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Para ilustrar uma ideia de limites no uso de recursos naturais, um velho livro do conservador Molinari, hoje perdido pelas minhas estantes,...


Para ilustrar uma ideia de limites no uso de recursos naturais, um velho livro do conservador Molinari, hoje perdido pelas minhas estantes, falava de uma experiência feita em seu pomar. Havia um certo número de fruteiras e um certo número de pássaros com seus territórios determinados. Molinari concluía, se bem me lembro, que o uso da natureza tinha regras inflexíveis. A população de pássaros era estável em relação às fruteiras. Parece que ele queria também ilustrar algo da ideia do equilíbrio econômico geral.

A reminiscência vem a propósito do comportamento de meu cachorro que, na manhã de ontem, olhava alternadamente para mim e para o cimo da árvore de acerola. Um olhar interrogativo. Logo percebi o que o preocupava. Nas manhãs normais há sempre uma confusão de vozes passarinheiras. Mas é um caos organizado já que existe o propósito comum de saudar o dia que começa ou se inclui entre as providências próprias do universo da passarada. Pois na manhã de ontem havia um clima diferente. Nada do barulho costumeiro. Em seu lugar, apenas um forte ruído emitido, sem dúvida, por um pássaro. Meu cachorro, muito cioso de suas obrigações, continuava a me olhar, aguardando instruções. Todo o quintal ocupado apenas por aquele ruído que não pode ser chamado de canto. Uma coisa assim parecida com um rasgar de pano. Meu cachorro, à falta de maiores informações, começou a latir. Mas o ruído continuou. Logo depois pude identificar a fonte do barulho: um pássaro grande, maior que os bem-te-vis habituais, em cima da copa mais alta da árvore. Como não consegui saber que tipo de pássaro era aquele, fui até ao escritório para fazer a consulta costumeira ao extenso tratado de ornitologia do Sick.

Foi difícil encontrar um protótipo daquela ave que perturbava o meu cachorro talvez, instintivamente, preocupado com o equilíbrio das fontes de alimento existentes no quintal, institucionalmente sob sua responsabilidade. Uma preocupação que se estenderia aos habituais inquilinos da minha quase meia dúzia de árvores. Por fim, na página 262, identifico no desenho do quero-quero (batuíra ou maçarico) o estranho visitante da manhã. Ouço falar desse pássaro, de sua agressividade, de sua preferência por alimentação de origem animal, mas é o primeiro que vejo, ao vivo. Fico então sabendo que existem dele três espécies residentes e sete migrantes Como estamos em setembro e é época de migração, são maiores as probabilidades de que esse quero-quero ou afim que apareceu por aqui seja um migrante. Um estrangeiro que, para meu espanto, pode ter vindo de não menos que dos "hiperbóreos de além do Círculo Polar", conforme leio no Sick. O naturalista diz que esse pássaro percorre 20.000 quilômetros até aportar aqui e chega à Terra do Fogo percorrendo mais 5.000. Algumas espécies viajam até 800 km por dia e a 200 quilômetros da costa. Os primeiros que nos chegam ainda portam restos da bela plumagem das festas de núpcias. Não pude verificar esse detalhe em relação a meu eventual hóspede porque ele passou a ficar escondido entre a folhagem.

Continuo folheando o livro do Sick e vou até sua apresentação, que é feita por Carlos Drummond de Andrade e que ainda não tinha lido. Mais surpresas.

Helmuth Sick — diz Drummond — nasceu em Leipzig. Jovem ornitólogo, chegou ao Rio de Janeiro em 1939. Deixou a esposa na Alemanha e veio embrenhar-se nas selvas do rio Doce, em missão científica resultante de convênio internacional. O Brasil entra na guerra e todo alemão passa a ser considerado espião perigoso, mesmo em potencial. Pelo sim, pelo não, Sick é internado na Ilha Grande. Aí, não podendo estudar aves em sua cela, estuda míseros companheiros de solidão: pulgas, percevejos, cupins — só destes últimos, identifica onze espécies desconhecidas. Melhorando os tempos, foi contratado pela Fundação Brasil Central. Mais tarde recusou o cargo de diretor da Seção de Ornitologia do Museu Zoológico de Berlim, preferindo prosseguir em seu trabalho no Brasil. Drummond termina sua apresentação fazendo um agradecimento, em nome dos homens e mulheres deste país. É o que fazemos, agradecendo também, no caso, ao quero-quero que resolveu mudar a rotina do quintal. Afinal, há tanto tempo com esse livro na minha estante, não havia ainda tomado conhecimento das interessantes informações de Carlos Drummond de Andrade sobre o sábio germânico.

[Crônicas de 2004. Reprodução autorizada pelo autor.]

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© 2004 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem autorização expressa dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Apesar do meu lastro montanhês, devo dizer que me rendo ao mar, especialmente aos domingos, dia de moqueca. Ressalva: a rendição incondicio...


Apesar do meu lastro montanhês, devo dizer que me rendo ao mar, especialmente aos domingos, dia de moqueca. Ressalva: a rendição incondicional não aconteceu porque não existe borracha capaz de limpar a lembrança das neblinas esgarçadas e dos verdes do país da infância. Mas vou me submetendo a essa agradável ambiguidade que tem lá suas doçuras na medida em que não preciso formular a alternativa entre montanha e mar. Enfim, e/e e não ou/ou. Há alguns anos, por exemplo, me dava o privilégio de tomar banho de mar pela manhã e dormir a quase mil metros de altitude, num certo sítio aninhado entre as montanhas. Agora, mesmo não tendo mais nem um centímetro quadrado de terra naquelas serranias, continuo com um latifúndio montanhês na alma.

Visto o quê, sendo hoje domingo, assumo a condição de senhor de robalos e badejos que pulam nas ferventes panelas de barro. Postas, douradas como as madeixas de Rapunzel, que me levam à torre de requintados tesouros gastronômicos.

Enquanto aguardamos a chegada de nosso peixe e para evitar demonstrações de pressa ao garçom, o que nunca é recomendável, vou procurando pensar em outras coisas. Como, por exemplo, no profissionalismo desses trabalhadores do mar que não falham na messe que alegra nossos corações domingueiros.

Há alguns anos, um especialista em educação dizia que o bom profissional não se formava apenas com um treinamento rápido. Mesmo que isso possa soar óbvio não o era na época em que foi dito. Havia os que, a pretexto de formar quadros profissionais com urgência, tentavam atropelar a boa técnica e se firmavam em quantidades, ignorando a qualidade, já que precisavam de números para as estatísticas. Sabemos todos, em especial os da área, que ambos esses termos devem ser igualmente considerados à vista de objetivos definidos. Além do mais, a eficácia do aprendizado precisa de alguma coisa adicional. Uma certa atitude de "pertencimento" que exige vocação, tempo de estudo e/ou de prática mais prolongados no tempo. Pensei nesse especialista em educação quando conversava com alguns pescadores que estão numa "idade histórica" diferente da dos educandos que estava na mente do especialista. Fazem parte da parcela de profissionais formados apenas pela prática mas que ostentam uma atitude, uma espécie de orgulho e de satisfação pelo que fazem e que os aproxima do ideal imaginado pelo educador. Eles não tinham tempo de estudo mas carregavam essa tradição de competência de lavradores do mar, traduzidas nesses peixes como o badejo que são pescados a quase trezentos metros da superfície, segundo me dizem. Badejo, porque ele sabe que, na outra ponta, está o capixaba que não aceita generalizações: "Quero uma moqueca de peixe." Não é capixaba. Capixaba pede peixe pelo nome, o que afinal é uma forma de valorizar o profissionalismo de quem não pesca peixe mas o peixe tal e tal. Se se trata de capixaba, o pescador sabe que precisa usar seus conhecimentos para atender a esse cliente que ele respeita porque ama o mar e suas coisas tanto quanto ele.

Um respeito pelo mar como o de certo pescador de Manguinhos de anos atrás que apanhava lagostas, sua especialidade. Seu "pesqueiro" ficava naquelas pedras perto da ponta dos Fachos. O tal apanhador trabalhava apenas uma hora por dia e nesse tempo pegava x quilos de lagosta. Conhecia aquelas pedras como a palma da mão e talvez conhecesse a própria biografia de cada lagosta apanhada. Não tinha erro. Uma hora de trabalho e tantos quilos de lagosta. Nem mais nem menos. Quem estivesse de fora podia dizer: "Mas que desperdício!" Se trabalhasse as oito horas regulamentares pegaria sete vezes mais do que pescava numa hora. Ele, nada. Só trabalhava daquele jeito. Depois, ia para o boteco do Chico tomar uma talagada.

Sei que a atitude desse pescador se explica por outras vias mas não quero entrar por esse caminho. Deixemos a História em paz, por ora. Talvez seja apenas oportuno lembrar que se trata de uma prática herdada das sociedades caçadoras/coletoras. Um anacronismo que encanta mas que bate de frente com o aumento da população. De qualquer maneira, um elemento de utopia quando se vê a sociedade tradicional apenas sob esse signo da "boa vida", como o chamou Heimann. O advento da "sociedade econômica" que precisa alimentar as multidões que sobrevieram à revolução populacional rasgou a fantasia e, no momento, até o sonar entra em cena para localizar cardumes visando atender a essa avalanche de novas necessidades que explodem em ritmo crescente. Uma lembrança que atordoa um pouco pela superposição de uma tecnologia avançada sobre um bem natural. Hasta quando?

Mas acabei falando demais. Sem maiores encucações, contemplemos essa moqueca que está chegando para nossa mesa e nos faz desejar vida longa para os trabalhadores do mar e seus produtos maravilhosos.

[Crônicas de 2004.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Abro a televisão e lá está o filme Esqueceram de mim . Até hoje não consegui ver o filme todo, mas vejo que a TV insiste tanto em reapres...


Abro a televisão e lá está o filme Esqueceram de mim.

Até hoje não consegui ver o filme todo, mas vejo que a TV insiste tanto em reapresentá-lo que, um dia, quem sabe? O menino lourinho é o neto com que todo avô sonha, mas a história, me parece, é aquele chute de ingenuidade pasteurizada. No entanto, nesta vez em que o filme me tocaia pela televisão vou vendo cenários inéditos. Não os vi nos outros pedaços de filme em que a televisão me pegou desprevenido. E, agora, a confissão: tenho um fraco por decoração de Natal. Falou em decoração e enfeites de Natal, preciso me segurar para não cair no exagero e mesmo que os limites da sensatez sejam ultrapassados não apresento qualquer desculpa nem peço condescendências. É um fato da vida. Neste momento, a TV está exatamente mostrando belíssimas decorações de Natal dessa cidadezinha onde se desenvolve a ação do Esqueceram de mim.

Ruas semi-iluminadas, com bolas coloridas que imitam o gelo escorrendo das árvores. Pingentes como gotas de orvalho cristalizadas, surgidas na madrugada anterior, nos preparativos da Noite.

Pela vidraça da janela de uma casa, como no velho poema de um poeta português, vultos de pessoas que se abraçam e trocam presentes. Guardiã atenta, a árvore de Natal num canto da sala, com suas luzes intermitentes, sinaliza emergências de fraternidade.

Creio que o instante do encontro daquelas pessoas, como se vê pela vidraça, pode bem traduzir o Natal. Ah, mas você não sabe, aquele cunhado detesta a mãe que, por seu lado, detesta a filha do genro que... há apenas interesses... rosna o antagonista.

Acontece que, como sempre, a hipótese desses instantes nem mesmo pode ser representada numa unidade de tempo. Suas incursões são fulminantes na selva selvaggia do quotidiano. Os efeitos que causa não são mais problema do instante. Mas é fácil compreender que, ali, o conflito é estrangeiro e não tem visto de entrada.

Tudo isso é possível ver através dessa vidraça mostrada no filme. Sim, mas...

Ocorre que nesse momento de duração fugaz nem mesmo é possível articular o "mas". Quando acontecer, o momento passou, o "mas" já era e uma nova estrela foi adicionada aos céus de Belém como nas mais óbvias canções da Noite Feliz. O "mas" que tente recuperar-se nos dias e séculos seguintes. O desfecho não pode ser previsto porque os "instantes" precisam se livrar do cerco implacável do terrorismo, das guerras e da violência em geral. Além de precisar desmentir diagnósticos como o de Susan Sontag, para quem a guerra seria um antídoto contra o tédio. Por isso não vai acabar nunca porque o tédio cresce em termos de média geométrica. Entretanto, embora não exista nenhuma estatística disponível para quantificar esses "instantes", por algumas e escassas evidências, é possível admitir que, apesar de tudo, eles furam a barreira da violência e persistem. E mais não digo para não ser pretensioso, já que o mistério permeia os instantes, com ocorrências imprevisíveis ao menos para este pobre mortal.

Em todo caso, creio que cada um de nós tem experiência de instantes assim. Talvez não os valorizemos devidamente porque sua identificação não é tão imediata. Por exemplo, para citar um cuja importância cresceu muito com o passar do tempo. Estou vendo o presépio da infância. Vejo minha mãe cortando as figuras do Almanaque do Tico-Tico que vão sendo coladas numa cartolina. As casas no estilo do deserto são fáceis de cortar porque são blocos de figuras geométricas regulares. Mas as figuras da Sagrada Família exigem uma habilidade maior com a tesoura. A cola era de farinha de trigo e água, o que causava uma certa dificuldade na colagem das peças. Quando finalmente conseguimos colocar o menino Jesus na manjedoura, surgiu o instante similar ao visto através daquela vidraça do Esqueceram de mim e então, mensagem recebida, a estrela de Belém brilhou mais.

[Crônicas de 2004.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

PARTE I De "compactos" A saudade sempre nos permite elaborar uma espécie de "compacto". O jogo da vida pode ter a d...

PARTE I


De "compactos"

A saudade sempre nos permite elaborar uma espécie de "compacto". O jogo da vida pode ter a duração do "tempo regulamentar" mas esses "compactos", em geral, não passam de poucos minutos. Há os que se impacientam quando uma pessoa de mais idade começa a falar dos "bons tempos". Se lhes fosse explicado que se trata de um mero "compacto" em que são eliminadas as bolas fora, os tiros de meta, etc, enfim lances que podem ou devem ser esquecidos, talvez fossem mais indulgentes.


Rio Branco

Feito o necessário nariz-de-cera, passo ao assunto que surgiu numa conversa com o Miguel Depes Tallon: o futebol de Vitória "naquele tempo".

Começo com uma determinada lembrança do meu time, o Rio Branco. Em 1952, vejo-me como membro da diretoria do Rio Branco presidida por Alaor de Queiroz Araújo, mais tarde reitor da Ufes.

Mas a memória mais antiga do Rio Branco vem de 1946, talvez porque me tenham perguntado sobre glórias do futebol capixaba e fui tentando encontrar louros de antigas batalhas em imaginários baús quase esquecidos. Seja também explicado antes de tudo que não sou um conhecedor da história do nosso futebol — como um Grijó Neto — e estas notas têm sobretudo um nítido cunho impressionista. Detalhes podem estar desfocados mas, no conjunto, creio, fica um painel que procura revelar certos episódios, frise-se, na visão de um determinado espectador.

Mas por que 1946? Recordemos. Nesse ano o Fluminense do Rio havia conseguido um título inédito no futebol brasileiro, o de supercampeão. Hoje em dia são fabricados supercampeões em série (releve-se o saudosismo). Mas o supercampeão de que vos falo possuía craques como Ademir Menezes, o Queixada, o Orlando Pingo de Ouro, Rodrigues, o ponta-esquerda que tinha um canhão nos pés, Pedro Amorim, o médico-jogador, e outros astros de semelhante quilate.

Num momento de extrema audácia, o nosso Rio Branco resolveu desafiar esse Fluminense, supercampeão de 1946, para uma partida no Estádio Governador Bley, em Jucutuquara.

Nessa época eu morava a uns duzentos metros do Estádio. Pode-se calcular a alegria de quem apenas podia imaginar os lances de seu time no Rio através do rádio, em especial pelo Oduvaldo Cozzi — também tricolor — e que de repente via a possibilidade de ver as jogadas desses supercraques, ao vivo e a dois passos de sua casa. Mas nesse momento instalou-se também uma espécie de conflito cultural. Como torcer contra o Fluminense apesar de todo o meu amor pelo Rio Branco? Nesses casos, a província se divertia e, sádica, aguçava o dilema. E agora?

Sinceramente? Na hora do jogo torcia para os dois. Como? Torcia para quem estivesse no ataque. Mas quando o Fluminense fez 2 x 0, passei a torcer apenas pelo Rio Branco. A verdade é que toda minha flama provinciana não foi capaz de deter a admiração pelo futebol do Ademir. O Queixada era um bólido que partia de seu campo e parecia deixar um rastro de fumaça em sua vertiginosa escalada em direção ao gol. Na meia-esquerda, o Orlando Pingo de Ouro produzia filigranas, trabalhando jogadas da mais pura ourivesaria do "esporte bretão", como era denominado o futebol nos discursos de antigas solenidades esportivas. Como ignorar isso em nome da fidelidade ao time da terra? Um doloroso dilema parcialmente resolvido apenas no final do jogo, que terminou mesmo nos 2 x 0 para o clube carioca. A solução veio de riobranquenses como Ruy Benezath que não eram torcedores do Fluminense. Ou eram?

Fica a dúvida. O que importa é que nos descobrimos relativamente satisfeitos porque o Rio Branco havia perdido apenas por 2 x 0. Esperava-se uma goleada e aquele placar reduzido passou a ser uma espécie de vitória moral. Não é preciso acrescentar que, salomonicamente, embora com um leve traço de remorso, passei também a comemorar nossa modesta derrota.


O adolescente e a visão 

Isso afinal mostra que certas glórias dos bons tempos não foram sempre tão deslumbrantes, pelo menos até onde alcança minha memória. Tínhamos plena consciência de que não podíamos nos alinhar com os deuses olímpicos do futebol carioca. O exemplo mais acabado dessa condição não foi o ocorrido nesse jogo do Fluminense mas com um time do Flamengo que apareceu por aqui em meados dos anos quarenta. Ao falar desse time não sei se estou falando de um time de futebol ou de uma ficção, de um punhado de heróis gregos que vai à caça do gol como quem vai pegar o velocino de ouro com o descansado gesto de rotina de apanhar a marmita do almoço. Vejam a linha média: Biguá, Bria e Jaime. Bem mais tarde, cerca de uma década depois, o Brasil se sagrou campeão do mundo mas na memória dos que assistiram àquele jogo aqui em Vitória, permanecerá sempre a dúvida se aquele time do Flamengo não deixava a anos-luz de distância a própria seleção canarinho de 1958. Falei de linha média mas isso é de uma indesculpável trivialidade. Tratava-se de um trio de gigantes que não apenas dava condições para tornar inexpugnável a chamada última cidadela, como também fazia razias mortíferas no terreno adversário. Biguá era um gigante de um metro e sessenta e cinco, se tanto. Um indiozinho atarracado que parecia um desses personagens de história em quadrinhos, o "homem-elástico" ou equivalente. Qualquer bola vinda em sua direção era alcançada por sua perna gigantesca. Na lateral esquerda, o Jaime. Pensem num jogador extremamente leal e que diante do adversário parecia pedir-lhe desculpas antes de tomar-lhe a bola. Com um detalhe: tomava todas, aceitasse ou não o adversário seu educado pedido de desculpas. Se não me engano, esse Jaime é o pai de um treinador do mesmo nome que trabalhou aqui em Vitória há algum tempo: Jaime de Almeida.

Era a época do centeralfe. No campo de batalha ele era o estrategista que, além de exercer uma função defensiva, comandava o ataque às hostes inimigas. O centeralfe era o indiscutível proprietário do meio-de-campo e parecia haver uma espécie de consenso entre os litigantes quanto ao respeito ao território sagrado compreendido em seus domínios. Sabe-se que as táticas atuais profanaram esses domínios e chegaram à extinção do centeralfe, cujo correspondente, no jogo moderno, não consigo identificar. Deve ser um burocrata da bola, um homem de terno cinzento que nada tem a ver com aquele nobre personagem protegido pelas normas de um código invisível que lhe concedia o grau de cavalheiro na hierarquia futebolística. Quem não se lembra do Veraldo do Vitória, Rafael do Caxias, João Pedro do Rio Branco? Todos verdadeiros senhores feudais, muito cônscios da responsabilidade que lhes era delegada: administrar seus domínios com sabedoria, em nome da beleza do futebol. A culpa pelos gols perdidos jamais podia ser atribuída aos centeralfes. As falhas ficavam por conta dos beques ou do infeliz goleiro. No centro do campo eles pairavam acima do bem e do mal. Também não eram culpados por não fazer gols, tarefa dos atacantes. Sempre que os perdiam os tais atacantes seriam apenas desastrados emissários que não cumpriam adequadamente as missões propostas pelos inatacáveis centeralfes. Esta longa introdução ao papel do antigo proprietário do meio-de-campo serve apenas como referência ao maior de todos que já vi jogar em minha vida: Bria, desse mesmo time do Flamengo que veio jogar em Vitória nos anos quarenta. Pode ser que a fantasia de meus olhos adolescentes contribua para exacerbar essa lembrança mas é difícil alguém me convencer que, naquele jogo, se quisesse, Bria não poderia dar saltos de três metros de altura, e até mesmo alcançar a marquise do Estádio. Uma atuação fantástica e que fica como um dos momentos inesquecíveis em minha trajetória de espectador.

A linha de ataque desse mitológico time do Flamengo? Bem, meus caros, "compacto" à parte, declaro que vi Zizinho jogar. Para Zizinho, o campo era uma folha de papel milimetrado onde ele desenhava dribles invisíveis. Fala-se muito, com inteira justiça, nos fenomenais dribles de Garrincha. Mas havia nos dribles do legendário extrema um toque de comediante com suas infalíveis escapadas pela direita. Com Zizinho o espetáculo ficava por conta de uma inexplicável mágica de esconder a bola durante um drible milimétrico. Mas a razão sempre imperava e, no traçado das coordenadas cartesianas, seu passe era meio caminho andado para o gol. Enfim, Zizinho encarnava um mágico que não usava truques e isso enriquece a condição humana na medida em que um portador dos tradicionais cinco sentidos nos aponta uma insuspeitada possibilidade de superação de triviais limites. E assim foi porque me pareceu.


Um gênio do futebol

Mas nessas recordações do futebol de Vitória há também o cruel, o épico e o trágico. Lembro-me de um jogo do Vasco da Gama, "Expresso da Vitória" ou pelo menos com alguns vagões dessa locomotiva que arrasava os demais times cariocas. Havia o zagueiro Rafanelli, uma espécie de paredão, um Evereste em cujo sopé os ataques inimigos se desfaziam como ondas na praia. Ely, o Príncipe Danilo e Jorge na linha de alfes. No ataque, Maneca e Chico mas, principalmente, Heleno de Freitas, o épico e o trágico. Nos dias anteriores ao jogo havia chovido muito e continuou chovendo no domingo de manhã. Pela tarde o sol apareceu mas o campo estava todo enlameado. Grandes poças d'água nas linhas intermediárias mostravam um precário sistema de drenagem.

Entra em campo a equipe cruzmaltina com aquela faixa diagonal na camisa. O time vinha completo.

Aos trinta minutos do primeiro tempo o placar já mostrava três a zero para o Vasco. Uma superioridade esmagadora. Os jogadores de ambos os times pareciam egressos de um festival de lama. Difícil até distinguir os respectivos uniformes. Com uma exceção: Heleno de Freitas. O uniforme do centroavante permanecia imaculado. Havia uma razão para isso: ele estava em campo mas não participava do jogo. Nos cruzamentos de bola sobre a área, se essa caísse numa das inúmeras poças da intermediária, ele simplesmente parava e deixava que o adversário a tomasse, pulava por cima da poça para não molhar as chuteiras e os pés. Os cabelos glostorados — como se dizia — continuavam também penteados. Enfim, Heleno simplesmente não tomava conhecimento da partida. Como os demais jogadores vascaínos continuavam fazendo jogadas inéditas para nossos olhos provincianos, Heleno passou despercebido. Afinal seus companheiros continuavam a marcar gols na meta do time conterrâneo.

Veio o segundo tempo e as coisas permaneceram no mesmo ritmo embora o Vasco não se interessasse mais em fazer gols. Limitava-se a deixar o tempo passar, construindo jogadas com todos os enfeites do repertório de seus craques, mas Heleno continuava o mesmo ausente do jogo e seu uniforme permanecia limpíssimo. Recusava-se a jogar. Era um lorde inglês no meio de enlameados proletários da bola.

Conformada com o resultado da partida, a torcida se limitava a apreciar a beleza do espetáculo proporcionado pelos craques do Vasco, sem se manifestar. Mas em dado momento, alguém começou a se irritar com a displicência de Heleno e começou a surgir, a princípio tímido, um coro que gritava "Gilda...Gilda...". Os torcedores sabiam que Heleno não gostava nem um pouco desse apelido que punha em dúvida sua masculinidade. "Gilda...Gilda..." e logo o coro se tornou bem forte, concentrando toda a frustração da torcida pelo esmagador placar e pela superioridade técnica que o Vasco impunha ao time da casa.

No princípio Heleno pareceu não se incomodar, mas foi por pouco tempo. Quando o coro se tornou ainda mais forte, Heleno levantou o queixo para a arquibancada numa atitude de desafio. O estádio quase veio abaixo com os gritos de "Gilda...Gilda...". Alguns segundos depois, Heleno pareceu, afinal, tomar conhecimento do jogo e viu o ponta-direita esticar uma bola para o centro. Pela primeira vez ele entrou na inevitável poça d'água da linha intermediária. Mas não passou dali. De onde estava, numa posição anterior à meia-lua da área, desferiu potentíssima cabeçada. Um petardo que entrou com extrema violência no canto direito do gol. O goleiro ficou absolutamente parado e perplexo com a velocidade do lance. Até prova em contrário, tenho para mim que esse foi o maior gol de cabeça da história do futebol.

O que aconteceu depois? A torcida não teve alternativa: para honra e beleza do espetáculo, calou o coro de "Gilda" e aplaudiu bastante o lance extraordinário. Heleno? Simplesmente continuou a pular sobre as poças d'água até o final do jogo, saiu com o uniforme limpo e a única marca de sua participação na partida foi o cabelo levemente despenteado. Aliás, em homenagem a esse gol, é melhor não entrar no trágico do destino desse jogador excepcional, de temperamento muito difícil. Neste momento, permaneça a lembrança desse lance de um gênio do futebol.


Aquele jogo da seleção capixaba 

Mas, e as glórias? Será que não existiram? Preciso avisar que estas recordações coincidem com uma fase de grande crise no futebol capixaba. Foi a época em que o Rio Branco ficou sem o Estádio Governador Bley e teve até que mudar de nome, passando a chamar-se Riobranquinho, vejam só. Voltou a chamar-se Rio Branco A. C. alguns anos depois, quando também pôde reaver o Estádio, construído com muito sacrifício pelos associados daquele tempo. É verdade que no período em que assistia a futebol em Vitória, entre os anos quarenta e sessenta, falava-se de uma época anterior muito feliz de nosso futebol. Não sei se se trata de referências às invariáveis idades de ouro da história de todos os povos e que correspondem apenas a uma conhecida necessidade psicológica, sem relação com os fatos. Não sei. Falava-se de muitas glórias e de grandes craques. Não duvido. Apenas não sei. Limito-me a escavar as glórias do meu próprio tempo como espectador. Talvez não muito retumbantes. Mas são as que a memória torna disponíveis.

Naquele dia aguardávamos ansiosos o trompete do Harry James que anunciava o programa "Focalizando os Desportos" na Rádio Espírito Santo. Um programa apresentado pelo Mickey, dublê do jogador Darly, excelente meia-esquerda do escrete capixaba. Aguardávamos a descrição da façanha de nosso selecionado em terras estranhas onde havíamos derrotado o time dos temíveis papa-goiabas, os fluminenses. Adolescentes ilhados em Vitória, imaginávamos esses papa-goiabas travestidos de ferrabrases então subjugados pela perícia de nossos craques. Ainda mais, esses nossos inimigos, ora derrotados pelo arrasador placar de 2 x 1, moravam em Niterói, uma cidade que, em nossa imaginação, aparecia como uma espécie de Nova Iorque. Claro, esses nossos adversários deviam viver como nababos naqueles arranha-céus que seriam gigantescos. Não trabalhavam. Viviam de jogar futebol, o que na época não era nada recomendável. "Nossos rapazes", como eram chamados pela imprensa, nossos humildes rapazes, ao contrário, não eram assim. Trabalhavam de sol a sol. Treinavam ao clarear do dia para pegar no batente às oito da manhã. Mesmo assim, nossos heroicos rapazes haviam infligido essa acachapante derrota aos nababos fluminenses, desprezíveis profissionais da bola. Argh.

No domingo seguinte, seria a revanche no Estádio Governador Bley. Para os papadores de goiaba, bem entendido.

E o domingo veio. Estádio repleto. O orgulho da terra pelo seu escrete explodia nos risos de todos, sentíamo-nos mais conterrâneos do que nunca.

Entra em campo a representação fluminense.

"Papa-goiaba", "Papa-goiaba"... nós, da camisa 12, procurávamos fazer a nossa parte a fim de minar a auto-estima dos inimigos. Afinal, ali estavam os ferrabrases, os argentários, pretendendo vingar a derrota que lhes impusemos em seus próprios domínios. Pois sim. No calor das manifestações das hostilidades — uma hostilidade esportiva, e os aficionados sabem do que estou falando — fazíamos espaço para observações. Para falar a verdade, a maioria daqueles jogadores era de estatura bem menor do que imaginávamos e ao invés de bíceps hercúleos muitos deles traziam a marca de um quase raquitismo. Não importava. Eram nossos inimigos e seriam massacrados (na bola, é claro).

Uma figura se destacava entre eles. Era um jogador depois identificado com Cliveraldo, ponta-esquerda do selecionado fluminense. Para espanto de todos, esse jogador tinha entrado em campo simplesmente com a perna esquerda totalmente enfaixada em gaze.

O que foi, o que não foi. Ficou-se sabendo que o jogador havia se machucado no jogo anterior com o nosso escrete. Imediatamente formou-se um consenso de que a contusão havia sido acidental porque "nossos rapazes" seriam incapazes de machucar alguém de propósito. Isto é, numa fração de minuto, todo o estádio, embora sem informações prévias, concluiu que a contusão se dera num lance da maior casualidade. Ora, se assim era, pensando bem, aquilo até que representava uma vantagem para nós. Não sendo culpados pela contusão, só nos restava aceitar a vantagem inesperada. Ia acontecendo isso no jogo. Até os trinta minutos do segundo tempo, Cliveraldo, o ponta-esquerda de perna enfaixada, cumpria o seu papel de inválido com espaço privilegiado para assistir ao jogo. Arrastava-se pela extrema esquerda do campo como uma tartaruga conformada. Mas por volta dos trinta e cinco minutos do segundo tempo, a tartaruga vestiu uma roupa de lebre e todos nós prendemos a respiração porque ia se materializando uma leve suspeita que, desde o princípio, nos incomodava: aquela faixa na perna não seria mero embuste, um truque, para nos enganar, uma traição ignominiosa? Cliveraldo corria pela ponta como se tivesse nos pés as asas de um lépido Mercúrio. "Infame, traidor", era um pensamento tão unânime na arquibancada que quase podia ser tocado com as mãos. Nos segundos em que tais coisas aconteciam, Cliveraldo acelerava mais a corrida com a bola dominada até que do bico da área desfechou um canhonaço histórico. A bola-bala descreve uma curta e descabida parábola e, em cima do gol, caprichosa, despenca como uma folha seca. Goleiro batido, já que havia se jogado para o canto errado, enganado pela trajetória da bola temperada com um veneno mortal (também não sei se o chute saiu assim por acaso), só nos restava erguer lamentos aos céus. Mas não foi nada disso. No último instante, como se também estivesse revoltado contra as transgressões à lei da Física perpetradas pelo chute que muitos diriam desengonçado mas nós considerávamos traiçoeiro, apareceu, não sei como, o ângulo de junção das traves do canto direito que deu um quique na bola jogando-a pela linha de fundo.

Perplexos e felizes vimos a bola morrendo no fundo do campo, talvez aliviada por não participar daquele conluio com o falso inválido. Falso? Talvez não fosse fingimento porque após aquela corrida que durou alguns segundos, mas para nós teve a duração de um século, o Cliveraldo caiu pela lateral do campo e parecia, como se ouviu, "completamente falecido". Os dirigentes do selecionado fluminense foram até lá e trouxeram o Cliveraldo nas costas porque naquele tempo ainda não era usada a maca. Nova farsa? Tivemos a certeza que não, porque dali a poucos minutos o jogo acabava com nossa vitória por um a zero. Foi assim que, com duas vitórias consecutivas, eliminamos os terríveis papa-goiabas, aqueles que viviam à tripa forra, ganhando salários astronômicos e morando em arranha-céus de luxo, como era maquinado pela nossa fértil imaginação. A comemoração varou a madrugada e os bares do Guaracy e do Heráclito, em Jucutuquara, venderam cerveja como nunca.

No mês seguinte o Vitória contratou o ponta-direita desse mesmo selecionado fluminense, de nome Heitor. A partir daí fomos obrigados a fazer uma revisão histórica, como está em moda hoje em dia. Heitor, ex-atacante do facinoroso escrete fluminense, na verdade, em sua identidade secreta, era uma excelente pessoa que se casou com uma moça de Jucutuquara onde foi morar, na rua Augusto Calmon, e passou a fazer parte de nosso grupo que ficava batendo papo na beira da antiga vala até altas horas da noite. Claro que durante algum tempo foi obrigado a aguentar nossas brincadeiras mas a tudo respondia com sorrisos e uma calma de sábio.

Não demorou a ser um dos nossos.


Os mineiros 

A seqüência de jogos nos remete aos adversários seguintes no Campeonato Brasileiro de Futebol: os mineiros. Passado tanto tempo, o garoto que mora em minha lembrança não me permite brincar muito com a frustração decorrente do jogo contra esse escrete. O som da bola batendo no alambrado do fundo do gol que dá para o morro, depois do pênalti batido pelo Marmorato, persiste até hoje em meus ouvidos. Acontece que o futebol mineiro, com todo o seu poderio, seus Kafunga, Ismael, Zé Carlos, Mário de Souza, não, Mário de Souza entrou em outra ocasião, mas afinal com todo o poderio de estado rico, não estava conseguindo nada com nosso intrépido selecionado até o começo do segundo tempo. Jogávamos no mesmo nível deles até o momento em que o árbitro resolveu mudar as regras estabelecidas pela International Board e alterou o tamanho do campo durante o jogo. Foi o que aconteceu. O atacante mineiro veio vindo e saiu com bola e tudo pela linha de fundo. Então, para surpresa de todos, mais de metro e meio fora do campo, ele cruzou para a área e outro avante mineiro fez o gol de cabeça. Gol nulo? Nada. Sua Senhoria começou a caminhar lentamente para o centro do gramado a fim de validar o gol. A ira da massa de patriotas que se comprimia no Governador Bley era imensa. Tentativa de invasão de campo. Adolescentes, olhávamos para aqueles senhores circunspectos que sempre iam aos jogos usando terno, gravata e chapéu. Nunca pudemos compreender bem mas eles sempre assistiam aos jogos sentados nas cadeiras, observando-os com frieza e aparente isenção. Seriam eles portanto nossa instância superior. Podíamos estar enlouquecidos pela paixão mas ninguém melhor que eles para avaliar a situação e dar um sinal qualquer, indicar a atitude a tomar. Mas eles não falaram e nem fizeram nada. Permaneceram frios e isentos. Todos nós nos sentimos órfãos e vazados por uma cruel injustiça. Sua Senhoria, inexorável, ordenou nova saída tirando qualquer possibilidade de anulação do gol.

O jogo prosseguiu sob a indignação geral. Dispensável detalhar o conceito que a multidão fazia do senhor juiz, aquele... aquele... Fechem janelas e portas, senhoritas. O ribombar dos palavrões fazia corar as cinzentas estruturas do Estádio.

Mas, de súbito, Sua Senhoria tem um momento de clarividência. Embora um espião traidor ao meu lado tenha dito que não viu o lance direito, é claro que tinha sido pênalti contra os mineiros. Um pênalti claríssimo como soem ser os que beneficiam nossos times.

E lá vem o Marmorato do fundo da memória para bater outra vez o pênalti. Era um destróier vingador navegando pelo meio do campo em direção à meta adversária, como já disse o cronista Luís de Almeida. Marmorato, um gigante de quase dois metros, prepara-se para esfarelar com seu chute destruidor o amedrontado goleiro das Gerais. Vai goleiro e bola para dentro do gol. Era o pensamento unânime do Estádio. Tum. O som da bola batendo no alambrado, como disse, rói meus ouvidos até hoje.

Empatamos o jogo e saímos do campeonato brasileiro daquele ano, já que havíamos perdido em Belo Horizonte.


[BORGO, Ivan. Recordações do futebol de Vitória. Publicado em forma de livro em 2001. Reprodução autorizada pelo autor.]

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© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem autorização expressa dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Está na montanha e sabe que aqui as noites estão carregadas dos mistérios da mata ao redor e de perigos invisíveis. Um local também carrega...


Está na montanha e sabe que aqui as noites estão carregadas dos mistérios da mata ao redor e de perigos invisíveis. Um local também carregado de lembranças. Não chega a ouvir as vozes dos animais e dos ruídos dos perigos invisíveis, mas sabe que além do limite até onde as luzes alcançam é o território da natureza e de seus habitantes.

Continua olhando os postes de madeira fincados em linha quebrada ao longo da rua. Insetos entram mas logo saem do halo que se forma em redor das lâmpadas de iluminação pública. No lado esquerdo é o regato silencioso que passa pela ponte. No lado direito, a fileira de casas com suas luzes apagadas. Exceto uma.

A casa iluminada tem largas vidraças e dentro dela há pessoas conversando. Tomam café em pequenas xícaras de louça ou carregam copos de refrescos com seus canudos de plástico. Sorriem muito e parecem alegres. Folheiam revistas e livros que estão dispostos em prateleiras envernizadas. Sim, trata-se de uma livraria inaugurada há pouco. Uma livraria pulsando na fria noite da montanha. "Por favor, à vontade. Entrem, sou a Lilia, a proprietária. Fiquem à vontade, bem-vindos ao lançamento do livro." Ficamos à vontade nessa livraria da cidade de Venda Nova do Imigrante, no Estado do Espírito Santo.

A emigração para os territórios da livraria por parte da população local tem qualidade. É formada, como de praxe, por pioneiros que vêm assuntar a novidade. Explorar o novo território que se abre em pleno coração da montanha. Como nos tempos d'antanho, quem traz a cruz de Cristo para fincá-la entre os livros é um padre, o padre Cleto, cuja entrada na livraria é saudada com muitos ós de aprovação. Ele chega apoiado em seu cajado de pastor octogenário e numa alegria adolescente. Chega também o secretário Gervásio da Prefeitura, acompanhado do Jovelino, da Secretaria de Cultura local. Ivantir e Maje, Glemar, Eugênio, Ricardo, Ivanyr e Maria Eugênia fazem parte do clã Borgo, que subiu a montanha para o lançamento do livro. Outros chegam e vão se incorporando aos rituais e gestos do mundo das livrarias de qualquer parte.

O escritor Francisco Grijó, professor de literatura, volta do andar superior com um ar de surpresa. Diz que ali é a redação do jornal da cidade e diz também que lembrou da redação da Águia de Winesburg, daquele escritor, como é mesmo o nome dele? Claro, é isso mesmo, digo eu. Mas o escritor, como é mesmo o nome dele? O branco da neblina que se vê lá fora entrou em nossas cabeças e só saiu quando, na estrada, na viagem de volta, apareceu o nome. Claro, Sherwood Anderson, naquela tradução da gloriosa Editora Globo de Porto Alegre. Winesburg, Ohio, um objeto arqueológico editado na metade do século passado. Um livro que influenciou, confessadamente, a ninguém menos que William Faulkner. Pois é, esse Anderson, que começou a publicar suas histórias, como diz um de seus comentaristas, à margem da ilusão infantil do otimismo ante acontecimentos desagradáveis, mas encontrando também dentro desses acontecimentos brechas para o exercício da esperança e da beleza. Além disso, dizendo coisas como as que leio agora numa entrevista de jornal do cineasta Domingos de Oliveira, a propósito do filme Invasões bárbaras, ou seja, na ideia de que a arte é um instrumento de expansão do conhecimento, de evolução, enfim. O prefaciador do livro de contos de Anderson menciona que ele publicava suas histórias em pequenas revistas cuja pobreza lhes permitia manter as convicções. Nessa esteira, vem à memória a revista Você, da Ufes, onde o entusiasmo do Reinaldo Santos Neves e do Joca Simonetti permitiam a mantença dessas convicções em meio a uma franciscana pobreza material. Mas isso foi sendo cogitado na viagem de volta, junto com a lembrança de quando comprei esse livro de Anderson em Cachoeiro de Itapemirim em 28 de março de 1952 (fui conferir).

O que estaria fazendo o Sherwood Anderson nas prateleiras daquela pequena livraria, falando da "inquietude americana?" O Winesburg, Ohio, traduzido como A grande mentira, modorrava lá na modesta livraria da beira do Itapemirim na companhia de outros editados pela antiga Globo gaúcha, como Vitória, de Conrad, Rua principal e O figurão, de Sinclair Lewis, Contraponto, de Huxley, Retrato do artista quando jovem, de Joyce, Sparkenbroke, de Charles Morgan, Gog, de Giovanni Papini, e outros que tais. Todos também em modorra, vivendo sob a indiferença de alguns, o que acabou sendo um bom negócio para mim. Os livros estavam sendo oferecidos em liquidação e adquiri uma pilha deles, inclusive A estrada do tabaco, que falava da miséria dos EEUU durante a recessão dos anos trinta. Paguei um preço quase simbólico pelos rejeitados e vários ainda estão em minha estante, inclusive o Luz de agosto, de Faulkner. Em respeito à senectude desses livros, nem os folheio pelo risco de suas páginas se desfazerem. Mas ali estão, bravos amigos de jornada. Cumprimento-os com respeito em minhas olhadas pelas estantes onde há muitos outros livros novos e bons, mas nenhum mais amado do que os velhos marcos literários, comprados a preço de banana numa tarde antiga em Cachoeiro.

Aquele livreiro superestimou a procura e acabou comprando mais exemplares do que o necessário. No entanto, o fato de existir uma livraria em Cachoeiro de Itapemirim, oferecendo títulos de vanguarda literária no início da metade do século passado, pode ser uma das pistas para a existência de tantas cabeças brilhantes em nossa Princesa do Sul.

Mas este é o momento de desejar à Lilia sucesso com a venda de seus livros na Folha da Terra de Venda Nova. Desejar também que faça suas encomendas de livro de acordo com a procura que vai ocorrer e que já está ocorrendo. Se errar (só um pouco) na expectativa de venda de alguns títulos do catálogo, que seja preferencialmente em livros seminais. Assim, poderá restar-lhe o consolo de que, um dia, os livros não vendidos sejam colocados em liquidação. E então, quem sabe, talvez apareça um jovem qualquer de bolso fraco que compre esses livros a preço de banana. Alguém que, através da literatura, possa ir descobrindo algo mais "sob a superfície das vidas" ou, mais modestamente, descubra um dos melhores prazeres que a vida oferece.

[Crônicas de 2004.]

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© 2004 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem autorização expressa dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Onde está Paris? Procuro a cidade encantada nos grandes planos e nos pequenos detalhes. Não a encontro. Paris não pode estar neste chope qu...


Onde está Paris? Procuro a cidade encantada nos grandes planos e nos pequenos detalhes. Não a encontro. Paris não pode estar neste chope quente e nesta medíocre entrada servida num pires de porcelana que tenta ser sofisticado. Muito menos nesse garçom com ar de fastio e com um mau humor que definitivamente não é um bom tempero para o possível prato que seria pedido. Seria.

O Boulevard des Capucines está lotado de pessoas que provavelmente estão com o mesmo problema meu. Impressão?

O mito vai sendo arranhado com vigor enquanto procuro avançar pelas bordas da noite parisiense. A cada decepção, uma dor quase física, uma espécie de mutilação de uma segunda natureza construída durante décadas, sonhada desde o tempo em que o 14 de julho era feriado escolar e cantávamos a Marselhesa. Onde estão os inebriantes perfumes enchendo o ar das ruas repletas de belíssimas mulheres com seus colares faiscantes, seus sapatos altos, pernas perfeitas, pescoços de cisne real e andar de pantera como determinava o catálogo do adolescente que sonhava com Paris? Nada disso. O que vejo são desengonçados manequins subindo e descendo os Champs Elysées como figuras intrusas e do mais profundo mau gosto.

Deve haver um engano. Mas, de repente, me lembro que tudo pode estar ligado a um simplório mal de estômago causado pelas agressões culinárias da comida de avião em meu rústico paladar. Pode ser. Pode não ser. Por via das dúvidas, dou por encerrado este primeiro reconhecimento do território parisiense e vou dormir.

Acordo. Entranhas, em ordem

Um sol brilhante ilumina a fachada do Café de la Paix. Reinicio a busca quase patética do comutador que possa me ligar à cidade. Mas, dentro do café, tenho a impressão, permanecem as mesmas pessoas de ontem. Parecem desencantadas com alguma coisa. A maior parte do tempo ficam imóveis, sentadas naquelas cadeiras, tendo à frente xícaras de café ou compridos copos que afinal podem conter qualquer coisa, já que não os tocam. É como se fossem pessoas anestesiadas. Mal conversam umas com as outras. Muito estranho. Volta a suspeita de ontem. Será que, como eu, elas estão ali esperando que Paris surja de algum lugar? Aguardando talvez um maître que possa explicar o que está acontecendo. "Não, messieurs, isto não é Paris verdadeiramente. O original se encontra em oficinas especializadas com vistas a urgentes reparos. Pedimos desculpas aos nossos amáveis visitantes mas não tivemos alternativa. Os serviços de manutenção eram inadiáveis. São séculos e séculos de assédio permanente de turistas. Nossas mais sinceras desculpas."

Desperto da fantasia muito mais fantasiosa do que se possa imaginar, ou seja, de um maître parisiense descer de seu pedestal para falar daquela maneira.

Subitamente me lembro de Ernest Hemingway, que, aliás, foi um dos forjadores dos mitos parisiense desde a "geração perdida", depois da Primeira Guerra. É verdade que, depois, ele se encarregou de quebrar auréolas de gente como Fitzgerald, Ford Maddox Ford, Gertrude Stein, etc. Não foi o melhor momento de Hemingway como pessoa. Fiquemos com o outro, o papa Hemingway, aquele barbudo que vinha, com um rifle nas mãos, marchando sobre uma Paris ocupada pelos alemães. O dia da vitória se aproxima. Papa Hemingway vem descendo o Boulevard, liquidando boches como moscas. Em sua vitoriosa marcha em direção aos Champs Elysées, ao Arco do Triunfo, faz uma pausa, senta-se numa das mesas da calçada do Café de la Paix, lenço ensanguentado na testa, encosta o rifle numa cadeira e vai engolindo sucessivos copos de brandy enquanto os circunstantes aplaudem o herói libertador.

(Creio que Hemingway era tão bom escritor que seus histrionismos podem ser desculpados.)

Então, me lembro que estou em Paris já no começo do segundo dia e as coisas continuam acontecendo como se eu estivesse do outro lado do Oceano, là bas. Continuo a imaginar "como será Paris?", a "margem esquerda" e congêneres. Como pagamos por dois sorvetes, um copo de leite, um refrigerante e um café um valor suficiente para um jantar em bom restaurante de São Paulo, penso que as despesas para consertar a cidade verdadeira devem estar muito altas e, por isso, o governo instituiu um imposto adicional sobre tudo que um incauto turista precisa para sobreviver.

Até agora ninguém veio me cobrar nada por ter avistado a Torre Eiffel por trás de um arvoredo da Praça da Concórdia. Uma inesperada visão estimulante. Vou acalentando aquela visão com muito carinho, quase colocando as mãos em concha para que a débil chama não se apague dentro dessa ventania de mal-entendidos.

Mas agora preciso de uma pausa.

Atravesso rapidamente a grande praça e entro na Rue des Mathurins onde está nosso hotel.

Na recepção, vejo que o pomposo porteiro da manhã foi substituído por uma senhora. Ah, sim, uma concierge como nos romances de Dumas. Pessoas sempre amáveis e compreensivas.

Não, não. Deve ser uma concierge iniciante porque essa aí é ainda mais pomposa que o porteiro. De modo que...

[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da "Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas", em 2003.]

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