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1/01/2016
Kaçuquinha
De minha mesa de trabalho na CIEC, divisando, através das vidraças inteiras da janela, o nosso movimentado porto e acompanhando, às vezes, as manobras dos navios, inicio, hoje, a nossa correspondência para suavizar as saudades e responder, agora, a sua carinhosa cartinha de 13 do corrente.
Começo por dizer-lhe que me sinto inteiramente satisfeito com a nova vida que reiniciei na velha Ilha. Sinto que estou sendo útil à organização dos filhos. Vejo-os mais tranquilos frente às grandes responsabilidades de suas construções, tendo a impressão de que encontraram, agora, o suporte de que necessitavam para trabalhar mais confiantes. Já iniciei a minha colaboração, chamando a mim vários encargos e estabelecendo alguns controles práticos que a experiência me aconselha. É uma estranha e agradável impressão. Parece que recuei no tempo e voltei aos velhos tempos de G. Roubach, muito antes dos episódios políticos. Pelo menos, saio de manhã para o trabalho, volto para almoçar, retomo o serviço e regresso ao lar, às 7 horas da noite, mal sentindo o tempo passar. Depois da vida atropelada na grande metrópole, é um prazer a ida ou a vinda ao escritório em apenas 8 minutos, numa só chispada pela nova avenida Beira-Mar, sem paradas, sem guardas, sem sinais e sem apitos...
Salto à porta do escritório e subo, retorno à casa sem lá depender de elevador, nem de racionamento de luz. Quase nunca saio pela cidade e assim não vejo certas caras. Só raramente passo a pé pela praça Oito, em demanda da Livraria Âncora, muito bem organizada e simpática, onde até me servem um cafezinho... ou para comprar o que preciso. E esse modesto passeio o faço sem nenhum constrangimento, sentindo-me à vontade, sendo muito cumprimentado e, parece, olhado com simpatia. Ajo com naturalidade, como se nada tivesse acontecido, desejando apenas que aprendam uma lição de democracia com a minha simples presença na Ilha. Não dou bola para as conversas políticas, nem me intrometo nas fofocas da terra.
Apenas não retomei as pinturas, nem as encadernações. Por falta de tempo e por falta de espaço. Aos sábados e domingos, visitamos Thaís, Joel e Aldinha, na Praia da Costa. Sinto que, realmente, fomos inspirados na compra daquele terreno. É magnífico, sob todos os aspectos. Estou ansioso para começar a construção da nossa casinha lá. Mas isso depende da venda do apartamento aí, o que já me está desanimando. Procure apertar o Guerra, para ver se apressa a venda. Mesmo reduzindo o preço, se necessário.
De política nada posso dizer, nem daí, nem daqui. Ando fora do ar... Fico hoje por aqui, com espaço apenas para traduzir toda a imensa saudade que sinto de V., Maurício e dos queridos netos.
[In Cartas selecionadas - Jones dos Santos Neves. Vitória: Cultural-ES, 1988.]
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Vitória, 18 de julho de 1963 Kaçuquinha De minha mesa de trabalho na CIEC, divisando, através das vidraças inteiras da janela, o nosso m...
A Therezinha Santos Neves Leal (Vitória, 18/7/1963)
Vitória, 18 de julho de 1963Kaçuquinha
De minha mesa de trabalho na CIEC, divisando, através das vidraças inteiras da janela, o nosso movimentado porto e acompanhando, às vezes, as manobras dos navios, inicio, hoje, a nossa correspondência para suavizar as saudades e responder, agora, a sua carinhosa cartinha de 13 do corrente.
Começo por dizer-lhe que me sinto inteiramente satisfeito com a nova vida que reiniciei na velha Ilha. Sinto que estou sendo útil à organização dos filhos. Vejo-os mais tranquilos frente às grandes responsabilidades de suas construções, tendo a impressão de que encontraram, agora, o suporte de que necessitavam para trabalhar mais confiantes. Já iniciei a minha colaboração, chamando a mim vários encargos e estabelecendo alguns controles práticos que a experiência me aconselha. É uma estranha e agradável impressão. Parece que recuei no tempo e voltei aos velhos tempos de G. Roubach, muito antes dos episódios políticos. Pelo menos, saio de manhã para o trabalho, volto para almoçar, retomo o serviço e regresso ao lar, às 7 horas da noite, mal sentindo o tempo passar. Depois da vida atropelada na grande metrópole, é um prazer a ida ou a vinda ao escritório em apenas 8 minutos, numa só chispada pela nova avenida Beira-Mar, sem paradas, sem guardas, sem sinais e sem apitos...
Salto à porta do escritório e subo, retorno à casa sem lá depender de elevador, nem de racionamento de luz. Quase nunca saio pela cidade e assim não vejo certas caras. Só raramente passo a pé pela praça Oito, em demanda da Livraria Âncora, muito bem organizada e simpática, onde até me servem um cafezinho... ou para comprar o que preciso. E esse modesto passeio o faço sem nenhum constrangimento, sentindo-me à vontade, sendo muito cumprimentado e, parece, olhado com simpatia. Ajo com naturalidade, como se nada tivesse acontecido, desejando apenas que aprendam uma lição de democracia com a minha simples presença na Ilha. Não dou bola para as conversas políticas, nem me intrometo nas fofocas da terra.
Apenas não retomei as pinturas, nem as encadernações. Por falta de tempo e por falta de espaço. Aos sábados e domingos, visitamos Thaís, Joel e Aldinha, na Praia da Costa. Sinto que, realmente, fomos inspirados na compra daquele terreno. É magnífico, sob todos os aspectos. Estou ansioso para começar a construção da nossa casinha lá. Mas isso depende da venda do apartamento aí, o que já me está desanimando. Procure apertar o Guerra, para ver se apressa a venda. Mesmo reduzindo o preço, se necessário.
De política nada posso dizer, nem daí, nem daqui. Ando fora do ar... Fico hoje por aqui, com espaço apenas para traduzir toda a imensa saudade que sinto de V., Maurício e dos queridos netos.
[In Cartas selecionadas - Jones dos Santos Neves. Vitória: Cultural-ES, 1988.]
Jones dos Santos Neves graduou-se em Farmácia no Rio de Janeiro e, de volta a Vitória, casou-se, em 1925, com Alda Hithchings Magalhães, tornando-se sócio da firma G. Roubach & Cia, juntamente com Arnaldo Magalhães, seu sogro, e Gastão Roubach. A convite de interventor João Punaro Bley, em 1938 funda e dirige, juntamente com Mário Aristides Freire, o Banco de Crédito Agrícola (depois Banestes), tendo depois disso seu nome indicado juntamente com o de outros dois, para a sucessão na interventoria. Foi então escolhido por Getúlio Vargas como novo interventor, cargo em que permaneceu de 1943 a 1945. Em 1954 retomou seu trabalho no banco, chegando à presidência, sendo, em 1950, eleito governador do estado. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
1/01/2016
Kaçuquinha, querida:
Confesso que me encontro agora em plena e gostosa lua-de-mel com a nossa nova casa. Desde o dia 19 do corrente lá passamos a dormir, comer e morar, reiniciando a velhinha em sua labuta de hábil dona de casa. Para quem passou cerca de um ano fora de seus cômodos, embora no aconchego afetivo do lar de seus filhos, isto é um prazer. E, para quem labutou durante quarenta e dois anos para só agora, no crepúsculo da velhice, morar em sua primeira e definitiva casa própria, isto também é uma alegria e um conforto, pelo qual devemos render ardentes graças aos Céus. Nem tudo está acabado e perfeito. Faltam certos retoques que, só com o tempo, poderemos terminar. Também os navios, quando deixam os estaleiros, estão com as suas obras mortas inacabadas, o que, entretanto, não os impede de navegar. Espero, para a semana, ver concluídas e colocadas nos lugares as estantes para os meus livros. Só então me sentirei, realmente, em casa. Tudo o mais parece ter ficado bem, pelo menos para o nosso gosto. Já iniciamos o gramado, à frente da casa, e vamos agora começar a ornamentá-lo. Em compensação e como imaginava, a barba cresceu muito. As contas finais começam a aparecer. Os armários e móveis ficaram mais caros do que eu imaginava, forçando-me a recorrer, novamente, ao crédito. Mas o que importa é que estamos em nosso verdadeiro lar, que, afinal, todas as contas feitas, ainda ficará por menos do que o total da venda do apartamento da Domingos Ferreira. E vale, com o terreno, muito mais. O diabo é que não estava acostumado a dever e isso me dá alguma dor de cabeça. Mas, no fim, tudo dará certo, embora me obrigue agora a dar os meus pulinhos... Também, na conjuntura atual, isso não é privilégio meu, porque muita gente boa está também dando os seus pulinhos. Até o trêfego JK, sem falar nos que já pularam...
Creio que foi Mark Twain quem disse que o sabor do "humor" consiste em tratar com seriedade as coisas cômicas e de modo jocoso as coisas sérias. Esta deve ser a nossa filosofia atual, usando e abusando da primeira parte do conceito, mas ferindo, com cuidado e cautela, a última parte. Pelo menos utilizei o método, quando ouvi pelo rádio a nova estrela de televisão, e me diverti bastante. Foi um dueto interessante porque o artista também se afinava pelo mesmo diapasão...
Enquanto isto, aqui pela velha província de Maria Ortiz, nada acontece. Como fomos sempre um Estado sem acústica, parece que a revolução não repercutiu por aqui. O nosso inefável governador continua a se divertir, fingindo que governa. E vai ficando em paz, ele que é o mais vulnerável de todos os governadores, frente às disposições de austeridade que constituem o clima apregoado pelos altos escalões da República. Há uma acomodação geral nos círculos políticos e João Calmon, que por aqui andou em seus fins de semana habituais, até discursou na Assembléia, falando em confraternização geral na política estadual, como se fosse possível se confraternizar com gente tão espúria ou, como dizia Ruy Barbosa, haver neutralidade entre a lei e o crime.
Muitos afetos aos queridos netos, abraços no Maurício e no Guerra e para V., filhota querida, o saudoso beijo do
[In Cartas selecionadas - Jones dos Santos Neves. Vitória: Cultural-ES, 1988.]
História
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Vitória, 29 de maio de 1964. Kaçuquinha, querida: Confesso que me encontro agora em plena e gostosa lua-de-mel com a nossa nova casa. De...
A Therezinha Santos Neves Leal (Vitória, 29/5/1964)
Vitória, 29 de maio de 1964.Kaçuquinha, querida:
Confesso que me encontro agora em plena e gostosa lua-de-mel com a nossa nova casa. Desde o dia 19 do corrente lá passamos a dormir, comer e morar, reiniciando a velhinha em sua labuta de hábil dona de casa. Para quem passou cerca de um ano fora de seus cômodos, embora no aconchego afetivo do lar de seus filhos, isto é um prazer. E, para quem labutou durante quarenta e dois anos para só agora, no crepúsculo da velhice, morar em sua primeira e definitiva casa própria, isto também é uma alegria e um conforto, pelo qual devemos render ardentes graças aos Céus. Nem tudo está acabado e perfeito. Faltam certos retoques que, só com o tempo, poderemos terminar. Também os navios, quando deixam os estaleiros, estão com as suas obras mortas inacabadas, o que, entretanto, não os impede de navegar. Espero, para a semana, ver concluídas e colocadas nos lugares as estantes para os meus livros. Só então me sentirei, realmente, em casa. Tudo o mais parece ter ficado bem, pelo menos para o nosso gosto. Já iniciamos o gramado, à frente da casa, e vamos agora começar a ornamentá-lo. Em compensação e como imaginava, a barba cresceu muito. As contas finais começam a aparecer. Os armários e móveis ficaram mais caros do que eu imaginava, forçando-me a recorrer, novamente, ao crédito. Mas o que importa é que estamos em nosso verdadeiro lar, que, afinal, todas as contas feitas, ainda ficará por menos do que o total da venda do apartamento da Domingos Ferreira. E vale, com o terreno, muito mais. O diabo é que não estava acostumado a dever e isso me dá alguma dor de cabeça. Mas, no fim, tudo dará certo, embora me obrigue agora a dar os meus pulinhos... Também, na conjuntura atual, isso não é privilégio meu, porque muita gente boa está também dando os seus pulinhos. Até o trêfego JK, sem falar nos que já pularam...
Creio que foi Mark Twain quem disse que o sabor do "humor" consiste em tratar com seriedade as coisas cômicas e de modo jocoso as coisas sérias. Esta deve ser a nossa filosofia atual, usando e abusando da primeira parte do conceito, mas ferindo, com cuidado e cautela, a última parte. Pelo menos utilizei o método, quando ouvi pelo rádio a nova estrela de televisão, e me diverti bastante. Foi um dueto interessante porque o artista também se afinava pelo mesmo diapasão...
Enquanto isto, aqui pela velha província de Maria Ortiz, nada acontece. Como fomos sempre um Estado sem acústica, parece que a revolução não repercutiu por aqui. O nosso inefável governador continua a se divertir, fingindo que governa. E vai ficando em paz, ele que é o mais vulnerável de todos os governadores, frente às disposições de austeridade que constituem o clima apregoado pelos altos escalões da República. Há uma acomodação geral nos círculos políticos e João Calmon, que por aqui andou em seus fins de semana habituais, até discursou na Assembléia, falando em confraternização geral na política estadual, como se fosse possível se confraternizar com gente tão espúria ou, como dizia Ruy Barbosa, haver neutralidade entre a lei e o crime.
Muitos afetos aos queridos netos, abraços no Maurício e no Guerra e para V., filhota querida, o saudoso beijo do
[In Cartas selecionadas - Jones dos Santos Neves. Vitória: Cultural-ES, 1988.]
Jones dos Santos Neves graduou-se em Farmácia no Rio de Janeiro e, de volta a Vitória, casou-se, em 1925, com Alda Hithchings Magalhães, tornando-se sócio da firma G. Roubach & Cia, juntamente com Arnaldo Magalhães, seu sogro, e Gastão Roubach. A convite de interventor João Punaro Bley, em 1938 funda e dirige, juntamente com Mário Aristides Freire, o Banco de Crédito Agrícola (depois Banestes), tendo depois disso seu nome indicado juntamente com o de outros dois, para a sucessão na interventoria. Foi então escolhido por Getúlio Vargas como novo interventor, cargo em que permaneceu de 1943 a 1945. Em 1954 retomou seu trabalho no banco, chegando à presidência, sendo, em 1950, eleito governador do estado. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
1/01/2016
Kaçuquinha, querida:
Agora que tudo acabou, que reina, de novo, paz em Varsóvia, aproveito este fim de tarde, calmo e sossegado aqui na CIEC, em virtude do feriado bancário, para responder sua afetuosa cartinha de 30 de março. Vejo que V., como eu, estava com as antenas ligadas, nessa data, véspera dos funerais de um regime. Através das reticências dos jornais, de algumas notícias esparsas de rádio e de otras cositas más, sentia que algo de muito sério se estava preparando. Mesmo à distância dos acontecimentos e sem acesso a melhores fontes de esclarecimento, não me passavam despercebidos os negros prenúncios que raivavam no ar. Quando ouvi, estarrecido, a manifestação dos sargentos no Automóvel Clube, nos arrepios das provocações inúteis e precipitadas, pude perceber que o Jango, talvez num ato de desespero, entornava o caldo. Falou antes do tempo e quis colher uma fruta que ainda não estava madura. Como Getúlio e talvez também o Jânio, confiou demais no povo e subestimou as forças da reação. Pena que tal tenha acontecido assim melancolicamente. Porque, em tudo isso, havia, no fundo, alguns ideais de grande pureza e de sentido autenticamente nacionalista que agora se perdem no tempo e no espaço. O erro maior desse episódio foi o de terem deixado os comunistas arrebatarem a bandeira nacionalista. Feita a divisão das águas e açulado o espírito de indisciplina dos marinheiros e soldados, tornava-se inevitável a reação da ordem e da legalidade. E foi bom que tal acontecesse, pois, conforme se verificou, o presidente estava prisioneiro de um dispositivo sem lei e sem grandeza. Entregue aos comunistas, não havia mais salvação para ele. O ideal nacionalista que parecia encarnar teria de cair-lhe das mãos, como caiu, sem, nem ao menos, deixar uma mensagem de esperança e de fé, seguindo o exemplo do inesquecível presidente Vargas. Sobretudo me desgostam a capitulação e a fuga. Como discípulo de Getúlio, não poderia nunca dar no pé, fugir e se mandar, numa cópia grotesca de certos aventureiros sul-americanos. Lembro-me das palavras viris de Getúlio, após ler, com voz pausada, o Manifesto de Outubro de 1930: "Vencidos, não recorreremos ao exílio."
São estas, ao correr do teclado, as palavras que desejo enviar a V. para espalhar um pouco o cineral de tantas ilusões. Espero em Deus que a lição seja aproveitada pelos políticos e pelos grosbonnets da situação. Que despertem para enxergar as injustiças sociais que aí estão ainda gritando, que acordem para sentir que o Brasil é grande demais para ficar manietado ao guante de qualquer imperialismo e, como astro que é, jamais será satélite de qualquer nação.
[...] E a casa entra em fase final de acabamentos. Já ligamos a luz, estamos em pintura e, até o dia 15, muita coisa ficará terminada. Recebemos o pano das cortinas. A velhinha foi hoje ao decorador para apressar as encomendas das cortinas. Estou quase pensando que a minha obra ficará pronta antes de suas reformas, principalmente agora que as reformas parecem ter ido por água abaixo.
[...]
[In Cartas selecionadas - Jones dos Santos Neves. Vitória: Cultural-ES, 1988.]
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Vitória, 3 de abril de 1964. Kaçuquinha, querida: Agora que tudo acabou, que reina, de novo, paz em Varsóvia, aproveito este fim de tard...
A Therezinha Santos Neves Leal (Vitória, 03/4/1964)
Vitória, 3 de abril de 1964.Kaçuquinha, querida:
Agora que tudo acabou, que reina, de novo, paz em Varsóvia, aproveito este fim de tarde, calmo e sossegado aqui na CIEC, em virtude do feriado bancário, para responder sua afetuosa cartinha de 30 de março. Vejo que V., como eu, estava com as antenas ligadas, nessa data, véspera dos funerais de um regime. Através das reticências dos jornais, de algumas notícias esparsas de rádio e de otras cositas más, sentia que algo de muito sério se estava preparando. Mesmo à distância dos acontecimentos e sem acesso a melhores fontes de esclarecimento, não me passavam despercebidos os negros prenúncios que raivavam no ar. Quando ouvi, estarrecido, a manifestação dos sargentos no Automóvel Clube, nos arrepios das provocações inúteis e precipitadas, pude perceber que o Jango, talvez num ato de desespero, entornava o caldo. Falou antes do tempo e quis colher uma fruta que ainda não estava madura. Como Getúlio e talvez também o Jânio, confiou demais no povo e subestimou as forças da reação. Pena que tal tenha acontecido assim melancolicamente. Porque, em tudo isso, havia, no fundo, alguns ideais de grande pureza e de sentido autenticamente nacionalista que agora se perdem no tempo e no espaço. O erro maior desse episódio foi o de terem deixado os comunistas arrebatarem a bandeira nacionalista. Feita a divisão das águas e açulado o espírito de indisciplina dos marinheiros e soldados, tornava-se inevitável a reação da ordem e da legalidade. E foi bom que tal acontecesse, pois, conforme se verificou, o presidente estava prisioneiro de um dispositivo sem lei e sem grandeza. Entregue aos comunistas, não havia mais salvação para ele. O ideal nacionalista que parecia encarnar teria de cair-lhe das mãos, como caiu, sem, nem ao menos, deixar uma mensagem de esperança e de fé, seguindo o exemplo do inesquecível presidente Vargas. Sobretudo me desgostam a capitulação e a fuga. Como discípulo de Getúlio, não poderia nunca dar no pé, fugir e se mandar, numa cópia grotesca de certos aventureiros sul-americanos. Lembro-me das palavras viris de Getúlio, após ler, com voz pausada, o Manifesto de Outubro de 1930: "Vencidos, não recorreremos ao exílio."
São estas, ao correr do teclado, as palavras que desejo enviar a V. para espalhar um pouco o cineral de tantas ilusões. Espero em Deus que a lição seja aproveitada pelos políticos e pelos grosbonnets da situação. Que despertem para enxergar as injustiças sociais que aí estão ainda gritando, que acordem para sentir que o Brasil é grande demais para ficar manietado ao guante de qualquer imperialismo e, como astro que é, jamais será satélite de qualquer nação.
[...] E a casa entra em fase final de acabamentos. Já ligamos a luz, estamos em pintura e, até o dia 15, muita coisa ficará terminada. Recebemos o pano das cortinas. A velhinha foi hoje ao decorador para apressar as encomendas das cortinas. Estou quase pensando que a minha obra ficará pronta antes de suas reformas, principalmente agora que as reformas parecem ter ido por água abaixo.
[...]
[In Cartas selecionadas - Jones dos Santos Neves. Vitória: Cultural-ES, 1988.]
Jones dos Santos Neves graduou-se em Farmácia no Rio de Janeiro e, de volta a Vitória, casou-se, em 1925, com Alda Hithchings Magalhães, tornando-se sócio da firma G. Roubach & Cia, juntamente com Arnaldo Magalhães, seu sogro, e Gastão Roubach. A convite de interventor João Punaro Bley, em 1938 funda e dirige, juntamente com Mário Aristides Freire, o Banco de Crédito Agrícola (depois Banestes), tendo depois disso seu nome indicado juntamente com o de outros dois, para a sucessão na interventoria. Foi então escolhido por Getúlio Vargas como novo interventor, cargo em que permaneceu de 1943 a 1945. Em 1954 retomou seu trabalho no banco, chegando à presidência, sendo, em 1950, eleito governador do estado. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
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