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2/01/2016
Ah, disse a senhora com indignação, não leia esse livro!
Era o ano de 64 ou de 65, eu não tenho certeza, que a memória, ainda que se espiche para trás, não alcança a justeza das datas.
Por quê? disse eu com espanto.
Ora, disse ela, isso é um lixo. Dá cá.Vou queimá-lo. É o mínimo que merece.
Bem depressa, apertei contra o peito o exemplar de A Oferta e o Altar, antes que a senhora tentasse arrancar o livrinho de mim, pois vi bem que as mãos dela se içaram.
Sinto muito, falei. Não dou não.
A senhora, já quase apoplética, explicou-me que aquele romance era uma traição de alguém, recebido com tanto carinho por nós (ela acentuou o nós) e que se aproveitou para escrever um chorrilho de misérias e mentiras sobre a nossa comunidade gloriosa (aqui, mais uma vez, a voz da senhora se alçou, magnífica).
Muito bem, eu falei. Mas, primeiro, eu vou ler. Depois, eu mesma queimo, se for horrível assim.
Saibam vocês, leitores, que eu li. E que me encantei.
Ainda hoje, tantos e tantos anos distantes daquela tarde de vento sul em que me encontrei com a senhora, uma ponta de espanto me morde. Como a "nossa comunidade gloriosa", como ela falava, não viu a carga da compaixão e do afeto, ali disfarçada em escritura?
É certo que tudo o que está descrito em A Oferta e o Altar não passa de uma ficção, pois, no livro, os traços de realidade, que tanto desesperaram aquela senhora, estão transfigurados. É a mágica da literatura que corrói o real e descola a vida feita de letras da vida miúda do cotidiano. Quem ousaria afirmar que as personagens descritas em um romance (em qualquer romance) são criaturas existentes de fato? Não são, na verdade. Não passam de caracteres gráficos que se unem por cima da brancura das páginas tais formigas viajeiras.
Mas, todo escritor sabe que as histórias que conta fazem quem lê escutar os latidos da alma. Por isso, é possível furar a magia da literatura, tal qual uma Alice que atravessa o espelho. Eu mesma, confesso, gosto de me mirar naquela garota de maiô vermelho que pisava firme e pintava coqueiros roxos para espanto das gentes de Ponta de Areia, a cidadezinha criada em A Oferta e o Altar, por Renato Pacheco.
Uma vez, com aquele vozeirão que não conseguia obnubilar a ternura, Renato me disse que, na época em que escreveu A Oferta e o Altar, era um jovem e orgulhoso juiz em sua missão por comarcas do interior. O choque, explicou ele, foi constatar, aqui e ali, a estreiteza de algumas mentes e a dureza de certas atitudes, embora a paisagem que a todos e a tudo rodeasse fosse tão bela e amena que, por si só, merecia o investimento amoroso de quem nela vivesse e justificava a alegria e a aceitação.
Nem sempre a oferta está à altura do altar, eu lhe disse, parodiando a epígrafe do livro.
Ele sorriu.
Nem sempre, ele disse.
Não sei se Renato iria gostar de eu estar, agora, contando essas coisas singelas. Não sei se ele preferiria que eu falasse sobre algo mais denso ou mais confortador. Para minha tristeza nem lhe perguntar posso.
Então, vou falando o que me vem à ponta do coração e da língua, certa de que a melhor homenagem que lhe posso fazer é lembrar.
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© 2004 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Ah, disse a senhora com indignação, não leia esse livro! Era o ano de 64 ou de 65, eu não tenho certeza, que a memória, ainda que se espi...
A melhor homenagem
Ah, disse a senhora com indignação, não leia esse livro!
Era o ano de 64 ou de 65, eu não tenho certeza, que a memória, ainda que se espiche para trás, não alcança a justeza das datas.
Por quê? disse eu com espanto.
Ora, disse ela, isso é um lixo. Dá cá.Vou queimá-lo. É o mínimo que merece.
Bem depressa, apertei contra o peito o exemplar de A Oferta e o Altar, antes que a senhora tentasse arrancar o livrinho de mim, pois vi bem que as mãos dela se içaram.
Sinto muito, falei. Não dou não.
A senhora, já quase apoplética, explicou-me que aquele romance era uma traição de alguém, recebido com tanto carinho por nós (ela acentuou o nós) e que se aproveitou para escrever um chorrilho de misérias e mentiras sobre a nossa comunidade gloriosa (aqui, mais uma vez, a voz da senhora se alçou, magnífica).
Muito bem, eu falei. Mas, primeiro, eu vou ler. Depois, eu mesma queimo, se for horrível assim.
Saibam vocês, leitores, que eu li. E que me encantei.
Ainda hoje, tantos e tantos anos distantes daquela tarde de vento sul em que me encontrei com a senhora, uma ponta de espanto me morde. Como a "nossa comunidade gloriosa", como ela falava, não viu a carga da compaixão e do afeto, ali disfarçada em escritura?
É certo que tudo o que está descrito em A Oferta e o Altar não passa de uma ficção, pois, no livro, os traços de realidade, que tanto desesperaram aquela senhora, estão transfigurados. É a mágica da literatura que corrói o real e descola a vida feita de letras da vida miúda do cotidiano. Quem ousaria afirmar que as personagens descritas em um romance (em qualquer romance) são criaturas existentes de fato? Não são, na verdade. Não passam de caracteres gráficos que se unem por cima da brancura das páginas tais formigas viajeiras.
Mas, todo escritor sabe que as histórias que conta fazem quem lê escutar os latidos da alma. Por isso, é possível furar a magia da literatura, tal qual uma Alice que atravessa o espelho. Eu mesma, confesso, gosto de me mirar naquela garota de maiô vermelho que pisava firme e pintava coqueiros roxos para espanto das gentes de Ponta de Areia, a cidadezinha criada em A Oferta e o Altar, por Renato Pacheco.
Uma vez, com aquele vozeirão que não conseguia obnubilar a ternura, Renato me disse que, na época em que escreveu A Oferta e o Altar, era um jovem e orgulhoso juiz em sua missão por comarcas do interior. O choque, explicou ele, foi constatar, aqui e ali, a estreiteza de algumas mentes e a dureza de certas atitudes, embora a paisagem que a todos e a tudo rodeasse fosse tão bela e amena que, por si só, merecia o investimento amoroso de quem nela vivesse e justificava a alegria e a aceitação.
Nem sempre a oferta está à altura do altar, eu lhe disse, parodiando a epígrafe do livro.
Ele sorriu.
Nem sempre, ele disse.
Não sei se Renato iria gostar de eu estar, agora, contando essas coisas singelas. Não sei se ele preferiria que eu falasse sobre algo mais denso ou mais confortador. Para minha tristeza nem lhe perguntar posso.
Então, vou falando o que me vem à ponta do coração e da língua, certa de que a melhor homenagem que lhe posso fazer é lembrar.
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© 2004 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Bernadette Lyra (Maria Bernadette Cunha de Lyra) nasceu em Conceição da Barra, ES, a 21 de outubro de 1938, filha de Álvaro Lyra e de Maria das Dores Lyra. Licenciada em Letras pela UFES, é doutora em Artes/Cinema pela ECA/USP e pós-doutora pela Universidade René Descartes, Sorbonne - França, 1989. É escritora e professora universitária, nas áreas de literatura e cinema. Foi secretária de Cultura no Espírito Santo. Tem trabalhos publicados em revistas e jornais de todo o país. Suas obras publicadas: As Contas no Canto (contos), 1981; O Jardim das Delícias (contos), 1983; Corações de Cristal ou A Vida secreta das Enceradeiras (contos), 1984; Aqui começa a dança (novela), 1985; A Panelinha de Breu (romance) Ed. Estação Liberdade, recriação parodística da lenda capixaba surgida a partir da história de Maria Ortiz, 1992; Memória das Ruínas de Creta, 1997; Tormentos Ocasionais, 1998; Tradução de Aden, Arábia, de Paul Nizan; A Nave Extraviada (não-ficção), 1995; O Parque das Felicidades (contos), 2009; A Capitoa (romance), 2014; Fotogramas do Brasil; As chanchadas ( não-ficção) 2014.
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