande, tendo pouco mais acima desembocado igualmente o rio Suçuí Pequeno. Três léguas depois o ávido mineiro encontra a cachoeira da Figueira, avançando mais oito léguas observa a do Sapê, e dali a sete a do Cuité; aqui entra o rio do mesmo nome. Viajando-se mais quatro léguas acha-se a cachoeira do Eme, e três léguas avante está a conhecida pelo nome do Inferno.

O rio Manhuaçu[ 2 ] alonga-se outras tantas léguas desta última cachoeira; ali está o quartel de Lorena, e navegando-se quase uma légua encontra-se a ilha da Natividade, donde principiam os pedregulhos conhecidos pelo nome de Escadinhas, que se dilatam até o rio Guandu, nas circunvizinhanças do porto de Souza, extrema das capitanias de Minas Gerais e Espírito Santo. Tais são, Excelentíssimo Senhor, os grandes obstáculos confessados pelos mesmos mineiros desde a vez primeira que se comunicaram com os capitanienses por aquele rio, que dificultam, como já disse, a sua freqüente navegação; mas obstáculos que foram tão facilmente removidos pelo atual governador da capitania do Espírito Santo, Manoel Vieira de Albuquerque e Tovar, na ligeira e curta viagem que fez por aquele rio; cuja execução ainda se não viu, nem tão pouco a chegada das canoas de Minas, que ali se esperavam dentro de oito dias, com gêneros permutáveis, como dizia o mesmo governador em um ofício, que nesta corte, logo que chegou da sua viagem, dirigiu ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor conde de Linhares.

A navegação do porto do Souza até a barra é mais cômoda, por se não encontrar tantos penedos; mas o fundo do canal é sempre desigual. Cento e quarenta ilhas, desde o lugar do Cascalho até o quartel da Regência Augusta, dividem este rio como em dois, cuja corrente é assaz extraordinária. A sua largura, desde a foz ate o já dito lugar do Cascalho, é quase sempre de um quarto de légua, e cheia de grande bancos de areia, tanto da parte do norte, como do sul. A barra não é estável: umas vezes tem dez a treze palmos, outras vezes sete, cinco, etc. Não há ali um surgidouro capaz de ancorar qualquer embarcação, e para escapar à rapidez da corrente é necessário segurar-se com cabos em terra. A entrada da barra é dificultosa e de grande perigo: esta entrada só com vento feito pode ser feliz, pois nada mais é capaz de vencer a aluvião de tantos rios combinados em um só ponto. Os baixos de um e outro lado impossibilitam as embarcações poderem bordejar, e se quisessem prosseguir a viagem pelo rio acima, não poderiam surmontar[ 3 ] pelas diferentes direções do canal, que ora demanda ao norte e noroeste, ora a oeste o sudoeste, e seriam necessários muitos ventos favoráveis a um mesmo tempo, para que as embarcações evitassem seu naufrágio.

Da barra do rio Doce, onde está o quartel da Regência Augusta, marchando-se pela praia na longitude de três léguas, está o quartel chamado dos Comboios, retirado da mesma praia um quarto de légua: aqui passa o rio ou, para melhor dizer, a lagoa do Campo, e se formos a combinar o tempo que se gasta daí ao lugar do Riacho, seja embarcado por esse pântano, ou vindo pela praia, a viagem sempre é igual. Ainda me recordo, que toda essa praia, desde o rio Doce até o dito sitio do Riacho (onde está um quartel já desamparado), é insuportável; a sua extensão é de sete léguas. A lagoa do Campo dista deste lugar para o oeste poucas horas de jornada, tanto por terra, como pelo mesmo rio, que lá vai ter.

Saindo do Riacho, e andando-se três léguas, está a Aldeia Velha: o rio neste lugar admite em si bergantins,[ 4 ] que muitas vezes têm ido carregar madeiras de que ricamente abundam as suas matas. Cinco ou seis horas de viagem pelo rio acima, a oeste-noroeste, está o destacamento de Piraqueaçu,[ 5 ] composto unicamente de índios; e mais abaixo, por um braço do mesmo rio que demanda ao sul, vê-se o lugar denominado Piraquê-Mirim, onde há pouco sucedeu a catástrofe horrível, da qual falarei na continuação desta Memória. A Aldeia Velha em si não merece atenção; algumas pequenas casas, e pela maior parte cobertas de palhas e alongadas umas das outras, formam a totalidade dessa chamada povoação, de um a outro lado do rio.

Vila Nova de Almeida dista da Aldeia Velha tantas léguas quantas achamos do Riacho à mesma Aldeia: esta vila nutria algum comércio antes da proibição da corte, venda e exportação das madeiras, cujo interdito foi posto pelo atual governador: os habitantes dela são todos índios, excetuando-se alguns europeus ali estabelecidos. Todas as casas são cobertas de palhas, as paredes de barro; e só o colégio, que foi dos proscritos jesuítas, e seis ou sete prédios dos portugueses já domiciliados, se vêem cobertos de telhas. O rio que dá ou tira seu nome da dita vila e que corre ao norte dela, é de nenhuma conseqüência, pois que só admite canoas e pequenas lanchas. O Senado da Câmara dessa vila e o capitão-mor são índios de nação; em uma palavra, Excelentíssimo Senhor, eu vejo ali a miséria como no seu foco paternal.

Agora temos de chegar à vila capital, que mora oito léguas ao sudoeste da de Almeida. Esta vila denominada da Vitória, está situada em uma espécie de ilha: o braço-de-mar, que forma o seu ancoradouro, segue o oeste por mais de légua e meia e, dirigindo-se para o norte e leste, torna a engolfar-se no mesmo mar: a largura desta ilha, de norte a sul, será pouco menos de duas léguas, e de leste a oeste a sua extensão não é regular. Nove igrejas e dois conventos de religiosos aparecem no meio desta vila, que se estende sobre uma colina à maneira de um anfiteatro: as casas não são belas; ali não há divertimentos, porque a pobreza da terra assim o permite. O comércio, que consiste em pequenas quantidades de açúcar, aguardente, café, milho, feijão, arroz e algodão, não é bastante para animar os seus habitantes, e as suas pequenas embarcações só navegam ao longo das costas limítrofes do Rio de Janeiro e Bahia, e raras vezes se atrevem a viajar para Pernambuco ou Rio Grande do Sul. A maior parte das mulheres, só seu exercício diário é fiarem o algodão, percebendo deste trabalho unicamente três ou quatro vinténs: a agricultura está como esquecida; não há um só negociante capaz de animar ali os diversos gêneros do comércio, ou seja em artigos europeus, asiáticos ou africanos, donde nasce a desgraça e comiseração daquele país, de tal sorte que, mesmo arruinando-se qualquer prédio, jamais o reedificam.

A barra desta vila está na distância de pouco mais de légua, e nesta extensão apenas aparecem dois pequenos fortes; o de São Francisco Xavier ou Piratininga na dita barra, e o de São João Dongado, pelo rio acima mais de três quartos de léguas; sobre o cimo do monte, em cuja fralda está este forte, ainda hoje existe uma pequena muralha que antigamente serviu de defesa aos holandeses.

O rio de Santa Maria, que deságua no braço-de-mar que forma o ancoradouro da vila da Vitória, é assaz belo; as suas margens são cobertas de fazendas, e as matas vizinhas compõem-se de preciosas madeiras. A sua navegação é feita por canoas, pois o canal não admite embarcações de maior porte. Se a nova estrada que de Minas Gerais se dirige pela serra dos Arrepiados, e que, segundo dizem, vai ter à capitania do Espírito Santo, por esse rio se efetuasse, seria esta comunicação de maior vantagem que a navegação do rio Doce, porque desembocando o dito rio quase légua e meia distante da vila, no lugar chamado Lameirão,[ 6 ] seriam facilmente exportados os gêneros de Minas, importados diretamente na vila da Vitória.

Pouco acima do forte dito de São Francisco Xavier da Barra está a vila do Espírito Santo, a primeira que houve naquela capitania; quarenta casas pouco mais ou menos, e pela maior parte cobertas de palhas, compõem essa povoação. Ainda ali se vêem os alicerces de uma pequena alfândega, estabelecida logo depois da descoberta da mesma capitania, e que desapareceu, bem como a antiga navegação, que ela nutria diretamente com a Europa e África, de que hoje não há a mais ligeira sombra.

Desta vila segue a estrada que vai ter à vila de Guarapari,[ 7 ] ao sul desta outra; Guarapari tem um porto capaz de ancorar embarcações sem o menor perigo; esta vila não é grande, e entretanto tem todas as comodidades possíveis para o comércio, e os mesmos gêneros que se exportam da vila da Vitória, aí mesmo se acham; além disto as madeiras são mais abundantes. Duas igrejas há nesta vila: e a inércia dos seus habitantes equilibra com a dos de toda a capitania. As águas potáveis não são boas, mas o terreno é fértil. Esquecia-me dizer a Vossa Excelência, que vindo da vila do Espírito Santo para esta, não se encontram rios memoráveis; porque uma légua distante da primeira vê-se o rio Jucu,[ 8 ] cuja barra é só capaz de receber canoas; duas léguas antes de chegar a esta última vila encontra-se o rio de Una; e um quarto depois o de Perocão, todos semelhantes ao de Jucu.

De Guarapari à vila de Benevente[ 9 ] há seis léguas: esta vila demora ao sul; o seu porto fica no fundo de uma larga enseada que o mar ali forma, semelhante a uma grande bacia, e que tem bastante água para nadarem bergatins de maior porte, como por vezes já têm ancorado aí mesmo, tanto embarcações nacionais como estrangeiras. Aqui fabricam-se sumacas etc. As madeiras são muitas: os gêneros comerciais são os mesmos que os de Guarapari, e uma só igreja (o colégio dos jesuítas) existe nesta pequena vila. Todavia a pobreza aqui grandemente em sua extensão também aparece. O rio conhecido pelo nome de Aldeia, e que vem banhar o lado meridional da dita vila, é navegável pelo sertão até a última das fazendas situadas pelas suas margens. Duas léguas, seguindo sempre a direção do sul e distantes de Benevente está o rio Piúma, em tudo igual ao de Jucu. Marchando-se pouco mais de légua, chega-se ao grande monte do Agá, uma das balizas dos navegantes para aquela capitania; nas fraldas deste monte está a melhor água de toda a costa meridional. Daí a pouco mais de cinco léguas acha-se o rio Itapemirim, que dá o seu nome à povoação, que dista da barra meia légua; este rio algumas vezes admite grandes lanchas. É muito digno de notar-se, que ficando a vila do Guarapari ao norte da de Benevente, seja esta povoação sujeita às justiças da primeira vila. O terreno de Itapemirim não deixa de ser fértil: a povoação deste nome é assaz pequena, e sua única igreja, por muito velha, é digna de ser mencionada.

Seguindo pela praia, e passando através das barreiras do Ciri, toca-se em Itabapoana, último lugar da capitania do Espírito Santo. O rio de Itabapoana é só navegável algumas vezes para pequenas lanchas, e sempre para canoas: aqui nada vejo que mereça atenção. Neste porto, cuja população é composta de oito casas cobertas de palhas, existe um quartel onde estão destacados um cabo e quatro soldados da companhia de linha, a única que há na vila capital da Vitória; e, tanto em Itapmirim e Benevente, como em Guarapari, acham-se outros semelhantes destacamentos. Recordo-me que desde o rio Doce até Itabapoana a estrada é sempre pela costa do mar, e raras vezes dela se aparta.

Tendo dado esta pequena exposição sobre a capitania do Espírito Santo, permita-me Vossa Excelência tratar ainda da guerra que se mandou fazer contra o gentio botocudo, estacionado pelos sertões daquele país. Esta guerra não teve o êxito que se esperava. Algumas divisões, que entravam após do Botocudo, voltavam em dois ou três dias sem nada fazerem: as estradas novamente abertas em alguns lugares do sertão daquela capitania, e chamadas intermédias pelo governador atual, tão-somente servem de conduzir o gentio como pela mão aos lugares já povoados. Uma destas estradas, que vai sair no Piraquê-Mirim, lugar onde os índios domesticados laboram a terra, foi a causa de serem atassalhados[ 10 ] alguns dos mesmos indígenas ali domiciliados. O chefe de uma das ditas divisões, de nome Miguel da Silva, índio de nação, marchando por uma das estradas intermédias, que, do Piraqueaçu, correndo pelas cabeceiras da lagoa do Campo, vai ter ao rio Doce, defronte do quartel de Contins, hoje Linhares, este comandante foi sempre atacado na sua retaguarda pelos bárbaros; e certamente lhe fariam alguma emboscada se ele não recebesse algum socorro de Linhares.

A maior parte da freguesia da Serra tem sido infestada por tais selvagens, que tem chegado até Carapina, lugar que dista duas léguas da vila capital, e cujos habitantes se acham refugiados nela. O rio de Santa Maria igualmente foi vítima da sua ferocidade: eles aí postejaram uma mulher ainda viva, devorando-a, depois de haverem cometido outros atentados; e as providências que deram foram quase nenhumas. Certamente a horda botocuda estaria submetida, Excelentíssimo senhor, se as tribos Tatavó e Manaxó fossem atraídas pela doçura e amizade. É assim que Lombard e Ramette se fizeram amados dos índios galibis: é assim que Champelain, remontando o rio de São Lourenço, adoçou os costumes dos Algonquins, dos Huronnes, e dos Iroqueses; mas infelizmente esta tática é desconhecida do governador atual da capitania do Espírito Santo. Tal é o estado presente daquela capitania.

Eu me contemplaria importuno se avançasse mais na minha narração; e, confundido no meu próprio nada, espero que Vossa Excelência desculpará os erros da presente Memória. Conheço que tenho a honra de falar diante de uma pessoa que pertence à ordem das inteligências destinadas a manejar as molas dos Estados. Entretanto queira Vossa Excelência receber o pequeno serviço da minha gratidão, e a certeza de que sou com o mais profundo respeito. De Vossa Excelência, o mais reverente servo, obrigado e criado, Francisco Manoel da Cunha. Rio de Janeiro, em 23 de junho de 1811. — Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Antônio de Araújo e Azevedo, conselheiro de Estado de Sua Majestade.

[Informação publicada na Revista do IHGB, 1842, tomo IV, p. 240-247.]

Transcrição e notas: Maria Clara Medeiros Santos Neves

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NOTAS


[ 1 ] No original, Sussuy.
[ 2 ] No original Manassú.
[ 3 ] Ultrapassar.
[ 4 ] Veleiro armado com dois mastros com velas latinas triangulares. [Dicionário Houaiss]
[ 5 ] No original Piraqui-Assu.
[ 6 ] No original, Lamarão.
[ 7 ] No original, Guaraparin.
[ 8 ] No original, Jecu.
[ 9 ] Hoje Anchieta.
[ 10 ] .Dizimados.

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