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A imaginação é como a neblina  – limite entre a luz e o abismo. Diria que  é um mergulho no pólen mas sem a sutileza das abelhas que o t...



A imaginação é como a neblina  – limite entre a luz e o abismo. Diria que  é um mergulho no pólen mas sem a sutileza das abelhas que o transportam; mergulhar, indistintamente, como homens famintos farejam no lixo o que lhes apetece, ou como quaisquer animais se atiram sobre suas reses abatidas. A imaginação dos poetas tem sua carga de fome, como a gênese do corpo e a origem dos sonhos tem sua carga de universo: um poema em outro poema, mimetizados, extraídos de duas essências, limítrofes, tecidas as linhas entre uma e outra manhã, entre um texto e outro que, porventura, entrelace outras mãos, conduza os seus pássaros em rodopios, desfiando os medos e as prisões.

Nunca hei de saber o momento exato em que me apaixonei pela poesia, ou seja lá por que razão eu a tenha surpreendido em quase tudo o que fiz.

Quando era pequena, saía de mãos dadas com minha avó Maria Jesuína, e caminhávamos pelo bairro Bom Pastor. Nascida em Juiz de Fora, cercada por morros e vegetações, gostava de vislumbrar as manhãs mineiras de um dos pontos mais altos da cidade. Havia nos arredores da casa uma trilha estreita que levava até os barrancos, de onde se avistavam de um outro ângulo os bairros mais distantes.  Nada sei dos sonhos nem o tanto que recriei de universos, mas da vegetação me lembro perfeitamente: em sua maioria eram pequenas ervas, capim – gordura, mamonas, algumas árvores ornamentais de floração amarela, touças de capim fino crescendo ao longo das calçadas, plantados aos montes no jardim inclinado, sob a rampa que dava acesso à varanda de nossa casa.

Juiz de Fora é uma cidade fabril – talvez por essa razão, ou porque fossem comuns as tempestades no fim dos dias, era, para mim, uma cidade em preto e branco. Mas foi ali, exatamente em seu arco-íris cinzento, que descobri as primeiras pinceladas de cores, traçadas ou não pela pequena poetisa, surgindo dos jardins, entre o cheiro das dálias e dos gerânios, nos canteiros de hortaliças, perscrutando nas bananeiras ao fundo do quintal. Não raro saíamos mamãe vovó e eu para colher, entre as fartas ramagens, algumas abóboras, das mais novas, e eu me punha a olhar as aboboreiras, as flores dos quiabeiros com seu miolo de um vermelho escuro e raro. Muitas vezes as acompanhei, nesses passeios pelos terrenos além de nossa propriedade, enquanto colhiam as abobrinhas, trazendo junto um molhe de serralhas e outro de cebolinha. Minha avó crescera no campo e minha mãe, numa cidade pequena, em casa de assoalho e paredes rudimentares – no banheiro, sentia-se o odor do cimento molhado, absorvido com perfume dos sabonetes; da cozinha desprendia-se o cheiro fresco de temperos, de bifes regados a um caldo acebolado e gotas de pimenta, possivelmente nunca mais perceptíveis em nenhum canto imaginável deste mundo. Da avó vieram todos os nomes de planta, o odor indecifrável da marcela, as descobertas de pequenas ervas, e de todos os tipos de folhagens e flores.

Havia sempre um lugar para se explorar naqueles dias intermináveis. Da janela do meu quarto viam-se os primeiros raios da manhã, e o acender das luzes, ao cair da noite, às vezes misturado aos odores de plantas, aos aromas da cozinha e à música dos Beatles.

Os verões não eram tão longos e as férias começavam mais cedo, sempre associadas, na minha euforia, à florescência exacerbada das rosas e dos ipês, ao cheiro de carne assada e à visão dos bambuzais ao vento, em contraste com o azul quase impermeável do céu.

Semelhante a esse azul, algumas doses de alegria pontuavam dias perfeitos, no sabor das balas compradas na venda da esquina, nos ramos sortidos de brincos de princesa, nos tecidos novos dos primeiros uniformes escolares. Lembro-me de minha mãe sentada ao meu lado, de tardezinha, ambas recostadas em algum lugar ou fronteira de mundos, e ela lia “As mais belas Histórias” para mim. Quando me levava ao dentista, íamos a uma padaria do Centro comer sonhos. Eu atravessava as avenidas olhando os fios, os pardais, repetindo, baixinho, os versos de Henriqueta Lisboa: “Andorinha no fio contou-me um segredo...”, mais ou menos assim.

Comecei a escrever de fato aos dezoito anos, copiando capítulos inteiros da novela O Profeta, de Ivani Ribeiro. Copiava e recriava das cenas o que eu lembrava em detalhes os mais sutis. Depois comecei a escrever poemas líricos. Percebi, na minha ingenuidade, que eram profundos, mas não sabia o quando ainda mergulharia naquele universo indivisível, em sua linguagem e emoção. Quando iniciei os estudos na universidade, conheci segredos de lagarta; depois, um tempo demorado de casulo, até que se me desprenderam as asas úmidas.

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Foto Maria Clara Medeiros Santos Neves, 2015. FICHA TÉCNICA Coordenação Reinaldo Santos Neves Pesquisa e transcrição de entre...

Foto Maria Clara Medeiros Santos Neves, 2015.
Foto Maria Clara Medeiros Santos Neves, 2015.


FICHA TÉCNICA


Coordenação
Reinaldo Santos Neves


Pesquisa e transcrição de entrevistas
Inês Aguiar dos Santos Neves
Reinaldo Santos Neves
Rogério Coimbra

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SUMÁRIO



Memorial descritivo

Vitória, ES: Cidade pontual no início do milênioFernando Antônio de Moraes Achiamé

Entrevistas (2004-2008)





















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© 2014 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Lúcia e Michael Carasso com seus dois filhos.  "Era uma manhã, bem cedo, como outra qualquer, quando de repente bateram à porta e ...


Lúcia e Michael Carasso com seus dois filhos.
Lúcia e Michael Carasso com seus dois filhos.
 "Era uma manhã, bem cedo, como outra qualquer, quando de repente bateram à porta e disseram em alemão: ‘Fora! Fora de casa agora!’

Nós éramos sete. Meu pai, minha mãe, eu e mais quatro irmãos. Saímos do jeito que estávamos, com a roupa do corpo. Todos, com armas em punho,  nos levaram para o carro. Foi uma longa viagem de trem, interminável, de  Salonica, Grécia, para a Polônia. Todo mundo em pé, igual gado, quase sem se mexer, de tão lotado que estava. Fazia frio... Sentíamos fome, sede, medo, desespero, tudo! Não entendíamos o que estava acontecendo.

Nosso destino foi um campo de concentração na Polônia. Lá eles separaram os homens das mulheres, as mães de seus filhos, a minha mãe de mim e dos meus irmãos. Só não me separaram da minha irmã Mary, que esteve comigo durante todo o tempo e saiu viva de lá também. Meus outros irmãos eu nunca mais vi.

As crianças, na maioria dos casos, eram descartadas. Eu era muito nova, a filha caçula, não tinha nem 12 anos, mas sobrevivi porque era grande e esperta, boa para trabalhar. Além disso, tinha facilidade com línguas e aprendi a falar alemão lá dentro, o que me fez ser a tradutora oficial dos nazistas: traduzia do alemão para o grego ou espanhol. Facilitando a comunicação entre eles e nós, prisioneiras.

Os principais campos em que passei foram de Auschwitz-Birkenau, Dahau e Bergen-Belsen, na Alemanha, de onde fui salva.

O trabalho era inútil, praticamente com o objetivo de acabar com nossa força e ânimo: destruíamos casas novas, lindas, que eram dos judeus, tirando janelas, portas, tudo... As peças de valor eram separadas. Também cavávamos terra, andávamos muito, íamos e voltávamos de um lugar a outro. E sempre com gente nos vigiando. Quem parasse de trabalhar apanhava. Para podermos descansar, nós nos vigiávamos. Quando os nazistas estavam chegando, um avisava ao outro para todo mundo voltar a trabalhar. Começávamos cedo e só parávamos à noite, totalmente sem energia.

Banho era com água gelada e o sabonete era feito com os corpos das pessoas que eles matavam, ou de pancadas, ou com tiros ou nas câmaras de gás. Mas só descobrimos isso muito tempo depois... Tínhamos que estar limpinhos e arrumados no outro dia. Mas como? Lavávamos a roupa à noite, mas não dava tempo de secar. Por vezes tínhamos que torcer e colocar embaixo do colchão. Claro que não ficava seca. E aí, muitas vezes, dormíamos nus.

Da família só sobramos eu e minha irmã Mary. Muitas vezes ela dava a comida dela para mim, como um reforço, e acho que isso me ajudou a sobreviver. Com um jeitinho que não “era brasileiro”, muitas vezes ela pedia às chefes do nosso bloco algo a mais para comer, alegando qualquer desculpa. Algumas meninas, que não eram tão ruins, acabavam nos ajudando. No almoço era um caldo ralo, parecendo sujo, feito de casca de batata, sobras dos alemães. E esse caldo era muito salgado, uma forma de tortura também, porque não podíamos beber água a hora que quiséssemos. De manhã, era um café ralo apenas e, à noite, nem sempre tinha algo pra comer. Às vezes uns pedaços de pão tipo caseiro para dividir entre todas nós e só.

Dentro do campo de concentração de Auschwitz tocava uma sirene e ninguém sabia o que era aquilo. Depois, subia uma fumaça e um cheiro horrível. Só depois as pessoas foram desconfiando o que era aquilo. Eram os crematórios.

As pessoas lá dentro eram conhecidas como números. Tenho um número tatuado no braço até hoje: 39.422. Eu era uma dentre milhões de pessoas que estiveram sob a mira furiosa dos SS. Pessoas não! Porque pra eles éramos “sticks”, ou seja, peças. Nunca quis apagar esta tatuagem porque olhando para meu braço eu sei que sobrevivi.

O dia mais feliz daqueles dois anos e meio em que fiquei presa, foi quando os soldados do exército americano chegaram e gritaram: “Estão livres!” Saiu todo mundo gritando, de euforia, de surpresa, de gratidão, de alegria! Gente soltando as ferramentas de trabalho que tinham nas mãos, se jogando no chão, xingando, correndo desesperadamente de um lado pro outro, se juntando, dando as mãos... Teve gente que não acreditou.

Aí, nos levaram para o campo de refugiados na própria Alemanha. Depois, fomos para um refeitório, onde tinha lugar para todo mundo tomar banho e se vestir. Foi ali que encontrei minha felicidade! Conheci Michael, meu falecido marido, que também era grego e esteve preso como eu. E foi amor à primeira vista... Minha irmã também se apaixonou pelo melhor amigo do meu marido, se casaram e foram para os EUA.
 

Eu e Michael fomos para a Grécia. Ele queria ver se encontrava alguém da família dele e eu também tinha esperança de encontrar alguém da minha. Mas não achamos ninguém. Nós nos casamos e tivemos dois filhos, mas, em 1950/1951 fomos para Israel, onde meu marido tinha alguns familiares. Lá ficamos por cerca de três anos.

Pensando em sair de Israel, fomos numa agência de turismo e vimos cartazes de vários países. O do Brasil tinha uma bananeira e uma arara linda! Aquilo chamou nossa atenção, já que sempre gostamos da natureza. Vimos que ali podíamos ser felizes com nossos filhos. Foram mais de vinte dias de uma viagem terrível de navio.

Fomos para São Paulo, mas o navio parou no Rio de Janeiro e a primeira imagem que vimos foi o Cristo Redentor de braços abertos. Então tivemos certeza de que seríamos felizes aqui. Chegamos em 21 de abril de 1954, meu marido falava que era o dia do renascimento da gente. E foi mesmo! Até hoje não sei quantos anos eu tenho! rsrsrsrsr


Em São Paulo, meu marido foi camelô. Depois, viemos para Vila Velha. Ele foi camelô aqui também. Montou uma loja e fomos crescendo na vida. Construímos tudo aqui. Dois filhos, seis netos e cinco bisnetos. As últimas palavras do meu marido para mim foram: ‘Lúcia, não se esqueça da minha promessa’. A promessa era a de colocar nossa história no mundo, para que atrocidades como o holocausto nunca mais aconteçam.

Nossa história é muito triste, mas com um final muito feliz."

Lúcia Carasso.

[Depoimento especial dado à Estação Capixaba. Reprodução autorizada pela depoente.]

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Mantive com Renato Pacheco uma parceria na autoria de vinte livros, reunindo títulos sobre história, obras didáticas e de literatura infanti...

Mantive com Renato Pacheco uma parceria na autoria de vinte livros, reunindo títulos sobre história, obras didáticas e de literatura infantil. Alguns desses trabalhos contaram também com a colaboração da professora Léa Brígida Rocha de Alvarenga Rosa e de meu irmão Reinaldo.

Dos livros infantis, dois, integrantes de uma trilogia iniciada com Tião Sabará, publicado pela Editora Moderna, permanecem inéditos. Além destes, um último romance, ao qual, por minha culpa, minha máxima e exclusiva culpa, não consegui dar seguimento, ficou inacabado.

E é dele que desejo tratar, na tentativa de expiar um pouco essa culpa, embora talvez a única forma de me redimir com a memória de meu amigo e parceiro fosse atacar a obra com fôlego de sete gatos, e fazer a parte que me coube na empreitada.

Não que eu não tivesse tentado. Mas o caminho pelo qual enveredei mostrou-se ser uma vertente diferente da que Renato seguiu e, pela primeira vez em nossa parceria de autores e amigos, comecei a sentir dificuldade para sintonizar o texto que eu redigia e o que Renato me entregara. Aí parei, para me dar um tempo, mas sem pedir isola a Renato. Por isso, volta e meia, ele me cobrava o romance, enquanto eu ficava na moita.

Com a sua morte, senti-me desamparado de vez para prosseguir a história, porque, independentemente do que ele já havia escrito e do que eu escrevi ou pudesse escrever, a sua presença ao alcance das minhas consultas, como fonte de informações ao vivo, era de fundamental importância para a conclusão do livro, pelo menos naquilo que me dizia respeito, segundo o projeto que havíamos idealizado.

E que livro era este?

Bateu na telha de Renato escrever um romance policial centrado no Radium Hotel, tendo por cenário a cidade de Guarapari, por volta dos anos 50. Ao livro, ele deu o nome preliminar de Crime no Radium Hotel. Mas, desde logo, percebi que gostaria que fosse um título definitivo.

O Rádium Hotel e Guarapari formariam, assim, o "ambiente" nuclear da trama policialesca (!), que teria como principal personagem um médico improvisado em detetive, Dr. Silva Pontes.

Em mensagem prévia a que denominou "Duas Palavras", dirigida aos futuros leitores, Renato confessou, conforme está nos manuscritos em meu poder: "O Dr. Silva Pontes foi inspirado no famoso e humanitário médico Dr. Silva Mello (1896-1973), tragicamente morto por seu mordomo, e descobridor das maravilhas curativas de Guarapari [nos manuscritos, desenvolvendo a sua parte do romance, Renato chegou até a grafar Silva Mello, ao invés de Silva Pontes]."

Renato era um grande admirador do médico, a quem se referia como o propagandista pioneiro das virtudes medicinais e curativas das areias da Cidade Saúde, no tratamento natural para alguns tipos de reumatismo. Silva Mello teria, portanto, mais do que ninguém, lugar privilegiado no romance, sob o manto diáfano de Silva Pontes.

A descrição do personagem, Renato a tirou da própria pessoa de Silva Mello, a quem chegou a conhecer em Guarapari: "... uma figura altiva, de pincenê, costeletas bem aparadas, botinas, e cabelos visivelmente pintados de roxo."

E, no romance, a descoberta da Cidade Saúde por Silva Pontes, Renato a foi buscar na obra Guarapari, Maravilha da Natureza, da autoria de Silva Mello:

O Dr. Silva Pontes soubera, na Suíça, das virtudes radiotivas das praias de Guarapari e resolvera visitar a pacata localidade de pescadores, 60 km ao sul de Vitória [...] Silva Pontes pegou seu Ford 29 e enfrentando a falta de estradas saiu do Rio e foi a Muriaé, em Minas Gerais, ao norte, desceu para leste, em São Miguel do Veado, Cachoeiro de Itapemirim, e, três dias depois e dois pneus trocados, chegou à paradisíaca cidade, então com cerca de 400 moradores, a maioria de pescadores. Examinou detidamente as condições de salubridade, as virtudes radioativas da monazita e ilmenita, abundantes nas praias da cidade, e voltando ao Rio, passou a receitar para seus doentes de reumatismo que viessem enterrar-se nas areias de Guarapari.

Numas das muitas achegas que escreveu, depois de já me haver entregue o eixo básico do romance, na vertente que produziu, Renato me passou a seguinte sugestão, sob a pergunta "que acha?": "À moda do Inspetor Morse, Silva Pontes pode, de vez em quando, fazer umas citações: Shakespeare, Dante, Camões, Manoel Bandeira (amigo dele)..." E me recheou de citações que poderiam ser colocadas na boca do nosso médico-detetive.

Outras figuras reais também estão contempladas nos originais de Renato: Jayme Santos Neves, Rubem Braga, Heliomar Carneiro da Cunha, Boris Ackermann — gerente da Mibra, Monazitique e Ilmenite du Brésil, o cantor Sílvio Caldas... A presença de Sílvio Caldas aparece diretamente ligada ao cassino que funcionava no Radium Hotel.

O Cabloquinho querido, como era chamado, viera, em outubro, cantar no hotel, sob o patrocínio de Heitor Latorraca, arrendatário do cassino (clandestino) e tolerado pela polícia e pela Justiça. Gostara da cidade e dois meses depois ainda se deixava ficar, comendo, bebendo e cantando. Dizia que já lançara suas músicas de carnaval, e voltaria para o Rio depois do tríduo momesco.

Além dos nomes citados (afora outros mais), participa da narrativa, como verdadeiro ator coadjuvante, o célebre padre Manezinho — Manoel do Nascimento ("cuja vida é descrita em A Centopéia, de Jayme Santos Neves, Vitória, edição do autor, 1989, p. 81 a 85"), diz Renato, nas "Duas Palavras".

Já no primeiro capítulo, "Um corpo no jardim", da versão inicial do manuscrito de 58 páginas que me legou (fora as que acrescentou depois, para que eu as incluísse onde coubessem), ocorre a menção aos dois personagens principais do romance, Silva Pontes e padre Manezinho. Vale a transcrição (este primeiro capítulo, Renato modificou em parte, posteriormente):

Os cães da rua, invadindo o amplo jardim do Radium Hotel, à beira da praia da Areia Preta, é que, com seus latidos, deram o alarme. Já lambiam e mordiscavam um cadáver desnudo.
Dona Maria Silveira, a cozinheira-chefe, e suas duas auxiliares, vieram correndo para ver que tanto barulho era aquele.
Encontraram o cadáver de uma hóspede, Dona Marinalva Cunha, em decúbito dorsal, sobre uma moita de azaleias.
Dona Maria gritou:
"Socorro! Socorro!"
As auxiliares, Pretinha e Jorete, correram para o interior do hotel, em busca de ajuda. Logo uma pequena multidão de hóspedes, empregados e curiosos se formou em torno do corpo. O gerente, Delduque Bonfim, telefonou para a delegacia e, peremptório, disse:
"Afastem-se. Não mexam em nada..."
Num jipe velho, o delegado leigo Manoel Lyra chegou e dispersou os curiosos.
Soube que era hóspede do hotel o famoso médico carioca Dr. Silva Pontes e logo o convidou para presidir a autópsia.
O médico, descobridor das areias radioativas, se desculpou com sua próxima viagem para o Rio, e eximiu-se da função.
"Então," disse o delegado, "como faço sempre, vou chamar o sacristão e o padre Manezinho para peritos..." E se justificou: "O sacristão fez até o 3° ano de medicina..."
Silva Pontes, embora tendo se desobrigado do encargo, observou detidamente o local em que o corpo caíra, o possível ponto de queda na varanda do segundo andar do hotel, e, com surpresa, ao virar-se o corpo, verificou tratar-se de uma quase paralítica, sempre em cadeira de rodas, vítima de avançado reumatismo.

Ainda sobre o padre Manezinho, que em vida foi personagem que deu o que falar quando vigário na Serra e depois de Guarapari, Renato espalha pelos seus originais várias informações que retratam o temperamento franco e o modo de vida escandaloso do sacerdote. Puxemos, do capítulo 10, uma passagem ilustrativa:

Uma bela afro-brasileira, jovem baixinha e gordota, chegou à porta e disse:
"Senhor padre, o almoço está servido..."
O padre convidou o médico para acompanhá-lo no repasto de peixe frito, mas este, polidamente recusou.
"Então o senhor fica intimado para a sexta-feita que vem. A Maria vai fazer uma torta capixaba, ouviu falar?"
E à guisa de despedida disse:
"A Maria eu não posso apresentar ao senhor como minha esposa, porque a Santa Igreja Católica não deixa. Mas não posso dizer que é minha empregada porque ela dorme comigo..."

Pelo trecho acima, e pelo início do capítulo I, antes transcrito, pode-se depreender a linha que Renato Pacheco pretendia fosse imprimida ao "nosso romance", ou seja, à novela que teria motivação policial, mas apenas como chamarisco, para épater le bourgeoisie, como gostava de dizer, já que visava, principalmente, a reconstituição da época de ouro do Radium Hotel, em Guarapari. Além de, naturalmente, prestar-se a um divertissement para os seus dois autores.

Este toque de divertissement Renato o quis deixar claro, penso eu, na pequena introdução que escreveu para o romance: "Este livro, à moda de Ellery Queen, é fruto de antiga e fraternal associação criativa entre Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco. Realiza, a quatro mãos, o primeiro romance policial "capixaba" do século XXI, e talvez o primeiro romance policial "capixaba" de todos os tempos, se não levarmos em conta o livro de Azambuja Suzano do século XIX."

Generosa visão dourada, do meu parceiro e amigo!

No capítulo segundo, intitulado "O Radim Hotel", confirma-se, pelo manuscrito em meu poder, a proeminência que Renato desejava dar, sem prejuízo da trama, ao principal hotel de Guarapari na década de 50 do século passado. (E aí podemos enxergar a mão do historiador impulsionando o romancista. Neste sentido, juntou aos seus originais várias informações históricas, para caracterizar a época do romance.) Vamos ao trecho que ilustra esta afirmação:

Não se pode dizer que o prédio do Radium Hotel é bonito. Grande, isto ele é, um sobradão em forma de V com mais de dois mil metros quadrados de jardim em torno.
Sua construção fora planejada por um amazonense que estudara em Vitória, Adalberto Ferreira do Vale, presidente da Previdência Capitalização. Na falta de recursos, ele vendeu o prédio, ainda no esqueleto, ao Governo do Estado, que o concluiu, aproveitando a planta previamente desenhada.
O hotel competia com os outros dois hotéis da localidade: o Veranistas e o Guará, menores e não tão bem localizados.

Mais tarde, vieram novos acréscimos sobre o Radium Hotel, para serem aproveitados onde fossem cabíveis. Um deles, sob a forma de capítulo a mais, transcrevo a seguir:

Silva Pontes sabia que havia, no hotel, um cassino clandestino. Desde o governo do general Dutra, dizem que a pedido de sua esposa, Dona Santinha, católica e ultraconservadora, todos os jogos de azar — isto é, aqueles que não dependem de talento ou habilidade, e simplesmente de sorte para o ganho — estavam proibidos no Brasil, desde o popular e tolerado jogo do bicho, inventado no fim do século XIX pelo Barão de Drumond, para sustentar o Jardim Botânico. A polícia, no entanto, fazia vista grossa, permitindo que, aqui e ali, proliferassem casas de tavolagem. Não os magníficos cassinos que o médico conheceu em Monte Carlo, mas tugúrios mal iluminados, onde os jogadores satisfaziam as suas necessidades psicológicas de emoções fortes.
Silva Pontes achou — ele mesmo se considerava um casmurro — que o jogo era coisa de crianças, para se adequarem às regras da vida, ou de adultos imaturos. Porém, por curiosidade, foi visitar o cassino do Radim Hotel, situado numa ala lateral do prédio, com entrada franca para maiores.
Admirou-se do luxo e do bom gosto. Grandes cortinas não deixavam que a luz passasse para a rua e ventiladores de teto arejavam o ambiente. Muita gente bem vestida tentando a sorte. Duas roletas, uma mesa de bacará, diversas mesas de pôquer, e, no fundo, mais afastado, um bingo eletrônico, novidade no Brasil, com predominância de apostadores idosos.
Deu uma pequena volta pelo local, observou fisionomias tensas. O gerente convidou-o para uma roda de baralho, mas, delicadamente, recusou, e foi saindo de fininho. Por certo, aquele não era seu ambiente...
Soube que, de quando em vez, quando a imprensa denunciava, ou em época de eleições, havia batidas policiais, adredemente avisadas: "Dia tal vamos fechar o jogo."
O cassino ficou fechado dois a três dias e reabriu logo. Graças ao cassino é que grandes artistas internacionais e nacionais como Lucho Gatica, Sílvio Caldas, Orquestra Severino Araújo, tinham se apresentado no teatro do Hotel.
Consta que, certa feita, numa das investidas da polícia, uma velhinha solicitou:
"Ah, seu guardinha, deixa cantar mais uma pedra. Estou pela boa..."
Nas suas matutações, meio dormindo, meio acordado, Silva Pontes se perguntava: — Por que os legisladores não regulamentam logo essa porcaria do jogo de azar, que deveria chamar-se jogo da sorte?
Ele sabia o porquê, mas calado ficava.

Na folha de abertura dos seus originais, precedida de um croquis à mão reconstituindo Guarapari na época do romance, Renato assinalou três datas: 20.02.2001, 07.01.2002 a 10.01.2002. Era um velho hábito que tinha, de datar seus escritos. Como se lançava com obsessão àquilo que se propunha fazer, fazendo-o de uma arrancada, enquanto o tema lhe batia a passarinha (ele se confessava um obcecado, quando tinha de fazer alguma coisa), passava-me em seguida o material que terminava e assumia a posição de cobrador do que desejava que fizéssemos juntos. "Já fiz a minha parte, falta a sua," costumava dizer, atenuando a cobrança com a liberdade que me dava para alterar tudo, como eu bem entendesse, sem que se preocupasse em nada com o sofrimento intelectual em que me deixava, espremido no córner de um ringue que ele mesmo armava.

No caso do Crime no Radium Hotel foi exatamente assim. Deixou em meu poder os manuscritos produzidos no ímpeto da inspiração, sem preocupações estilísticas, sem um maior rigor narrativo, embalado pelo projeto que o entusiasmara ("a gente deve ter sempre um projeto em execução, para espantar a morte"), que era praticamente um roteiro destinado a agir no meu ânimo como o impulso inicial, o chute na bola, o starting point do romance. O caráter de roteiro fica evidente em muitas passagens do manuscrito, em que a narrativa se faz quase telegráfica, fixando pontos e insinuando sugestões a serem aprofundadas e desenvolvidas para se chegar ao texto final.

Quando começou a sentir que eu me retardava em meter a mão no Crime no Radium Hotel, a pressão passou a ser explícita para que eu esquentasse as turbinas: num envelope branco, para cartas, onde subscritou "Feliz Páscoa, votos extensivos a Terezinha e família", e onde colocou a data 30.03.2002, premiou-me com a transcrição digitada da entrevista que se segue, feita com o sr. Antônio Vieira, 70 anos, aposentado do Radium Hotel, endereço Rua José Barcello de Mattos, 1000, Guarapari, fone 33615188:

Guarapari 28 de março de 2002

O entrevistado começou a trabalhar no Radium Hotel em outubro de 1953. O estabelecimento foi inaugurado em 8 de dezembro de 1953, dia de Nossa Senhora da Conceição e dia da cidade. O prédio pertencia ao Estado que o arrendou a Alberto Bianchi. Primeiro gerente: Manuel Jantzen Fom. Outros servidores: o depoente, o motorista Libonati, o almoxarife Ângelo Forastieri e o chefe de cozinha Ovídio Chagas.
O cassino (clandestino) funcionou desde antes da inauguração oficial. Como a luz (da cidade) era desligada às 22 horas, os jogadores seguiam à base de lampiões. O contrato com Bianchi, de 10 anos, findos os quais as benfeitorias passariam para o Estado, foi prorrogado por Hélcio Cordeiro, por mais dez anos, em dezembro de 1961. Em dezembro de 1968, Christiano Dias Lopes, então governador, tomou o hotel na marra.
Havia 18 apartamentos, 30 quartos e o sótão chamado república, onde não havia divisões. Mais tarde ficaram apenas 49 apartamentos, inclusive a suíte do Governo do Estado, eliminando-se os quartos.
O auge do funcionamento do Radium foi até 1963, e o cassino funcionava de acordo com a maior ou menor complacência das autoridades.
No cassino havia bacará, campista, roleta, street flash, este um jogo violentíssimo de que participavam poucos jogadores. Uma vez Gaturamo ganhou na roleta quatro vezes em seguida no número ZERO. Pessoal do pif paf, selecionados entre os maiores jogadores: Joelmir, de Cachoeiro, Aprígio Gomes, Graciano Espíndula, José Tristão. Chegavam sexta-feira à tarde e saíam segunda-feira de madrugada. Graciano mandou vir de Vitória um barbeiro, pagando a corrida de 50 km, e fez a barba sem levantar-se da mesa de jogo. Outros jogadores: Márcio Vivacqua, Adamastor Bomfim, os Pretti (Gato e Pelota).
Sobre Silva Mello: ficou duas temporadas no Radium, mas ele preferia um hotel mais modesto, o Guarapari (onde hoje está o Edifício Caparaó, na praça Central, do sr. João Pessoa). Inicialmente, além de estudar as areias pretas, ele fez um pequeno estudo sobre a longevidade de três centenárias irmãs, que moravam perto do Canal, na rua das Bonecas. Uma vez ele disse, no Hotel, que o asfalto tirava a radioatividade das ruas. Nessa época ele trouxe americanos e o padre Xavier, da PUC do Rio, que estudaram os pendores curativos das areias monazíticas. Famosos que, nesse tempo, estiveram no Hotel: Tenório Cavalcante com sua filha e o genro Hércules de Freitas Lima (que foi o deputado federal mais novo na época); Elza Soares, cantora, com seu marido Garrincha; Maysa Monjardim, que bebia gin logo cedo, e ficou seis meses no Hotel; o conde Matarazzo e sua esposa; o dono das Casas da Banha e muitos outros. Na semana santa o dono dava de 40 a 50 "cortesias" para pessoas gradas virem comer torta capixaba no Radium. Outros que se hospedavam no Radium, como convidados: General Amauri Kruel; senhores Genaro Pinheiro e João Batista Pinheiro, com sua esposa. Como os quartos eram geminados, o porteiro Alfredo encaminhava a turma da república para espreitar no apartamento vizinho casais em lua de mel. Sobre o padre Manoel: Um amigo dele, Ciríaco Ramalhete, arranjou-lhe um rapaz para auxiliá-lo em sua casa. Todas as noites o padre ouvia a BBC de Londres. Uma noite, o informante estava jogando víspora nas vizinhanças quando apareceu o empregado do padre, todo rasgado, dizendo que o padre o quisera violentar.

Não parou aí. No Natal de 2003, presenteou-me com um exemplar do livro de Silva Mello, Guarapari, Maravilha da Natureza, que havia encontrado no sebo da rua 13 de Maio, e que me deu, com a dedicatória: "Para Luiz Guilherme, na esperança de que o Silva Mello inspire o Conan Doyle Jr. Com abraços do velho amigo Renato".

Eu já havia lido o livro graças a um exemplar que Ivan Borgo me emprestara, para que pudesse — no dizer de Renato —, ir me inspirando para a tarefa que me estava sendo firmemente cobrada. Mas aquele presente que, diga-se de passagem, recebi com enorme prazer, não só porque pude devolver o exemplar de Ivan, como também por poder usar o meu com a liberdade de rabiscá-lo à vontade, foi uma estocada a mais de Renato, no lado esquerdo do peito, me convocando para concluir o nosso compromisso, quebrando o passo de cágado que eu imprimia ao romance.

No entanto, apesar de pressionado e encurralado "tão discretamente", continuei driblando o meu amigo até o fim (literalmente falando, do que não me vanglorio), com o Crime no Radium Hotel. Em grande parte, como já disse, por incompetência pessoal em compor o romance a quatro mãos; outro tanto, por certa macunaímica preguiça em juntar as pontas do que Renato escreveu com o que eu já tinha escrito e ainda restava por escrever; e, finalmente, devido àquela vã tranqüilidade de quem achava que podia deixar para amanhã o que estava sendo pedido hoje, acreditando que o amanhã fosse contornável a ponto de torná-lo imperecível. Por minha culpa, minha máxima culpa, claudicou a "antiga e fraternal associação criativa entre Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco." E por negligência minha, perdi o compasso no contrapé de uma procrastinação, indesculpável e perdulária.


***

Seguem-se:

1) Texto corrido extraído da primeira versão manuscrita do romance, com 58 folhas numeradas, escritas na frente e no verso.

2) Diversos textos, também manuscritos, apresentados posteriormente por Renato, quase todos com a indicação "onde couber". (Resolvi deixar soltos e não encaixar na forma inicial do manuscrito.)

3) Diversos subsídios e sugestões para possível aproveitamento.

4) Finalmente, os capítulos que cheguei a produzir, nos quais fiz alguns ajustes para a eventual divulgação. Não fui além do que está apresentado.

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

É o diabo tentar falar assim, de cara lavada e em corpo 12, sobre o quem fui, quem sou, um sujeito/personagem que não se considera à altura...


É o diabo tentar falar assim, de cara lavada e em corpo 12, sobre o quem fui, quem sou, um sujeito/personagem que não se considera à altura de tal autor, de tal leitor. Mas vamos ahead, quae sera tamen, mais tamen do que quae sera, o que quer o que pode esse cara chamado Bith, que organizou esse seminário e me impôs expor-me à língua cúpida de nossas meias dúzias de leitores cada, que esse negócio de literatura nunca mereceu mesmo muita atenção por parte do distinto grande público cá por essas bandas. E ainda bem.

Devo confessar que minhas leituras iniciais já me conduziam ao caminho que agora trilho com razoáveis serenidade e segurança (notaram a concordância, que bonita?). Antes de desaguar, impávido colosso, nos braços de Shakespeare, Bernard Shaw e Joyce (No original! No original! — graças ao Mário); dos românticos ingleses (graças à Aurélia) e de Edward Albee, Arthur Miller e Tennessee Williams (graças ao Carrozzo), pois, antes disso, eu já estava impregnado de Umberto Eco, Fernando Pessoa, Camões, Günter Grass, Machado de Assis, José J. Veiga, Drummond, Gilberto Mendonça Teles (o poeta) e arredores.

Mas meus dois autores favoritos de adolescente, os que me puseram no, ahn, digamos assim, caminho da boa literatura, foram (que Borges, que nada!) Marcial Lafuente (M.L.) Stefania e… sabe que esqueci o nome do outro? Agora, que os livros dele tinham uma heroína formidável, e isso é o que importa, lá isso tinham: Brigitte Montfort, filha de Giselle, a espiã nua que abalou Paris. Perdi a conta das vezes que me escondi debaixo do lençol, imaginando-me um daqueles espiões russos (eu sempre gostei de ser do mal) que ela seduzia com seu corpo sedento, seus olhos verdes, sua boca molhada… quantas vezes eu quis possuir um segredo atômico qualquer só pra ser perseguido por Brigitte Montfort, com aquelas coxas grossas, que, ao final, terminaria por usar, depois de abusar sexualmente de mim, para quebrar meu pescoço, com uma torção absolutamente precisa. Que época! Foi assim, sob a influência de Brigitte Montfort, aliciadora de minhas fantasias adolescentes, que descobri minha atriz favorita, logo que a censura foi defenestrada (“pela janela”, diria um amigo meu, todo cheio de pleonasmo): Georgina Spelvin. Aos cultores daqueles inteligentíssimos filmes tchecos e franceses, permito-me lembrar que se trata de uma atriz americana, protagonista de O diabo na carne de Mrs. Jones (co-estrelado por John Holmes, eu acho) e — um cult! — Garganta Profunda. Por este último, aliás, tal o grau de realismo que imprimiu ao seu personagem, ela deveria ter ganhado um Oscar (Frances McDormand não ganhou, só por ficar repetindo “yeah!”, em Fargo, com aquela cara da Família Buscapé dos hillbilllies americanos?).

Tá bom, voltando à vaca frígida, eu confesso. Minha primeira vez foi aos 6, 7 anos, mas acho que nem a idade me redime de ter lido então As aventuras de Tibicuera. E onde é que entra a tão ansiosamente aguardada parte de “construção” do poeta? Aí é que está. Não entra. Deixo isso aos meus biógrafos, se houverem (o plural foi de propósito, só pra chatear). Tomara que nenhum deles me pegue vivo. Eu sei lá do poeta, mas lembro bem de um professor de Geografia, desse eu me lembro, por duas razões: uma, que me livraria de uma prova final chatíssima, sobre aspectos geológicos sabe Deus de onde, se eu fosse capaz de dizer as capitais de uns tantos países esquisitos que ele escolheria aleatoriamente. Isso era no dia seguinte e, por conta de ter passado a noite em cima de um atlas velho e ensebado, é que sei até hoje que a capital do Laos é Luang Prabang. Pára de ler este parágrafo e pergunta a alguém aí do lado se sabe qual a capital do Laos. Ou do Chade. Duvido. Ninguém mais sabe. E a segunda coisa é que, um dia, o Ozílio Rubim (é o nome do professor), enquanto eu olhava distraído para o meu futuro pela janela da casa dele na avenida Santo Antônio, me joga nos braços um livro e diz: “Lê. Você vai gostar.” Que livro? Nada menos que Cem anos de solidão. Ele jogou uma obra-prima da literatura aos pés dos meus 14 anos. Te devo essa, Ozílio. Este talvez tenha sido o acontecimento mais importante da minha adolescência, exceto, talvez, o fato de ter testemunhado Jorge Reis, goleiro do Rio Branco, bater o recorde (eu prefiro record, mas vá lá que seja recorde) mundial de tempo sem tomar gol: 1.609 minutos invicto.

Pois é. O título (do livro, não do Rio Branco) me fascinou, a primeira frase me fascinou, as ilustrações de Carybé; o realismo fantástico me pegou no colo, me jogou na parede, me chamou de meu amor. Não consegui nunca mais desgrudar um olho desse tamanho de qualquer lugar onde vejo escritas as palavras mágicas Gabriel García Márquez. Se eu tivesse que plagiar um livro… se alguém, um conselho, tiver que plagiar um livro, ou parte de, que seja esse Cem anos de solidão, qualquer coisa menos não vale o esforço, meu bem. E pega mal.

Daí pra frente é mole. Quem se apaixona por García Márquez aos 14 anos não consegue ficar só olhando, impassível, para o Saara de uma folha em branco, tem que mergulhar nas dunas, sentir o sol, a areia nos olhos, na boca, nos dentes, e ficar frustrado com a imensidão intransponível, mais ou menos como o gato do Reinaldo [Santos Neves] que, ao se deparar com as dunas de Itaúnas, pensou que nem se vivesse eternamente conseguiria cagar o suficiente para usar aquele areal todo.

Depois de GGM, por linhas tortas, conheci o Oscar [Gama Filho] (acho tão chiques esses colchetes!). Ele estava experimentando uma linguagem poética meio maluca, mas tremendamente inovadora para o local (Vitória) e a época (fins de 78), baseado em estudos sérios (o Oscar sempre levou a literatura a sério, talvez um pouco a sério demais, em alguns momentos) sobre o stream of consciousness de James Joyce e Virginia Woolf. Enquanto Vitória nos olhava com espanto, sem entender nada (às vezes nem nós mesmos entendíamos, eu acho que), colhíamos um elogiozinho do Drummond aqui, de Jorge Amado ali (mas esse é suspeito), do Gilberto Mendonça Teles adiante, e sentávamos praça com Reinaldo Santos Neves, José Augusto Carvalho, Renato Pacheco, Marcos Tavares e Luiz Busatto no Grupo e na Revista Letra (sem esquecer do Luiz Guilherme Santos Neves, o membro de fora do Grupo).

Assim, como quem não quer nada, fui-me construindo, sem léu nem chapéu, este que excessivamente assim sou, já li isso em algum lugar. Deve ter sido em Dédalo, meu último livro. Ah, sim. Os meus livros.

Comecei plagiando e declamando uns poemas de Kipling no programa policial Ronda da Cidade, apresentado pelo então radialista Gérson Camata, vocês sabem, o marido da deputada Rita Camata (parece que ele também foi eleito pra alguma coisa aí), o qual, por não entender lhufas de literatura, nem desconfiava de que eu roubava aqueles poemas do Tesouro da Juventude, que lia aos borbotões na Biblioteca Pública da PMV, em tardes de nunca mais. Camata não entendia de literatura, mas logo, logo, arrumou um jeitinho de ficar rico, enquanto eu continuo ralando (e tendo dúvidas sobre se sei algo do assunto).

Depois disso, escrevi meus próprios poemas. Três livros vieram em mimeógrafo: De amor à política (o livro, acreditem, é bem melhor que o título), com Oscar Gama Filho; A fuga e o vento e Exercício do corpo, que uma garota uma vez me perguntou se se tratava de um manual de Educação Física. Aí, o Reinaldo, pra meu azar, era editor da FCAA/Ufes e se recusava terminantemente a publicar os amigos mais chegados, com medo de ser acusado de alguma espécie de sacanagem. De modo que precisei de uma menção honrosa em concurso para publicar Os mortos estão no living (contos). Para publicar os poemas de Lição de Labirinto, então, precisei vencer o concurso.

Então, que o espaço tá ficando curto, escrevi Tanto Amar, um livro com só l4 poemas falando sobre a paixão, meu tema de sempre favorito, que a Vera Viana, na Secretaria de Cultura da PMV, abençoada por Vítor Buaiz, publicou, junto com a CEF. Foi lançado em 91. Naquele ano, conheci uma mulher, ao redor da qual circulei, embevecido, apatetado, os próximos quase 5 anos, até que, em princípios de 96, o bom senso dela prevaleceu pela primeira vez e ela me deixou, o que me obrigou a voltar a escrever – para exorcizar meus fantasmas (pra me “imolar em público”, disse o Adilson Vilaça).

Ela me rendeu, ao menos isso, um livro: Sonetos da despaixão, que inaugurou, em julho, a minha editora, Flor & Cultura, logo seguido, em novembro, por Dédalo. A tal mulher? Dela nada mais sei nem me seja perguntado. Que a neve de Munique lhe seja leve.

In a nutshell, isso que era pra ser uma tomada de posição diante da literatura já virou um esboço de autobiografia. Mas literatura pra mim é oração sem sujeito nem objeto. Mal, mal, cabe aí uma interjeição atualmente. Tamos num vale-tudo desgraçado e eu é que vou ficar queimando pestana com isso? Neca de núncaras. Vou é parar de fazer o pé-de-alferes a essa senhora dama inacessível chamada palavra, dar-lhe umas bordoadas pra ela ver quem é que manda, como sugere o Luís Fernando Veríssimo, e pôr-me ao fresco, que eu quero mesmo é ir ver o Hale-Bopp todas as noites, às 18:32, senão, só daqui a 4.000 anos e eu não sei se estarei acordado até lá.


[In revista Você, nº 45, de maio de 1997. O depoimento faz parte de um conjunto de textos organizado pelo Prof. Wilberth Salgueiro, da Ufes, e intitulado “A poesia-perto e o punctum capixaba”. Reprodução autorizada.]


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Miguel Arcanjo Marvilla de Oliveira nasceu em Marataízes, ES, em 29 de setembro de 1959 e faleceu em Vitória, em 2009. Mudou-se com os pais para Vitória em 1964. Poeta, concluiu em 1996 o curso de graduação em Letras-Inglês na Ufes e cursou o mestrado em História na mesma universidade. Publicou diversos livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)

Preso em Trancoso blues, Trancado, não pelo repouso contínuo no pus, Mas sim pelo descanso eterno no supercílio:      — No soco direto d...


Preso em Trancoso blues,
Trancado, não pelo repouso contínuo no pus,
Mas sim pelo descanso eterno no supercílio:
     — No soco direto da aranha venenosa na trilha do rio
fui a nocaute por medo da cegueira de Borges e Homero.

Porém não quero ser cego assum negro Otelo
para assim cantar melhor o que quero:
     — Cantando a meio vapor pelo rio
já sou mais rápido do que a visão fugidia que a mira
líquida da crítica divisa em meu exílio.

Morrendo de saudade por bolhas de varíola
trazidas pelas picadas da aranha em lugar de olhos,
Prefiro não ficar cego por enquanto
e por enquanto se torna bastando,
Bastante, o bastante.
Basta antes.

Ando tão ocupado vendo,
Que não tenho tido tempo para envelhecer.
Como você, Renato Pacheco,
Por isso não lhe escrevi antes.
Antes foi o bastante.

A arte da guerra
é a da espera.
Temos de sobreviver por eras
à espera que o inimigo pereça
pelo mal que reside em seu destino e que o envenena,
Não por nossas mãos, pois em peçonhência a ele nos igualaríamos.
Tal como a cura psicanalítica,
Garantida em um prazo de duzentos anos,
Temos de sobreviver a ele
lutando a "guerra sem travá" do Ticumbi,
Pois na "guerra travada" com as armas do mal ele seria vencido no segundo
tornando-nos os herdeiros reais do reino decaído,
Paraíso perdido contra o qual nos voltamos
em revolta que lançamos contra ele tudo em volta.
Tudo volta.
Tudo volta em outros
miltons, renatos, vicos:
     — Em nós, seus filhos, em eterno retorno do viço.

Em você, Renato, renasço o re-nato renascido
por mandinga trazida do berço Pendragon
étimo, étnico, genético, agônico,
A eles sobrevivendo se transformando em sabedoria
que vai além da livraria
com que te sepultariam
— se você coubesse dentro de uma poesia —
e de que você se livraria
com seu sorriso largo sábio aberto
que, anterior ao pensamento, o entenderia.

Renato renascido pela Palavra
do belo não é o que se mata,
É o que ressurge da assassina faca
da fênix que vem refazê-lo menino
para que possa cumprir o seu destino:

     — Renascer por autoconcepção
do saber

em moto-perpétuo partenogênese.

A arte da guerra é a da espera.
Temos de saber sobreviver por eras.
Estar no inferno sem desesperar
é o mesmo que estar no céu em espera.
Sabê-lo, eis o segredo
para se manter atualizado no degredo
do lar perpétuo.

A arte da guerra é a da espera.
Você continua ganhando o jogo.
Espere e verá.

Por eras, seguindo seu exemplo, não terei tempo para envelhecer,
Por eras, a arte da guerra foi e era a espera.
E a esperança não se desespera.
Espera, neném — ah, veja, olhe lá!
Abre-se a esfera da Terra:
     — A arte da guerra é a da espera!

Não tenho tempo para envelhecer.
A arte da guerra é a da espera.

Espera em paz.

Trancoso, 11 de janeiro de 2005.

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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)





Ah, disse a senhora com indignação, não leia esse livro! Era o ano de 64 ou de 65, eu não tenho certeza, que a memória, ainda que se espi...


Ah, disse a senhora com indignação, não leia esse livro!

Era o ano de 64 ou de 65, eu não tenho certeza, que a memória, ainda que se espiche para trás, não alcança a justeza das datas.

Por quê? disse eu com espanto.

Ora, disse ela, isso é um lixo. Dá cá.Vou queimá-lo. É o mínimo que merece.

Bem depressa, apertei contra o peito o exemplar de A Oferta e o Altar, antes que a senhora tentasse arrancar o livrinho de mim, pois vi bem que as mãos dela se içaram.

Sinto muito, falei. Não dou não.

A senhora, já quase apoplética, explicou-me que aquele romance era uma traição de alguém, recebido com tanto carinho por nós (ela acentuou o nós) e que se aproveitou para escrever um chorrilho de misérias e mentiras sobre a nossa comunidade gloriosa (aqui, mais uma vez, a voz da senhora se alçou, magnífica).

Muito bem, eu falei. Mas, primeiro, eu vou ler. Depois, eu mesma queimo, se for horrível assim.

Saibam vocês, leitores, que eu li. E que me encantei.

Ainda hoje, tantos e tantos anos distantes daquela tarde de vento sul em que me encontrei com a senhora, uma ponta de espanto me morde. Como a "nossa comunidade gloriosa", como ela falava, não viu a carga da compaixão e do afeto, ali disfarçada em escritura?

É certo que tudo o que está descrito em A Oferta e o Altar não passa de uma ficção, pois, no livro, os traços de realidade, que tanto desesperaram aquela senhora, estão transfigurados. É a mágica da literatura que corrói o real e descola a vida feita de letras da vida miúda do cotidiano. Quem ousaria afirmar que as personagens descritas em um romance (em qualquer romance) são criaturas existentes de fato? Não são, na verdade. Não passam de caracteres gráficos que se unem por cima da brancura das páginas tais formigas viajeiras.

Mas, todo escritor sabe que as histórias que conta fazem quem lê escutar os latidos da alma. Por isso, é possível furar a magia da literatura, tal qual uma Alice que atravessa o espelho. Eu mesma, confesso, gosto de me mirar naquela garota de maiô vermelho que pisava firme e pintava coqueiros roxos para espanto das gentes de Ponta de Areia, a cidadezinha criada em A Oferta e o Altar, por Renato Pacheco.

Uma vez, com aquele vozeirão que não conseguia obnubilar a ternura, Renato me disse que, na época em que escreveu A Oferta e o Altar, era um jovem e orgulhoso juiz em sua missão por comarcas do interior. O choque, explicou ele, foi constatar, aqui e ali, a estreiteza de algumas mentes e a dureza de certas atitudes, embora a paisagem que a todos e a tudo rodeasse fosse tão bela e amena que, por si só, merecia o investimento amoroso de quem nela vivesse e justificava a alegria e a aceitação.

Nem sempre a oferta está à altura do altar, eu lhe disse, parodiando a epígrafe do livro.

Ele sorriu.

Nem sempre, ele disse.

Não sei se Renato iria gostar de eu estar, agora, contando essas coisas singelas. Não sei se ele preferiria que eu falasse sobre algo mais denso ou mais confortador. Para minha tristeza nem lhe perguntar posso.

Então, vou falando o que me vem à ponta do coração e da língua, certa de que a melhor homenagem que lhe posso fazer é lembrar.

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Bernadette Lyra (Maria Bernadette Cunha de Lyra) nasceu em Conceição da Barra, ES, a 21 de outubro de 1938, filha de Álvaro Lyra e de Maria das Dores Lyra. Licenciada em Letras pela UFES, é doutora em Artes/Cinema pela ECA/USP e pós-doutora pela Universidade René Descartes, Sorbonne - França, 1989. É escritora e professora universitária, nas áreas de literatura e cinema. Foi secretária de Cultura no Espírito Santo. Tem trabalhos publicados em revistas e jornais de todo o país. Suas obras publicadas: As Contas no Canto (contos), 1981; O Jardim das Delícias (contos), 1983; Corações de Cristal ou A Vida secreta das Enceradeiras (contos), 1984; Aqui começa a dança (novela), 1985; A Panelinha de Breu (romance) Ed. Estação Liberdade, recriação parodística da lenda capixaba surgida a partir da história de Maria Ortiz, 1992; Memória das Ruínas de Creta, 1997; Tormentos Ocasionais, 1998; Tradução de Aden, Arábia, de Paul Nizan; A Nave Extraviada (não-ficção), 1995; O Parque das Felicidades (contos), 2009; A Capitoa (romance), 2014; Fotogramas do Brasil; As chanchadas ( não-ficção) 2014.

Foto: Maria Clara Medeiros Santos Neves. 2007. Escrita. Processo de criação. Essas foram as palavras que Renata [Vescovi] me deu p...


Foto: Maria Clara Medeiros Santos Neves. 2007.
Foto: Maria Clara Medeiros Santos Neves. 2007.

Escrita. Processo de criação. Essas foram as palavras que Renata [Vescovi] me deu para usar como chaves desta conversa.

Não estou acostumado a refletir sobre esses conceitos. O meu compromisso é o do artesão. O artesão que escreve. O artesão que cria. O artesão que não pensa sobre o ato de escrever nem sobre o processo de criação. Apenas escreve e cria.

É verdade que fui aluno de Letras, nos idos de 1965 a 1968. Tive uma excelente professora de Teoria Literária, Deny Gomes, mas isso não foi suficiente para me tornar um bom aluno dessa disciplina. A teoria é cinza, como diz Mefistófeles, no Fausto de Goethe; minha alma de adolescente também era cinza, mas nem por isso eu conseguia assimilar aqueles postulados teóricos e abstratos.

As pessoas lembram de uma mesma coisa de modo diferente. Eu lembro que fui aluno medíocre. Já Deny Gomes lembra de mim como excelente aluno. É uma lembrança revisionista. Ela se auto-engana porque gosta do que escrevo. E é uma lembrança dedutiva: se Reinaldo escreve as coisas que escreve, só pode ter sido bom aluno de Teoria Literária.

Talvez eu escreva as coisas que escrevo justamente porque não tenha aptidão para teoria. Talvez se eu soubesse Teoria Literária eu não soubesse escrever literatura.

Mas algumas coisas eu acho que posso dizer.

Posso dizer que a escrita criativa me acompanha desde menino. Tenho alguns textos, escritos ainda em letra de fôrma, em que ensaio umas primeiras produções literárias. As mais antigas são de 1953, quando eu tinha seis anos e nada mais lia a não ser histórias em quadrinhos. Eis dois desses textos:

TÁ CHOVENDO EU TENHO QUE IR NA CASA DE VOVÔ BUSCAR UM BOLO AÍ MEU CÃO VAI SAIR BUSCOU O BOLO FIM

VOVÔ ME DEU UMA TARTARUGA MAS ELA ERA TÃO SABIDA SABIA LER SABIA FICAR EM PÉ SABIA LIGAR O RÁDIO SABIA COMER COM AS MÃOS BRINCAVA COMIGO FIM

Logo a seguir, aos oito, nove anos, no intervalo das peladas de rua, começo a pôr no papel umas primeiras histórias. "O foragido", "O motim", "O fratricida", "Sedentos de ódio", "O tira". Esta, que fez algum sucesso com meu pai e meus irmãos, começava assim:

New York. 1949. Os perigosos delinqüentes juvenis amedrontavam a maravilhosa cidade. Vamos encontrar um bando, precisando de chefe, quando um rapaz carrancudo, com um cigarro, camisa axadrezada e calça cáqui chega e fala roucamente: "Aqui está o seu chefe."

São histórias de faroeste, de gangsters, de piratas, ou seja, cópias toscas daquilo que eu via no cinema e lia nas histórias em quadrinhos e nos livros de aventura. Não importa. Importa é que havia um desejo de escrever, de criar. Por quê?

Borges diz que, se tivesse de escolher uma imagem para representar a origem de sua vocação literária, seria a biblioteca do pai. Meu pai também tinha uma biblioteca em que as estantes de livros forravam as paredes de alto a baixo e de fora a fora. Mas a primeira sedução que experimentei em relação à literatura não veio da biblioteca paterna. Veio da biblioteca fraterna. Era uma estante magra de cinco prateleiras que servia para guardar os livros de meus dois irmãos, ambos bem mais velhos que eu. Daí é que vinha a tentação da literatura. Aí estavam os livros de Monteiro Lobato, de Júlio Verne, de Tarzan dos Macacos; os livros das mais famosas coleções para jovens da época: a Coleção Os Audazes, da Editora Vecchi, e a Terramarear, da Companhia Editora Nacional. Era o local sagrado e misterioso aonde eu vinha e voltava sempre, para olhar as capas dos livros e embevecer-me com a perspectiva de que um dia eu leria tudo aquilo.

A escrita me acompanhou na infância, na puberdade, na adolescência. Os textos existem, mostrando a "evolução" temática e estilística. Aos quinze anos produzi um romance de 85 páginas manuscritas em papel almaço intitulado Os fanáticos. A questão ali já é a existência de Deus. Eis um diálogo desse romance:

Tenho uma teoria e estou absolutamente certo de sua exatidão: se antes de nascermos, antes de sermos concebidos, nós não existíamos, depois de morrer é completamente possível nossa volta a esse estado. Não digo que voltamos a nascer. Não. Quero dizer apenas que, como não existíamos antes, podemos muito bem deixar de existir depois! Isto prova a inexistência da vida eterna. E como a vida eterna e Deus são duas teorias que não existem uma sem a outra, logo, não há Deus.

A seguir, por volta dos dezesseis anos, instigado talvez pelo próprio ambiente de casa, em que literatura era uma preocupação constante de pai e irmãos, já não era mais importante escrever, mas sim escrever diferente. Criar um estilo próprio. Ser um estilista.

Conservei alguns rascunhos dos textos que escrevi aos dezessete anos. Foram três contos longos. Um deles chamava-se "Chuva no dia da morte de Théo", e eu achava esse título o título dos títulos, porque nem chovia nem o personagem Théo morria no conto. Uma frase apenas justificava o título: Théo diz que gostaria de morrer num dia de chuva. Mas como era o estilo desse conto experimental? A busca de originalidade levava a uma forçação de barra sintática. Havia uma certa abstinência do verbo na narração. Eis a frase de abertura do conto:

Tânia, à porta. Seus olhos, os olhos de Théo, os olhos de Aldo. — Sabia que vocês vinham, — Tânia. E riu, os dentes brancos de Tânia. Mão na porta entreaberta, o corpo de Tânia encostado à parede, o corpo de Tânia à frente dos olhos dos dois. E riu. Riu, olhos em Théo, porque conhecia os olhos de Théo. Abriu mais a porta, um sorriso, sorriso de Tânia para Théo. Aldo. Aldo e o mundo indefinível atrás dele, em volta. Tânia, sensual e a porta, os seios de Tânia porque Tânia era mais baixa, porque se apoiava à parede, mão e dedos na porta.

Esse ano, 1964, foi um ano de descoberta. Nos dois contos seguintes consegui criar um estilo próprio e até certo ponto original. Houve algum progresso desde "Chuva". Já não era preciso dizimar o verbo para contar uma história:

— Estou bêbado — digo, as palavras mal pronunciadas. Digo para este mundo que se prostituiu em asco e riso e inação, habitado por entes disformes. Vontade, então, total em mim, de nascer-me desta inanição sonolentamente ridícula, de nascer-me e mover-me e ser-me por toda esta sala, de falar toda a minha voz inerte, falar às janelas, às paredes, aos céus e às noites, às mesas e às cadeiras sentadas de corpos furtivos, grotescos como o meu próprio, falar a estes corpos, eu terno e lento e sólido, e dizer-lhes coisas, milhões de coisas que emito de dentro de mim, dizer-lhes que estou bêbado, que me embebedaram assim, que estou suando, suando muito, agora, que gosto de minhas mãos roxas roxamente ímpias, que me sinto doente, louco, eu cheio de vontade de vomitar, um vômito que insiste em apodrecer dentro de mim, dizer-lhes que quero betina, toda minhamente nua, minhamente pura, minhamente real, que quero um sol, um sol qualquer, dizer-lhes que os odeio, odeio vocês todos, vocês exaustos, podres, moles, dizer-lhes que gostaria de morrer, de morrer e remorrer sempre todos os dias numa hora destas, nesta noite insana que desliza lá fora, morrer de um lugar alto e cônscio e forrado de bocas e vulvas atentas, eu cercado por estes eternos sumos merdas, estes nadas mijantes que rastejam à minha volta, que porejam nojo e sons de nojo, cercado por este pátio de inutilidades que me doem a vida, e dizer-lhes, repetir-lhes, calmo, exato, repetir-lhes porque eles não entendem nada igual a isto, que quero betina, que quero-a muito muito muito, que amo-a, amo-a, amo-a, amo-a, que quero-a aqui agora para que eu possa levá-la à rua e beijar-lhe os seios ávidos, e dizer-lhes as todas coisas que sinto por ela, que a amo e a seus seios e a seus pés e a seus olhos e lábios e pulsos e nudez, e depois dizer enfim a eles, a estes seres postiços, que sou mofo, eu e eles, que nós todos somos mofo, mofo misturado a muito mofo, mofo conjunto, mofo idiota, mofo obsceno, mofo ridiculamente insolente, podremente inexistível, inexistível, inexistível, nós todos, todos, todos.

Os nomes das personagens femininas eram escritos com iniciais minúsculas, para indicar a sua inferioridade como objetos, ainda que do desejo. À inexistência de Deus acrescentou-se a inexistência do amor. O amor da mulher era impossível, exceto o da irmã. Ora, eu não tinha irmã. Daí esta frase de um dos personagens do conto "Ausência de Carla": "Eu não odeio ninguém. Eu só odeio Deus, e minha irmã, porque eles não existem."

Estilisticamente ia tudo bem. Só havia dois problemas. Em primeiro lugar, eu não tinha história, coisa que, para muitos críticos de hoje, não é problema. Em segundo lugar, eu tinha uma missão. Era a missão do adolescente: declarar que a vida era uma merda.

A literatura pode mostrar que a vida é uma merda, mas se o declarar com a ênfase de um missionário ou de um sectário, estará prejudicando a sua própria qualidade. E eu era isso: queria provar, nos meus textos, que a vida era uma merda, porque achava que a vida, para mim, era uma merda. Por quê? Porque não tinha certeza do meu futuro profissional e porque nunca tinha tido uma namorada.

Essa literatura angustiada do adolescente que eu fui vazou para o meu primeiro romance, Reino dos Medas, publicado em 1971. Esse romance é fruto do trabalho obsessivo de construção de um estilo realizado pelo adolescente. Mas o estilo é a única coisa que presta nele. Falta uma coisa que acho indispensável em literatura: ironia. Em Sueli está dito: "A ironia é a santa padroeira deste romance."Reino dos Medas é o meu único texto publicado em que a ironia está ausente.

Mas voltando à linguagem. Uma vez uma moça me deu uns contos para ler. Depois que li, perguntei se ela reescrevia os textos. Ela disse que não. Aí eu disse: Se você não reescreve, você não escreve.

Eis aí uma primeira conclusão sobre o que eu penso da escrita. Eu não tenho escrita. Eu tenho reescrita. E isso quem me ensinou foi o sofrido adolescente de 1964. Os rascunhos mostram a obsessão do rapaz pela perfeição da frase. Uma perfeição que já de antemão ele estava condenado a nunca alcançar. Mas, apesar disso, a obsessão se conservava obsessão e produzia, bem ou mal, literatura.

Mas o que é, para mim, processo de criação? Creio que tem a ver com três coisas: a) argumento, ou seja, história, ou seja, o que é que, basicamente, eu vou contar; b) narrativa, ou seja, como é que eu vou contar essa história; c) estilo, discurso, linguagem, escrita, ou seja, como é que eu vou escrever essa história.

O argumento a gente tem de ter com antecedência. É possível escrever sem argumento, mas é como sair fazendo um filme a esmo com uma câmara na mão. Eu preciso saber o que vou contar e gosto de seguir um roteiro. Antes de escrever Sueli, por exemplo, eu pus num roteiro tudo que eu me lembrava de minha "aventura" com Sueli. Depois passei a escrever a partir do roteiro. Parêntese: só em duas ocasiões o argumento me foi revelado em sonho: para um dos poemas de Muito soneto por nada e para um conto recente, "Mistério na montanha". No caso do conto, abriu-se a seguir toda uma linha de trabalho que já se transformou num livro de contos que tem o título provisório de Que diria Borges?

Roteiro é feito para ser mudado. A gente muda a ordem das passagens, muda os personagens, muda o próprio roteiro. É interessante comparar um livro pronto com o roteiro original. A longa história, romance que terminei no ano passado, sofreu uma mudança radical de roteiro: a intrusão de uma mulher entre os personagens principais, que seriam todos masculinos. E a mulher não só se intrometeu no romance mas tomou posse dele.

Narrativa tem a ver com as alternativas técnicas e estruturais do romance: dividir o romance em capítulos ou escrever o texto todo de cabo a rabo; narrar na primeira pessoa ou na terceira; narrar no presente ou no pretérito; e mais o tom da narrativa, o ritmo, e coisas assim. A crônica de Malemort, romance ambientado na Idade Média, não tem capítulos, é um bloco só. Em As mãos no fogo joguei com a divisão em capítulos, como fazia Machado de Assis, só que de outro modo. Alguns capítulos se dividem no meio de um diálogo: a pergunta encerra um capítulo e a resposta dá início ao seguinte. Outro se divide no meio de uma frase: "E cuidado com" é como termina o capítulo 30; "as urtigas e as formigas" é como começa o capítulo 31. Isso para chegar ao extremo de dividir os capítulos 35 e 36 no meio de uma palavra. Escolhi a dedo essa palavra. Sigilo. No capítulo 36 dá-se a defloração de uma menina de treze anos. Sigilo quer dizer selo. Quebrar o selo é uma das maneiras de se dizer deflorar.

Mas tudo isso é muito calculado, muito planejado. A escrita não costuma ser assim. Diferente do argumento e da narrativa, planejados com antecedência, a escrita, no meu caso, só tem, habitualmente, dois momentos: durante e depois.

Volto aqui ao termo reescrita. Ainda hoje continua válido para descrever o meu método de trabalho. Raro o parágrafo, rara a frase que não sejam reescritos. E o processo é cumulativo e de mão dupla. Quanto mais reescrevo, mais escrevo. Começo com dois, três parágrafos, ou até mais. Depois volto ao início e começo a reescrever. A tendência é sempre no sentido da ampliação, raramente da redução. Aqueles três parágrafos iniciais, na reescrita, podem transformar-se em seis. Que, da mesma forma, precisam de reescrita.

Tudo isso leva a uma descoberta que é a mais banal das descobertas: escrita gera escrita, ou melhor, no meu caso, texto gera texto. É trabalhando no texto que eu produzo mais texto. Mas não é explicitamente do texto que eu retiro mais texto. O olhar, a atenção, têm de estar no texto; mas de algum lugar da mente vêm as coisas que eu preciso não só para ampliar mas para refinar o texto.

Que coisas são essas? Tanto quanto posso imaginar, são de três tipos: a) a memória da experiência de viver; b) a memória da experiência de ler; c) os atos falhos.

A memória vivencial é aquela que contém os vestígios do que vivi, não só como ator de minha própria vida mas como espectador da vida dos outros. A memória literária é aquela que traz para o texto em construção elementos das leituras que fiz durante a vida; esses elementos são geralmente usados intertextualmente como referências ou analogias. Os atos falhos — e o termo surgiu numa conversa com Renata e Rita [Maia] — acho que posso dizer que são aquelas coisas que descem não sei de onde, e me surpreendem, e de certa forma me embaraçam, embora de forma positiva.

Quando sento diante do computador para escrever uma história, já levo comigo três instrumentos indispensáveis para a tarefa: a) o argumento; b) a forma narrativa; e c) a habilidade adquirida de escrever. O que é isso? É a habilidade quase mecânica de pôr no papel uma história. Isso eu já levo comigo quando sento para escrever.

Quando começo a escrever, essa habilidade é acionada. É uma habilidade consciente. Eu sei o que estou fazendo. Mesmo quando a frase já sai bem acabada, é fruto de um trabalho consciente. Só que, de repente, desce uma expressão, uma idéia, ou uma frase totalmente inesperadas. Até aquele exato momento eu não tinha consciência delas, mas elas vêm. Vêm de algum lugar que não sei qual é — o inconsciente, o subconsciente, sei lá - e me surpreendem como um ato falho. Condizem com o texto em progresso mas destoam dele pelo mistério de sua origem e pela originalidade de sua essência: eu nunca tinha pensado aquilo.

Recapitulando: Eu não tenho escrita; tenho reescrita. Texto gera texto. O processo de criação é uma parceria entre consciente e inconsciente.

O consciente é responsável, por exemplo, pela pesquisa que muitas vezes — como no romance medieval — preciso fazer para uma história. Isso precede o texto. Mas o trabalho de criação, o engalfinhamento do autor com as palavras e os conceitos, só se faz no leito do texto. O texto nasce da integração entre autor e texto: entre consciente e inconsciente. É preciso escrever para escrever. O texto nasce do texto; sofre a interpretação, a avaliação e a elaboração do autor; e volta, modificado, ao texto. O trecho final de Sueli dá uma idéia dessa parceria, dessa colaboração, dessa comunhão, desse casamento entre autor e texto:

Não tenho mais ânimo, energia, coragem, disposição, paciência, amor, não tenho mais conteúdo nem forma, não tenho mais nada para investir neste romance confesso. Tudo que quero agora é deixar para sempre sua difícil companhia: tempo já não é sem de cada qual ir pro seu lado. Posso até, de vez em quando, vir a lembrar-me com certa nostalgia dos dias em que estive a serviço deste romance, ajudando-o, como autor, a se escrever: mesmo afastado, mesmo sem nada mais a ter a ver com ele, nunca hei de esquecer o romance chamado Sueli, de Reinaldo Santos Neves. Mas agora chega: o romance extraiu de mim tudo que pôde: estou seco e estéril. Assim, já que estou acabado para o romance, para mim o romance está acabado também. Nem mais uma só palavra seja aqui dita por escrito, a não ser — imprima-se.

Essas foram as reflexões que vieram quando me dispus a escrever alguma coisa para dizer aqui. São rudimentos de reflexão, e talvez equivocados. Repito: sou um artesão. Crio e escrevo sem pensar sobre o que estou fazendo. Se pensasse, acho que não escreveria nem criaria nada.


Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

RETRATO DO ARTISTA QUANDO VIVO Ai de mim, ai de mim, querem que falem de mim. Diante da pretensão, dou-me por encurralado, num beco sem s...

RETRATO DO ARTISTA QUANDO VIVO


Ai de mim, ai de mim, querem que falem de mim. Diante da pretensão, dou-me por encurralado, num beco sem saída, à mira de um 38. É como se ele me dissesse, "Mãos ao alto e não vai dizer que não".

A ordem me faz recuar até à letra da marchinha da década de 40 (ou será de antes ainda?):

Quando monto em meu cavalo,
Jogo o laço,
Jogo o laço, jogo o laço para trás...
Sou caubói e gosto muito de um abraço,
Mãos ao alto e não vai dizer que não.

No laço que atiro para trás — tarrafa aberta sobre os tempos do artista quando jovem — pego o que posso de lembranças: a rua José Bonifácio, no Parque Moscoso, casa n° 1, onde vim à luz primaveril, em 24 de setembro de 1933, recebido pelos braços da parteira Dona Augusta; a escola de Dona Mariazinha, onde fiz o curso primário e recitava, coração saltitante em trampolim de orgulho, "brasileiro, onde está tua pátria?", de Ronald de Carvalho, para concluir que "tua pátria não está somente no torrão em que nasceste", mas "está em ti, minha mãe!", que me trouxe ao mundo sob o lábaro estrelado (eram quase vinte e quatro horas da noite) de uma terra que tem por divisa um lema de bandeira que até hoje não vi cumprido honestamente; a rua Vasco Coutinho, das peladas vespertinas, jogadas em frente à casa do Dr. Eurípedes Queiroz do Valle ou em frente ao fundo da casa de Anísio Fernandes Coelho, onde eu ralava nos paralelepípedos os dedos dos meus pés chatos; o curso ginasial, feito no São Vicente de Paulo, de Aristóbulo (Tobinha) Barbosa Leão, onde entrei prestando exame de admissão e escrevendo admissão com ç; o Colégio Estadual do Espírito Santo, em que fui aluno de meu pai, Guilherme Santos Neves, que passava, para Clóvis Rabelo corrigir, as minhas redações de português; a velha faculdade de Direito, em frente ao Palácio Anchieta, onde entrei decorando em latim o "até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência"; a Fafi, em que me bacharelei em História para poder fazer, com diploma debaixo do sovaco, o que já vinha fazendo sem diploma debaixo do sovaco — dar aulas nos colégios de Vitória; o 3° BC, em Vila Velha, onde, cidadão que começava a ser, me fiz milico para servir o Exército e cantar, puto da vida, a Canção do Infante, de Olavo Bilac, "onde vais tu, esbelto infante, com o teu fuzil lesto a marchar. Pra longe vou, a pátria ordena, sigo contente o meu tambor, cheio de ardor, cheio de ardor..." (Esse Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac...)

— Como começou sua atividade literária? — torna a me inquirir o 38, roçando-me as fuças com seu cano metálico e assustador.

— Dando asas à imaginação, porque desde que me entendi como menino, eu sonho. (Não achei outra resposta menos burra.)

— Quais foram suas primeiras produções literárias?

— Como? Produções literárias?! Bem, vá lá: foram umas croniquetas metidas a besta mas que, graças a Deus, não sobreviveram para entrar no meu caixão.

— Quais os principais temas abordados em sua obra? — volta a me assustar o 38.

— São os que nela estão, se é que tenho uma obra. (Tive a impressão de ver um tique nervoso vibrar na boca de 38.)

— Sente-se mais à vontade numa narrativa na primeira ou na terceira pessoa?

— Para ser franco... na quarta pessoa.

38 me encarou com seu olho soturno.

— Quer brincar comigo?

— Não, falo sério. Para mim, a quarta pessoa — que tanto pode ser do singular, como do plural — é a ideal para elaborar uma narrativa.

E apresso-me a explicar, querendo ser convincente:

— Olha, 38, eu chamo de quarta pessoa aquela que não sou eu, mas que, também não deixando de ser, é um eu partido ao meio, um eu esquizofrênico, que se multiplica por 2. Donde, pelo menos matematicamente, 2 x 2 = 4. (CQD, ou seja, como queríamos demonstrar.)

— Qual a sua relação, como escritor, com a língua portuguesa? — volta a me imprensar meu atacante.

Agora sou eu que pergunto:

— Quer brincar comigo, 38?

— Não, falo sério.

Percebo que fala mesmo porque ouço o estalido do gatilho se armando.

— Está bem, 38, não se exalte que vou responder à sua pergunta: minha relação com a língua portuguesa não tem nada de obsceno. Nada de bilingüismo, cunilingüismo, essas coisas mal-sãs. É uma relação de afeto e respeito. Mas sem catolicismos exagerados. Aliás, meu caro 38 (estou querendo conquistar-lhe a simpatia), você sabia que já fui devoto de Santo Antônio e da Marilyn Monroe? Tinha um quadro de cada um deles sobre a cabeceira da minha cama.

38 não demonstrou o menor sinal de cordialidade diante da informação confessional. (Será que ele não conheceu Marilyn Monroe, pensei com meus pobres botões literários.)

— Que acha da função da crítica literária?

— À crítica, a crítica literária. É o que ela deve saber fazer.

— Qual a sua opinião sobre o futuro do romance, da poesia e do teatro? — volta à carga meu inquisidor.

— No Brasil?

— Pode ser...

— Tem o futuro de um país do futuro... Ou seja...

— O que você tem a dizer sobre os autores do Espírito Santo?

— Todos são bons, muito bons...

— É possível estabelecer uma identidade literária capixaba? (Noto que 38 está se tornando exigente.)

— Com carteirinha e CPF?

Devo ter esgotado a sua paciência, porque senti um frio agudo no umbigo e ouvi o estampido de um tiro.

[Agosto de 2000]


Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Em 1997 recebi do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo o Prêmio Almeida Cousin por conjunto de obra. Na ocasião Renato Pachec...


Em 1997 recebi do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo o Prêmio Almeida Cousin por conjunto de obra. Na ocasião Renato Pacheco, que bem me conhece, tranquilizou-me: “Não precisa fazer discurso.” Com efeito, no dia da entrega do prêmio, entrei mudo e saí calado – mas com cheque no bolso. Aí, querendo anestesiar a minha consciência, acabei prometendo a Renato, para a revista do Instituto, um texto sobre meu premiado conjunto de obra. E, como promessa é dívida, aqui estou pagando, bem ou mal, a minha promessa.

Sempre digo e repito, e raramente sou acreditado, que não sei teorizar sobre qualquer trabalho literário, inclusive o meu. As pessoas parecem achar que de um escritor (ainda mais formado em Letras, como é o meu caso) têm o direito de esperar qualquer coisa que seja feita de palavras, o que vai desde um discurso em público até um ensaio literário. Ora, não se espera de um clarinetista que ele toque também contrabaixo, nem de um contrabaixista que toque também clarinete. No meu caso específico, então, minhas limitações com as palavras são legião. Sei, ou me esforço por saber, usá-las em determinados contextos, para tratar de determinados assuntos ou contar determinadas histórias; mas em outros contextos menos a ver comigo dá-se um branco e não sai uma só linha que preste. Lembro aqui o caso de José Carlos Oliveira, autor de algumas das mais bem escritas crônicas jamais bem escritas em língua portuguesa; talvez seja sacanagem minha trazer esse caso à baila, mas preciso de argumentos fortes para defender o que digo, e por isso lá vai: encomendaram a José Carlos uma crônica necrológica sobre um jogador de futebol, que tinha sido até amigo de infância dele na velha Jucutuquara dos tempos do bonde e da vala. Saiu, mas saiu uma merda. José Carlos estava tão preparado para escrever aquilo como para escrever um arrazoado jurídico sobre verificação de paternidade.

Dito isso, vamos ver o que dá pra dizer sobre o tema que eu mesmo encomendei a mim próprio. Não posso deixar em branco o papel que meu pai e meus dois irmãos representaram na minha descoberta da literatura. Nasci numa casa de livros. Sim, a casa da rua Afonso Brás, que lá está até hoje, tinha cheiro de livro, e foi esse o cheiro que mamei desde a infância. Filho temporão, criei-me entre pessoas adultas que estavam sempre com um livro diante do nariz, ou com um lápis ou caneta na mão; sempre conversando, à mesa de jantar, sobre este autor ou aquele. Tanto que comecei cedo, lá pelos seis anos, a imitá-las, por um lado lendo as histórias de Monteiro Lobato, por outro escrevendo, com lápis de ponta rombuda, em compridas tiras de papel, alguns textos do tipo que hoje se convencionou chamar de mini-contos.

As leituras continuaram, que livro é o que não faltava, como continuaram as produções literárias também. Mergulhei na Coleção Terramarear, cujos livros tinham capas de encher os olhos de qualquer guri, como a da Ilha do Tesouro, de Stevenson, que mostrava um bando de piratas ameaçadores avançando ameaçadores sobre o leitor. Comecei, paralelamente, a ir ao cinema – em especial o São Luiz, a um passo de casa, na rua 23 de Maio. Descobri o mundo da aventura, do crime e do faroeste. Vieram histórias com um elenco de gangsters sarcásticos, e que, curiosamente, eram apresentadas como de autoria de um certo detetive Wells – criei, assim, um narrador para essas histórias, num ensaio infantil de metalinguagem. Vieram histórias de cowboys e índios, vieram histórias de piratas. Em contraponto a todo esse universo ostensivamente estrangeiro, escrevi algumas histórias – de óbvia inspiração na série Taquara-Póca, de Francisco Marins – ambientadas numa Manguinhos redimensionada, numa Manguinhos-do-Fim-do-Mundo, tendo como personagem principal meu avô Ceciliano. Eram as preferidas de minha mãe.

Lógico que era tudo uma merda, em que só se salva a própria puerilidade criativa ou criatividade pueril dos textos. Mas o enxame de informações não parava de voejar à minha cabeça. Fiz, como ouvinte, todo um curso de literatura à mesa do jantar. A literatura estava sempre renascendo na véspera, e o pessoal lá de casa acompanhava as novidades na medida do possível. De repente passei a ouvir nomes de poderosa sonoridade como Faulkner, Hemingway, Steinbeck e Graham Greene. Não tinha lido nada deles, é claro, mas, só pelo que ouvia à mesa, já me sentia capaz de imitá-los. Dei um passo ambicioso tentando um romance. Chamei-o de Os Fanáticos. Nessa época, já adolescente, achava o máximo virar as costas a Deus. O romance, ambientado numa pequena cidade fictícia dos Estados Unidos – ainda era um colonizado cultural –, tinha dúzias de personagens, dentre os quais alguns jovens rebeldes que cultivam uma sociedade secreta. A morte da esposa de um deles leva-o à obsessão da vingança contra Deus, a quem atribui a culpa daquela morte. Valendo-se de sua influência na sociedade, consegue induzir os companheiros ao assassinato do pastor local. Dostoiévski em Yoknapatawpha, certamente.

Não creio que tenha ficado satisfeito com o resultado do romance, porque logo a seguir voltei ao gênero mais curto. Só que, agora, com a missão quase sagrada de ser original, de ter um estilo próprio. Nasceram daí três ou quatro longos contos, o primeiro dos quais se chamava “Chuva no dia da morte de Théo”. Que a linguagem é original, é, mas quanta forçação de barra e, em paralelo, quanta angústia expressa no vazio dos personagens. Meu pai, lendo aquelas coisas, ficava todo coruja do filho. Tanto que impingiu a sua leitura ao amigo Eugênio Sette, que me escreveu uma carta memorável, com o título “Carta a um jovem contista” – muito mais memorável do que qualquer dos textos do próprio jovem contista.

Pois foram esses contos existencialistóides que abriram o meu caminho de volta ao romance. No Reino dos Medas, meu livro de estréia, que costumo chamar de romance em desuso, tresanda o mesmo miasma dos contos, e a mesma chatice narrativa. Só a linguagem, depurada dos excessos das tentativas prévias, não me envergonha hoje.

O resto faz parte do meu currículo oficial. Veio o romance medievalesco, A crônica de Malemort, inspirado em O Eleito, de Thomas Mann; a esse seguiu-se o romance intertextual, As mãos no fogo, em que é grande a influência de um autor inglês chamado Richard Hughes. Concomitantemente saiu, na revista Letra, o Poema Graciano, atribuído ao personagem principal desse romance. Um longo hiato de cinco anos fechou com a publicação do romance metalingüístico, Sueli. Segue-se mais um longo hiato improdutivo, em que Joca Simonetti me transformou numa espécie de jornalista, como co-piloto da revista Você, da Ufes. Virei editorialista; escrevi muita coisa por encomenda. Nesse meio tempo, saiu a coletânea de contos inspirados no romanceiro tradicional, Má notícia para o pai da criança, publicada como encarte do jornal A Gazeta, publicação que tem o mérito de me ter valido uns trocados de direitos autorais.

1998 começa com a minha presença, como cronista serial, na Gazeta On Line e na revista Você. Essas crônicas pingadas mês a mês tratam das peripécias de um certo Garibaldi, fanático por jazz, mulher e poesia – parece alguém que eu conheço. Paulo Sodré diz – e é verdade – que esses textos deixam claro o prazer que me dá escrevê-los. São, pra usar o termo de Graham Greene, os meus entretenimentos. E agora sai meu primeiro livro de poemas, Muito soneto por nada, via Lei Rubem Braga.

Projetos? Muitos: tantos que nem vale a pena enumerá-los, inclusive pra não dar azar. Quem foi mesmo que disse que se você conta uma história que pretende escrever você não consegue escrevê-la?

Disse a Renato que faria minha profissão de fé como escritor. Acabei foi traçando em retrospecto meu itinerário pessoal pela literatura. Minha profissão de fé está em tudo que escrevi. O amor pela língua portuguesa, a identificação visceral com as coisas capixabas, a sublime tentação representada pela mulher, donde o alto teor de erotismo dos textos, a obsessão estética pela Igreja Católica – o que, aliás, extraiu de mim A confissão, um conto comprido, ainda inédito, que costumo chamar de conto católico, meu momento de Graham Greene. Em termos, mais especificamente, de técnica, o gosto por recursos como intertexto e metalinguagem, por brincar à vera com essa tão amada última flor do Lácio, e por essa coisa misteriosa que é o drama. E quando digo drama não me refiro a teatro – gênero que me deixa redondamente indiferente –, mas sim ao pathos mesmo de um texto literário, aquele conteúdo dramático que pode estar presente até numa frase como “Bom dia”, que, se inserida na trama no ponto exato de interação com tudo o mais, pode até equivaler a “Te vejo no inferno” – como diziam os saudosos personagens dos contos escritos em criança.

[Transcrito da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, n. 51, Vitória, 1999.]

Entrevistado: Maria Zilma Rios (Bibliotecária) Entrevistador: Vanessa Brasiliense 07 de março de 2012 Assunto: Olympio Brasiliense e o...


Entrevistado: Maria Zilma Rios (Bibliotecária)
Entrevistador: Vanessa Brasiliense
07 de março de 2012


Assunto: Olympio Brasiliense e o Sanatório Getúlio Vargas.

ZR: Meu nome é Maria Zilma Rios, e o meu primeiro contato com o nome Olympio Brasiliense foi quando iniciei a pesquisa sobre o Sanatório Getúlio Vargas, que consistiria na minha dissertação de mestrado. Por bem, nada mais categórico que começar com a história daquele que desenhara esse grandioso projeto arquitetônico – um dos mais lindos hospitais existente da década de 40. Assim, busquei conhecimentos desse projeto e verifiquei que ele teria sido elaborado por Olympio Brasiliense. Quis saber mais sobre esse arquiteto, no entanto as buscas foram em vão.

Mais tarde descobri através de levantamentos sobre o Dr. Jayme Santos Neves, é que eu fiquei sabendo pouquíssimas informações sobre o Olympio.

VB: Qual a relação do Dr. Jayme com Olympio Brasiliense?

ZR: A relação de Dr. Jayme com Olympio Brasiliense era de pura amizade. Eles eram tão amigos que o Dr. Jayme chegou a convencê-lo a desenhar o projeto arquitetônico de madrugada. Isso porque o Governador Punaro Bley exigira que o projeto ficasse pronto com uma certa urgência. Dr. Jayme, então, aceitando a proposta do governador, convencera Olympio a se adiantar com o projeto, que teria que se aprovado pelo Ministério da Saúde e Educação.

Na elaboração do projeto do Sanatório o Dr. Jayme e o Sr. Olympio eles eram amigos a ponto de Dr. Jayme convencê-lo a desenhar o projeto arquitetônico do Sanatório de madrugada. Quer dizer, eles passaram praticamente a noite inteira desenhando o projeto porque o Dr. Jayme recebeu a proposta do governador, o Punaro Bley, que ele tinha que apresentar um projeto, uma planta, um desenho do Sanatório para que pudesse ser aprovado pelo Ministério da Saúde e Educação, Educação e Saúde na época ainda estavam juntos. Então eles não tinham muito tempo. Eles foram onde hoje é o MAES.

Era o prédio da antiga Secretaria de Obras, hoje Museu de Arte do Espírito Santo.

Então, eu sei que foi lá que eles passaram a noite inteira desenhando o projeto arquitetônico do Sanatório e a planta, porque Dr. Jayme queria que tivesse a ala sul, que tivesse ala norte, que tinha que pegar o sol pela manhã, que tinha que terem todos aqueles detalhes, Dr. Jayme ia passando, porque Dr. Jayme já tinha idealizado como ele queria o Sanatório, aqueles solários, que eram aquelas varandas, que os pacientes poderiam tomar o sol pela manhã, que era o melhor sol. Então, eles passaram a noite e Dr. Jayme dizendo que teria que ter uma barbearia porque os pacientes não poderiam sair, teria que ir um barbeiro para lá, uma biblioteca.  o projeto original do Sanatório ele contava com dois pavimentos e em 1949 ele ganha um terceiro pavimento que já estava previsto quando eles fizeram este projeto porque a liberação recursos não era muita.

O Brasil estava em um processo de muitas construções de Sanatórios, nós tínhamos um contingente de 55 mil pacientes com tuberculose e só tínhamos 22 mil leitos. E em Vitória, no Espírito Santo nós tínhamos 8 mil tuberculosos para apenas 230 leitos do sanatório. Então eles passaram uma noite inteira desenhando, os dois, o Dr. Jayme dizendo como ele queria que fosse o sanatório e o Olympio, ele ia fazendo a planta e por final eles fizeram toda a fachada do Sanatório que é a que eu te passei que eu guardo que é muito linda, e que inclusive eu uso como marca d’água nos certificados de Departamento de Ensino e Pesquisa do Hospital Universitário que você sabe que hoje o Sanatório é um Hospital Escola. Então eu preservo esta imagem do Sanatório com marca d’água nos certificados que nós emitimos para os cursos, para as capacitações, atualizações que nos damos lá no Hospital Universitário.

VB: Como a senhora conseguiu informações do Olympio Brasiliense e do Dr. Jayme nessa noite que eles passaram elaborando esse projeto?

ZR: As informações, que obtive sobre Dr. Olympio e Dr. Jayme, bem como o da elaboração do projeto feito em uma noite, foram-me passadas pela Srª Elídia Franzini que, aliás, por um certo tempo trabalhou no Sanatório, na biblioteca que lá havia. Mais tarde, Elídia Franzini atuou na Liga e lá começou a documentar fatos relacionados com Dr.Jayme.

VB: Na pesquisa que a senhora realizou sobre o Sanatório Getúlio Vargas o que encontrou foi o relativo a Olympio Brasiliense foi o projeto do Sanatório?

ZR: Na pesquisa que realizei sobre o Sanatório Getúlio Vargas percebi que o projeto foi elaborado com uma certa pressa. No dia seguinte à noite do desenho da obra, Dr. Jayme seguiu para o Rio levando a planta do Sanatório, a fim de que a verba para a construção, que começaria ainda em 38, pudesse ser liberada. E, nessa velocidade, o sanatório foi inaugurado em 42. E, em homenagem ao governo do Brasil na época, recebeu o nome de Getúlio Vargas

VB: A senhora tem conhecimento de outros projetos relacionados a Olympio Brasiliense a não ser o Sanatório?

ZR: A amizade entre Dr. Jayme e Olympio fez com que eles fossem parceiros e trabalhassem na mesma sintonia. E, nessa sintonia, o Dr. Jayme idealiza e Olympio Brasiliense com seu pincel mágico ia colocando no papel e traduzindo para a realidade todas aquelas ideias. Acredito que muitas obras do final da década de 30 e começo da década e 40 foram desenhadas por Olympio, que certamente faz-se presente nos projetos arquitetônicos da saúde no período em que o Dr. Jayme dos Santos Neves fora secretário Estadual da Saúde.

VB: A senhora relatou a dificuldade de encontrar material que teve para dar subsídio à pesquisa, entre eles o projeto em si, o projeto não foi encontrado, pelo menos por enquanto. A senhora poderia relatar como foi essa busca pelo projeto do hospital?

ZR: A busca pelo projeto do hospital fora angustiante, devido a minha paixão pelo prédio do Hospital, onde hoje funciona o Hospital Universitário.

E assim, apaixonada pela obra feita para durar, quis enriquecer a minha pesquisa com dados do nome Olympio Brasiliense, uma peça muito importante dentro da minha dissertação. Afinal, fora ele que havia desenhado e dado forma àquela estrutura, que hoje guarda a engenhosa arte deste arquiteto – Olympio Brasiliense. E, saber sobre a vida desse homem passou a ser vital para o meu trabalho.

Como eu sou apaixonada pelo projeto arquitetônico do Sanatório, eu queria saber como era essa planta, como tinha sido feita, desenhada, o que era o que, eu queria identificar dentro do hospital onde tinha sido a barbearia, onde foi a sala do dentista, que também tínhamos isso, onde funcionava o centro cirúrgico, tinha um elevador que saía da copa, que ia para os andares, que o pessoal da copa suja não ficava com os da copa limpa, o pessoal da copa suja é que servia os andares. Eu queria saber como era essa coisa toda engenhosa desse elevador interno, ainda na década de 30. Mas eu não consegui. Eu fui à Prefeitura, procurei na parte de projetos antigos. Fui ao Arquivo. Inclusive eu tinha fotos do Sanatório que o Arquivo não tinha. Então, foi muito angustiante. Eu cheguei a ligar para o Rio, Belo Horizonte, para o CREA de lá para saber se eles tinham o nome do Olympio Brasiliense porque até então aquele nome surgiu, e era uma peça muito importante dentro da minha dissertação, porque foi ele que desenhou, foi ele que deu forma aquele sonho de construir o sanatório e eu precisava saber quem era o que fazia, onde morava, que outras coisas ele tinha feito para eu poder chegar até o projeto. Mas infelizmente foi uma das coisas que eu não pude trabalhar um pouco mais dentro da minha dissertação foi um pouquinho da história do Olympio porque inclusive eu não conhecia ainda a Vanessa. Eu fiquei sabendo depois que ele tinha uma filha, mas aí, como a gente sabe dissertações têm prazo. Então nem me passou pela cabeça, eu ainda procurei Brasiliense. Será que tem alguma coisa? Mas ficou uma coisa muito vaga, e eu não tinha. Ai, bem depois que eu tinha defendido a minha dissertação eu descubro que ele tinha uma filha...

Mas o trabalho científico não tem fim.

Como uma pesquisa científica é infindável, fico feliz em saber que alguém se importa em falar do papel relevante de Olympio Brasiliense para a sociedade capixaba.

Vanessa, sua única filha, se interessa por isso e faz jus ao talento e à originalidade desse arquiteto. Numa época pioneira, alguém com tanta genialidade desenhou e projetou edifícios e casas modernas para a época. A arquitetura e o urbanismo de Vitória, Centro e Praia do Canto e até de Cariacica conserva marcas de Olympio Brasiliense, projetando seu brilhante trabalho.

Desenhar um Sanatório para suavizar a vida de tantos que por ali passaram até 15 anos de suas vidas, num tratamento de isolamento, foi uma engenhosa tarefa e um legado deixado por Olympio Brasiliense. O Sanatório Getúlio Vargas, na década de 30, em 38 quando foi que ele começou, ele foi considerado um projeto futurista, moderno. Foi um dos Sanatórios mais modernos a ser construído. Então ele tinha aquela visão lá na frente, ele vivia acho que um passo a frente do tempo que ele vivia.

VB: Tem algo que a senhora gostaria de acrescentar?

ZR: Eu espero que você possa realmente fazer esse trabalho brilhante, e que todos nós possamos conhecer um pouco do talento do Olympio Brasiliense e do legado que ele nos deixou durante todas essas décadas de produtividade, e a gente poder partilhar um pouco desse homem, como foi o dia a dia desse homem genial, e que cercado de amigos também maravilhosos, e ele muito prestativo, ele com certeza deu essa contribuição e espero que você como filha dele possa dividir com a gente um pouquinho desse pai genial que você teve.

Com certeza, antes de mim ele é muito mais da sociedade em termos de construções de obras que ele fez, eu sou um pouco suspeita em falar porque eu sou apaixonadíssima por ele e pelo trabalho dele, mas com certeza ele teve uma contribuição muito especial para Vitória.