Banda de Congos de Manguinhos, Serra, anos 1950. Este Livro O projeto deste livro nasceu na Universidade Federal do Espírito Santo, ...
Coletânea de estudos e registros do folclore capixaba - 1944-1982
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Banda de Congos de Manguinhos, Serra, anos 1950. |
Este Livro
O projeto deste livro nasceu na Universidade Federal do Espírito Santo, concebido como uma forma de marcar o centenário de nascimento do folclorista Guilherme Santos Neves em 2006. Nasceu no Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, setor que, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Letras (Departamento de Línguas e Letras, Centro de Ciências Humanas e Naturais), venho administrando desde 1995.
Nascendo na Ufes nasceu, creio, no lugar certo: pois, paralelamente à sua intensa atividade como folclorista no meio cultural espírito-santense, Guilherme Santos Neves foi também – e na Ufes – professor de Literatura Portuguesa, tendo feito parte do corpo docente do Departamento de Letras da então Faculdade de Filosofia desde 1951 até se aposentar em 1976. Nasceu, assim, este projeto, no lugar certo e, se não nas mãos do homem certo – porque são as mãos suspeitas de seu filho –, o leitor verá que a obra em si paira acima de qualquer parcialidade filial.
O sempre lembrado Renato Pacheco, discípulo dileto de Guilherme Santos Neves, costumava declarar com total conhecimento de causa que a grande obra de Mestre Guilherme – como o chamava – jazia nas centenas de artigos e estudos que publicara em jornais e revistas do Espírito Santo, Brasil e Portugal. Era aí – e não em livros que suas demais ocupações não lhe possibilitaram organizar – que ele divulgava os resultados de seus estudos e pesquisas sobre o folclore espírito-santense. Sua produção em formato de livro – no que se refere ao folclore – está restrita a apenas cinco títulos, que, embora clássicos como estudos da cultura popular capixaba, não traduzem a amplitude do trabalho que Mestre Guilherme realizou nessa área. São eles os dois livrinhos de Cantigas de roda, de 1948 e 1950;[1] o Cancioneiro capixaba de trovas populares, de 1950, quatro das quais trovas foram musicadas pelo maestro Guerra-Peixe; Alto está e alto mora: Nótulas de folclore, de 1954; História popular do convento da Penha, de 1958 (2a. edição, 1999); e Romanceiro capixaba, de 1983 (2a. edição, 2000), este último por mim organizado a partir dos estudos esparsos que meu pai publicou no campo do romanceiro tradicional. Um sexto livro poderia acrescentar-se a essa lista: Folclore brasileiro: Espírito Santo, publicado pela Funarte em 1978.
Na verdade, uma coletânea de estudos sempre esteve nos planos de Mestre Guilherme, como o demonstram diversas listas de artigos encontradas, em manuscrito ou datiloscrito, entre seus papéis, com diferentes títulos, como História e tradições do Espírito Santo e Índice do folclore capixaba (deste último se valeram Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco para batizar, numa homenagem ao mestre, o panorama do folclore capixaba em verbetes que publicaram, em 1994, com a chancela do Banestes). Não pôde ele próprio, porém, por várias razões que não cabe identificar aqui, organizar aquela que seria sua obra de maior escopo e significado.
Assim, no momento em que se decidiu escolher uma obra para celebrar-lhe o centenário de nascimento, natural e justo que se escolhesse a coletânea sonhada por Mestre Guilherme, incluindo textos selecionados de tudo quanto ele publicou, no varejo, sobre o tema pelo qual tinha particular carinho e devoção: a cultura popular do Espírito Santo.
O projeto foi aprovado na seleção pública, de âmbito nacional, do Programa Cultural da Petrobras, basicamente no formato e no escopo em que está aqui. Das centenas de artigos, chegando ou ultrapassando a casa do milheiro, que Mestre Guilherme publicou em vida, cerca de 80% abordam temas de folclore e cultura popular, inclusive paremiologia. A seleção dos artigos passíveis de inclusão nesta coletânea foi feita mediante a leitura e exame de várias centenas de itens até chegarmos ao número de 240 que consta do projeto submetido à Petrobras e posteriormente à Lei Rouanet. Quando, porém, iniciei o trabalho de organização do livro, a reavaliação do seu conteúdo e a localização de estudos importantes levaram à supressão de alguns dos artigos da relação original e à inclusão de outros, resultando nos 250 itens, mais o texto do Prólogo, que compõem o texto definitivo.
O trabalho de seleção é uma via de mão dupla: inclui-se e exclui-se. Assim, ao mesmo tempo em que várias modalidades de estudos folclóricos foram incluídas sem discussão, outras decidi desde o início deixar fora da obra, em especial a paremiologia, as cantigas de roda e o romanceiro tradicional. Vetei os artigos de paremiologia porque, por seu grande número, viriam congestionar uma obra já por si vasta, e também porque, tendo estreita afinidade com a linguagem, perdiam o toque regional que, no meu entender, constituía a principal premissa do trabalho. As cantigas de roda e o romanceiro foram suprimidos porque praticamente toda a contribuição de Guilherme Santos Neves nesses campos que lhe eram particularmente caros já fora reunida e divulgada nos dois volumes de Cantigas de Roda e no Romanceiro capixaba. Ainda assim, alguns textos paremiológicos – “Por que somos capixabas”, por exemplo – acharam lugar nesta coletânea, assim como alguns estudos avulsos sobre cantigas de roda e o trabalho panorâmico que Mestre Guilherme publicou na Revista Brasileira de Folclore sobre o romanceiro no Brasil – e no Espírito Santo –, não incluído no citado Romanceiro capixaba.
O material selecionado para publicação foi então distribuído pelas onze categorias que compõem a obra, mas algumas vezes após um processo de hesitação e dúvida, pois muitos itens se encaixariam perfeitamente em mais de uma categoria.
Algumas explicações se impõem sobre três dessas categorias.
A categoria Personalidades congrega, lado a lado, textos que Guilherme Santos Neves escreveu não só sobre mestres do folclore brasileiro como também sobre alguns dos portadores de folclore com os quais teve ligação mais estreita e constante.
Já a categoria denominada Registros abrange uma série de notícias, relatórios e resenhas que contribuirão para mostrar como se fazia o trabalho de coleta, preservação e divulgação das manifestações folclóricas no Espírito Santo daquela época.
Por fim, os Anexos. Os textos previstos nesta categoria eram, a princípio, mais numerosos, mas por conveniência editorial e/ou estrutural foram suprimidos ou distribuídos ao longo da obra, exceto dois. O primeiro deles reúne todo o conteúdo (exceto os fac-símiles) da publicação intitulada A Cabula: Um culto afro-brasileiro (Cadernos de Etnografia e Folclore, volume 3, Vitória, Comissão Espírito-santense de Folclore, 1963) tendo como núcleo a pesquisa do bispo D. João Batista Correia Nery sobre a seita afro-brasileira com que se deparou nos municípios de Conceição da Barra e de São Mateus durante sua visita pastoral de 1900. O segundo abriga o acervo de informações coligidas pelo folclorista junto à portadora de folclore Dalmácia Ferreira Nunes, que trabalhou como doméstica em sua casa durante mais de vinte anos. Esse material, cuja divulgação em folheto à parte o folclorista chegou a cogitar, foi publicado no boletim Folclore, 92, de 1979.
A edição do texto seguiu uma metodologia específica. Em termos gerais, os textos originais foram respeitados o mais fielmente possível, exceto na ortografia, que foi atualizada, e em eventuais interferências como cortes na adjetivação puramente laudatória e introdução, entre colchetes, de esclarecimentos julgados necessários. Alguns dos itens, de que foram encontradas mais de uma versão, não só impressas como, por vezes, em forma de textos datilografados, levaram à decisão de compor um texto único, respeitando o mais possível o discurso do autor e aproveitando informações presentes numa versão e ausentes em outra ou outras. Por outro lado, evitei essa atitude no caso de certos estudos em que, embora tratando de um mesmo tema e até repetindo certos conceitos e informações, o autor o fazia por outro ângulo ou com base em novos subsídios.
Uma palavra sobre a expressão banda de congos. Nos textos a expressão aparece sob duas formas, banda de congo e banda de congos. Ao proceder à devida padronização, entendi que, sendo congo o termo que designa o tambor cujo número predomina na instrumentação do conjunto, o mais acertado seria usar o termo no plural, a exemplo de banda de metais, banda de palhetas, orquestras de violinos, etc. Mantivemos o termo no singular quando designativo da banda propriamente dita e não do instrumento de percussão a ela pertencente.
A elaboração da bibliografia apresentou alguns problemas. Embora nunca deixasse de citar a fonte de suas citações, Mestre Guilherme por vezes o fazia de modo incompleto, omitindo ora editora, ora local, ora data das publicações, ora até mesmo, no caso de alguns textos publicados em periódicos, o próprio título do artigo citado, substituindo-o por uma alusão ao assunto. Uma parte das referências pôde ser recuperada mediante consulta às centenas de itens do acervo particular do folclorista que, por doação da família, hoje pertencem à Biblioteca Central da Ufes; outra parte, sobretudo no caso de itens que se perderam, mediante consulta na internet (mas não necessariamente a edição consultada pelo folclorista). Ainda assim, os leitores verão que persistem lacunas de informação em alguns títulos incluídos na bibliografia ao final do livro.
Coube-me também a seleção das fotografias a serem inseridas não só no livro mas também no Banco de Fotos do Folclore Capixaba, cuja criação e divulgação no site Estação Capixaba [www.estacaocapixaba.com.br] estavam previstas já no projeto apresentado à Petrobras. Sendo as fotografias destinadas à obra impressa em menor número que as destinadas ao Banco de Fotos, demos prioridade, para inclusão naquela, a fotos que tivessem uma ligação direta com os textos. Já o Banco de Fotos, além de incluir todas as fotografias constantes do livro e outras tantas sobre os assuntos ali abordados, abriga também algumas imagens que ilustram assuntos que o folclorista não chegou a desenvolver por escrito.
Não sendo um especialista em música, embora grande apreciador dela, Guilherme Santos Neves sempre dependeu de profissionais da área para estabelecer as anotações musicais do grande número de peças de música folclórica por ele gravadas. João Ribas da Costa e Maria Penedo foram seus principais colaboradores nessa tarefa, além de Therezinha de Jesus Freitas, que viria a ser sua nora, e, mais tarde, Terezinha Dora Abreu de Carvalho.
Uma parte das gravações feitas pelo folclorista se perdeu, e outro tanto se acha ainda à espera de oportunidade para transposição da mídia da época para a de hoje. Uma pequena parte já transposta inclui algumas peças de que não se achou a respectiva partitura. Isso levou à contratação da musicista Kéllen Sena Mendes Lyra, a quem pedi não só que fizesse a transcrição musical dessas peças como também, talvez com excesso de zelo, que revisse aquelas que tinham sido feitas décadas atrás, cotejando-as com as gravações, quando disponíveis. Pedi também que, para fins de padronização geral, reproduzisse as velhas partituras com base na mais avançada tecnologia para esse efeito permitida pela informática.
Perdoem se registro aqui o fato de que duas das toadas de que não se encontrou partitura nem tampouco gravação – uma modinha sobre a cachaça e a canção “Soldado de Minas” – puderam ser recuperadas porque guardei na memória a melodia, graças à freqüência com que ouvia Mestre Guilherme cantá-las em casa.
Creio que essas são as informações que me cabia dar aqui nesta nota sobre a seleção de material e a organização da obra como um todo, tarefa que me coube neste projeto e que procurei realizar conciliando a preocupação técnica e o sentimento de amor e respeito filiais.
Vila Velha, março de 2008.
Reinaldo Santos Neves
Nota
[ 1 ] Esses livrinhos serviram de base para a produção, em 2007, com recursos obtidos via Lei Rubem Braga (lei de incentivo à cultura do município de Vitória), do cd Cantigas de roda: Versões capixabas para coral infantil e orquestra de câmera (produção de Rogério Coimbra; arranjos de Modesto Flávio Chagas Fonseca; regência de Hélder Trefzger; regência do coral de Ronaldo Sielemann).
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[SANTOS NEVES, Guilherme. Coletânea de estudos e registros do folclore capixaba. Org. e ed. Reinaldo Santos Neves. Vitória: Cultural-ES, 2008. Patrocínio: MINC / Lei Rouanet - Patrocínio: Petrobras.]
[Publicado originalmente neste site em 2008]
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Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Sumário Penedo vai... Barca nova Periquito Maracanã Carneirinho, carneirão... A canoa virou... Tenho uma linda laranja Eu sou p...
Cantigas de roda
Sumário
Barca nova
Periquito Maracanã
Carneirinho, carneirão...
A canoa virou...
Tenho uma linda laranja
Eu sou pobre, pobre, pobre...
É de Valentim
Terezinha de Jesus
Bela condessa
Meu amor é marinheiro
Gata espichada
Ao passar da barca
Ó bela Lilia
Quebra, quebra, Gabiroba
Onde está a Margarida?
Sinhá Marreca
Pobre viúva
Os olhos de Marianita
Sereno
Bibliografia
[SANTOS NEVES, Guilherme (pesquisa e texto), COSTA, João Ribas da (notação musical). Cantigas de roda. Vitória:Vida Capichaba, 1948 e 1950. (v. 1 e 2).]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
João Ribas da Costa foi professor no interior do Estado do Espírito Santo.
Professor Guilherme Santos Neves entre suas alunas do Colégio do Carmo durante trabalho de pesquisa folclórica. Anos 1950. Projeto ap...
Preservação e divulgação de registros do Folclore capixaba
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Professor Guilherme Santos Neves entre suas alunas do Colégio do Carmo durante trabalho de pesquisa folclórica. Anos 1950. |
Esses apontamentos integraram as atividades da disciplina de Português, ministradas pelo professor e também folclorista Guilherme Santos Neves, o mesmo que a 23 de agosto de 1952 criaria o Centro de Pesquisas Folclóricas do Colégio do Carmo[ 1 ] inspirado por Renato de Almeida, outro grande folclorista brasileiro ao qual o professor Guilherme esteve ligado pelo interesse comum.
O trabalho consistiu de várias etapas. A primeira delas foi o inventário detalhado, com indicações de assuntos, autorias, locais de ocorrência e data. Passou-se então à etapa seguinte, de preparação dos documentos, amenizando-se vincos de dobras e realizando-se pequenos reparos com utilização de Document Repair Tape.Carmo[ 2 ] Em seguida procedeu-se à digitalização completa de todos os documentos (1.650 itens), perfazendo o total de 3.934 páginas / arquivos JPG coloridos e em alta resolução (300ppi), matrizes para preservação. Posteriormente os arquivos foram tratados para publicação na internet com acertos de bordas, redução de tamanho e resolução, incorporação de contraste e nitidez, salvando-se separadamente em JPG de 100ppi. O trabalho com as imagens foi finalizado pela integração das páginas de cada documento e criação de arquivos PDF para publicação no site. Após todas estas etapas foram então criadas as páginas de internet e publicadas em nosso site.
Equipe técnica:
e preparação de páginas para internet
NOTAS
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SUMÁRIO
Introdução
Um filão farto de folclore capixaba: o Colégio do Carmo (Luiz Guilherme Santos Neves)
Inventário do acervo
Arquivos PDF dos documentos
Imagens da pesquisa de campo
Revista Excelsior, dez. 1952
A Gazeta, Caderno Pensar, 23/01/2016
Um inventário de registros folclóricos [Texto de Luiz Guilherme Santos Neves lido no evento de lançamento do Projeto PRESERVAÇÃO E DIVULGAÇÃO DE REGISTROS DO FOLCLORE CAPIXABA, ocorrido no dia 28 de janeiro de 2016, no auditório da Biblioteca Pública do Espírito Santo]
[Publicado originalmente no site Estação Capixaba em 28/01/2016]
© 2016 Estação Capixaba - Todos os direitos de reprodução a partir das imagens digitalizadas e tratadas, assim como estudos e demais textos produzidos especialmente para esta publicação online estão reservados exclusivamente para o site ESTAÇÃO CAPIXABA (www.estacaocapixaba.com.br).
Durante os seus longos e bem ou mal vividos 425 anos, o Espírito Santo, modificando-se, através dos tempos, na sua feição sócio-econômica...
Fisionomia do folclore capixaba
Durante os seus longos e bem ou mal vividos 425 anos, o Espírito Santo, modificando-se, através dos tempos, na sua feição sócio-econômica, também sofreu mudanças na sua fisionomia folclórica. Nesta, porém, muito menos acentuadamente que naquela. O caminhar, precipitado ou lento, rumo ao progresso atual, não deformou de todo a alma de nossa gente. E se é verdade que a civilização foi talando os singelos e bárbaros costumes, criando novos hábitos de trabalho e de vida, não conseguiu, todavia, apagar ou delir, em certas manifestações do nosso povo, as primitivas marcas de origem.
O artesanato popular nos vem dos tempos aurorais da colonização, ou de antes. As rendas, as redes de pescar, o trançar dos vimes, o tecer dos fios, a cerâmica utilitária, o embarreio das casas de taipa e sapé, o fabrico de esteiras nos teares de bilros... tudo ainda se faz, entre nós, repetindo técnicas primitivas de trabalho. Pesca-se nos mares, rios e lagoas do Espírito Santo pelos mesmos remotos e rústicos processos doutros tempos: o arrastão, a rede de espera, os covos, as camboas, os juquiás ou jiquiás, o fachear para pegar lagostas... A caça ainda utiliza hoje fojos, armadilhas e pios que nos vêm de longes eras. Em vários, em muitos recantos da terra capixaba, não é raro ouvir o chô-o-pám! Do monjolo ou pilão d'água, ou do pilão de mão, socando, triturando, pilando café, arroz ou milho. E nas estradas, nos caminhos, nos atalhos, levantando poeira, passam ainda as tropas de burros, com a "madrinha" retinindo à frente e gemendo, chiando, cantando nos eixos — o carro de bois, "o primeiro veículo que rodou em terras do Brasil..." (Bernardino José de Sousa, Ciclo do carro de bois no Brasil, São Paulo, 1958, p.103).
Quantas tradições populares continuam, teimosamente algumas, perenes e vivas em terras do Espírito Santo! As simpatias, superstições e crendices aninhadas no coração crédulo da gente simples: os romances versificados (Nau Catarineta; O conde Flores; A donzela guerreira; O bernal francês; O cego andante; Juliana e Dom Jorge...) — romances velhos esmorecendo, pouco a pouco, na memória cansada das velhinhas contadeiras de histórias; as cantigas de roda (Barca nova; Constância; Pobre viúva; Giroflê; Gata espichada; Penedo vai; Senhora Condessa; Valentim; Periquito maracanã... centenas delas) transmitidas através do vozelo alegre das meninas; jogos e folguedos infantis (raia, pião, gude, barra-manteiga, picolê, carniça, chicote-queimado, berlinda, seu lobo, Bento-que-bento... uma porção deles) — repetidos, em rodopios, pulos, saltos e carreiras, nos buliçosos brincos dos meninos; a arte rústica do povo, suas técnicas de trabalho (rendas, redes, cestos, gaiolas, cerâmica utilitária e figurativa, aparelhos de caça e pesca...) — resistindo, aqui e ali, ao incoercível ímpeto da máquina, os acalantos, singelos e dolentes cantarolados ainda (graças a Deus!) pelas vovós e mamães capixabas, que também não esqueceram felizmente — para deleite e gosto nosso — como se preparam os nossos pratos saborosos; as moquecas de papa-terra, de judeu, de robalo; as paneladas de caranguejo e de siri; a tradicional torta da Semana Santa e a doçaria gostosa: os manuês, os quindins, as brevidades, a canjica, a papa de milho verde , melado, ambrosia, baba-de-moça, cocadinhas, beijos, pés-de-moleque, suspiros, sonhos, papos-de-anjo, banana frita...
(Fecho) É difícil — bem se percebe — dar, numa só palestra (mesmo alongado como esta nossa) todos os aspectos folclóricos de um povo como o capixaba. Teríamos de focalizá-lo em suas festas padroeiras, principalmente a nossa tradicional Festa da Penha — da qual, desde épocas remotas, sempre participaram, piedosos e contritos, romeiros daqui de Campos. Teríamos de observá-lo nas cerimônias da Semana Santa e de Finados, nas festas de Natal e Ano Bom, nos festejos juninos, na esfuziante folia carnavalesca. Teríamos de registrar a poesia do povo: os cantos de trabalho e de velório, as toadas de congo e de folias, as cantigas de roda (com a profusão multicolor das quadrinhas ou trovas), os pontos de jongo e caxambu, as embaixadas e marchas das dramatizações. Teríamos de contar aqui os nossos contos e "estórias", as nossas lendas bonitas, desfiando, para vós, todo o lendário da Penha, por exemplo. Teríamos que perscrutar os mil redutos de trabalho: como os lavradores, os tropeiros, as lavadeiras, as oleiras, os pescadores, as rendeiras, estivadores, doqueiros... ouvindo como aí se fala a pitoresca língua popular, fixando a sua gíria, os seus modismos, seus provérbios, expressões, juras e frases-feitas. Teríamos de percorrer as áreas de colonização estrangeira e de lá trazer, por exemplo, os rituais dos casamentos pomeranos, os quitutes da cozinha italiana, e suas festas, seus costumes, sua língua — mesclados com que é nosso, num constante trabalho de aculturação e simbiose. Teríamos... e seria um nunca terminar — e é preciso pôr fecho a esta longa palestra, mesmo contrariando aquele ditado típico, segundo o qual — o capixaba começa, mas não acaba... e o auditório pacientíssimo não diz, mas sente que é preciso acabar...
Todos esses aspectos — civilizados ou bárbaros, ingênuos ou ardilosos, impregnados de lirismo ou de epopéia, de comicidade ou de dor — se bem coligidos e sabiamente bem dispostos e expostos — por outro que não eu — todos esses aspectos, velhos e novos, talvez que vos pudessem revela, através do nosso opulento e variado folclore, a bela, a forte, a misteriosa alma do povo capixaba.
[Tópicos da palestra pronunciada na cidade de Campos, em 26 de abril, a convite do Centro Cultural Campista e publicados em A Gazeta, Vitória-ES, em 22 de maio de 1960]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Ao passar da barca Me disse o barqueiro: Menina bonita Não paga dinheiro. | bis | | bis | Eu não sou bonita E nem ...
Ao passar da barca
Ao passar da barca Me disse o barqueiro: Menina bonita Não paga dinheiro. |
| bis | | bis | |
Eu não sou bonita E nem quero ser. Tenho meu dinheiro Eu pago a você. |
| bis | | bis | |
Sou a viuvinha Do conde Loureiro; Querendo casar-me Não acho quem queira. |
| bis | | bis | |
Procura na roda, Torna a procurar. Só acho fulana Para ser meu par. |
| bis | | bis | |
É, sem dúvida, uma das mais bonitas rondas do nosso repertório musical infantil, não apenas pelo sentido da letra, como também pela delicadeza da melodia. Infelizmente, parece-nos, vai-se perdendo entre nós, esta cantiga de roda.
Deve de ter ela origem portuguesa ou ibérica. Júlio Aramburu, folclorista argentino, transcreve, em seu livro El folklore de los niños, alguns versos da cantiga, não porém como ronda. Trata-se de "El caso del barquero"(p. 114):
Al pasar la barca, me dijo el barquero: Las niñas bonitas No pagan dinero. |
Segue-se a continuação do "caso", quem nem de leve nos faz lembrar a nossa roda:
Y al volver la barca me volvió a decir: las niñas bonitas no pagan dinero, se lo dice, niñas, este caballero. |
No livro de J. Aramburu não se registra a música.
Cecília Meireles ("Infância e folclore", A Manhã, 14/3/1943) cita como versão espanhola, sob o título "Passarás, não passarás", quase o mesmo "Caso del barquero" argentino. Também adianta a folclorista patrícia que a música da variante espanhola "é exatamente a mesma que as crianças brasileiras usam, quando cantam 'Sozinha eu não fico, nem hei de ficar', estribilho comum a várias cantigas de roda". Ainda segundo Cecília Meireles, "parece evidente que essa cantiga se inspira na tradição medieval do direito de peagem".
A letra da Segunda parte da nossa cantiga se assemelha à conhecida ronda espanhola "La viudita":
Soy la viudita Lo manda la ley; Quiero casarme Y no hago com quién. |
(Versão Rodrigues Marin, cf. Cancioneiro popular de Tucumán, de Juan Alfonso Carrizo, I, p. 377.)
Tal semelhança também se observa com a cantiga de roda venezuelana "Arroz com coco" no seguinte trecho do solo:
Yo soy la viudita, La hija del rey; Me quiero casar Y no hallo con quién. |
(Folklore venezolano, de R. Olivares Figueroa, I, p. 165.)
Aliás, há dessa "Viudita" uma carioca registrada pelas professoras Iris Costa Novaes, Diva Diniz Costa e Gedir de Faria Pinto, revista por Afrânio Peixoto (p. 128):
Viuvinha, Da banda d'além Quer se casar E não acha com quem. Com este, sim, Com este, não, Há de ser com aquele Do meu coração. |
É de se notar, entretanto, que a música apresentada nessa coletânea não tem a menor semelhança com a de "Ao passar da barca", lembrando, porém, a melodia com que há dezenas de anos atrás (senão também hoje) se entoavam, no interior de São Paulo, as estrofes da conhecida história da menina enterrada viva pela madrasta, por causa dos figos da figueira. E isso nos leva a novo entrelaçamento de música e letra de cantigas diversas, cuja procedência e evolução muitas vezes é difícil estabelecer.
F. J. de Santa-Anna Nery, em seu livro Folk-lore brésilien, editado em Paris, em 1889, registra à página 23 os versos da "Viuvinha", em forma que diz ter sido recolhida na Bahia.
É curioso observar que, nessa versão baiana, traduzida para o francês há mais de sessenta anos, aparecem quase exatamente os mesmos versos cantados até hoje no Espírito Santo e no Rio de Janeiro:
Je suis la petite veuve Des parages de là-bas; Je veux me marier, Mais ne sais avec qui; Avec celui-ci, oui, Avec celui-là, pas, Avec celui-ci, oui, Que j'aime bien. |
É pena que Santa-Anna Nery não registrasse também a música de "La petite veuve", como o fez com "Senhora dona Sancha" e "Caranguejo não é peixe".
Voltemos, porém, ao nosso "Ao passar da barca". Essa cantiga, também conhecida como "O barqueiro" ou "Viuvinha do conde Loureiro", é corrente em vários recantos do Espírito Santo.
Localizamo-la em Vitória, Vila Velha, Itaquari, Cariacica, Manguinhos, Nova Almeida, Santa Teresa, Itarana, Mimoso do Sul, Fundão, Bom Jesus de Itabapoana, Ibiraçu, Linhares, Santa Leopoldina e São Mateus.
Quase todas as crianças cantam: "Ao pássar da barca", acentuando a 1ª sílaba do verbo "passar". Variantes de Fundão, Nova Almeida, Itarana e Linhares cantam: "Ao passo da barca". Em roda cantada em Vitória, por meninas de várias localidades do interior, ouvimos: "Ao pássar a barca", provavelmente a forma primitiva da canção, idêntica ao "Al pasar la barca" do "Caso del barquero" acima citado.
Outras variantes: "Eu ganho dinheiro / Pra pagar você", "Eu trago dinheiro / Eu pago a você", "Não tenho dinheiro e pago a você", "Não tendo dinheiro...", "Por Ter meu dinheiro...".
Na 2ª parte:
Sou a solteirinha Que vim de Belém; Pretendo casar Mas não acho com quem. Sou a viuvinha Quem vim de Belém... Sou a viuvita Do conde Loureira; Quero casar E não acho quem queira. Sou a viuvita Do conde Laurita... |
Modo de brincar: Cantiga dialogada. Faz-se a roda e, dentro ou fora dela, fica a "viuvinha". Rodam e cantam a cantiga até "Menina bonita não paga dinheiro". A "viuvinha" responde, cantando, até "Não acho quem queira". Segue-se o coro: "Procura na roda..." e, afinal, a resposta da viúva, escolhendo aquela que deve ser o "seu par". Esta vai, por sua vez, ser a "viuvinha", repetindo-se a roda até cansarem.
[SANTOS NEVES, Guilherme (pesquisa e texto), COSTA, João Ribas da (notação musical). Cantigas de roda. Vitória:Vida Capichaba, 1948 e 1950. (v. 1 e 2).]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
João Ribas da Costa foi professor no interior do Estado do Espírito Santo.
AMADEU, Amadeu. Tradições populares . São Paulo, 1948. ANDRADE, Manoel J. Folklore de la Republica Dominicana . Truji1lo, 1948. ANDRADE...
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Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Na literatura oral de cada povo, há um sem número de expressões pitorescas, que constituem aquilo a que se dá o nome de "frases-feitas...
Frases-feitas
Na literatura oral de cada povo, há um sem número de expressões pitorescas, que constituem aquilo a que se dá o nome de "frases-feitas", "modismos"ou "modos de dizer".
Muitas dessas expressões nos vêm dos longes mais distantes, transmitidas dos séculos XIV ou XV, até hoje, no curso eterno e renitente da tradição oral.
Vamos aqui desfilar algumas delas, colhidas da mesma límpida e saudosa fonte, e seja a primeira, esta: Lá se foi tudo quanto Marta fiou!...[ 26 ]
Emprega-se tal locução quando um trabalho se desfaz, ou se gora um plano, ou se frustra um desejo pacientemente acalentado, ou quando "lá se foi tudo que se estava fazendo", como o diz Antenor Nascente, que registra a expressão à página 166 do seu Tesouro da fraseologia brasileira.
A frase-feita é bem velha, constando dos Provérbios, de Pereira Frazão (n° 458), na forma: "Lá se vai quanto Marta fiou".
Também a deparamos no interessante livro de José da Fonseca Lebre, Locuções e modos de dizer usados na província da Beira Alta (p. 91), com os mesmos termos da nossa versão: "Lá se foi tudo quanto Marta fiou!"
Confirmando a presença do dito nessa Província portuguesa, Jaime Lopes Dias a registra em sua preciosa Etnografia da Beira, volume VIII, página 208.
À primeira vista poderá parecer que essa Marta seja aquela a que se refere o Evangelho, irmã de Maria Madalena e de Lázaro — mulher diligente e ativa "que sempre andava afadigada na contínua lida da casa"(S. Lucas, X, 40). [ 27 ]
O confronto, porém, entre esse dito popular lusitano e expressões equivalentes em outras línguas, esclarecerá melhor a origem dessa Marta fiandeira.
Em breve estudo que fez sobre essa locução, Leite de Vasconcelos, em seus Opúsculos — Etnologia (vol. VII, parte 2ª, p. 668), refere os seguintes "adágios" de Itália e França, evidentes versões ou variantes do nosso: "Non è piú il tempo che Berta filava" — "Du temps que la reine Berthe filait".
Citando a Mitologia alemã, de Jacó Grimm, o sábio etnólogo português esclarece que Berta ou "Berchta", era, na Alemanha, tida como "advogada cristã das fiandeiras" (p. 671).
A substituição de Berchta ou Berta por Marta na expressão vernácula pode-se explicar ou pela semelhança dos dois nomes (Berta-Marta), ou porque "Marta era talvez o nome português que ao tempo mais se aproximava do germânico com que se liga Berhte e Perhta, antigo alto alemão" (L. Vasconcelos, idem, ibidem, p. 672). Também se pode admitir que a troca de nomes se tenha dado por influência de outros provérbios em que se encaixa o nome de Marta, possivelmente aquela mesma diligente mulher da Betânia: "Morra Marta. morra farta"; "Lá se haja Marta com seus polos"; "Em louvor de Santa Marta, quem comeu que parta" (L. Vasconcelos, op. cit. ibidem); "Bem canta: Marta, depois de farta" (A. Delicado, Chaves); "Mente Marta, como sobrescrito de carta" (Delicado), igual no espanhol: "Miente Marta como sobrescrito de carta" (Rodríguez Marin, op. cit. p.1.207).
Outra expressão usual ouvida à mesma fonte é: ...por dá cá aquela palha,[ 28 ] empregada em certas frases a indicar o somenos pretexto, o fútil ensejo, a sem-razão maior para uma discussão, zanga ou briga entre duas ou mais pessoas.
O modismo vem de longe, e data do século XVI ou dantes. Camões o utilizou no Auto de Filodemo, no seguinte passo:
— "Logo parece moça brigosa, que, por dá cá aquelas palhas, dará e tomará quatro espaldeiradas." (Camões, Obras completas, Coleção Sá da Costa, vol. III, p. 214).
Também referida está ele na, Comédia Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, no seguinte trecho, à página 165: "...sucede que se vos assanha que ela por dá cá aquela palha põem a barca no monte, a fogo e a sangue..."
A expressão é ou era corrente na Espanha, tendo sido usada por Cervantes em Don Quixote, mas equivalente a "num átimo, num santiámem, num instante". Veja-se: "...no tengays ingenio, ni habilidad para disponer de las cosas, y para vender treynta, o diez mil vassalos, en da came essas pajas". (Cervantes, edição citada, tomo I, 1ª parte, Cap. XXIX, p. 143).
Também no tomo II, 2° parte, Cap. XLI, página 154, se lê: "assi querria, que aora te retirasses en tu aposento, com q vas a buscar alguna cosa necessaria para el camino, y enun daca la paja te diesses a buena cueta de los tres mil y trecientos açotes".
Da mesma forma, na célebre Historia del famoso predicador Fray Gerundio de Campazas, do Padre Isla, encontramos o dito, por exemplo, no seguinte trecho, à página 48: "...no hallándose noticia en la Historia de que jamas haya havido guerras entre los Principes Christianos por la defensa de un Libro, que se les haya dedicado; siendo assí, que muchas veces las ha havido por quítame allá essas pajas."
No Palito métrico, de Antônio Duarte Ferrão, à página 147, se depara, num soneto, a mesma velha expressão popular:
"Por dá cá aquela palha irem-lhe ao couro;
E quando os mais dão fogo á artilheria,
Não ser senhor de dar o seu estouro."
Não poderia faltar a frase-feita, nos livros de Camilo Castelo Branco, em cuja obra quase sempre registrou a língua viva e colorida do povo. Lá está ela no livro Duas horas de leitura, no primeiro escrito, sob o título "Dous Santos não beatificados em Roma", breve romance que, coincidentemente, se passa nos arredores de Leça da Palmeira, "o mais pitoresco retalho de terra que [...] os olhos [do autor] viram". O passo é o seguinte: "Basta de choramingar. Isto não é para sempre... O diacho das mulheres choram por dá cá aquella palha!" (p. 26).
Também estoutra expressão ouvíamos, outrora, à querida informante: E ela a dar-lhe, e a burra a fugir...[ 29 ] locução pitoresca, provavelmente retirada a um conto popular que se perdeu. Era ela empregada (hoje em dia não mais se nos depara) para indicar certa teimosia pessoal, certa insistência num desejo, erro ou capricho qualquer.
No citado livro de José da Fonseca Lebre, Locuções e modos de dizer, vamos topar, à página 46, essa frase-feita, no seguinte diálogo, que melhor lhe esclarece o emprego:
"...o rapaz prometeu-me que se emendaria e creio bem que foi daqui resolvido a isso.
— Pois sim; espera-lhe pela volta, e verás. Tu sempre acreditas em cada uma!
— Mas se ele me jurou que, de futuro, estudaria!
— E ela a dar-lhe e a burra a fugir! Pois ainda tomas a sério os protestos daquele menino?"
Esse mesmo dito vulgar é corrente na fala de várias personagens dos romances de Camilo. Podemos referir este expressivo exemplo:
— Muito obrigado, menina.
— Menina! tornou ela. Eu sou mulher, não sou menina.
........................................................
— Que linda ia! Fiquei a pensar em si muitos dias...
— Mas esqueceu-se, e nem me conheceu agora. Uma rapariga em dez anos muda de cara; já estou velha...
— Não está sequer mudada, menina.
— E ele a dar-lhe! ...não gosto que me chame menina. Chame-me Tomásia. (Coração, cabeça e estômago, p. 211)
De igual sorte em A filha do arcediago, às páginas 84, 151, 180 etc.
Um dos ditos mais constantes que, ultimamente, ouvíamos da Mãezinha, era este:
Saudades são securas,
Meu amor, dá cá a borracha...[ 30 ]
A "borracha" aí é o velho depósito de vinho ou água, usado em Portugal e no Brasil, como se pode ver de certas expressões e provérbios. Consta ela, por exemplo, do Anatômico jocoso, de R. Francisco Rey de Abreu Matta Zeferino, no capítulo "Sátira a um homem bêbado": "Oh desventura de bêbado! Queres ver o teu ídolo? Adoras a uma borracha" (tomo I p. 208). Nos Adágios portugueses, de Antônio Delicado (p. 109) está averbado o provérbio: "Não vás sem borracha a caminho, e, quando a levares, não seja sem vinho"; e, à página 199, este, ligado talvez à referida frase-feita: "Borracha vazia não tira secura".
Segundo o testemunho de mestre Câmara Cascudo, "a nossa borracha, saco de couro cortido para conduzir líquidos, preferentemente água, 'é de uso contemporâneo no sertão do nordeste'". ("Com Dom Quixote no folclore do Brasil", estudo in Dom Quixote de La Mancha, José Olímpio, vol. I, p. 31).
A velha expressão popular foi incluída no livro de Fonseca Lebre, Locuções e modos de dizer, (p. 155): "Saudades são securas; oh amor, dá cá a borracha!."
Também em Camilo Castelo Branco, vamos encontrar a mesma expressão que, de tanto uso, julgou o autor desnecessário registrá-la completa. Lá está ela no romance A filha do arcediago (p. 120): "— São saudades de sua amiga Rosa? — Não, minha senhora... eu não tenho saudades de amiga nenhuma. — Diz muito bem. — acudiu o jocundo negociante — saudades são securas..."
Igualmente em Duas horas de leitura, no trecho anteriormente citado do esboço de romance Dous Santos não beatificados em Roma, cujo enredo transcorre, quase todo, nas imediações de Leça da Palmeira: "O cavalheiro do hábito, que presenciara o quadro triste, resmungava um monólogo de que sua filha ainda ouviu: 'Saudades são securas...' Et coetera."
No Cancioneiro de Viana do Castelo, de Afonso do Paço, se coletou a seguinte trovinha, sob n° 1.288, em que se encaixa, como pé-de-verso, a parte inicial da mesma frase-feita:
"Saudades são securas
Elas em mim reverdecem;
Contadas são maravilhas,
Triste de quem as padece"
No Brasil, deparamos a expressão no interessante repositório de material histórico e demológico Tradições e reminiscências paulistanas, de Afonso A. de Freitas. Nele o autor refere o velho dito português: "Saudades são securas, dá cá a borracha", e a variante em que diz — foi ele "restringido e convertido pelo paulista: 'Saudades não se curam, matam-se' (p. 93).
Recordando, agora, no fecho deste livrinho, a sempre querida ausente, digo baixinho comigo:
Saudades são securas...
NOTAS
[ 26 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.
[ 27 ] Tal o que entendia o culto Alberto Faria, segundo se lê em Aérides, no capítulo 'Paremiografia'(p. 221), com argumentos. porém, que não chegam a convencer.nos.
[ 28 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.
[ 29 ] Idem.
[ 30 ] Idem.
[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Seu príncipe está lá dentro, A senhora onde é que está? A senhora dona Elsa Sempre mostra o que é: É uma gata espich...
Gata espichada
Seu príncipe está lá dentro, A senhora onde é que está? A senhora dona Elsa Sempre mostra o que é: |
|
É uma gata espichada Na boca do jacaré. |
| bis | |
Conhecido também pelos nomes de "Senhor príncipe" e "Seu príncipe", este é um dos velhos brinquedos de roda em nossa terra capixaba. Sentimos, entretanto, estar ele cedendo o passo a outras rodas que às crianças parecem mais modernas, como "O pião", o "samba lêlê", o "Eu vi uma pastora", o "Meu irmão", "Meu limoeiro", o "Quebra, quebra, gabiroba" e outras.
Recolhemos versões em vários municípios do Estado, mas poucas são as variantes: "O príncipe está lá dentro", "Senhor príncipe está lá dentro", "Se o seu príncipe...", "Seu prince..."; "A senhora está, está", "A senhora estão, não está", "A senhora cá está"; "Sempre amostra o que é", "Que se mostre o que é".
Alexina de Magalhães Pinto, em Os nossos brinquedos (p. 60), registra a seguinte variante de Minas, sob o título "Olha o bicho":
Olha o bicho Que está lá dentro, Senhoras, deixá-lo estar, Senhora D. Fulana Sempre mostra o que é: É uma gata espichada Na boca do jacaré. |
A variante musical mineira difere da nossa em dois pontos: falta-lhe completamente a primeira parte, e a Segunda, embora seja de igual motivo, é cantada em ritmo bem diverso que, por ser menos espontâneo e menos condizente com a vivacidade da letra, torna, a nosso ver, mais desgraciosa a cantiga.
Também difere da nossa a maneira de brincar a roda na variante mineira, pois a esta falta a parte rítmica dos saltos da "gata espichada" e da sua escolhida — movimentação que dá tanta graça e ruído à versão capixaba.
Modo de brincar: Faz-se a roda bem aberta; no centro, isolada, uma das crianças. As outras, de mãos dadas, vão rodando e cantando até "A senhora dona fulana (nome da do centro) sempre mostra o que é". Aí param todas, repetindo muitas vezes: "É uma gata espichada / na boca do jacaré", estrepitosamente, acompanhando o canto de palmas na cadência da melodia. Enquanto isso, a criança do centro põe-se diante de outra da roda por ela escolhida, e ambas saltas várias vezes, abrindo e fechando os braços e as pernas, como polichinelos, ao ritmo do compasso binário da cantiga. Recomeça-se a roda, indo para o centro a escolhida, e assim até que todas as crianças tenham sido a "gata espichada".
[SANTOS NEVES, Guilherme (pesquisa e texto), COSTA, João Ribas da (notação musical). Cantigas de roda. Vitória:Vida Capichaba, 1948 e 1950. (v. 1 e 2).]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
João Ribas da Costa foi professor no interior do Estado do Espírito Santo.
Uma das crendices que nos lembra ter ouvido à saudosa informante, é a seguinte: Quando se cose ou remenda a roupa no corpo de uma pessoa vi...
Um velho rito de magia imitativa
Uma das crendices que nos lembra ter ouvido à saudosa informante, é a seguinte: Quando se cose ou remenda a roupa no corpo de uma pessoa viva, deve-se dizer:
Coso o vivo e não o morto,
Coso isto que está roto.[ 25 ]
É esta uma das velhas superstições, conhecida em toda a parte. Aqui mesmo, no Espírito Santo, lá em Conceição da Barra, é corrente a crença, na seguinte variante:
Coso roupa no corpo sem precisão.
Viva São José, viva São João!
No Ceará, segundo registro de Guilherme Studart, "quando se costura um rasgão do vestido que se traz no corpo, deve-se dizer: Eu te coso vivo e não morto (in Antologia do Folclore Brasileiro, p. 304).
Também em Pernambuco, Pereira da Costa recolheu a velha abusão: "coser roupa no corpo é agouro de morte, o que porém se evita recitando-se por três vezes (Folk-lore pernambucano, p. 113):
"Coso o vivo,
Nanja o morto;
Coso isto
Que está roto."
No Baixo São Francisco, Antônio Osmar Gomes registrou a mesma crendice na seguinte forma versificada e mais longa:
"Coso a roupa,
Mas não coso a sorte,
Coso na vida,
Mas não coso na morte."
(Tradições populares colhidas no Baixo S. Francisco, in II Anais do Congresso Brasileiro de Folclore, vol. II, p. 189).
Trata-se de um antigo ritual mágico, que bem se pode incluir dentro do conceito de magia homeopática ou imitativa, de que nos fala James George Frazer, e que se funda "na associação de idéias por semelhança". (La rama dorada, magia y religion, p. 27-8).
Um corpo vivo pode assemelhar-se a um corpo morto, principalmente quando se cose a roupa naquele vestida. De fato, em regra a costura de roupa ou véstia (mortalha) se faz no corpo de pessoa morta. Toda vez que, por necessidade ou pressa, tem de coser-se a roupa, ou remendá-la no corpo de uma pessoa viva, convém fazer-se a ressalva protetora, frisando-se que a costura se processa em corpo vivo e não morto. Com isto julga-se — o ato de coser não provocará a morte da pessoa em cujo corpo se costura ou se remenda a roupa.
Até certo ponto esse ritual mágico do "coso o vivo nanja o morto", semelha-se à conhecida ressalva que se faz, na fala viva do povo. "Descrevendo lutas, ferimentos ou moléstias, o homem do interior localizando a ferida, golpe, úlcera, chaga, num determinado lugar no seu próprio corpo, não se esquece de dizer o lá nele, afastando o poder do nome, capacíssimo de conduzir o ferimento para o mesmo local indicado na evocação." (Câmara Cascudo, Anubis e outros ensaios, p. 144).
NOTAS
[ 25 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.
[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]
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Meu amor é marinheiro, Ó marinheiro! Mora nas ondas do mar, Ó marinheiro! Tomara que a maré seque, Ó marinheiro! Para o meu amo...
Meu amor é marinheiro
Meu amor é marinheiro, Ó marinheiro! Mora nas ondas do mar, Ó marinheiro! Tomara que a maré seque, Ó marinheiro! Para o meu amor saltar, Ó marinheiro! |
É esta uma das cantigas de roda mais conhecidas no Espírito Santo. Rara é a criança que a não saiba cantar. Pudemos localizá-la em Vitória, Argolas, São Torquato, Vila Velha, Cariacica, Santa Leopoldina, Santa Teresa, Barra de Itapemirim, Ibiraçu, Linhares e São Mateus.
Há variantes muito ligeiras: umas substituem o "Tomara [pronunciando sempre Tomará] que a maré seque", por "Tomará que a maré enche", "que a maré desce". Outras, em lugar de "Para o meu amor saltar", cantam "Para o meu amor voltar", "Para o meu amor chegar", "Para o meu amor passar", "Para o meu amor salvar".
Não vimos nem a letra nem a melodia referidas em qualquer dos cancioneiros, velhos ou modernos, citados neste livreto. E a cantiga é, entre nós, das mais divulgadas e antigas.
Modo de brincar: Como toda roda de estribilho, cantam-na as crianças em coro, inclusive o "'O marinheiro!". Depois, cada uma "tira" a sua trovinha, cantando o coro o "'O marinheiro!" no final de cada verso. Assim:
Solo: | Nossa Senhora da Penha Aonde ela foi morar? Lá no alto da pedreira Toda cercada de mar. |
Coro: | Meu amor é marinheiro, ó marinheiro! Etc., etc. |
Coro: | Ó marinheiro! Ó marinheiro! Ó marinheiro! Ó marinheiro! |
[SANTOS NEVES, Guilherme (pesquisa e texto), COSTA, João Ribas da (notação musical). Cantigas de roda. Vitória:Vida Capichaba, 1948 e 1950. (v. 1 e 2).]
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João Ribas da Costa foi professor no interior do Estado do Espírito Santo.
Afrânio Peixoto, em seu interessante livro Missangas , em grande parte dedicado a temas de folclore, reserva longo trecho às "supersti...
Pelos olhos se vê quem tem lombrigas...
Afrânio Peixoto, em seu interessante livro Missangas, em grande parte dedicado a temas de folclore, reserva longo trecho às "superstições populares relativas à saúde, doença e morte", e, ao citar "remédios para prevenir e curar", aponta este velho processo: "Conhece-se pelos olhos, quem tem lombriga na pansa".
Tal prática doméstica nos vem de longe, de muito mais longe do que se pensa. Conseguimos localizá-la, por exemplo, lá no recuado século XVI, num dos autos vicentinos, a Comédia de Rubena, datada de 1521.
Diz Benita, a Rubena, sua ama:
"Teneys los ojos sumidos,
y delgadas las narices
Rubena:
"Tú no ves que son lombrices?"
(Gil Vicente, Obras completas, vol. III, p. 9).
A crença se mantém no século seguinte, como o comprova o seu registro na Feira de anexins, de Francisco Manoel de Melo, duas vezes referida. Na "Metáforas de olhos"(p. 58): "Diga, que logo nos olhos se vê quem tem lombrigas"; e na "Metáforas de bichos"(p. 213): "Eu não sei, logo nos olhos se vê quem tem lombrigas".
Se prosseguirmos a verificação através dos tempos, podemos situar a expressão também no século XVIII. Lá está ela numa das Cartas do Cavaleiro de Oliveira, o donjuanesco Francisco Xavier de Oliveira, sempre "rico de informações etnográficas" de sua época, segundo dele disse Câmara Cascudo (Literatura oral, p. 74). Na carta ao padre Dom José Augusto, datada de Viena, 4 de julho de 1737, tão cheia de malícia e de humorismo, se encontra o seguinte passo, com a referência que aqui nos importa: "Como a ciência de conhecer pelo rosto quem tem lombrigas é a mesma que a de julgar o gigante pelo dedo e a de descobrir Hércules pelo pé ex pede Herculem..." (Cartas, p. 162).
Passemos ao século XIX. Num dos livros de Camilo Castelo Branco, Duas horas de leitura, no irônico e chistoso relato que é a sua viagem "Do Porto a Braga", vamos deparar a mesma crendice da lombriga, na seguinte passagem, à página 113. Trata-se do exame "clínico" a que se submete um dos viajantes, e que supunha ter a tênia. Camilo assim o conta: "J. B. sentou-se. Não pude ouvir o relatório dos seus padecimentos. A sua voz era cava e misteriosa. Havia ali entre ambos uns visos de cabala, palavras surdas de feitiços, olhares vesgos de coisa-ruim. O doutor ouvia, e o pouco que dizia era acentuado, bamboleando solene a cabeça piramidal. J. B. tirou os óculos; o doutor procurou a cabeça da tênia na retina, ao que parecia dos seus olhares perscrutadores. Nisto, a um sinal negativo do doutor, ergue-se J. B., e diz 'Não tenho a bicha!'"
Como se vê, há cinco séculos perdura em Portugal e no Brasil, a velha crença popular que descobre, pelos olhos, a presença de tênias ou lombrigas...
[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]
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Não sei bem em que setor se deve encaixar este "monólogo", no vasto campo da ciência folclórica. Trata-se de uma expressãozinha...
Uma cantiguinha de trabalho
Não sei bem em que setor se deve encaixar este "monólogo", no vasto campo da ciência folclórica.
Trata-se de uma expressãozinha que se dizia ou se rezava outrora, durante as vãs tentativas desse trabalho singelo e rotineiro, que é o de enfiar uma linha na agulha. Com seus olhos já cansados, a querida velhinha de Leça da Palmeira, toda vez que tentava embutir o fio de linha na agulha, dizia, com aquela paciência de santa, que Deus lhe deu:
Puxa, Maria Ramalho. Vês, não puxaste, fugiu...[ 24 ]
Uma, duas, três vezes ou mais, a mesma cantilenazinha, até que, afinal, conseguia o intento — e a linha não fugia.
Não vimos registrada essa "cantiguinha de trabalho", em qualquer coletânea de folclore. Talvez não lhe houvessem dado importância, esquecidos de que, no folclore, as mais simples e somenos ninharias têm tanto valor quanto os aspectos mais sérios e graves da bela ciência.
Aliás, faça-se uma ressalva: Leite de Vasconcelos parece ter incluído fórmula usual para o mesmo fim, nos seus Opúsculos. Lá está, à fl. 1.331 do tomo VII, parte 2ª, este "ditado", que deveria, segundo cremos, ser "recitado" em ocasiões como a da nossa cantiguinha:
"Pouca bulha,
Que está aqui um cego a enfiar uma agulha."
NOTAS
[ 24 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.
[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Uma das mais impressionantes rezas populares que conheço, recolhida do veio tão caro à minha saudade, é esta, "para livrar dos ladrões...
Armam-se as armas de Nosso Senhor Jesus Cristo
Uma das mais impressionantes rezas populares que conheço, recolhida do veio tão caro à minha saudade, é esta, "para livrar dos ladrões":
Armam-se as armas
de Nosso Senhor Jesus Cristo,
que é a cruz, os cravos, a lança
e a sua coroa de espinhos.
Assim como Nosso Senhor
fechou a arca de Noé
com as chaves de São Pedro.
fecho a minha casa
e entrego-a a Jesus de Nazaré,
para que me livre
de mortos e vivos,
batizados e sem batizar,
e para que
nem ladrões nem malfeitores
nesta casa possam entrar!
Em nome do Padre, do Filho
e do Espírito Santo. Amém.[ 23 ]
Sua origem é evidentemente portuguesa, como, em geral, todo o rol de orações, ensalmos e responsos que o nosso povo contritamente recita, invocando santos e santas de sua especial e firme devoção.
Nesta oração, o santo que pode guardar a casa, "fechá-la" contra os ladrões, claro que só poderia ser o velho porteiro do céu. Daí a referência expressa às "chaves de São Pedro".
Mas, não apenas contra os ladrões e malfeitores serve a oração-forte que não vi registrada em nenhum dos populários que conheço. Também contra os "mortos e vivos, os batizados e sem batizar, as bruxas e feiticeiras", toda uma coorte de seres que possam violar a casa, com fito de espoliar os donos e roubar-lhe os bens, as pessoas ou a tranqüilidade.
Outras orações há, em que se fala também nas "chaves de São Pedro". Esta, por exemplo, incluída no livro Tradições populares de Entre-Douro-e-Minho, de Joaquim e Fernando Pires de Lima (p. 172):
"Justo juiz de Nazaré,
Filho da Virgem Maria,
Cristo me defenda dos meus inimigos:
Tenham pernas e não me alcancem,
Tenham braços e não me maltratem,
Tenham olhos e não me vejam,
Tenham boca e não me falem!
Com as armas de São Jorge serei armada,
Com as chaves de São Pedro serei fechada,
Com o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo
Serei borrifado,
Com o leite da Virgem Maria
Serei consolado
etc. etc.
Esse responso faz lembrar outro, dirigido a São João, "oração forçosa" que recolhemos na praia de Manguinhos, próximo a Vitória:
João, João, João! O que fazeis, João?
— Lavando o Senhor no rio Jordão!
— Vês, João, aqui vêm teus inimigos.
— Deixá-los vir, Senhor!
Olhos terão, por mim passarão;
pés terão, não me seguirão;
mãos terão, não me pegarão;
pois eu, Senhor,
com as armas de São Jorge estou armado;
com o sangue de Cristo, batizado;
com o leite da Virgem, borrifado;
na barca de Adão, embarcado.
Assim, Senhor,
Meus inimigos não poderão
matar-me nem ofender-me,
nem meu sangue derramar.
Ó fonte, ó fonte de Davide,
livrai-me, meu Jesus de Nazaré.
Tendo Jesus a meu lado,
quem poderá ofender-me?
A cruz do Senhor caia sobre mim.
Quem nela morreu responda por mim,
para que meus inimigos
não se cheguem a mim. Amém.
Vê-se que as duas últimas rezas são variantes próximas. Nelas se deparam o mesmo Jesus de Nazaré, que se vê na primeira oração citada; as armas de São Jorge, o sangue de Cristo, o leite da Virgem Maria e aquela "invisibilidade" ante os inimigos, que terão olhos e não verão, terão pés e não seguirão, terão mãos e não pegarão, terão boca e não falarão...
A ingenuidade da alma popular mostra-se frisante nessas orações forçosas. Ingenuidade e simpleza facilitadas por uma fé tão forte que, por certo, por meio dela, o simples balbucio, o singelo recitar do responso impressionante e poderoso, basta para fazer fugir todos os maus, arrefecer todos os brutos, exterminar e delir toda a maldade no coração dos homens e das feras.
NOTAS
[ 23 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.
[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Se alguém se desse ao trabalho de recolher, na colorida seara dos versos populares, o que aí se diz a respeito da cor morena, certamente o ...
Três trovinhas populares
Se alguém se desse ao trabalho de recolher, na colorida seara dos versos populares, o que aí se diz a respeito da cor morena, certamente o acervo coletado seria impressionante e vasto, e, através do mesmo, não seria difícil sentir que a preferência amorosa (deles e delas) é para a cor trigueira.
No Cancioneiro capixaba de trovas populares, onde reunimos mil quadrinhas do povo, em 39 delas se fala na cor morena, se exalta em predileção a essa cor feiticeira. Por vezes, o poeta justifica a sua opção, diz o porquê da sua preferência:
"Fui na horta panhá côve,
Esqueci, panhei serraia.
Eu gosto da cor morena
Que é firme e não desmaia."
(Cancioneiro capixaba, n° 377)
"Moreno pintam á Cristo,
Morena á la Magdalena,
Moreno es el bien que adoro,
Viva la gente morena!"
(Cuentos y poesias andaluces, Fernan Caballero, p. 157)
Outras vezes, não sabe bem porque ela o encanta:
"Atirei com uma azeitona,
Nos ares virou sucena.
Não sei o que têm meus olhos
Que só ama a cor morena".
(Cancioneiro capixaba, n° 136)
No confronto com outras cores, vale mais a cor morena:
"Vale más lo moreno
De mi morena
Que toda la blancura
De la azucena"..
(Cuentos y poesias andaluces, p. 150)
Por vezes, entre os vários matizes da cor predileta, ressalta-se a que mais agrada:
"Eu perguntei a Cupido
Qual era a morena bela —
Cupido me respondeu:
— Morena cor de canela!"
(Cancioneiro capixaba, n° 322)
Duas quadrinhas sobre os "encantos da morena", freqüentemente ouvíamos à saudosa e querida informante. Todas as vezes que, amoravelmente, lhe chamávamos de "moreninha", lá dizia ela, prontamente, cantarolando:
Morena, morena,
Dos olhos castanhos,
Quem te deu, morena,
Encantos tamanhos?
Encantos tamanhos,
Nunca vi assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim...[ 21 ]
Esses versinhos, de exaltação singela à cor morena, aprendera-os quando mocinha, lá em Leça da Palmeira.
Note-se que o último verso da primeira quadra é retomado no começo da segunda, o que lembra o velho tipo medieval do leixa-pren. Aliás, segundo Leite de Vasconcelos, em Castro Verde, região alentejana de Portugal, é costume o emprego desse tipo de cantigas que lá se denominam "cantigas dobradas", e cita o seguinte exemplo, na mesma medida — cinco sílabas ou redondilha menor — das quadrinhas de Leça da Palmeira:
"já te tenho dito
Que não vás ao poço:
Toma lá dinheiro,
Ajusta um moço.
Ajusta um moço,
Ajusta um rapaz:
Já te tenho dito
Que ao poço não vás!"
(Opúsculos, p. 1.211)
Recentemente, Fernando topes Graça, estudando A canção popular portuguesa, dá outra amostra dessas cantigas dobradas:
"Ó minha amora madura,
Diz-me quem te amadurou;
Foi o sol e a geada
E o calor que ela apanhou
E o calor que ela apanhou
Debaixo da silveirinha;
O minha amora madura,
Minha amora madurinha."
Em Caçaroca, neste Estado, recolhemos, também, exemplo atual dessas cantigas dobradas, de sabor tão popular:
Alecrim da beira d'água,
Cresce o pé, estende a rama;
Isto é tolícia minha
Amar a quem não me ama.
Amar a quem não me ama
Não é amar, é cegueira;
Querê bem a quem me qué
Que é justiça verdadêra.
A terceira trovinha popular, ouvida à mesma saudosa fonte maternal, é a seguinte, que a Mãezinha ouviu cantar, certa vez, em sua terra natal, a um pobre diabo, o "Re-pi-piu", figura popular em Leça da Palmeira:
De onde estou, eu bem vejo
Duas meninas iguais:
Se eu quiser dizer bem posso
Qual delas me agrada mais.[ 22 ]
Dessa quadrinha — parece que sem mais reflexos no Brasil — pudemos localizar duas versões lusitanas. Uma é a quadra n° 223 da coletânea Mil trovas, de Agostinho de Campos e Alberto d'Oliveira:
"De aqui donde estou bem vejo
Duas meninas iguais;
Se quiser dizer, bem posso
De qual delas gosto mais."
A outra, figura no Cancioneiro de Viana do Castelo, de Afonso do Paço, (quadra n° 311), idêntica na forma, com breve alteração apenas na contração prepositiva do primeiro verso, assim redigido: "Daqui donde estou bem vejo".
Como se nota, trata-se de três versões da mesma trova portuguesa, com ligeiríssima divergência, quase despercebida.
Com o mesmo pé-de-verso, Leite de Vasconcelos recolheu esta outra quadra, verdadeiro "poema em quatro versos" — como diz — e citada nos seus Opúsculos, página 40:
"Daqui donde estou, bem vejo
Olhos que me estão matando.
Matai-me devagarinho...
Que eu quero morrer penando!"
O mesmo pé-de-verso vamos encontrar nesta copia da Galícia, referida no Cancioneiro popular gallego, de José Pérez Ballesteros (tomo I, p. 129):
"N'aqui donde estóu ben vexo
a altura que ten o mar,
Tamén vexo os meus amores
e non lhes podo falar."
Em breve nota a esse verso, se lê, à página 159: "N'aqui: frase notable por nueva. El colector tiene oído: d'aqui, que es la más corriente."
NOTAS
[ 21 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.
[ 22 ] Idem.
[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Emissário: Onde mora a bela condessa, Língua de França, onde nasceu? Condessa: O que quer com a bela condessa Língua d...
Bela condessa
Emissário: | Onde mora a bela condessa, Língua de França, onde nasceu? |
Condessa: | O que quer com a bela condessa Língua de França, onde nasceu? |
— Senhor rei mandou-me aqui, Buscar uma de vossas filhas E levar você também. |
|
— Eu não dou as minhas filhas, Nem por ouro , nem por prata, Nem por sangue de Aragão, Para casar com esse ladrão. |
|
— Tão contente que eu me vinha E tão triste que eu me vou, Por causa da bela condessa Que sua filha me negou. |
|
— Volte atrás, bom cavalheiro, Por ser um homem de bem Subie naquele outeiro Escolhei daquelas três: Uma se chama Maria, Outra se chama Guiomar, A mais formosinha delas Chama-se Estrela do Mar. |
|
— Assentai aqui menina, Para coser e bordar, Que do céu lhe há de vir Uma agulha e um dedal. O dedal será de ouro, A agulha será de prata, Palmatória de marfim Para a mestra castigar. |
A "Bela condessa" ou "Senhora condessa" é uma das mais antigas canções de roda. Cantam-na, ainda hoje, principalmente as crianças do interior do Estado. As variantes que conseguimos recolher são de Vitória, Conceição da Barra, São Mateus, Santa Leopoldina e doutros municípios do interior.
Trata-se de roda do tipo "escolha de noiva", como a "Eu sou pobre, pobre, pobre", porém muito mais característica.
Cecília Meireles, em "Infância e folclore", dedicou a este folguedo, interessante estudo, desenvolvido em cinco artigos (A Manhã, de 7, 9, 10 e 22 de abril, e 16 de maio de 1942). Neles cita a inteligente folclorista inúmeras variantes brasileiras e portuguesas, além de versões da Espanha, Chile, Argentina, Venezuela e México — o que prova a larga difusão desta cantiga, assim em português como em espanhol.
Na versão anotada em Conceição da Barra e transcrita acima, bem como numa das variantes de São Mateus (transcrita adiante), há, segundo nos parece, evidente enxerto de fragmento de algum romance velho, o que não ocorre em nenhuma das variantes referidas por Cecília Meireles, nem em outras que também conhecemos, como a citada por José A. Teixeira, em Folclore goiano, p. 352; a por Julio Aramburu, em El folklore de los ninos, p. 87; a que registra Eduardo M. Torner, em El folklore en la escuela, p. 109. É o trecho em que a Condessa oferece as três filhas, mencionando-lhes os nomes:
Uma se chama Maria Outra se chama Guiomar, A mais formosinha delas Chama-se Estrela do Mar. (Conceição da Barra) Uma se chama Maria, Outra se chama Guiomar, A mais velha e mais formosa Chama-se Estrela do Mar. (São Mateus) |
Confrontem-se, por exemplo, estes versos com o romance de "Faustina", e as versões da "Nau Catarineta", in Romanceiro português, de Vitor Eugênio Hardung, I, p. 22 e 141.
A versão colhida em Santa Leopoldina substitui "Língua de França, onde nasceu", por "Língua de prata de Dona Alença"; outra variante capixaba canta o mesmo verso assim: "Língua de prata dona Lionença" — evidentes alterações da que se canta em Ouro Preto — "Língua de prata de ouro e nobreza" (Cecília Meireles, A Manhã, 10/4/1942).
Interessante é a acentuada tendência das crianças capixabas em nasalizarem a palavra "Condessa", pronunciando "Condensa".
Nas versões brasileiras citadas por Cecília Meireles — variantes paraenses, carioca e mineira — em em quatro das versões capixabas, o pretendente ou emissário dirige, às filhas da condessa, "amabilidades" jocosas, o que não ocorre na variante de Conceição da Barra, que mantém, ainda hoje, o aspecto singelo e sério do folguedo.
Da "Bela Condessa", além da melodia que aqui fixamos, conhecemos três outras — a que se vê no Guia prático, n. 39, intitulada "Condessa"; a recolhida por Juan Alfonso Carrizo, em Cantares tradicionales del Tucumám, p. 49, sob o título "Hilo de oro, hilo 'i plata"; e a que figura, com o nome de "Las hijas del rey moro", em El folklore en la escuela, loc. cit.
A música registrada no Guia prático, em arranjo de Villa-Lobos, além de aproveitar os motivos de outras cantigas de roda ("Constança, meu bem Constança" e "A viuvinha"), não apresenta a mais leve semelhança com a suave melodia capixaba, e como que se desatavia dos encantos naturais que, em regra, caracterizam as melodias do folclore musical infantil.
Ressalte-se aqui, mais uma vez, que a preocupação cardinal dos autores deste caderno de cantigas, primeiro de uma série, é fixar, fielmente, rigorosamente, a letra e a música das canções de roda, recolhidas diretamente da fonte oral infantil, isto porque sempre tiveram, em alta linha de conta, que "a virtude máxima do folclorista é a fidelidade" (Luís da Câmara Cascudo).
As duas outras versões musicais — ambas de procedência argentina — também diferem acentuadamente da nossa. A primeira é allegro, vivaz, com início quase marcial. A segunda, moderato e — interessante! — reproduz exatamente, na parte final, a melodia correspondente ao responso da Ladainha de Todos os Santos "Te rogamus, audi nos", em canto Gregoriano.
Modo de brincar: Quase não difere no Brasil a maneira de brincar esta roda, segundo o depoimento de Cecília Meireles. Forma-se uma fila de crianças, de mãos dadas — é a condessa e as filhas. Do outro lado, sozinho, o emissário. Canta-se o longo diálogo, em movimentos de vai e vem, como os da cantiga "Eu sou pobre, pobre, pobre". Escolhida a primeira "noiva", que fica "assentada" no lugar onde estava o emissário ou o acompanha nas embaixadas seguintes — a dramatização se repete até serem todas as filhas da condessa, escolhidas como noivas dos reis.
Transcrevemos abaixo, algumas das versões capixabas da "Bela condessa".
De São Mateus:
— Aonde mora a bela condessa, Vinda de França, onde nasceu? — O que queres com a bela condessa, Vinda de França, onde nasceu? — Senhor Rei mandou-me aqui, Buscar uma de vossas filhas, Carregar você também. — Eu não dou as minhas filhas Nem por ouro nem por prata, Nem por sangue de alemão Para casar com este ladrão. — Tão contente que eu me vinha E tão triste já me vou, Por causa da bela condessa Que sua filha me negou. — Volte cá bom cavalheiro, Escolhei a qual quiser. Uma se chama Maria, Outra se chama Guiomar, A mais velha e mais formosa Chama-se Estrela do Mar. — Esta eu quero, esta não quero, Esta come requeijão, Esta bebe ovo choco, Esta é do meu coração. |
De Santa Leopoldina:
— Onde mora a senhora condessa, Língua de prata de Dona Alença, Seu rei mandou buscar Sua filha para casar. |
|
— Minha filha não vai lá Nem por ouro nem por prata, Nem por sangue de lagarta. Volte a cabo cavaleuri Escolhei neste monteiro |
bis |
— Esta quero, esta não quero, Come queijo, requeijão, Vim buscar meu coração. |
bis |
De Vitória:
— Senhora dona condessa, Língua de prata dona Lionença. O rei mandou buscar Uma das filhas para casar. — Eu não dou as minhas filhas Nem por ouro nem por prata Nem por sangue de lagarta. — Tão alegre que vim, Tão triste que voltarei, Pelas filhas da condessa Que nenhuma levarei. — Volta cá meu cavalheiro, Escolhei destas seis A que for mais bela E contigo levareis. — Esta quero, esta não quero, Esta come pão da cesta, Bebe vinho da galheta, Come queijo, requeijão, Vim buscar meu coração. |
De Vitória (morro de São Francisco):
— Onde mora a bela condessa, Filha de França, onde nasceu? — Aqui mora a bela condessa, Filha de França, onde nasceu. — Meu rei mandou-me aqui Buscar uma de vossas filhas. — Minhas filhas eu não dou, Nem por ouro nem por prata Nem por sangue de lagarta. — Tão alegre que eu vinha, Tão triste vou voltando. — Volte, volte cavaleiro, Escolhei a qual quiser. — Esta quero, esta não quero, Esta como requeijão, Esta como o pão da cesta, Esta é do meu coração. |
[SANTOS NEVES, Guilherme (pesquisa e texto), COSTA, João Ribas da (notação musical). Cantigas de roda. Vitória:Vida Capichaba, 1948 e 1950. (v. 1 e 2).]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
João Ribas da Costa foi professor no interior do Estado do Espírito Santo.
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