Décadas depois
[...] Meto-lhe a pena goela adentro. E solitariamente, pouco a pouco, Do bojo tiro a pena, rasa em tinta... Alphonsus de Guimarães (Kiriale) |
O autor entra no poema
com o seu desespero noturno
e um tinteiro
em formato de cabeça de corvo.
No corvo-tinteiro
Alphonsus mergulha a pena
e logo elabora
as estrofes trêmulas de um louco,
embora combinando bons decassílabos
com versos hexassilábicos
sem perder o senso de simetria.
A pena
não nos decepciona na sua arte:
é instrumento de trabalho,
dor
e parte sutil do pássaro
cheio de tinta e silêncio
de que nasceu “A cabeça do corvo” de Kiriale.
Isto em melancolias de 1902.
Um século e treze anos após
(soma muito sombria)
o tempo seria de mouses,
teclados,
erros humanos lucrativos,
mais do que pena,
pânico,
terror ecológico:
um 2015 macabro, marcado
não por esqueletos, imagens de cemitério,
mas por uma Mariana mineira
coberta de barro venenoso,
veneno barrento
invadindo outras cidades,
rios e mares indefesos, fedor industrial
para o qual não há tinta
poética suficiente.
Tampouco o símbolo do corvo
parece soar com ju$tiça
ou agouro apropriado
em nosso agora de desatinos coletivos.
2
Eia,
Samarco!
Teu nome inspirante
já andava contido
nos fonemas amargos da palavra
Sarcasmo.
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Lino Machado é poeta e professor universitário. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
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