Há 73 anos um menino pedalava seu velocípede na calçada de cimento da José Bonifácio. Havia nascido cinco anos antes na casa nº 1 daquela ...

O menino e o parque



Há 73 anos um menino pedalava seu velocípede na calçada de cimento da José Bonifácio. Havia nascido cinco anos antes na casa nº 1 daquela rua, sendo recebido para o mundo pelas mãos de Dona Augusta Mendes, a parteira que atendia a domicílio as parturientes da cidade antiga.

Nas pedaladas que dava de um lado para o outro como velocista de velocípede, o menino se sentia um Pintacuda (esta é uma referência de época ao campeão de corridas automobilísticas) preparando-se, sem o saber, para futuras conquistas geográficas.

Uma delas seria a do Parque Moscoso, situado à curtíssima distância da casa onde nascera.

Desse tempo de infância, o menino guardaria uma de suas mais caras e recuadas lembranças quando, ao lado de seu pai, um iniciante professor de português, ambos foram ao Parque e se sentaram num banco de concreto sem encosto, reto como uma tábua, duro como uma pedra, onde o menino merendou banana prata diante de um jardim com flores de inesquecíveis corolas amarelas.

Um pouco adiante estava o Parque Tênis Clube com seu alambrado alto e duas quadras de saibro demarcadas com linhas brancas como fitas espichadas pelo chão.

Mas ainda não era o momento do menino saber que iria jogar naquelas quadras.

Seria necessário que, antes de ser fazer tenista-mirim aos 12 anos, ele se mudasse com seus pais e seu irmão da casa de nº 1, onde nasceu, para morar temporariamente na casa de seu avô paterno, na Rua da Santa Casa (então denominada Misael Pena), sobre uma padaria que a cada fornada expandia o cheiro irresistível do pão fresco pela vizinhança toda.

Talvez – ainda que seja esta uma ideia romântica – talvez o odor do pão saído do forno chegasse até as corolas amarelas do Parque Moscoso, a pouca distância da padaria.

Aos seis anos, o menino volta a se achegar ao Parque de sua origem, de cuja órbita nunca escapou indo morar na residência nova da Rua Afonso Brás, 73. Dali, esticando o olhar pela Rua Vasco Coutinho, podia ver o Parque Tênis Clube que se situava onde foi construído o Jardim da Infância Ernestina Pessoa, e onde o menino se iniciou no jogo do tênis sem que lograsse passar do primeiro grau como tenista para jamais ser um campeão nesse bretão esporte.

Mas, afinal, que Parque Moscoso era este de que estamos falando?

Que nos conduza através dele o menino desta crônica não mais pedalando um velocípede, mas encimado numa bicicleta Hércules, de cor preta, aro 28, farol niquelado no meio do guidon, na qual ia prazerosamente andar sobre o piso de areia batida do Parque Moscoso.

Eis que o menino deixa a Vasco Coutinho de atenção alertada para se prevenir do bonde que passa pelos trilhos da 23 de Maio, vindo de Santo Antônio e indo para a Praça Costa Pereira, ou vice versa.

Pedalando sem parar prossegue em demanda da Alameda Paulo Mota – que através do parque era uma projeção natural da Avenida José Carlos, atual Marcos de Azevedo e que, com o seu nome, rendia homenagem ao idealizador da planta física do Parque que apesar das sucessivas intervenções sofridas conserva relativamente até hoje as suas bem traçadas linhas.

Firme na bicicleta, o menino contorna o coretinho com telhado de flandres e escadinha lateral onde a poucos metros desse coreto armava-se um tablado em que pulavam os foliões e mascarados que no Carnaval vinham a pé de Caratoíra e Vila Rubim cantando animadamente sambas e marchinhas; o menino passa em seguida em frente ao Orchidário, escrito com ch, que tem o formato de uma oca indígena gigantesca; roda agora pela fonte dos Cavalos, o mais antigo monumento do Parque; avança na direção do Clube Vitória, na esquina da Avenida Cleto Nunes, mas sem sair do Parque; dobra para a esquerda onde fica hoje a Concha Acústica; corta transversalmente a grande alameda dos oitis que, de ponta a ponta, vara o Parque, dando-se o menino à brincadeira de fazer a bicicleta tirar um fino na máquina fotográfica de um lambe-lambe, apoiada num tripé de madeira; atinge a curva em que, do outro lado da Cleto Nunes localizavam-se o Cine Politeama e a Padaria Sarlo; vira à esquerda e segue pelo piso de areia grossa tendo à sua direita a Avenida República com seus canteiros centrais, postes com luminárias e trânsito nenhum, e tendo à esquerda o lago central do Parque com as ilhas artificiais que lhe dão graça e servem de cenário de romance para os namorados se fotografarem ao estilo das décadas de 30 e de 40; chega agora na extremidade em que fica a esquina da Avenida República com a Rua José de Anchieta, onde mais à frente situa-se o Quartel da Polícia Militar com suas ameias eriçadas para uma guerra que nunca houve; ganha novamente a alameda Paulo Mota, ladeada por fícus verdejantes, rente aos quais o menino tira outro fino, já sabemos que se trata de um jovem ciclista que gosta de tirar finos, pedalando a bicicleta. Nessa alameda o menino atinge um conjunto de fícus majestosos, hoje substituídos por uma cancha esportiva rasteira e rasa, perto dos quais tinha lugar o recreio dos alunos do curso primário do Colégio Sagrado Coração de Jesus, da professora Mariazinha Silva, o menino entre eles; passa depois pelo chafariz com suas clássicas figuras esculpidas em bronze cujos jorros o vento espalha; chega próximo do alambrado do Parque Tênis por onde ramas de trepadeiras se engatam; enviesa para a esquerda, e – atenção, senhoras e senhores, atenção porque, fechando o périplo pelo Parque Moscoso, o menino, com sua hercúlea bicicleta preta, aro 28 e farol niquelado no meio do guidon, vai passar pelo banco de concreto sem encosto, reto como uma tábua, duro como uma pedra, onde num indeterminado dia de sua infância, acompanhado pelo pai, merendou banana prata diante de um jardim com flores de inesquecíveis corolas amarelas.

Embora o menino não seja capaz de identificar esse banco duro e reto quando bicicleteia ao lado dele, tal lapso de memória há de lhe ser perdoado porque em nada desfaz a força nostálgica da recordação que conservará permanentemente desse imorredouro recanto do velho Moscoso.

Que velho Moscoso era este?

Se a volta dada na companhia do menino em sua bicicleta não foi bastante para responder à pergunta que se repete, diga-se então que era um parque que estava com pouco mais de trinta anos de idade, desde que fora inaugurado, e que se afirmara desde a sua criação como a única e nobre área verde de Vitória, espaço aberto ao povo, sem muralhas e sem portões, sem roletas e sem gradis, para que todos pudessem nele entrar e dele sair com a naturalidade de quem vivia tempos de um viver provinciano e pacato.

A este parque, e ao que resultou dele em virtude das intervenções que acabou sofrendo para o bem e para o mal, o menino, que se fez adulto, continuou gravitacionalmente ligado durante sua vida.

Dispenso-me de espichar outras lembranças além das que foram levantadas. Mas não posso deixar de dizer (e faço questão de fazê-lo alto e bom som) que o menino que se fez velho tendo o Parque Moscoso como centro de gravidade ao longo de sua vida acha, sem modéstia alguma, que se faz merecedor da gentileza de um gentílico que é para si um motivo de orgulho: o de ser um parquemoscosense da gema!



NOTAS EVOCATIVAS



1. Rua José Bonifácio


A Rua José Bonifácio ainda existe e mantém a denominação. Ela serve de ligação entre as Ruas Henrique Coutinho e Washington Pessoa, no Parque Moscoso. A casa nº 1, e a de nº 2, sua vizinha, construídas próximas à atual Escadaria Sana Cecília, eram de planta e arquitetura idênticas. Pertenciam ao Sr. Alexandre Buaiz, que as alugava. As casas hoje estão reunidas numa só construção comercial. Conserva o nº 1.


2. Parque Tênis Clube


O Parque Tênis Club tinha como associados profissionais liberais e comerciantes de Vitória para a prática do jogo do tênis. Situava-se onde foi construído, no governo Jones dos Santos Neves (1951-1955), o Parque Infantil Ernestina Pessoa, cujas dependências estão hoje ocupadas pela Escola da Ciência Física, pertencente ao município de Vitória. Cercado de alambrado, dispunha de duas quadras de saibro separadas por um corredor que terminava na sede social do clube – um pequeno prédio de dois andares. A entrada habitual dos sócios era pelo portão que dava para a Rua 23 de Maio, ao lado do qual havia um depósito para a guarda das redes e demais equipamentos de limpeza do parque.


3. Padaria Electrica


A Padaria Electrica localizava-se na Rua Misael Pena – hoje João dos Santos Neves -, na época popularmente denominada “Rua da Santa Casa” por influência do hospital situado no morro dessa rua e que tinha seu acesso principal por meio de larga escadaria, atualmente posta em desuso. A padaria ocupava uma das dependências (lojas) que havia embaixo do sobrado onde morava a família do Dr. Jones, como era conhecido o médico que era um dos donos da padaria. Esta, durante muito tempo, atendeu a uma clientela de fregueses que tinha centro na região do Parque Moscoso, competindo com a Padaria Sarlo (da família Sarlo), que ficava na esquina da Avenida Cleto Nunes com a Avenida República.


4. Rua Afonso Brás e Vasco Coutinho


A Rua Afonso Brás tem inicio na Avenida Marcos de Azevedo e segue em direção ao pé do morro da Santa Clara, sendo transversalmente atingida, quase no final, pela Rua Vasco Coutinho. Exatamente neste ângulo situa-se a casa de nº 73, de que trata a crônica. Por seu turno, a Rua Vasco Coutinho desemboca na Rua 23 de Maio depois de receber, como se fosse um afluente enladeirado, a Ladeira da Santa Clara. A rua tem, nas duas esquinas que a formam, diante do Parque Moscoso, dois imóveis característicos do velho Moscoso. No lado direito de quem entra na rua, uma casa que pertenceu ao Sr. Alcides Guimarães, estilo final da década de 40, do século passado, “de concreto armado” como se dizia, com “moderna” arquitetura em linhas retas, hoje revestida de azulejos. Na esquina oposta fica o que resta do notável palacete da segunda década do século passado, com o nome de Villa Oscarina. Pertenceu originariamente ao comerciante Antenor Guimarães, passando depois a seu filho Orlando Guimarães. A denominação do imóvel foi homenagem à única filha mulher de Antenor Guimarães, casado com Ana da Cruz Guimarães. Depois da morte do marido, a viúva passou a residir na parte debaixo da casa, sendo a parte superior ocupada pelo filho do casal, o também comerciante Orlando Guimarães. A majestosa grade de ferro fundido do jardim (hoje infelizmente substituída por um muro tipo fortaleza) e os portões da Villa Oscarina (o de frente e o lateral) foram feitos em São Paulo, conforme informações colhidas a Oscar Augusto Saletto da Costa, sobrinho por afinidade (por parte de mãe) de Orlando Guimarães, que morou na Villa Oscarina mais de uma vez, durante a sua juventude.


5. O bonde Santo Antônio


Na década de 50 o bonde Santo Antônio vinha desse bairro, passava no Parque Moscoso pela Rua 23 de Maio, indo para a Praça Costa Pereira após percorrer a Rua Henrique Coutinho, a praça do Quartel (atual Misael Pena), a ladeira Dom Fernando, a Rua Coronel Monjardim e a Rua Sete. Antes dele existiu o bondinho Circular que também passava pela Rua 23 de Maio e circulava pelo centro de Vitória, servindo aos moradores da Cidade Alta e da Cidade Baixa (e do Parque Moscoso), uma vez que retornava pelo centro da cidade (pela atual Jerônimo Monteiro, a partir do Teatro Glória).


6. Clube Vitória


O Clube Vitória, que foi um dos mais tradicionais de Vitória nas décadas de 20 a 50, localizava-se em um sobrado, na esquina da Rua 23 de Maio com a Avenida Cleto Nunes. Era chamado “o aristocrático” por ter como sócios os membros das famílias de melhores condições sociais de Vitória que, todavia, não moravam apenas no centro da cidade. Paradoxalmente a decadência do Clube começou a se desenhar a partir da construção da sua nova sede, na Rua José de Anchieta, obra realizada pela CIEC – Comércio Indústria e Engenharia Capichaba Ltda. (depois sociedade anônima), dos irmãos engenheiros Jones Santos Neves Filho e Joel Santos Neves, sendo presidente do Clube o sr. Guaracy Assis. Influenciaram também na decadência do clube as mudanças sócio-econômicas por que passou a cidade de Vitória da década de 70 em diante, com a expansão urbana direcionando-se para a Praia do Canto. A nova sede do Clube Vitória, na Rua José de Anchieta (hoje o prédio, que envelheceu rapidamente foi adquirido pelo SESC), foi uma das últimas obras construídas pela CIEC nesse bairro (e a única não residencial) quando a tradicional nobreza do Parque começava a virar passado. Vale ainda o registro de que a CIEC, desde a sua fundação em 1954, destacou-se como a empresa capixaba de engenharia que, nas décadas de 50 a 70, mais edificou prédios residenciais na então valorizada área do bairro Moscoso, a saber: Edifícios Alpha, Marthélia, Serafim Derenzi (ex-Canopus), Procyon, Sheratan, Talitha, Régulos (na Rua Thiers Veloso), Churchil, Beethoven (na Rua 23 de Maio) e o prédio misto da Associação Comercial de Vitória (na Rua João dos Santos Neves).


7. Cine Politeama


O Cine Politeama foi o único cine “poeira” clássico que existiu em Vitória. Funcionava num barracão de alvenaria, coberto de zinco, localizado na esquina da Avenida Cleto Nunes com a Avenida República, tendo em frente, na esquina oposta, a Padaria Sarlo (este prédio ainda existe). O cine pertencia à família Cerqueira Lima, sendo comercialmente explorado como cinema popular pela empresa Santos e Cia., pertencente àquela família. O Politeama dispunha, na parte interna traseira, de uma “Geral” em forma de arquibancada semicurva, com acesso independente da entrada principal, destinada aos espectadores de menor poder aquisitivo, razão por que os seus ingressos eram vendidos a preços mais baratos. Na parte central do cinema havia, para os demais espectadores, cadeiras de madeira e, em piso ressaltado nas laterais, vizinhas das “cadeiras do meio”, bancos inteiriços para os assistentes que os preferissem. A cabine de projeção era isolada na parte de trás, diante da Geral. As sessões eram noturnas, uma por noite e, aos domingos havia matinês para o público infantil com filmes de faroeste e de mistério, geralmente em seriado. Na segunda-feira à noite a “sessão colosso” repetia os filmes que tinham passado no Teatro Carlos Gomes que a empresa Santos, proprietária ainda do Cine Teatro Glória, também explorava como cinema por concessão contratual monopolística que manteve com o governo do Estado durante muito tempo. No terreno onde existiu o Politeama seria construído pela família Cerqueira Lima o prédio em cujo térreo funcionou o Cine Santa Cecília, que marcou época como um dos mais luxuosos de Vitória. Com o tempo, e com o declínio urbano da área do Parque Moscoso, o Cine Santa Cecilia foi decaindo de qualidade e entrando também em decadência. No final de sua história como cinema exibia filmes de erotismo explícito. O cinema depois deu lugar a uma igreja evangélica.


8. Quartel da Polícia Militar


O quartel com planta quadrangular ficava onde está hoje o conjunto de serviços do SESC, na praça popularmente chamada “do Quartel”, atualmente denominada Misael Pena (esta era a denominação da atual Rua João dos Santos Neves, “a rua da Santa Casa”, cujo nome foi mudado em homenagem a Dr. Jones, depois do seu falecimento). Com sua planta quadrada, pátio interno largo, ameias no alto da fachada e corpo central em destaque, o quartel abrigava o contingente da Policia Militar antes de sua transferência para Maruípe.


9. Colégio Sagrado Coração de Jesus



O Colégio Sagrado Coração de Jesus, de ensino primário, pertenceu às irmãs vocacionadas para o magistério Odete, Iracema e Maria Silva, sendo esta última a diretora responsável pelo colégio, por isso também conhecido por “colégio de Dona Mariazinha”. Funcionou durante décadas na Rua Dom Fernando (em mais de um local), e fazia do Parque Moscoso o ambiente de recreio para os seus alunos, no intervalo das aulas. A casa da família de Dona Mariazinha situava-se na esquina da Rua Afonso Brás com a Vasco Coutinho.

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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