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5/25/2016
(Oferecida ao Instituto pelo sócio correspondente,
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor — Pesar as forças respectivas dos Estados, discutir os interesses dos soberanos, estudar suas pretensões, observar suas rivalidades, peneirando através do véu que encobre a política dos gabinetes, possuir a fundo os costumes, o caráter, o gênio das nações, os talentos e a capacidade dos particulares distinguidos em cada estado, e decidir sabiamente num golpe de vista infalível, das finanças, da guerra, da marinha, da história, justiça, religião, prerrogativas e direitos do soberano; eis aqui, Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor, os sinais característicos, que distinguem a Vossa Excelência, e o justo elogio, que lhe consagram todos aqueles que amam o estado e a nação.
Certificado pois pela experiência nestes princípios, tenho a honra de apresentar a Vossa Excelência uma verdadeira pintura da capitania do Espírito Santo, cujo quadro mostra a origem do rio Doce, onde Vossa Excelência observará os principais obstáculos que dificultam a intentada navegação daquele rio, que seria de grande utilidade para as províncias da Bahia e Minas Gerais se a mesma navegação tivesse o desejado êxito.
O rio Piranga e São José do Sipotó, o ribeirão do Carmo, que passa pela cidade de Mariana, e que ambos fazem barra no lugar denominado Matias Barbosa, são os progenitores do rio Doce: alguns pequenos córregos e regatos assoberbam o curso deste rio até o de Antônio Dias, donde descem as canoas. Não me esquece dizer, Excelentíssimo Senhor, que existem várias cachoeiras impraticáveis antes de chegar a este arraial. Cinco léguas distante do porto de Antônio Dias vê-se a primeira cachoeira, denominada Alegre; oito léguas mais abaixo descobre-se a chamada Escura; aqui, o rio de Santo Antônio dos Ferros (inavegável) vem depositar as águas. Daí a dez léguas aparecem as duas cachoeiras de Bagari: nesta posição, os rios dos Bugres e da Corrente baralham-se com o rio Doce. Na distância de oito léguas acham-se os rochedos de Bituruna, e defronte destes penedos vem desaguar o rio Suçuí[ 1 ] Grande, tendo pouco mais acima desembocado igualmente o rio Suçuí Pequeno. Três léguas depois o ávido mineiro encontra a cachoeira da Figueira, avançando mais oito léguas observa a do Sapê, e dali a sete a do Cuité; aqui entra o rio do mesmo nome. Viajando-se mais quatro léguas acha-se a cachoeira do Eme, e três léguas avante está a conhecida pelo nome do Inferno.
O rio Manhuaçu[ 2 ] alonga-se outras tantas léguas desta última cachoeira; ali está o quartel de Lorena, e navegando-se quase uma légua encontra-se a ilha da Natividade, donde principiam os pedregulhos conhecidos pelo nome de Escadinhas, que se dilatam até o rio Guandu, nas circunvizinhanças do porto de Souza, extrema das capitanias de Minas Gerais e Espírito Santo. Tais são, Excelentíssimo Senhor, os grandes obstáculos confessados pelos mesmos mineiros desde a vez primeira que se comunicaram com os capitanienses por aquele rio, que dificultam, como já disse, a sua freqüente navegação; mas obstáculos que foram tão facilmente removidos pelo atual governador da capitania do Espírito Santo, Manoel Vieira de Albuquerque e Tovar, na ligeira e curta viagem que fez por aquele rio; cuja execução ainda se não viu, nem tão pouco a chegada das canoas de Minas, que ali se esperavam dentro de oito dias, com gêneros permutáveis, como dizia o mesmo governador em um ofício, que nesta corte, logo que chegou da sua viagem, dirigiu ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor conde de Linhares.
A navegação do porto do Souza até a barra é mais cômoda, por se não encontrar tantos penedos; mas o fundo do canal é sempre desigual. Cento e quarenta ilhas, desde o lugar do Cascalho até o quartel da Regência Augusta, dividem este rio como em dois, cuja corrente é assaz extraordinária. A sua largura, desde a foz ate o já dito lugar do Cascalho, é quase sempre de um quarto de légua, e cheia de grande bancos de areia, tanto da parte do norte, como do sul. A barra não é estável: umas vezes tem dez a treze palmos, outras vezes sete, cinco, etc. Não há ali um surgidouro capaz de ancorar qualquer embarcação, e para escapar à rapidez da corrente é necessário segurar-se com cabos em terra. A entrada da barra é dificultosa e de grande perigo: esta entrada só com vento feito pode ser feliz, pois nada mais é capaz de vencer a aluvião de tantos rios combinados em um só ponto. Os baixos de um e outro lado impossibilitam as embarcações poderem bordejar, e se quisessem prosseguir a viagem pelo rio acima, não poderiam surmontar[ 3 ] pelas diferentes direções do canal, que ora demanda ao norte e noroeste, ora a oeste o sudoeste, e seriam necessários muitos ventos favoráveis a um mesmo tempo, para que as embarcações evitassem seu naufrágio.
Da barra do rio Doce, onde está o quartel da Regência Augusta, marchando-se pela praia na longitude de três léguas, está o quartel chamado dos Comboios, retirado da mesma praia um quarto de légua: aqui passa o rio ou, para melhor dizer, a lagoa do Campo, e se formos a combinar o tempo que se gasta daí ao lugar do Riacho, seja embarcado por esse pântano, ou vindo pela praia, a viagem sempre é igual. Ainda me recordo, que toda essa praia, desde o rio Doce até o dito sitio do Riacho (onde está um quartel já desamparado), é insuportável; a sua extensão é de sete léguas. A lagoa do Campo dista deste lugar para o oeste poucas horas de jornada, tanto por terra, como pelo mesmo rio, que lá vai ter.
Saindo do Riacho, e andando-se três léguas, está a Aldeia Velha: o rio neste lugar admite em si bergantins,[ 4 ] que muitas vezes têm ido carregar madeiras de que ricamente abundam as suas matas. Cinco ou seis horas de viagem pelo rio acima, a oeste-noroeste, está o destacamento de Piraqueaçu,[ 5 ] composto unicamente de índios; e mais abaixo, por um braço do mesmo rio que demanda ao sul, vê-se o lugar denominado Piraquê-Mirim, onde há pouco sucedeu a catástrofe horrível, da qual falarei na continuação desta Memória. A Aldeia Velha em si não merece atenção; algumas pequenas casas, e pela maior parte cobertas de palhas e alongadas umas das outras, formam a totalidade dessa chamada povoação, de um a outro lado do rio.
Vila Nova de Almeida dista da Aldeia Velha tantas léguas quantas achamos do Riacho à mesma Aldeia: esta vila nutria algum comércio antes da proibição da corte, venda e exportação das madeiras, cujo interdito foi posto pelo atual governador: os habitantes dela são todos índios, excetuando-se alguns europeus ali estabelecidos. Todas as casas são cobertas de palhas, as paredes de barro; e só o colégio, que foi dos proscritos jesuítas, e seis ou sete prédios dos portugueses já domiciliados, se vêem cobertos de telhas. O rio que dá ou tira seu nome da dita vila e que corre ao norte dela, é de nenhuma conseqüência, pois que só admite canoas e pequenas lanchas. O Senado da Câmara dessa vila e o capitão-mor são índios de nação; em uma palavra, Excelentíssimo Senhor, eu vejo ali a miséria como no seu foco paternal.
Agora temos de chegar à vila capital, que mora oito léguas ao sudoeste da de Almeida. Esta vila denominada da Vitória, está situada em uma espécie de ilha: o braço-de-mar, que forma o seu ancoradouro, segue o oeste por mais de légua e meia e, dirigindo-se para o norte e leste, torna a engolfar-se no mesmo mar: a largura desta ilha, de norte a sul, será pouco menos de duas léguas, e de leste a oeste a sua extensão não é regular. Nove igrejas e dois conventos de religiosos aparecem no meio desta vila, que se estende sobre uma colina à maneira de um anfiteatro: as casas não são belas; ali não há divertimentos, porque a pobreza da terra assim o permite. O comércio, que consiste em pequenas quantidades de açúcar, aguardente, café, milho, feijão, arroz e algodão, não é bastante para animar os seus habitantes, e as suas pequenas embarcações só navegam ao longo das costas limítrofes do Rio de Janeiro e Bahia, e raras vezes se atrevem a viajar para Pernambuco ou Rio Grande do Sul. A maior parte das mulheres, só seu exercício diário é fiarem o algodão, percebendo deste trabalho unicamente três ou quatro vinténs: a agricultura está como esquecida; não há um só negociante capaz de animar ali os diversos gêneros do comércio, ou seja em artigos europeus, asiáticos ou africanos, donde nasce a desgraça e comiseração daquele país, de tal sorte que, mesmo arruinando-se qualquer prédio, jamais o reedificam.
A barra desta vila está na distância de pouco mais de légua, e nesta extensão apenas aparecem dois pequenos fortes; o de São Francisco Xavier ou Piratininga na dita barra, e o de São João Dongado, pelo rio acima mais de três quartos de léguas; sobre o cimo do monte, em cuja fralda está este forte, ainda hoje existe uma pequena muralha que antigamente serviu de defesa aos holandeses.
O rio de Santa Maria, que deságua no braço-de-mar que forma o ancoradouro da vila da Vitória, é assaz belo; as suas margens são cobertas de fazendas, e as matas vizinhas compõem-se de preciosas madeiras. A sua navegação é feita por canoas, pois o canal não admite embarcações de maior porte. Se a nova estrada que de Minas Gerais se dirige pela serra dos Arrepiados, e que, segundo dizem, vai ter à capitania do Espírito Santo, por esse rio se efetuasse, seria esta comunicação de maior vantagem que a navegação do rio Doce, porque desembocando o dito rio quase légua e meia distante da vila, no lugar chamado Lameirão,[ 6 ] seriam facilmente exportados os gêneros de Minas, importados diretamente na vila da Vitória.
Pouco acima do forte dito de São Francisco Xavier da Barra está a vila do Espírito Santo, a primeira que houve naquela capitania; quarenta casas pouco mais ou menos, e pela maior parte cobertas de palhas, compõem essa povoação. Ainda ali se vêem os alicerces de uma pequena alfândega, estabelecida logo depois da descoberta da mesma capitania, e que desapareceu, bem como a antiga navegação, que ela nutria diretamente com a Europa e África, de que hoje não há a mais ligeira sombra.
Desta vila segue a estrada que vai ter à vila de Guarapari,[ 7 ] ao sul desta outra; Guarapari tem um porto capaz de ancorar embarcações sem o menor perigo; esta vila não é grande, e entretanto tem todas as comodidades possíveis para o comércio, e os mesmos gêneros que se exportam da vila da Vitória, aí mesmo se acham; além disto as madeiras são mais abundantes. Duas igrejas há nesta vila: e a inércia dos seus habitantes equilibra com a dos de toda a capitania. As águas potáveis não são boas, mas o terreno é fértil. Esquecia-me dizer a Vossa Excelência, que vindo da vila do Espírito Santo para esta, não se encontram rios memoráveis; porque uma légua distante da primeira vê-se o rio Jucu,[ 8 ] cuja barra é só capaz de receber canoas; duas léguas antes de chegar a esta última vila encontra-se o rio de Una; e um quarto depois o de Perocão, todos semelhantes ao de Jucu.
De Guarapari à vila de Benevente[ 9 ] há seis léguas: esta vila demora ao sul; o seu porto fica no fundo de uma larga enseada que o mar ali forma, semelhante a uma grande bacia, e que tem bastante água para nadarem bergatins de maior porte, como por vezes já têm ancorado aí mesmo, tanto embarcações nacionais como estrangeiras. Aqui fabricam-se sumacas etc. As madeiras são muitas: os gêneros comerciais são os mesmos que os de Guarapari, e uma só igreja (o colégio dos jesuítas) existe nesta pequena vila. Todavia a pobreza aqui grandemente em sua extensão também aparece. O rio conhecido pelo nome de Aldeia, e que vem banhar o lado meridional da dita vila, é navegável pelo sertão até a última das fazendas situadas pelas suas margens. Duas léguas, seguindo sempre a direção do sul e distantes de Benevente está o rio Piúma, em tudo igual ao de Jucu. Marchando-se pouco mais de légua, chega-se ao grande monte do Agá, uma das balizas dos navegantes para aquela capitania; nas fraldas deste monte está a melhor água de toda a costa meridional. Daí a pouco mais de cinco léguas acha-se o rio Itapemirim, que dá o seu nome à povoação, que dista da barra meia légua; este rio algumas vezes admite grandes lanchas. É muito digno de notar-se, que ficando a vila do Guarapari ao norte da de Benevente, seja esta povoação sujeita às justiças da primeira vila. O terreno de Itapemirim não deixa de ser fértil: a povoação deste nome é assaz pequena, e sua única igreja, por muito velha, é digna de ser mencionada.
Seguindo pela praia, e passando através das barreiras do Ciri, toca-se em Itabapoana, último lugar da capitania do Espírito Santo. O rio de Itabapoana é só navegável algumas vezes para pequenas lanchas, e sempre para canoas: aqui nada vejo que mereça atenção. Neste porto, cuja população é composta de oito casas cobertas de palhas, existe um quartel onde estão destacados um cabo e quatro soldados da companhia de linha, a única que há na vila capital da Vitória; e, tanto em Itapmirim e Benevente, como em Guarapari, acham-se outros semelhantes destacamentos. Recordo-me que desde o rio Doce até Itabapoana a estrada é sempre pela costa do mar, e raras vezes dela se aparta.
Tendo dado esta pequena exposição sobre a capitania do Espírito Santo, permita-me Vossa Excelência tratar ainda da guerra que se mandou fazer contra o gentio botocudo, estacionado pelos sertões daquele país. Esta guerra não teve o êxito que se esperava. Algumas divisões, que entravam após do Botocudo, voltavam em dois ou três dias sem nada fazerem: as estradas novamente abertas em alguns lugares do sertão daquela capitania, e chamadas intermédias pelo governador atual, tão-somente servem de conduzir o gentio como pela mão aos lugares já povoados. Uma destas estradas, que vai sair no Piraquê-Mirim, lugar onde os índios domesticados laboram a terra, foi a causa de serem atassalhados[ 10 ] alguns dos mesmos indígenas ali domiciliados. O chefe de uma das ditas divisões, de nome Miguel da Silva, índio de nação, marchando por uma das estradas intermédias, que, do Piraqueaçu, correndo pelas cabeceiras da lagoa do Campo, vai ter ao rio Doce, defronte do quartel de Contins, hoje Linhares, este comandante foi sempre atacado na sua retaguarda pelos bárbaros; e certamente lhe fariam alguma emboscada se ele não recebesse algum socorro de Linhares.
A maior parte da freguesia da Serra tem sido infestada por tais selvagens, que tem chegado até Carapina, lugar que dista duas léguas da vila capital, e cujos habitantes se acham refugiados nela. O rio de Santa Maria igualmente foi vítima da sua ferocidade: eles aí postejaram uma mulher ainda viva, devorando-a, depois de haverem cometido outros atentados; e as providências que deram foram quase nenhumas. Certamente a horda botocuda estaria submetida, Excelentíssimo senhor, se as tribos Tatavó e Manaxó fossem atraídas pela doçura e amizade. É assim que Lombard e Ramette se fizeram amados dos índios galibis: é assim que Champelain, remontando o rio de São Lourenço, adoçou os costumes dos Algonquins, dos Huronnes, e dos Iroqueses; mas infelizmente esta tática é desconhecida do governador atual da capitania do Espírito Santo. Tal é o estado presente daquela capitania.
Eu me contemplaria importuno se avançasse mais na minha narração; e, confundido no meu próprio nada, espero que Vossa Excelência desculpará os erros da presente Memória. Conheço que tenho a honra de falar diante de uma pessoa que pertence à ordem das inteligências destinadas a manejar as molas dos Estados. Entretanto queira Vossa Excelência receber o pequeno serviço da minha gratidão, e a certeza de que sou com o mais profundo respeito. De Vossa Excelência, o mais reverente servo, obrigado e criado, Francisco Manoel da Cunha. Rio de Janeiro, em 23 de junho de 1811. — Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Antônio de Araújo e Azevedo, conselheiro de Estado de Sua Majestade.
[Informação publicada na Revista do IHGB, 1842, tomo IV, p. 240-247.]
Transcrição e notas: Maria Clara Medeiros Santos Neves
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© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Navegação no Rio Doce, dezembro de 1815. Aquarela de autoria do príncipe Maximilian Von Wied. (Oferecida ao Instituto pelo sócio cor...
Informação que Francisco Manoel da Cunha deu sobre a província, então capitania, do Espírito Santo, ao ministro de Estado Antônio de Araújo Azevedo, 23/6/1811.
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Navegação no Rio Doce, dezembro de 1815. Aquarela de autoria do príncipe Maximilian Von Wied. |
(Oferecida ao Instituto pelo sócio correspondente,
o senhor Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva)
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor — Pesar as forças respectivas dos Estados, discutir os interesses dos soberanos, estudar suas pretensões, observar suas rivalidades, peneirando através do véu que encobre a política dos gabinetes, possuir a fundo os costumes, o caráter, o gênio das nações, os talentos e a capacidade dos particulares distinguidos em cada estado, e decidir sabiamente num golpe de vista infalível, das finanças, da guerra, da marinha, da história, justiça, religião, prerrogativas e direitos do soberano; eis aqui, Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor, os sinais característicos, que distinguem a Vossa Excelência, e o justo elogio, que lhe consagram todos aqueles que amam o estado e a nação.
Certificado pois pela experiência nestes princípios, tenho a honra de apresentar a Vossa Excelência uma verdadeira pintura da capitania do Espírito Santo, cujo quadro mostra a origem do rio Doce, onde Vossa Excelência observará os principais obstáculos que dificultam a intentada navegação daquele rio, que seria de grande utilidade para as províncias da Bahia e Minas Gerais se a mesma navegação tivesse o desejado êxito.
O rio Piranga e São José do Sipotó, o ribeirão do Carmo, que passa pela cidade de Mariana, e que ambos fazem barra no lugar denominado Matias Barbosa, são os progenitores do rio Doce: alguns pequenos córregos e regatos assoberbam o curso deste rio até o de Antônio Dias, donde descem as canoas. Não me esquece dizer, Excelentíssimo Senhor, que existem várias cachoeiras impraticáveis antes de chegar a este arraial. Cinco léguas distante do porto de Antônio Dias vê-se a primeira cachoeira, denominada Alegre; oito léguas mais abaixo descobre-se a chamada Escura; aqui, o rio de Santo Antônio dos Ferros (inavegável) vem depositar as águas. Daí a dez léguas aparecem as duas cachoeiras de Bagari: nesta posição, os rios dos Bugres e da Corrente baralham-se com o rio Doce. Na distância de oito léguas acham-se os rochedos de Bituruna, e defronte destes penedos vem desaguar o rio Suçuí[ 1 ] Grande, tendo pouco mais acima desembocado igualmente o rio Suçuí Pequeno. Três léguas depois o ávido mineiro encontra a cachoeira da Figueira, avançando mais oito léguas observa a do Sapê, e dali a sete a do Cuité; aqui entra o rio do mesmo nome. Viajando-se mais quatro léguas acha-se a cachoeira do Eme, e três léguas avante está a conhecida pelo nome do Inferno.
O rio Manhuaçu[ 2 ] alonga-se outras tantas léguas desta última cachoeira; ali está o quartel de Lorena, e navegando-se quase uma légua encontra-se a ilha da Natividade, donde principiam os pedregulhos conhecidos pelo nome de Escadinhas, que se dilatam até o rio Guandu, nas circunvizinhanças do porto de Souza, extrema das capitanias de Minas Gerais e Espírito Santo. Tais são, Excelentíssimo Senhor, os grandes obstáculos confessados pelos mesmos mineiros desde a vez primeira que se comunicaram com os capitanienses por aquele rio, que dificultam, como já disse, a sua freqüente navegação; mas obstáculos que foram tão facilmente removidos pelo atual governador da capitania do Espírito Santo, Manoel Vieira de Albuquerque e Tovar, na ligeira e curta viagem que fez por aquele rio; cuja execução ainda se não viu, nem tão pouco a chegada das canoas de Minas, que ali se esperavam dentro de oito dias, com gêneros permutáveis, como dizia o mesmo governador em um ofício, que nesta corte, logo que chegou da sua viagem, dirigiu ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor conde de Linhares.
A navegação do porto do Souza até a barra é mais cômoda, por se não encontrar tantos penedos; mas o fundo do canal é sempre desigual. Cento e quarenta ilhas, desde o lugar do Cascalho até o quartel da Regência Augusta, dividem este rio como em dois, cuja corrente é assaz extraordinária. A sua largura, desde a foz ate o já dito lugar do Cascalho, é quase sempre de um quarto de légua, e cheia de grande bancos de areia, tanto da parte do norte, como do sul. A barra não é estável: umas vezes tem dez a treze palmos, outras vezes sete, cinco, etc. Não há ali um surgidouro capaz de ancorar qualquer embarcação, e para escapar à rapidez da corrente é necessário segurar-se com cabos em terra. A entrada da barra é dificultosa e de grande perigo: esta entrada só com vento feito pode ser feliz, pois nada mais é capaz de vencer a aluvião de tantos rios combinados em um só ponto. Os baixos de um e outro lado impossibilitam as embarcações poderem bordejar, e se quisessem prosseguir a viagem pelo rio acima, não poderiam surmontar[ 3 ] pelas diferentes direções do canal, que ora demanda ao norte e noroeste, ora a oeste o sudoeste, e seriam necessários muitos ventos favoráveis a um mesmo tempo, para que as embarcações evitassem seu naufrágio.
Da barra do rio Doce, onde está o quartel da Regência Augusta, marchando-se pela praia na longitude de três léguas, está o quartel chamado dos Comboios, retirado da mesma praia um quarto de légua: aqui passa o rio ou, para melhor dizer, a lagoa do Campo, e se formos a combinar o tempo que se gasta daí ao lugar do Riacho, seja embarcado por esse pântano, ou vindo pela praia, a viagem sempre é igual. Ainda me recordo, que toda essa praia, desde o rio Doce até o dito sitio do Riacho (onde está um quartel já desamparado), é insuportável; a sua extensão é de sete léguas. A lagoa do Campo dista deste lugar para o oeste poucas horas de jornada, tanto por terra, como pelo mesmo rio, que lá vai ter.
Saindo do Riacho, e andando-se três léguas, está a Aldeia Velha: o rio neste lugar admite em si bergantins,[ 4 ] que muitas vezes têm ido carregar madeiras de que ricamente abundam as suas matas. Cinco ou seis horas de viagem pelo rio acima, a oeste-noroeste, está o destacamento de Piraqueaçu,[ 5 ] composto unicamente de índios; e mais abaixo, por um braço do mesmo rio que demanda ao sul, vê-se o lugar denominado Piraquê-Mirim, onde há pouco sucedeu a catástrofe horrível, da qual falarei na continuação desta Memória. A Aldeia Velha em si não merece atenção; algumas pequenas casas, e pela maior parte cobertas de palhas e alongadas umas das outras, formam a totalidade dessa chamada povoação, de um a outro lado do rio.
Vila Nova de Almeida dista da Aldeia Velha tantas léguas quantas achamos do Riacho à mesma Aldeia: esta vila nutria algum comércio antes da proibição da corte, venda e exportação das madeiras, cujo interdito foi posto pelo atual governador: os habitantes dela são todos índios, excetuando-se alguns europeus ali estabelecidos. Todas as casas são cobertas de palhas, as paredes de barro; e só o colégio, que foi dos proscritos jesuítas, e seis ou sete prédios dos portugueses já domiciliados, se vêem cobertos de telhas. O rio que dá ou tira seu nome da dita vila e que corre ao norte dela, é de nenhuma conseqüência, pois que só admite canoas e pequenas lanchas. O Senado da Câmara dessa vila e o capitão-mor são índios de nação; em uma palavra, Excelentíssimo Senhor, eu vejo ali a miséria como no seu foco paternal.
Agora temos de chegar à vila capital, que mora oito léguas ao sudoeste da de Almeida. Esta vila denominada da Vitória, está situada em uma espécie de ilha: o braço-de-mar, que forma o seu ancoradouro, segue o oeste por mais de légua e meia e, dirigindo-se para o norte e leste, torna a engolfar-se no mesmo mar: a largura desta ilha, de norte a sul, será pouco menos de duas léguas, e de leste a oeste a sua extensão não é regular. Nove igrejas e dois conventos de religiosos aparecem no meio desta vila, que se estende sobre uma colina à maneira de um anfiteatro: as casas não são belas; ali não há divertimentos, porque a pobreza da terra assim o permite. O comércio, que consiste em pequenas quantidades de açúcar, aguardente, café, milho, feijão, arroz e algodão, não é bastante para animar os seus habitantes, e as suas pequenas embarcações só navegam ao longo das costas limítrofes do Rio de Janeiro e Bahia, e raras vezes se atrevem a viajar para Pernambuco ou Rio Grande do Sul. A maior parte das mulheres, só seu exercício diário é fiarem o algodão, percebendo deste trabalho unicamente três ou quatro vinténs: a agricultura está como esquecida; não há um só negociante capaz de animar ali os diversos gêneros do comércio, ou seja em artigos europeus, asiáticos ou africanos, donde nasce a desgraça e comiseração daquele país, de tal sorte que, mesmo arruinando-se qualquer prédio, jamais o reedificam.
A barra desta vila está na distância de pouco mais de légua, e nesta extensão apenas aparecem dois pequenos fortes; o de São Francisco Xavier ou Piratininga na dita barra, e o de São João Dongado, pelo rio acima mais de três quartos de léguas; sobre o cimo do monte, em cuja fralda está este forte, ainda hoje existe uma pequena muralha que antigamente serviu de defesa aos holandeses.
O rio de Santa Maria, que deságua no braço-de-mar que forma o ancoradouro da vila da Vitória, é assaz belo; as suas margens são cobertas de fazendas, e as matas vizinhas compõem-se de preciosas madeiras. A sua navegação é feita por canoas, pois o canal não admite embarcações de maior porte. Se a nova estrada que de Minas Gerais se dirige pela serra dos Arrepiados, e que, segundo dizem, vai ter à capitania do Espírito Santo, por esse rio se efetuasse, seria esta comunicação de maior vantagem que a navegação do rio Doce, porque desembocando o dito rio quase légua e meia distante da vila, no lugar chamado Lameirão,[ 6 ] seriam facilmente exportados os gêneros de Minas, importados diretamente na vila da Vitória.
Pouco acima do forte dito de São Francisco Xavier da Barra está a vila do Espírito Santo, a primeira que houve naquela capitania; quarenta casas pouco mais ou menos, e pela maior parte cobertas de palhas, compõem essa povoação. Ainda ali se vêem os alicerces de uma pequena alfândega, estabelecida logo depois da descoberta da mesma capitania, e que desapareceu, bem como a antiga navegação, que ela nutria diretamente com a Europa e África, de que hoje não há a mais ligeira sombra.
Desta vila segue a estrada que vai ter à vila de Guarapari,[ 7 ] ao sul desta outra; Guarapari tem um porto capaz de ancorar embarcações sem o menor perigo; esta vila não é grande, e entretanto tem todas as comodidades possíveis para o comércio, e os mesmos gêneros que se exportam da vila da Vitória, aí mesmo se acham; além disto as madeiras são mais abundantes. Duas igrejas há nesta vila: e a inércia dos seus habitantes equilibra com a dos de toda a capitania. As águas potáveis não são boas, mas o terreno é fértil. Esquecia-me dizer a Vossa Excelência, que vindo da vila do Espírito Santo para esta, não se encontram rios memoráveis; porque uma légua distante da primeira vê-se o rio Jucu,[ 8 ] cuja barra é só capaz de receber canoas; duas léguas antes de chegar a esta última vila encontra-se o rio de Una; e um quarto depois o de Perocão, todos semelhantes ao de Jucu.
De Guarapari à vila de Benevente[ 9 ] há seis léguas: esta vila demora ao sul; o seu porto fica no fundo de uma larga enseada que o mar ali forma, semelhante a uma grande bacia, e que tem bastante água para nadarem bergatins de maior porte, como por vezes já têm ancorado aí mesmo, tanto embarcações nacionais como estrangeiras. Aqui fabricam-se sumacas etc. As madeiras são muitas: os gêneros comerciais são os mesmos que os de Guarapari, e uma só igreja (o colégio dos jesuítas) existe nesta pequena vila. Todavia a pobreza aqui grandemente em sua extensão também aparece. O rio conhecido pelo nome de Aldeia, e que vem banhar o lado meridional da dita vila, é navegável pelo sertão até a última das fazendas situadas pelas suas margens. Duas léguas, seguindo sempre a direção do sul e distantes de Benevente está o rio Piúma, em tudo igual ao de Jucu. Marchando-se pouco mais de légua, chega-se ao grande monte do Agá, uma das balizas dos navegantes para aquela capitania; nas fraldas deste monte está a melhor água de toda a costa meridional. Daí a pouco mais de cinco léguas acha-se o rio Itapemirim, que dá o seu nome à povoação, que dista da barra meia légua; este rio algumas vezes admite grandes lanchas. É muito digno de notar-se, que ficando a vila do Guarapari ao norte da de Benevente, seja esta povoação sujeita às justiças da primeira vila. O terreno de Itapemirim não deixa de ser fértil: a povoação deste nome é assaz pequena, e sua única igreja, por muito velha, é digna de ser mencionada.
Seguindo pela praia, e passando através das barreiras do Ciri, toca-se em Itabapoana, último lugar da capitania do Espírito Santo. O rio de Itabapoana é só navegável algumas vezes para pequenas lanchas, e sempre para canoas: aqui nada vejo que mereça atenção. Neste porto, cuja população é composta de oito casas cobertas de palhas, existe um quartel onde estão destacados um cabo e quatro soldados da companhia de linha, a única que há na vila capital da Vitória; e, tanto em Itapmirim e Benevente, como em Guarapari, acham-se outros semelhantes destacamentos. Recordo-me que desde o rio Doce até Itabapoana a estrada é sempre pela costa do mar, e raras vezes dela se aparta.
Tendo dado esta pequena exposição sobre a capitania do Espírito Santo, permita-me Vossa Excelência tratar ainda da guerra que se mandou fazer contra o gentio botocudo, estacionado pelos sertões daquele país. Esta guerra não teve o êxito que se esperava. Algumas divisões, que entravam após do Botocudo, voltavam em dois ou três dias sem nada fazerem: as estradas novamente abertas em alguns lugares do sertão daquela capitania, e chamadas intermédias pelo governador atual, tão-somente servem de conduzir o gentio como pela mão aos lugares já povoados. Uma destas estradas, que vai sair no Piraquê-Mirim, lugar onde os índios domesticados laboram a terra, foi a causa de serem atassalhados[ 10 ] alguns dos mesmos indígenas ali domiciliados. O chefe de uma das ditas divisões, de nome Miguel da Silva, índio de nação, marchando por uma das estradas intermédias, que, do Piraqueaçu, correndo pelas cabeceiras da lagoa do Campo, vai ter ao rio Doce, defronte do quartel de Contins, hoje Linhares, este comandante foi sempre atacado na sua retaguarda pelos bárbaros; e certamente lhe fariam alguma emboscada se ele não recebesse algum socorro de Linhares.
A maior parte da freguesia da Serra tem sido infestada por tais selvagens, que tem chegado até Carapina, lugar que dista duas léguas da vila capital, e cujos habitantes se acham refugiados nela. O rio de Santa Maria igualmente foi vítima da sua ferocidade: eles aí postejaram uma mulher ainda viva, devorando-a, depois de haverem cometido outros atentados; e as providências que deram foram quase nenhumas. Certamente a horda botocuda estaria submetida, Excelentíssimo senhor, se as tribos Tatavó e Manaxó fossem atraídas pela doçura e amizade. É assim que Lombard e Ramette se fizeram amados dos índios galibis: é assim que Champelain, remontando o rio de São Lourenço, adoçou os costumes dos Algonquins, dos Huronnes, e dos Iroqueses; mas infelizmente esta tática é desconhecida do governador atual da capitania do Espírito Santo. Tal é o estado presente daquela capitania.
Eu me contemplaria importuno se avançasse mais na minha narração; e, confundido no meu próprio nada, espero que Vossa Excelência desculpará os erros da presente Memória. Conheço que tenho a honra de falar diante de uma pessoa que pertence à ordem das inteligências destinadas a manejar as molas dos Estados. Entretanto queira Vossa Excelência receber o pequeno serviço da minha gratidão, e a certeza de que sou com o mais profundo respeito. De Vossa Excelência, o mais reverente servo, obrigado e criado, Francisco Manoel da Cunha. Rio de Janeiro, em 23 de junho de 1811. — Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Antônio de Araújo e Azevedo, conselheiro de Estado de Sua Majestade.
[Informação publicada na Revista do IHGB, 1842, tomo IV, p. 240-247.]
Transcrição e notas: Maria Clara Medeiros Santos Neves
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NOTAS
[ 1 ] No original, Sussuy.
[ 2 ] No original Manassú.
[ 3 ] Ultrapassar.
[ 4 ] Veleiro armado com dois mastros com velas latinas triangulares. [Dicionário Houaiss]
[ 5 ] No original Piraqui-Assu.
[ 6 ] No original, Lamarão.
[ 7 ] No original, Guaraparin.
[ 8 ] No original, Jecu.
[ 9 ] Hoje Anchieta.
[ 10 ] .Dizimados.
4/01/2016
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor — Como V.Ex. se desvela pelo aumento do Estado e da nação; como V. Ex. com ardente desejo quer promover a prosperidade da capitania do Espírito Santo e a navegação do rio Doce, como um mais seguro garante das capitanias centrais; debaixo dessas vistas, permitia-ma V. Ex. apresente, as seguintes reflexões: o é tão satisfeito e cheio de mim, que sem atropelar os deveres da minha vassalagem, eu me deixo unicamente conduzir pela alegria que tenho de falar submissamente a V. Ex. por meio desta Memória.
A capitania do Espírito Santo, antigamente tão florescente pelo comércio direto com a Europa e África, perdeu o seu brilhantismo. A agricultura está ali como paralisada, que consiste em algodão, milho, arroz, feijão, açúcar, café, aguardente, o tudo em pequena quantidade e de pouca consideração. Algumas vezes as embarcações daquela capitania vão a Pernambuco e Rio Grande do Sul, mas a sua navegação ordinária é sempre ao longo das costas limítrofes do Rio de Janeiro e Bahia: um só negociante capaz de animar os diversos gêneros do comércio, ou sejam em artigos europeus, asiáticos ou africanos, não aparece na vila da Vitória; daqui nasce a desgraça o comiseração daquele país, de tal sorte que, arruinando-se qualquer prédio, jamais o reedificam. Um dos ramos principais da negociação daqueles povos era o corte, venda e exportação das madeiras, que tanto animava aquela província: este corte foi proibido pelo atual governador, sendo somente permitido àqueles que, ou cortavam madeiras para o mesmo governador, ou impetravam dele esta especial graça: tal é o estado presente da capitania do Espírito Santo.
Seja-me lícito agora lançar um golpe de vista sobro o rio Doce. Na verdade este rio promete as maiores vantagens, mas infelizmente já não existe um Antônio Pires da Silva Pontes. O rio Doce, Excelentíssimo Senhor, necessitava de um mecenas; V.Ex. lá mesmo da Europa lançou as suas vistas favoráveis sobre ele; e enquanto os rios Amazonas, São Francisco, Paraíba do Norte e outros já viam rolar sobra as suas águas as ricas produções brasilienses, o rio Doce ainda vivia como esquecido e sepultado no meio das tribos Botocuda e Manaxó; e ambicioso de equilibrar-se entre esses canais que abrilhantam a celebridade dos Estados, ele clamava por um Ptolomeu, um Pedro Grande, um Luiz XIV. Estes homens, gozando o fruto da sua reputação e das suas vitórias, dormem hoje em glorioso ócio; mas Portugal, que ainda conservava os seus Sullys , Colberts e Richelieus, ouviu atentamente os seus clamores. Foi então que V.Ex., dominado pela amor da nação, enviou o capitão-de-fragata Antônio Pires da Silva Pontes para o governo da capitania do Espírito Santo, em cujo distrito o rio Doce forma o seu leito, encarregado de indagar todos os segredos, que sempre fértil natureza tem ali encoberto.
Com efeito este rio, nascendo em Minas Gerais, e comunicando com o Serro, Espírito Santo e Bahia, vem a formar no meio dessas províncias uma cidade continuada, cuja rua principal é o seu majestoso curso. Se o Amazonas e o rio de São Francisco viram aparecer sobre as suas margens vilas o povoações; se a agricultura aí foi conhecida pelos indígenas; se o comércio mesmo descobriu novos objetos da sua curiosidade, a marinha imensas matas de construção; e o ávido mineiro, passando através de todos os obstáculos, vem ainda hoje depositar suas mercadorias nas praias do oceano, é porque os gênios tutelares desses canais, eu me explico, os governadores, velavam dia e noite na fortuna daqueles lugares e povos, já humanizando o selvagem, instruindo o ignorante, já semeando a concórdia, animando o trabalho, e adiantando os direitos reais: conduta esta que tem imortalizado o Excelentíssimo conde da Palma (general que foi de Goiás, e hoje de Minas Gerais) nas célebres expedições de Tocantins, Santa Rita e Santa Luzia.
Se o rio Doce, Excelentíssimo Senhor, não teve a glória de observar em si os aumentos já reproduzidos nos outros, contudo ele foi testemunha do incansável zelo do primeiro governador enviado para escrutinar e promover as suas vantagens. Os quartéis e destacamentos foram estabelecidos, a navegação foi animada; e os indígenas de Minas Gerais comunicaram-se pela primeira vez com os capitanienses por meio das correntes daquele rio. Infelizmente o rio Doce perdeu na sua infância, assim posso explicar-me, este zeloso aio, sucedendo-lhe o atual governador Manoel Vieira de Albuquerque e Tovar, que devendo em tudo seguir os passos do seu antecessor, não só o vituperou, como também nada mais fez lá nas belas planícies daquele terreno; porque os quartéis da Regência Augusta, de Contins (hoje Linhares) e do porto de Souza, fundados pelo imortal governador Pontes, são os mesmos que existem hoje e se excetuarmos a João Felipe de Almeida Calmon, afazendado antes na vila de Benevente,[ 1 ] onde ainda conserva o seu estabelecimento, e hoje transplantado em Linhares com alguns escravos desde novembro de 1809, não se vê ali outro lavrador capaz de adiantar a agricultura, sucedendo o mesmo no destacamento da Regência Augusta, onde se acha Joaquim de Queiroz há três meses que aí se foi estabelecer, deixando o seu antigo domicílio no termo da vila da Vitória.
Muitos desertores, que viviam espalhados pela capitania do Espírito Santo, sendo chamados pelo governador atual para que se recolhessem às suas respectivas praças, ou fossem residir no rio Doce, aceitaram: este último partido; mas de nada podem servir estes homens, quase vagabundos, sem os precisos e competentes meios para laborarem a terra; e a maior parte deles, bem como muitos pedestres, desampararam aquele lugar delicioso, não pelo temor das moléstias epidêmicas, como diz o atual governador, mas sim pelo seu desmarcado terrorismo, que aí desenvolve eles desertaram novamente, levando cada um a sua arma das que desta corte foram para se fazer a guerra ao gentio.
Esta guerra não teve o êxito que se esperava; algumas divisões destinadas a penetrarem o interior do país para atacarem a nação botocuda, sem mais combinarem as suas operações, apenas faziam algumas marchas, o retrogradavam logo em dois ou três dias. O gentio assoberbado, e de alguma sorte vitorioso, inutilizou sempre o nenhum esforço dessas divisões, e audazmente continuou a atacar os lugares mais vizinhos da vila da Vitória, como agora fez por duas vezes na maior parte da freguesia da Serra, chegando a última até mesmo Carapina, distante duas léguas da vila capital, onda se acham refugiados os habitantes daqueles sítios.
O rio de Santa Maria e as fazendas situadas pelas suas margens igualmente foram objetos da vingança daqueles bárbaros, sendo vítimas algumas pessoas, entre as quais uma mulher foi atassalhada[ 2 ] ainda mesmo viva, e depois devorada pela ferocidade daqueles antropófagos. É de admirar, Excelentíssimo Senhor, que só houvessem na ocasião em que o inimigo atacou as circunvizinhanças da vila capital, retirando-se logo depois a gente que marchou contra ele: providências estas que se não deram na primeira catástrofe da Serra.
De que servem as estradas novamente abertas com detrimento dos povos em alguns lugares do sertão, chamadas pelo governador intermédias, e com despesas da real fazenda? Foi o meio mais pronto e eficaz para que o gentio facilmente fizesse as suas incursões, mostrando-se-lhe como com o dedo o trilho que deviam seguir. Esta verdade prova-se pelo que sucedeu no Piraquê-Mirim, onde foram devorados alguns índios que por ali residiam o laboravam a terra, logo que nesse lugar se abriu há mais de dois anos uma das ditas estradas: prova-se ainda mais pela conduta de um chefe das divisões chamado Miguel da Silva, índio de nação, que marchando pelo interior do sertão, e devendo sair defronte de Linhares, ao sul do rio Doce, tendo ao mesmo tempo ordem de abrir uma das sobreditas estradas pelas cabeceiras da lagoa do Campo, foi atacado na sua retaguarda, vendo-se na necessidade de fazer fogo avulso toda a noite, o que dantes não acontecia.
Refletindo agora, Excelentíssimo Senhor, sobre a navegação daquele rio, nada se observa. As embarcações que para ali navegam são aquelas unicamente que vão por ordem do governador conduzir as munições de boca ministradas pela Real Fazenda para os pedestres e novos habitantes de um e outro sexo, distribuídos nos três quartéis estabelecidos no mesmo rio, por ser tanta a desgraça e inércia, que nem a farinha de mandioca ali há para sua sustentação. Proximamente a sumaca Conceição, do capitão-mor José Ribeiro Pinto, apenada[ 3 ] para conduzir quinhentos alqueires de farinha, trezentas e quarenta e duas e meia arrobas de carne seca do Rio Grande, um barril de pólvora e o chumbo correspondente, destinado para o rio Doce, aí mesmo naufragou, perecendo igualmente cinco pessoas.
A barca que serve no rio Doce, e que foi feita na Aldeia Velha por Francisco Gonçalves, pela baixa de um seu filho, tem servido, com marinheiros pedestres, para conduzir certos gêneros de negociações particulares. As canoas que ali se esperavam de Minas dentro de oito dias, prometidas pelo governador no ofício que dirigiu a V.Ex., logo que a esta corte chegou depois da sua viagem, dizendo que vinham carregadas de gêneros permutáveis, ainda não apareceram, o os cômodos preços dos artigos sal o ferro, apontados no mesmo ofício, não foi coisa nova. Eis aqui o estado atual da navegação do rio Doce, navegação certamente digna dos Augustos, dos Lizardes o dos Creuilles, se não tivéssemos a fortuna de possuir a V.Ex. nos nossos dias.
Esta mesma navegação podia estar aumentada se o fértil terreno daquele rio tivesse a sua precisa cultivação; porque, exportando-se as produções, não deixaria de haver quem ali fosse, por meio de balizas semeadas na barra, procurar os gêneros desse Nilo brasiliense, como se praticarem Outros muitos jogares. Além disto , quando os ventos não fossem favoráveis ou propícios, podia bem estabelecer-se na Aldeia Velha um certo depósito dos gêneros para serem conduzidos por terra no Rio Doce, que dista duas jornadas; e os que dali viessem serem exportados pela barra da mesma aldeia, atendendo-se à estação. Se o governo atual aumentasse de distância em distância pequenas povoações, certamente a horda botocuda estaria mais alongada, e a domesticação das tribos Pataxó o Manaxó seria de grande vantagem para atraí-los, bem como fez Champlain, remontando o Rio de São Lourenço no Canadá com as nações Algonquine, Hurone e Iroquesa, e em 1627 Mr. d'Enambue na ilha de São Cristóvão a outras nas Antilhas.
Se a comunicação premeditada pelo rio de Santa Maria com Minas Gerais fosse realizada, seria assaz vantajosa, porque este rio vem desembocar no braço-de-mar que forma o ancoradouro da vila da Vitória, por cujo meio seriam exportados mais prontamente os efeitos que ali chegassem. Aqui recordo-me, Ex.Sr., que falando logo no princípio desta Memória sobre a vila da Vitória, esqueceu-me dizer que a galera Prontidão, vinda de Lisboa para aquela capitania, sendo remetida a Antônio Joaquim Franco, criado que era do atual governador, e que nada possuía, descarregou na dita vila; e excetuando o bergantiiá Lobos Unidos, que, despachando-se em Lisboa para o Rio Grande, foi descarregar no porto já mencionado no tempo do governador Pontes, nenhuma embarcação mais da Europa dirigiu para ali o seu destino.
Agora, Exmo. Sr., não posso dispensar-me de referir a V. Ex. o total desgosto dos povos da capitania do Espírito Santo, pois quando pensavam que com a vizinhança do nosso augusto Soberano e pai da pátria afrouxassem os imensuráveis despotismos que sofreu do governador atual, parece que ainda foi pior. Dois negociantes, Manoel Fernandes Guimarães o Pedro José Carreira Viseu, o primeiro foi acorrentado publicamente, ficando perdido de todo; e o segundo, que se acha louco, transitou amarrado pelas ruas, e ambos conduzidos a prisões de segredo, sem nenhuma causa eficiente ou suficiente. O padre Manoel de Jesus Pereira, natural a morador da vila da Vitória, que servia de coadjutor do vigário daquela vila, e pago por S.A.R., foi mandado paro o dito Rio Doce, unicamente por haver faltado a uma missa no Colégio, em lugar do capelão da tropa. O capitão José Ribeiro de Ataíde, porque na sua casa algumas noites concorriam outras pessoas daquela vila a conversarem, foi por isso arrancado do centro da sua família e desterrado para o sobredito rio, de onde voltou em breves dias quase expirando, e logo depois morreu; sendo ao mesmo tempo todos os outros mandados para diversos lugares, até que foram retirados depois.
Ainda não é tudo: a justiça tem igualmente sofrido seus obstáculos. O desembargador ouvidor da comarca, Alberto Antônio Pereira, foi injusta e despoticamente preso, e a casa deste magistrado viu-se cercada pelos soldados pedestres: os escrivães do público e notas foram atenuados e confundidos com os ameaços de desterro para o Rio Doce, e carregados de ferros. Manoel da Silva Trancoso Leitão, procurador do auditório, somente porque defendia uma causa cuja parte contrária o governador protegia, foi por isso preso, assentando-se-lhe praça de soldado na companhia de linha, tendo-a já de miliciano; e sem jurar bandeiras passou imediatamente pelo castigo de pranchadas, foi conduzido preso para a fortaleza da Barra, e conservado ali mesmo três meses.
Nenhuma só pessoa daquela terra tem sido isenta dos ultrajes e ameaços injuriosos do governador, nem ainda os deputados da junta da Real Fazenda, nem tampouco as câmaras daquela capitania. Eu atestaria fatos que o pejo e a modéstia pedem um morno silêncio, se estas reflexões não fossem dirigidas a V. Ex.: fatos que os povos daquele país provariam se vissem retirado o atual governador: fatos que estão gravados no fundo dos seus corações pelo temor e, no mesmo tempo respeito, que professam aos representantes do poder supremo.
Queira V. Ex. aceitar esta pequena memória fundada toda na pureza da verdade, memória que tenho a honra de apresentar a V. Ex. como um dos sustentáculos da nação, o herdeiro do sangue daqueles que cimentaram sobre seus ossos, lá no campo de Ourique, os degraus do trono português, o primeiro trono do Universo. Esta certeza me anima de tal sorte que, descobrindo em V. Ex. um desses gênios tutelares que velam em torno das monarquias e para felicidade dos Estados, fez com que eu não hesitasse um só momento procurando ter a honra de falar tão francamente a V. Ex., a quem protesto ser sempre com o maior respeito — de V.Ex. reverente súdito e menor servo — Francisco Manuela da Cunha. — Ilmo. e Exmo. Sr. conde de Linhares.
Rio de Janeiro, em 26 de fevereiro de 1811.
[Ofício publicado na Revista do IHGB, 12:511-18, 1849.]
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(MS. oferecido ao Instituto pelo sócio correspondente, o Sr. coronel Inácio Acióli de Cerqueira e Silva.) Ilustríssimo e Excelentíssimo...
Ofício que Francisco Manoel da Cunha dirigiu ao conde de Linhares sobre a capitania, hoje província, do Espírito Santo, 26/2/1811
(MS. oferecido ao Instituto pelo sócio correspondente,
o Sr. coronel Inácio Acióli de Cerqueira e Silva.)
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor — Como V.Ex. se desvela pelo aumento do Estado e da nação; como V. Ex. com ardente desejo quer promover a prosperidade da capitania do Espírito Santo e a navegação do rio Doce, como um mais seguro garante das capitanias centrais; debaixo dessas vistas, permitia-ma V. Ex. apresente, as seguintes reflexões: o é tão satisfeito e cheio de mim, que sem atropelar os deveres da minha vassalagem, eu me deixo unicamente conduzir pela alegria que tenho de falar submissamente a V. Ex. por meio desta Memória.
A capitania do Espírito Santo, antigamente tão florescente pelo comércio direto com a Europa e África, perdeu o seu brilhantismo. A agricultura está ali como paralisada, que consiste em algodão, milho, arroz, feijão, açúcar, café, aguardente, o tudo em pequena quantidade e de pouca consideração. Algumas vezes as embarcações daquela capitania vão a Pernambuco e Rio Grande do Sul, mas a sua navegação ordinária é sempre ao longo das costas limítrofes do Rio de Janeiro e Bahia: um só negociante capaz de animar os diversos gêneros do comércio, ou sejam em artigos europeus, asiáticos ou africanos, não aparece na vila da Vitória; daqui nasce a desgraça o comiseração daquele país, de tal sorte que, arruinando-se qualquer prédio, jamais o reedificam. Um dos ramos principais da negociação daqueles povos era o corte, venda e exportação das madeiras, que tanto animava aquela província: este corte foi proibido pelo atual governador, sendo somente permitido àqueles que, ou cortavam madeiras para o mesmo governador, ou impetravam dele esta especial graça: tal é o estado presente da capitania do Espírito Santo.
Seja-me lícito agora lançar um golpe de vista sobro o rio Doce. Na verdade este rio promete as maiores vantagens, mas infelizmente já não existe um Antônio Pires da Silva Pontes. O rio Doce, Excelentíssimo Senhor, necessitava de um mecenas; V.Ex. lá mesmo da Europa lançou as suas vistas favoráveis sobre ele; e enquanto os rios Amazonas, São Francisco, Paraíba do Norte e outros já viam rolar sobra as suas águas as ricas produções brasilienses, o rio Doce ainda vivia como esquecido e sepultado no meio das tribos Botocuda e Manaxó; e ambicioso de equilibrar-se entre esses canais que abrilhantam a celebridade dos Estados, ele clamava por um Ptolomeu, um Pedro Grande, um Luiz XIV. Estes homens, gozando o fruto da sua reputação e das suas vitórias, dormem hoje em glorioso ócio; mas Portugal, que ainda conservava os seus Sullys , Colberts e Richelieus, ouviu atentamente os seus clamores. Foi então que V.Ex., dominado pela amor da nação, enviou o capitão-de-fragata Antônio Pires da Silva Pontes para o governo da capitania do Espírito Santo, em cujo distrito o rio Doce forma o seu leito, encarregado de indagar todos os segredos, que sempre fértil natureza tem ali encoberto.
Com efeito este rio, nascendo em Minas Gerais, e comunicando com o Serro, Espírito Santo e Bahia, vem a formar no meio dessas províncias uma cidade continuada, cuja rua principal é o seu majestoso curso. Se o Amazonas e o rio de São Francisco viram aparecer sobre as suas margens vilas o povoações; se a agricultura aí foi conhecida pelos indígenas; se o comércio mesmo descobriu novos objetos da sua curiosidade, a marinha imensas matas de construção; e o ávido mineiro, passando através de todos os obstáculos, vem ainda hoje depositar suas mercadorias nas praias do oceano, é porque os gênios tutelares desses canais, eu me explico, os governadores, velavam dia e noite na fortuna daqueles lugares e povos, já humanizando o selvagem, instruindo o ignorante, já semeando a concórdia, animando o trabalho, e adiantando os direitos reais: conduta esta que tem imortalizado o Excelentíssimo conde da Palma (general que foi de Goiás, e hoje de Minas Gerais) nas célebres expedições de Tocantins, Santa Rita e Santa Luzia.
Se o rio Doce, Excelentíssimo Senhor, não teve a glória de observar em si os aumentos já reproduzidos nos outros, contudo ele foi testemunha do incansável zelo do primeiro governador enviado para escrutinar e promover as suas vantagens. Os quartéis e destacamentos foram estabelecidos, a navegação foi animada; e os indígenas de Minas Gerais comunicaram-se pela primeira vez com os capitanienses por meio das correntes daquele rio. Infelizmente o rio Doce perdeu na sua infância, assim posso explicar-me, este zeloso aio, sucedendo-lhe o atual governador Manoel Vieira de Albuquerque e Tovar, que devendo em tudo seguir os passos do seu antecessor, não só o vituperou, como também nada mais fez lá nas belas planícies daquele terreno; porque os quartéis da Regência Augusta, de Contins (hoje Linhares) e do porto de Souza, fundados pelo imortal governador Pontes, são os mesmos que existem hoje e se excetuarmos a João Felipe de Almeida Calmon, afazendado antes na vila de Benevente,[ 1 ] onde ainda conserva o seu estabelecimento, e hoje transplantado em Linhares com alguns escravos desde novembro de 1809, não se vê ali outro lavrador capaz de adiantar a agricultura, sucedendo o mesmo no destacamento da Regência Augusta, onde se acha Joaquim de Queiroz há três meses que aí se foi estabelecer, deixando o seu antigo domicílio no termo da vila da Vitória.
Muitos desertores, que viviam espalhados pela capitania do Espírito Santo, sendo chamados pelo governador atual para que se recolhessem às suas respectivas praças, ou fossem residir no rio Doce, aceitaram: este último partido; mas de nada podem servir estes homens, quase vagabundos, sem os precisos e competentes meios para laborarem a terra; e a maior parte deles, bem como muitos pedestres, desampararam aquele lugar delicioso, não pelo temor das moléstias epidêmicas, como diz o atual governador, mas sim pelo seu desmarcado terrorismo, que aí desenvolve eles desertaram novamente, levando cada um a sua arma das que desta corte foram para se fazer a guerra ao gentio.
Esta guerra não teve o êxito que se esperava; algumas divisões destinadas a penetrarem o interior do país para atacarem a nação botocuda, sem mais combinarem as suas operações, apenas faziam algumas marchas, o retrogradavam logo em dois ou três dias. O gentio assoberbado, e de alguma sorte vitorioso, inutilizou sempre o nenhum esforço dessas divisões, e audazmente continuou a atacar os lugares mais vizinhos da vila da Vitória, como agora fez por duas vezes na maior parte da freguesia da Serra, chegando a última até mesmo Carapina, distante duas léguas da vila capital, onda se acham refugiados os habitantes daqueles sítios.
O rio de Santa Maria e as fazendas situadas pelas suas margens igualmente foram objetos da vingança daqueles bárbaros, sendo vítimas algumas pessoas, entre as quais uma mulher foi atassalhada[ 2 ] ainda mesmo viva, e depois devorada pela ferocidade daqueles antropófagos. É de admirar, Excelentíssimo Senhor, que só houvessem na ocasião em que o inimigo atacou as circunvizinhanças da vila capital, retirando-se logo depois a gente que marchou contra ele: providências estas que se não deram na primeira catástrofe da Serra.
De que servem as estradas novamente abertas com detrimento dos povos em alguns lugares do sertão, chamadas pelo governador intermédias, e com despesas da real fazenda? Foi o meio mais pronto e eficaz para que o gentio facilmente fizesse as suas incursões, mostrando-se-lhe como com o dedo o trilho que deviam seguir. Esta verdade prova-se pelo que sucedeu no Piraquê-Mirim, onde foram devorados alguns índios que por ali residiam o laboravam a terra, logo que nesse lugar se abriu há mais de dois anos uma das ditas estradas: prova-se ainda mais pela conduta de um chefe das divisões chamado Miguel da Silva, índio de nação, que marchando pelo interior do sertão, e devendo sair defronte de Linhares, ao sul do rio Doce, tendo ao mesmo tempo ordem de abrir uma das sobreditas estradas pelas cabeceiras da lagoa do Campo, foi atacado na sua retaguarda, vendo-se na necessidade de fazer fogo avulso toda a noite, o que dantes não acontecia.
Refletindo agora, Excelentíssimo Senhor, sobre a navegação daquele rio, nada se observa. As embarcações que para ali navegam são aquelas unicamente que vão por ordem do governador conduzir as munições de boca ministradas pela Real Fazenda para os pedestres e novos habitantes de um e outro sexo, distribuídos nos três quartéis estabelecidos no mesmo rio, por ser tanta a desgraça e inércia, que nem a farinha de mandioca ali há para sua sustentação. Proximamente a sumaca Conceição, do capitão-mor José Ribeiro Pinto, apenada[ 3 ] para conduzir quinhentos alqueires de farinha, trezentas e quarenta e duas e meia arrobas de carne seca do Rio Grande, um barril de pólvora e o chumbo correspondente, destinado para o rio Doce, aí mesmo naufragou, perecendo igualmente cinco pessoas.
A barca que serve no rio Doce, e que foi feita na Aldeia Velha por Francisco Gonçalves, pela baixa de um seu filho, tem servido, com marinheiros pedestres, para conduzir certos gêneros de negociações particulares. As canoas que ali se esperavam de Minas dentro de oito dias, prometidas pelo governador no ofício que dirigiu a V.Ex., logo que a esta corte chegou depois da sua viagem, dizendo que vinham carregadas de gêneros permutáveis, ainda não apareceram, o os cômodos preços dos artigos sal o ferro, apontados no mesmo ofício, não foi coisa nova. Eis aqui o estado atual da navegação do rio Doce, navegação certamente digna dos Augustos, dos Lizardes o dos Creuilles, se não tivéssemos a fortuna de possuir a V.Ex. nos nossos dias.
Esta mesma navegação podia estar aumentada se o fértil terreno daquele rio tivesse a sua precisa cultivação; porque, exportando-se as produções, não deixaria de haver quem ali fosse, por meio de balizas semeadas na barra, procurar os gêneros desse Nilo brasiliense, como se praticarem Outros muitos jogares. Além disto , quando os ventos não fossem favoráveis ou propícios, podia bem estabelecer-se na Aldeia Velha um certo depósito dos gêneros para serem conduzidos por terra no Rio Doce, que dista duas jornadas; e os que dali viessem serem exportados pela barra da mesma aldeia, atendendo-se à estação. Se o governo atual aumentasse de distância em distância pequenas povoações, certamente a horda botocuda estaria mais alongada, e a domesticação das tribos Pataxó o Manaxó seria de grande vantagem para atraí-los, bem como fez Champlain, remontando o Rio de São Lourenço no Canadá com as nações Algonquine, Hurone e Iroquesa, e em 1627 Mr. d'Enambue na ilha de São Cristóvão a outras nas Antilhas.
Se a comunicação premeditada pelo rio de Santa Maria com Minas Gerais fosse realizada, seria assaz vantajosa, porque este rio vem desembocar no braço-de-mar que forma o ancoradouro da vila da Vitória, por cujo meio seriam exportados mais prontamente os efeitos que ali chegassem. Aqui recordo-me, Ex.Sr., que falando logo no princípio desta Memória sobre a vila da Vitória, esqueceu-me dizer que a galera Prontidão, vinda de Lisboa para aquela capitania, sendo remetida a Antônio Joaquim Franco, criado que era do atual governador, e que nada possuía, descarregou na dita vila; e excetuando o bergantiiá Lobos Unidos, que, despachando-se em Lisboa para o Rio Grande, foi descarregar no porto já mencionado no tempo do governador Pontes, nenhuma embarcação mais da Europa dirigiu para ali o seu destino.
Agora, Exmo. Sr., não posso dispensar-me de referir a V. Ex. o total desgosto dos povos da capitania do Espírito Santo, pois quando pensavam que com a vizinhança do nosso augusto Soberano e pai da pátria afrouxassem os imensuráveis despotismos que sofreu do governador atual, parece que ainda foi pior. Dois negociantes, Manoel Fernandes Guimarães o Pedro José Carreira Viseu, o primeiro foi acorrentado publicamente, ficando perdido de todo; e o segundo, que se acha louco, transitou amarrado pelas ruas, e ambos conduzidos a prisões de segredo, sem nenhuma causa eficiente ou suficiente. O padre Manoel de Jesus Pereira, natural a morador da vila da Vitória, que servia de coadjutor do vigário daquela vila, e pago por S.A.R., foi mandado paro o dito Rio Doce, unicamente por haver faltado a uma missa no Colégio, em lugar do capelão da tropa. O capitão José Ribeiro de Ataíde, porque na sua casa algumas noites concorriam outras pessoas daquela vila a conversarem, foi por isso arrancado do centro da sua família e desterrado para o sobredito rio, de onde voltou em breves dias quase expirando, e logo depois morreu; sendo ao mesmo tempo todos os outros mandados para diversos lugares, até que foram retirados depois.
Ainda não é tudo: a justiça tem igualmente sofrido seus obstáculos. O desembargador ouvidor da comarca, Alberto Antônio Pereira, foi injusta e despoticamente preso, e a casa deste magistrado viu-se cercada pelos soldados pedestres: os escrivães do público e notas foram atenuados e confundidos com os ameaços de desterro para o Rio Doce, e carregados de ferros. Manoel da Silva Trancoso Leitão, procurador do auditório, somente porque defendia uma causa cuja parte contrária o governador protegia, foi por isso preso, assentando-se-lhe praça de soldado na companhia de linha, tendo-a já de miliciano; e sem jurar bandeiras passou imediatamente pelo castigo de pranchadas, foi conduzido preso para a fortaleza da Barra, e conservado ali mesmo três meses.
Nenhuma só pessoa daquela terra tem sido isenta dos ultrajes e ameaços injuriosos do governador, nem ainda os deputados da junta da Real Fazenda, nem tampouco as câmaras daquela capitania. Eu atestaria fatos que o pejo e a modéstia pedem um morno silêncio, se estas reflexões não fossem dirigidas a V. Ex.: fatos que os povos daquele país provariam se vissem retirado o atual governador: fatos que estão gravados no fundo dos seus corações pelo temor e, no mesmo tempo respeito, que professam aos representantes do poder supremo.
Queira V. Ex. aceitar esta pequena memória fundada toda na pureza da verdade, memória que tenho a honra de apresentar a V. Ex. como um dos sustentáculos da nação, o herdeiro do sangue daqueles que cimentaram sobre seus ossos, lá no campo de Ourique, os degraus do trono português, o primeiro trono do Universo. Esta certeza me anima de tal sorte que, descobrindo em V. Ex. um desses gênios tutelares que velam em torno das monarquias e para felicidade dos Estados, fez com que eu não hesitasse um só momento procurando ter a honra de falar tão francamente a V. Ex., a quem protesto ser sempre com o maior respeito — de V.Ex. reverente súdito e menor servo — Francisco Manuela da Cunha. — Ilmo. e Exmo. Sr. conde de Linhares.
Rio de Janeiro, em 26 de fevereiro de 1811.
[Ofício publicado na Revista do IHGB, 12:511-18, 1849.]
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NOTAS
[ 1 ] Hoje, Anchieta.
[ 2 ] Retalhada.
[ 3 ] Contratada.
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