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Acervo Universidade Federal do Espírito Santo. SUMÁRIO Discurso proferido pelo senhor Governador Jones dos Santos Neves, na solenidad...

Acervo Universidade Federal do Espírito Santo.
Acervo Universidade Federal do Espírito Santo.

SUMÁRIO


Discurso proferido pelo senhor Governador Jones dos Santos Neves, na solenidade de instalação da Universidade do Espírito Santo, a 26 de maio de 1954.

Universidade e utopia — Discurso proferido pelo Secretário de Educação e Cultura, Prof. Rafael Grisi.

Discurso proferido pelo Prof. Ceciliano Abel de Almeida, Magnífico Reitor da Universidade do Espírito Santo.

Ata de instalação da Universidade do Espírito Santo.

Exposição de Motivos do anteprojeto de lei de criação da Universidade do Espírito Santo.

Lei n° 806 [Criação da Universidade do Espírito Santo]

Lei n° 379 [Doação municipal para a Universidade do Espírito Santo]

A Universidade do Espírito Santo era, há bem pouco tempo ainda, apenas um anelo generoso e, ao ver dos mais entendidos e mesmo dos mais oti...


A Universidade do Espírito Santo era, há bem pouco tempo ainda, apenas um anelo generoso e, ao ver dos mais entendidos e mesmo dos mais otimistas, um projeto cuja execução devia ser adiada para dias melhores do futuro, previstos como certos mas também remotos.

Em 1951 — ao inaugurar-se novo período governamental — o que pelo arrojo, importância e oportunidade de seus empreendimentos estava destinado a, em breve tempo, durante seu próprio transcurso, ser visto como o mais fecundo e realizador da história estadual — se inscreveu, pela primeira vez, no programa de ação governamental, a ideia da Universidade, não porém, ainda, como item integrante de uma agenda mínima, senão apenas como ideia diretriz e provável ponto de chegada no desenvolvimento do plano de trabalhos do setor dos negócios de educação e cultura. Dominava a convicção generalizada de que a ideia era afoita ou, ao menos, prematura, faltando as condições econômicas e culturais necessárias à sua concretização.

Decorridos apenas três anos, acha-se o Governo persuadido — e, com ele, a opinião pública — de que são precisamente as condições econômicas e culturais do Estado que indicam a oportunidade e, mais do que isso, a necessidade imperativa de ampliação progressiva da rede de estabelecimentos de ensino superior do Estado e sua estruturação num organismo universitário.

Confiando, como convinha e devia, na continuidade do surto e expansão de energias até então adormecidas do Estado e antevendo os efeitos desastrosos do desajustamento da máquina governamental às condições de vida social que ela visa a contrastear e disciplinar — cuidou o Governo de prevenir a "crise de descompasso" que já se fazia sentir, entre os quadros tradicionais e insuficientes de sua armadura administrativa e, particularmente, de sua armadura educacional, de uma parte e, de outra parte, o comportamento novo das forças sociais, para isso bosquejando, com a coragem que a situação impunha, um plano de ação amplo, preciso e, ao mesmo tempo, bastante flexível para se dobrar e amoldar-se, oportuna e funcionalmente, às movediças configurações da realidade em processo de evolução. As medidas por adotar deviam ser não só tendentes a aplainarem os obstáculos a esse processo mas também suscetíveis de promoverem o advento de um contexto de condições necessárias e suficientes ao seu máximo incentivo e desenvolvimento normal e harmônico.

Nesta ordem de ideias e tendo em vista. que a expansão das forças econômicas está na dependência, por um lado, dos índices de procura dos bens de produção e consumo —índices, por sua vez, condicionados às necessidades "primárias" do homem assim como às suas necessidades "secundárias", estas proporcionais ao nível de educação e cultura do povo — e, por outro lado, na dependência da qualidade dos bens produzidos, a qual é função do nível de educação e cultura especializada e técnica, determinou o Governo de proceder, desde logo, à revisão total do sistema pedagógico, com o fim de reequipá-lo em material e em pessoal para o desempenho seguro da alta missão que lhe estava reservada no concerto e estímulo do surto de crescimento do Estado.

Na agenda governamental foram então insertos como itens de capital importância:

a) — a reforma gradativa do sistema estadual de educação pré-escolar e primária, com vistas à sua máxima eficiência, pela ampliação da rede de estabelecimentos, melhoria de suas instalações, incentivo à formação de novos contingentes magisteriais, medidas asseguradoras da recompensa ao mérito e, por essa via, de aperfeiçoamento contínuo das técnicas de trabalho didático e do rendimento escolar;
b) — a revisão das condições de existência dos estabelecimentos de ensino médio — de cultura geral técnica ou pedagógica — com o intuito de garantir-lhes possibilidades razoáveis de sobrevivência, progresso e eficácia social;
c) — a criação de novos estabelecimentos de ensino superior para preparação de profissionais altamente habilitados ao exercício das atividades de base cientifica, e, como provável coroamento dos esforços, a criação da UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO.

Esquematizados, por esse modo, os fins pelos quais a Secretaria de Educação e Cultura devia propugnar, restava eleger o método de trabalho para a sua consecução.

O plano, aparentemente arrojado, poderia consubstanciar-se, desde logo, em um ou dois alentados diplomas legais, prepostos a regerem, da data de sua vigência em diante, as atividades pedagógicas de todos os graus. Mas as lições da experiência, sobretudo as tentativas frustradas de numerosas reformas de ensino alhures empreendidas por essa maneira, contraindicavam esse procedimento. Em administração educacional, mais do que em qualquer outro ramo da administração, é de bom aviso manter o espírito cauteloso e prevenido contra os excessos de otimismo reformador, a que conduz, com frequência, o caráter desiderativo e "utópico" do próprio "pensar" pedagógico, responsável, quase sempre, pelo reformismo convulsivo — teórico e legiferante — de que enferma o ensino em toda parte, máxime no Brasil.

Assim o entendeu o Governo do Espírito Santo e daí ter preferido, à obra puramente técnica da elaboração imediata do Código de Educação e do Estatuto Universitário, a execução gradual de um conjunto bem travado de medidas de ordem tática ou de transição, com a finalidade de preparar o terreno para o advento seguro, embora lento, da reforma projetada.

Desse modo, foi somente ao término do primeiro ano de trabalhos que o Governo sancionou, em 7 de dezembro de 1951, a Lei nº 549, cognominada, desde a origem, a "Lei Áurea" do ensino capixaba. Era o primeiro passo e, só por si, indicativo dos novos rumos da administração educacional do Estado. Entretanto, por mais revolucionária que tenha sido considerada na época, essa lei consubstanciava apenas, para o Governo, um primeiro complexo de medidas de emergência, como que operações de amaciamento e de reconhecimento, preparatórias de outras cujos lineamentos gerais se entreviam mas cuja implantação dependia da vigência efetiva daquela lei.

A ela, e como seu complemento, seguiram-se outras leis e decretos, regulamentando a carreira magisterial, reajustando as peças da armadura escolar do Estado, ampliando a rede dos estabelecimentos dos diversos graus de ensino, inclusive do ensino superior, com o que se fortalecia a consciência do problema educacional, se revitalizava o sistema escolar e se preparava o advento de sua cúpula, a UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO.

Ao mesmo tempo e porque a ideia de criação da Universidade amadurecia, configurando-se a mais e mais como exequível e oportuna, foram tomadas providências no sentido de se sustarem os projetos, em andamento, de obras de edifícios de escolas superiores disseminados em pontos diversos da capital e, em seu lugar, iniciados outros estudos que tiveram, como feliz resultado, a escolha de uma área geográfica de 120 hectares, magnificamente localizada, para servir de sede à futura cidade universitária. Nesta área, tiveram início em 1952 as obras de construção da Escola Politécnica — estando já concluído o primeiro pavilhão — e bem assim as do Hospital das Clínicas, podendo-se prever para breve a instalação da Escola de Medicina do Estado. Simultaneamente, a Secretaria de Educação e Cultura está estudando, com a colaboração da Secretaria de Viação e Obras Públicas, o projeto do edifício da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

O Anteprojeto — que acompanha esta Exposição — visa precisamente à criação da UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO como resposta, agora oportuna e justa, não a um vago anelo popular ou mera aspiração de elites intelectuais, mas a uma profunda necessidade social do Estado, de sua cultura e de seu desenvolvimento.

É certamente dispensável pôr em relevo aqui os motivos gerais que determinam ou justificam a criação de uma Universidade. Quanto à que se procura agora criar no Espírito Santo, não será exagero, à vista do que atrás ficou esclarecido, afirmar que ela praticamente já existe e atua, presente como se acha nesse conjunto de institutos de ensino superior em pleno e profícuo funcionamento, constituído pela Faculdade de Odontologia — esta já de posse de prestigiosa tradição — pela Escola Politécnica, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e Escola de Belas Artes, criadas e instaladas no último biênio governamental, estabelecimentos aos quais se deverão juntar, em futuro próximo, a Escola de Medicina e a de Química Industrial. Trata-se portanto, de certo modo, de tornar Universidade de direito o que já se apresenta como Universidade de fato, com a vantagem daí decorrente de proporcionar aos estabelecimentos de ensino superior um estatuto legal que lhes organize a unidade espiritual — para que tendem espontaneamente — e consequente aumento do poder de influência de cada um, no regime de solidariedade e cooperação assim estabelecido, seja pela melhoria de suas condições de trabalho didático, seja pelas maiores possibilidades de irradiação e de contribuição à obra social da vulgarização e progresso da cultura.

Não se deve, porém, elidir o fato de que permanece ainda, no espírito de muitos, certa dúvida quanto à oportunidade de criação da UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO. Ela provém, certamente, do poder da inércia característica de todo "modo de pensar" que, por sua longa duração, vincou de certa maneira o consenso geral de ideias da chamada "opinião pública". Da mesma natureza é a dúvida que se percebe ter estado presente ao espírito do legislador federal quando, ao elaborar normas gerais para o estudo dos pedidos de "autorização prévia" de funcionamento de Universidades do Brasil, estabeleceu ser necessário verificar, em cada caso particular, se o instituto universitário representa real necessidade sob o ponto de vista profissional ou manifesta utilidade de natureza cultural e se a localidade em que se pretende instalá-lo reúne as condições culturais necessárias ao seu regular funcionamento (cf. Decreto-lei federal nº 421 de 11-5-1938).

Tal dúvida — no que tange à UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO — apenas se compreende no espírito dos que ignoram as grandes transformações por que vem passando o Estado nos últimos anos. Para ela, deve estar concorrendo também o fato, meramente acidental, de uma caprichosa divisão político-administrativa ora vigente, que faz o município da capital figurar, nos censos demográficos, como um núcleo constituído apenas de 50.000 ou 55.000 habitantes, quando a verdade é que, sob o ponto de vista geográfico e sociológico — passando por sobre as linhas convencionais e perecíveis das fronteiras intermunicipais, o núcleo populacional que se aglomera na área de urbanização e influência direta da capital do Estado é de quase o dobro daquele.

Será útil, por outro lado, colocar em destaque outro elemento esclarecedor: o de que a dúvida que se possa suscitar, quanto à oportunidade da criação de Universidade do Espírito Santo, emana, em grande parte, de um falso ou, ao menos, obsoleto conceito de Universidade, de um "estereótipo" generalizado a respeito do que ela é ou deve ser, e que constitui o substractum de muitas ideias correntes sobre o problema da organização e funcionamento dos sistemas universitários. Raciocina-se freqüentemente como se admitisse a existência de uma Universidade "ideal", de um "arquétipo" de sistema universitário perfeito, acabado, imutável, e como se, em cada caso concreto, fosse essa Universidade "ideal" a que se teria de realizar em seus mínimos aspectos. Tal Universidade abstrata, única, hirta., sempre igual a si mesma, não se poderia organizar, de modo completo, em sua essência invariável, senão com o concurso de certas circunstâncias "ótimas" de tempo, e cultura, por sua vez apenas possíveis nas grandes aglomerações urbanas altamente industrializadas, a saber, nas chamadas "cidades tentaculares" ou "grandes metrópoles".

Universidade "ideal", seria ela, de outra parte, um centro de altos estudos, com um currículo único e universal, destinado ao cultivo desinteressado do "intelecto" e da "ciência pura", da teoria sem contaminação da prática, por forma que os problemas da vida social atuantes e efetivos, servindo-lhe embora de moldura, não repercutiriam nela, senão por acaso, erro ou heresia e sempre em prejuízo de sua própria finalidade. Enfim, escola "metropolitana" por excelência, não se poderia consentir, por maior que fosse a condescendência, sua instalação em cidades de índices demográficos inferiores a determinados limites.

Trata-se, é óbvio, de uma concepção antiga, francamente ultrapassada de Universidade, concepção que tem, por assim dizer, uma "data social" e que apenas dissimula a marca dos interesses próprios de um momento da "ordem social", em que se gerou e que ela exprime e se esforça por preservar.

Por ela, como que se busca impor um "tabelamento" — que se pretende "racional" — das oportunidades de educação e não é difícil lobrigar o vínculo pelo qual se liga a outra velha concepção, a tese de administração educacional, ainda hoje vulgarmente aceita, de que um "sistema escolar" completo se compõe de uma "pirâmide" de estabelecimentos de ensino, assim distribuídos e estratificados: na base, uma rede de escolas primárias, à razão de um estabelecimento em cada comuna, cidade ou sede municipal; no tronco, algumas escolas secundárias, à razão de uma em cada cabeça de província ou capital de Estado; enfim, no cume uma "Academia" ou, seja, a Universidade na corte, metrópole ou capital do país.

Esse sistema, que apresentou, no momento histórico-social de sua formulação, há três séculos, a expressão do que, sociologicamente, se chama uma "utopia", isto é, a reivindicação de um ideal generoso mas irrealizável por força dos fatos, se tornou não somente exequível mas inevitável e, de certo modo, suscetível de perpetuar o tradicional monopólio — senão de direito, já, ao menos de fato ainda — das oportunidades mais amplas de educação para os representantes dos grupos sociais mais abastados e dominantes. Em épocas e lugares de grande estabilidade social, em que as instituições pedagógicas de todos os níveis, inclusive universitário, se apresentavam apenas como agências de preservação, no plano da formação mental dos indivíduos, desse estado de coisas, cuja justificação consistia na sua própria existência, tal sistema permitia e assegurava um processo de "peneiramento" da clientela das escolas, com a consequente "dosagem" das oportunidades de educação, proporcionadas às quotas de mando, riqueza e lazer de cada um, correspondentes ao seu status político, econômico ou social.

Porém, as grandes transformações da vida humana operadas nos últimos séculos — produzidas pela revolução cientifica, ergológica e ética iniciada no século XVIII — e que não se têm senão acelerado cada vez mais, tiveram, como consequência no campo da educação, um processo de intensiva e avassaladora "democratização" da escola. Esse processo se manifestou, a princípio, de modo particularmente sensível, no setor de ensino primário ou fundamental. Sob a pressão dos fatos e das reivindicações "populares" a mais e mais insopitáveis, de um lado e, de outro lado, pela própria necessidade superveniente da melhor qualificação dos trabalhadores na "era da máquina" que se inaugurava, tornou-se relevante o problema da "educação do povo" e, por conseguinte, o da ampliação progressiva da rede de estabelecimentos de ensino de 1º grau.

Foi, depois, o ensino de 2.º grau — e, no Brasil, predominantemente, o ensino secundário — que, em virtude do mesmo impulso "democratizante" entrou a perder seu primitivo caráter "seletivo" e "universitário" para se tornar a mais e mais "compreensivo" e "popular". De início, tal como sucedera com os estabelecimentos de ensino primário, os de ensino secundário foram surgindo aqui e ali, fora das "grandes cidades", e como "dádivas" dos governantes aos governados; mas, nos dias atuais, observa-se a tendência à multiplicação indiscriminada desses estabelecimentos, colocando-se como convém — e também como talvez não convenha — o "Ginásio" e o "Colégio" ao alcance de uma clientela cada vez mais numerosa e, sobretudo, ávida de títulos para ascensão social mais do que de formação para proficiência na vida real.

Em tais condições da conjuntura presente, os defensores da ordem social tradicional, que ameaça estalar ao impacto de reivindicações "populares" e "democratizantes" cada vez mais fortes, sentindo que não só a escola primária mas também a secundária de cultura geral e propedêutica se subtraem ao seu antigo domínio, procuram refugiar-se no "ensino superior" — e, de modo particular, em sua expressão mais completa e elevada, a Universidade — que se esforçam por conservar como reduto de educação de elites, de cultivo da ciência pura e do saber desinteressado, inacessível e, pelo mais, inútil às camadas sociais inferiores ou às populações consideradas semi-rurais das cidades distantes da metrópole detentora do poder central.

Desvendado, por esse modo, o substractum da crença na impossibilidade de vingar uma Universidade fora das "grandes cidades", deve-se também repudiar o falso conceito e "estereótipo" antigo da Universidade como uma instituição "ideal", sempre idêntica a si mesma, independente das circunstâncias de tempo, de lugar e de cultura.

A Universidade — como a escola primária, como o ginásio e a escola profissional — tem variado no espaço e no tempo, destinando-se aqui e ali, conforme o momento histórico-social de sua existência e, no mesmo momento, em lugares diversos ou através dos diversos institutos que a compõem, ora ao conhecimento desinteressado, ora ao saber técnico, ora ao progresso de um ou de outro, ora, enfim, à sua divulgação na coletividade. Assim como a cultura, segundo velho truísmo sociológico, varia no espaço e no tempo, assim as vicissitudes, as exigências e os problemas contemporâneos do contexto situacional de cada cultura impõem, em lugares e momentos diferentes, soluções pedagógicas diferentes, originais, próprias, para cujo encontro e elaboração cada grupo humano deve criar os órgãos apropriados. Por outras palavras: não há uma Universidade "ideal", um modelo único e fixo de sistema universitário com instalações, currículo, pessoal, pré-estabelecidos de uma vez por todas como padrões intocáveis e pelos quais se deva amoldar o ensino universitário em toda parte. Nem o grau de idoneidade moral, social ou científica, de um instituto universitário deve ser medido pelo índice de sua maior ou menor conformidade com tais padrões abstratos mas pelos de sua maior ou menor conformidade, correspondência e reação às reais necessidades do campo de forças sociais da comunidade em que ele vem a existir, emoldurar-se e atuar. Num país, como o Brasil, social e politicamente uno e coeso mas culturalmente heterogêneo, não cabe pensar num molde pré-concebido e rígido de ensino universitário, como único que, em nome da dignidade desse "estereótipo", se possa consentir.

Em relação ao Estado do Espírito Santo, convém ter presentes ainda os seguintes fatos e circunstâncias: com a superfície aproximada de 50.000 km² e a população de 1.000.000 de habitantes — para computar apenas os que se encontram dentro de suas fronteiras político-administrativas, com exclusão, portanto, dos agrupamentos humanos circunjacentes que, todavia, se encontram, do ponto de vista geográfico e sociológico, na órbita da vida e da cultura do Estado — tem sua capital situada a distância superior a 500 km dos centros universitários mais próximos, a saber, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador. Para esses partem anualmente algumas dezenas de jovens em busca de oportunidades de formação, uma minoria muito reduzida em confronto com o número dos que poderiam e deveriam frequentar os institutos universitários, se estes lhes fossem, em primeiro lugar, especialmente e, em segundo lugar, economicamente acessíveis.

Não é certo, porém, serem esses poucos que, na posse de recursos financeiros, se podem ausentar do Estado e prolongar a "mocidade" na medida das necessidades de duração dos cursos, exatamente os portadores dos melhores dotes de inteligência e aptidões para o futuro desempenho das atividades profissionais a que os habilitam oficialmente os títulos e diplomas que conquistam. Desta sorte, é toda uma geração, da qual numerosas vocações se estiolam à falta de oportunidades de desenvolvimento e formação que se encontra "marginal" em relação à cultura e ao direito de acesso às atividades de base científica a que correspondem seus dotes e contribuição ao bem-estar geral. E é o Estado, nesse caso, o maior prejudicado, assistindo, impotente, ao desfalque de seus contingentes humanos, dos quais devem sair seus próprios quadros futuros de comando político, industrial, comercial, intelectual.

A isto se objetará, talvez, como freqüentemente ocorre, com um argumento, à primeira vista, persuasivo: se um estado ou região carece de homens cultos e de técnicos altamente habilitados ao exercício de atividades de base científica — mais fácil, mais expedito e mais barato do que instalar uma Universidade para preparação desses elementos, será instituir "bolsas de estudo" para jovens bem selecionados frequentarem cursos nas grandes Universidades já existentes, tanto mais quanto, com tal medida, o Governo coloca a aprendizagem ao alcance dos mais capazes e somente deles, eximindo-se dos enormes dispêndios de prédios, instalações, remuneração do professorado e pessoal administrativo e, ainda, do "desperdício" de ensino a numerosos estudantes de apoucados dotes de inteligência.

Os fatos, porém, não nos persuadem da veracidade desse argumento. Em primeiro lugar —pelas mil e uma dificuldades de uma boa seleção dos candidatos; em segundo lugar, porque, como é notório, o número de estudantes que, ao concluírem o curso superior longe do estado, se põem de torna-viagem, é diminuto em comparação com o dos que partiram em busca do diploma, mesmo quando se trata de "bolsistas"; em terceiro 1ugar, porque — e isto é o pior — são quase sempre os que, por deficiência de aptidões ou de capacidade de adaptação ao status conferido pelo diploma e às expectativas de comportamento que este suscita os que regressam interessados na realização da carreira no estado de que se ausentaram, mas no qual parece não encontrarem mais, igualmente, possibilidades de readaptação. E há mais: erroneamente se pensará que uma Universidade — ou qualquer das escolas que a compõem — é ou deva ser apenas — como o argumento parece supor — uma agência ou posto de fornecimento de certas ideias ou técnicas, por um grupo fechado de professores a um grupo igualmente fechado de discípulos, em ambiente também fechado, por assim dizer, esotérico, isto é, imune à influência da comunidade e desobrigado de 1evar a esta sua própria influência. Ao contrário. É na comunidade, por e para ela, em função de sua realidade concreta, de seus problemas atuais, de suas vicissitudes contemporâneas, que a Universidade vive, recebendo seus influxos e irradiando em torno, pelo exemplo, pela diligência e pelos trabalhos de seus professores, assim como pela vibração de seus alunos, uma grande influência benéfica. Nem chega a merecer a denominação de Universidade um conjunto de estabelecimentos de cultura geral ou de ensino técnico, por mais elevado que seja seu nível, se ele não se apresenta, ao mesmo tempo, como antena capaz de captar o drama cultural da comunidade e célula de profunda repercussão nos padrões de vida, de atividade e de pensamento, desta.

Não quer isto dizer que o Estado deva suprimir as "bolsas de estudo" que mantém, muito menos que deva opor barreiras à partida de jovens candidatos para outros centros universitários. De modo nenhum. É conhecido o fenômeno da afluência de estudantes de diversas nações para os grandes centros universitários, onde pontificam os doctores da época. Foi assim em Paris, Bolonha, depois em Coimbra, em toda a parte. E assim é e precisa ser, por mais fortes razões, nos dias atuais. Mas importa sublinhar — sobretudo para orientação de uma Universidade que começa — o fenômeno concomitante, igualmente tradicional e contemporâneo de fundação do sistema universitário: o do afluxo, espontâneo ou provocado, de qualquer modo, constante, de professores forasteiros, procedentes também de vários países para lecionarem nas cátedras universitárias, o que concorreu certamente, no mais alto grau, para o intercâmbio, a difusão e a renovação da cultura.

A simples instituição de "bolsas de estudo" para estudantes não é tudo. Deve ela acompanhar-se de uma previdência complementar indispensável, a da instituição do que se poderia chamar "bolsas de ensino", destinada a promover a vinda frequente de numerosos professores e especialistas dos diversos ramos do conhecimento — nacionais e estrangeiros — para assumirem, temporariamente, durante meses ou anos, a regência de cátedras ou a orientação de atividades departamentais de pesquisa.

Tal orientação — que deve fazer votos de que venha a ser seguida pelos futuros mentores da Universidade do Espírito Santo — presidiu e preside à vida das Universidades nacionais de maior nomeada, como a de São Paulo e a da Capital Federal. Basta lembrar, como exemplo particular e expressivo, o caso da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras filiada àquela e que, em dois decênios de existência, conquistou tão larga projeção nacional e internacional pela qualidade de seu ensino e pelo vulto de sua contribuição ao avanço do saber; essa Faculdade iniciou suas atividades em 1934 com um corpo docente constituído, em sua quase totalidade, de professores forasteiros — portugueses, franceses, italianos, norte-americanos, espanhóis, ingleses — cuja passagem por suas cátedras e departamentos científicos ficou assinalada por influência duradoura na personalidade dos alunos de então, muitos dentre eles atualmente elevados à posição de catedráticos. De outra parte, o movimento de "professores visitantes" — que dão cursos cuja duração varia de algumas semanas e alguns anos — na Universidade do Brasil, como na de São Paulo, continua tão intenso — e já agora, pelo auxílio da CAPES (Campanha de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior), órgão filiado ao Ministério de Educação e Cultura, com tendência a estender-se a outras Universidades, como as do Rio Grande do Sul, do Paraná, de Minas Gerais, da Bahia, de Pernambuco — que não será exagerado supor que as verbas destinadas às "bolsas" de manutenção de tais professores são talvez mais elevadas do que as destinadas às "bolsas" de estudantes.

Nestas condições e tendo em vista o surto de crescimento demográfico, econômico e intelectual do Estado, a exigir contingentes cada vez maiores de especialistas para os diversos setores das atividades públicas e das iniciativas privadas quando um ardoroso impulso de progresso acarreta radicais transformações de sua cultura e de sua paisagem urbana e rural e, como consequência, as práticas empíricas e consuetudinárias de trabalho cedem o lugar a normas técnico-científicas, parece inegável ser chegado o momento oportuno da criação da UNIVERSIDADE DO ESPÍRITO SANTO.

VITÓRIA, 29 de janeiro de 1954.
Ass.) RAFAEL GRISI
SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO E CULTURA.

Ás vinte e meia horas do dia vinte e seis de maio do ano de mil novecentos e cinqüenta e quatro, no salão nobre da Escola Normal "Pedr...


Ás vinte e meia horas do dia vinte e seis de maio do ano de mil novecentos e cinqüenta e quatro, no salão nobre da Escola Normal "Pedro II", com o comparecimento do Excelentíssimo Senhor Governador do Estado — Doutor Jones dos Santos Neves, dos Senhores Secretários de Estado, Autoridades Eclesiásticas, Civis e Militares, além de representantes de todas as classes sociais, professores e alunos dos estabelecimentos de ensino desta Capital, o Senhor Secretário de Educação e Cultura — Professor Rafael Grisi, declarando aberta a sessão de instalação da Universidade do Espírito Santo criada pela Lei nº oitocentos e seis, de cinco de maio do corrente ano, convidou o Excelentíssimo Senhor Governador do Estado para presidir a solenidade. Sob a presidência do Exmo. Sr. Governador Jones dos Santos Neves foi, então, iniciada a cerimônia de instalação da Universidade do Espírito Santo, constante do seguinte programa: Hino Nacional Brasileiro — pelas professorandas da Escola Normal "Pedro II"; Discurso do Excelentíssimo Senhor Secretário de Educação e Cultura — Professor Rafael Grisi; Discurso do Magnífico Reitor da Universidade do Espírito Santo — Professor Ceciliano Abel de Almeida; Discurso do Excelentíssimo Senhor Governador do Estado — Doutor Jones dos Santos Neves, declarando instalada a Universidade do Espírito Santo. Encerramento da solenidade com o Hino Espírito-Santense — pelas professorandas da Escola Normal "Pedro II". Nada mais havendo, eu — Aylton Pereira de Almeida, Secretário Geral da Universidade, lavrei a presente ata.

a) Jones dos Santos Neves (Governador do Estado)
Rafael Grisi (Secretário de Educação)
Ceciliano Abel de Almeida (Magnífico Reitor)

Aquiesci no convite do Excelentíssimo Senhor Governador do Estado e aceitei profundamente reconhecido o cargo de Reitor da Universidade do ...


Aquiesci no convite do Excelentíssimo Senhor Governador do Estado e aceitei profundamente reconhecido o cargo de Reitor da Universidade do Espírito Santo depois de muito pensar na recusa à convocação de Sua Excelência. E por que haveria de recusar o instante e honroso chamamento?

Dois foram os motivos de minhas relutâncias. O temor de não desempenhar de modo plenamente satisfatório a incumbência que bem poderia ser confiada a outrem de maiores aptidões, e a maturidade de meus pobres conhecimentos, tão delongada já no tempo que se esvai, e tão somenos na esconsa obscuridade de minha vida humilde...

Ora, no dizer de Amoroso Lima, "uma Universidade é, antes de tudo, uma disciplinadora da Inteligência. O que o Estado faz com a ordem jurídica deve a Universidade fazer com a ordem intelectual, isto é, operar como tanto gostam de dizer os pensadores alemães, a passagem do Caos ao Cosmos".

E, Seletíssimo Auditório, o varão que, de há muito, transpôs o solais da montanha da vida e está resvalando na ladeira que, dia a dia, se encurta, sente, como eu, que o esforço despendido para retardar a marcha penosa, no declive fatal, debilita-lhe o físico, e a parte intelectual também se vai enfraquecendo, e arriscando-se ele a reger uma Universidade revela-se homem de pouca circunspeção. E, por isso, quanto me custou atender os desejos do excelentíssimo senhor Governador, só Deus o sabe.

O excelentíssimo senhor Governador do Estado e eu somos terranteses. Muito mais moço do que eu, teve ele o seu berço num sobrado, sito na margem direita do rio de S. Mateus, na Fazenda do Palmito; e numa palhoça nasci, no Sítio da Liberdade, na banda esquerda do Santana, distante cerca de três milhas da Casa Grande do Palmito.

Os nossos genitores eram amigos, e tive a honra de ser amigo íntimo do Dr. Jones dos Santos Neves, cidadão probo e clínico humanitário que, quando partiu para a Mansão dos Justos, nos deixou saudades infindas e o exemplo de uma vida modelar. A amizade que tinha eu ao Dr. Jones dos Santos Neves transferiu-se integral ao seu filho, ao espírito-santense digno e incansável que dirige os destinos de nossa terra.

Estão justificadas, meus senhores, a temeridade ou a precipitação, a falta de prudência ou de madureza, que me alçaram em Reitor desta Universidade. Sirvo ao filho de meu Amigo. Sirvo ao meu Amigo, o excelentíssimo senhor Governador do Estado. E, mais uma vez, vou servir à Terra Querida do Espírito Santo, com a dedicação que permitirem minhas possibilidades.

Quando atentamos nas linhas de povoamento trilhadas pela Metrópole Portuguesa para intensificar a colonização do Brasil, desde logo nos depara destacadamente a atividade operante dos governadores gerais, alguns licenciados pela Universidade de Coimbra, e, à medida que o desbravamento se amplia, aqui aportam vultos ilustres despachados pelo Rei para os cargos de justiça e administração. Não tarda, e também seguem do Brasil para o reino, a fim de frequentarem a Universidade, brasileiros que voltam aptos para ocupar encargos de relevo e interferir nos negócios da colônia.

E se a história regista que o ensino primário no Brasil era escasso e apenas ministrado, por largo tempo, pelos jesuítas, não se deve obscurecer que os estadistas que chegavam de Lisboa eram, em geral, dotados de sólidos conhecimentos hauridos naquela Universidade que passou por odisseia notável.

Criada em Lisboa, em 1290, por D. Diniz, é por ele transferida para Coimbra. Mais tarde é removida por D. Fernando para Lisboa. E, ainda uma vez, voltou por ordem de D. João III, e agora, definitivamente, para Coimbra. O marquês de Pombal reformou-a. A República, em 1910, suprimiu-lhe a Faculdade de Teologia e fundou as Universidades do Porto e de Lisboa.

Desde o fim do século XIII que Portugal demonstrou pendor pelo ensino universitário. Instituídas antes da de Coimbra só foram as de Salamanca, de Oxford, de Bolonha e de Paris.

Segundo Fernando de Azevedo, na Grécia antiga ensinavam os filósofos passeando e conversando nos jardins com os seus discípulos, como Platão; ou sobre as margens do Ilissos, como Aristóteles. Nesses tempos recuados, Platão, como depois Ronsard, na renascença, "um jardim parecia ser o vestíbulo florido do pensamento puro e da especulação, para uma pequena elite de homens curiosos de poesia e de verdade e onde, ao abrigo dos prazeres e das paixões, sábios, sem ódios e sem desejos, consagravam toda sua existência à meditação".

E na Idade Média, esclarece Álvaro Magalhães, foi nos conventos onde os estudos se desdobraram e aprofundaram-se, criticando e investigando "as ideias vindas da antiguidade". A essas lucubrações outras se agregaram às matérias componentes do trivium que gozavam de primazia. E quando surgem as universidades são elas constituídas por quatro faculdades clássicas: teologia, artes, direito (civil e canônico) e medicina.

A Universidade clássica vai, pouco a pouco, se engrandecendo à medida que os conhecimentos humanos se ampliam, até que se alcançou, como diz Ortega y Gasset — o clima histórico, moral e político, em que elas floresceram e em que predominaram certos valores sociais, certas preferências e certos entusiasmos.[ 1 ]

Nessa quadra favorável em que a preferência e o entusiasmo pela inteligência atraíram os homens para viver de idéias e para idéias, a ciência e o pensamento atingiram o seu apogeu e é ainda Ortega y Gasset, que observa: "era natural que a Universidade prosperasse e chegasse à sua culminância nos séculos que representam o império quase indiviso da inteligência, na época moderna e sobretudo no século XIX".

Essa época de clima histórico, "de entusiasmo pela inteligência, pelo pensamento e pela razão", muda-se em outra "em que ao intelectualismo sucede o voluntarismo, à liberdade a uniformização e ao pensamento a ação"[ 2 ] e sobre a qual o professor Fernando de Azevedo salienta haver sucedido à discussão livre a época atual, em que o regime político vermelho ou reacionário tende sempre a decretar: "Senhores, acabou-se a discussão."

O decreto que criou a Universidade do Espírito Santo deixa bem claro o pensamento do legislador espírito-santense quando estatui: — art. 2) São fins da Universidade:

a) promover condições propícias ao desenvolvimento da reflexão filosófica, da pesquisa científica e da produção literária e artística;
b) assegurar pelo ensino, a comunicação dos conhecimentos que concorrem para o bem-estar generalizado e para a elevação dos padrões de vida, de atividade e de pensamento;
c) formar especialistas nos diversos ramos da cultura e técnicos altamente habilitados ao exercício das atividades profissionais de base científica ou artística;
d) incentivar e prover os meios de progresso da cooperação nas atividades intelectuais;
e) realizar a obra social da vulgarização da cultura.

Da leitura dos itens b, c, d, e e verifica-se imediatamente que os verbos empregados — promover, assegurar, formar, incentivar, prover e realizar — todos transitivos, têm complementos que esclarecem os trabalhos e as atividades que cada qual explana e os quais só podem ser executados na base de auxílio mútuo. Se não houver colaboração ordenada, consciente por parte de todos os professores e alunos, não será realizada a finalidade da Universidade, a que se refere a lei. E, ainda, se houver a cooperação em cada faculdade ou escola componentes da Universidade, porém, insuladamente, também o dispositivo da lei não é cumprido e, portanto, a Universidade só existe abstratamente, mesmo que funcionem em um só edifício.

A Universidade que hoje se instala conta com a boa vontade de professores e alunos que se empenham em realizar pesquisas científicas e com o propósito inabalável de "colaboração entre os diversos especialistas e faculdades na base do auxílio mútuo e desinteressado na conquista de novas verdades".[ 3 ] Assim se terá chegado ao espírito universitário que Amoroso Lima define "como sendo uma modalidade desse espírito cooperativo, tão falado hoje em dia, e que corresponde a uma justa reação contra o individualismo por muito tempo reinante. É o espírito corporativo na ordem cultural e entre aqueles que preparam o seu curso superior de estudos".

Nesse espírito universitário podem-se considerar duas partes: uma social e outra cultural. É um binômio em que a primeira parte faz da Universidade um grupo social autônomo. Daí se conclui que a Universidade é grupo social, voluntário e natural às sociedades humanas. Essa parte é a primeira condição para a existência de um espírito universitário.

A parte cultural distingue a Universidade dos outros grupos sociais. Ela forma um conjunto de estudos de caráter superior, destinado à pesquisa da verdade e ao alto preparo cultural das elites de uma nacionalidade.

O binômio, a que me refiro, trata da formação das elites dirigentes de um determinado povo. É o ideal da Universidade e, portanto, é a existência de um espírito universitário.

Estas ligeiras referências que acabo de fazer, arrimadas na autoridade de Amoroso Lima,[ 4 ] estão contidas nos artigos 18 e 19 da lei já citada:

Art. 18) Com o fim de prover ambiente propício à formação do espírito universitário, serão adotadas medidas susceptíveis de assegurarem as condições necessárias e suficientes ao trabalho, à iniciativa e à pesquisa bem como à união, solidariedade e cooperação de professores, assistentes, auxiliares de ensino, alunos e ex-alunos de todos os institutos universitários.
Art. 19) A aproximação e o convívio dos professores, assistentes, auxiliares de ensino, alunos e ex-alunos e funcionários dos diversos institutos universitários serão, desde a instalação da universidade e na medida das possibilidades, assegurados: pela aproximação dos edifícios [...]; pela unidade de direção e administração da Universidade [...]; pela organização de grupos de disciplinas comuns [...]; pela instituição do regime de trabalho [...]; pela prática em comum de atividades sociais dos alunos dos diversos institutos; e pela organização de associações e grêmios universitários de estudo, recreação ou desportos.

Seletíssimo Auditório, Senhores Diretores e Professores dos institutos universitários, na lei da criação da Universidade do Espírito Santo, cuja sigla é U. E. S., está indicado que a sua direção e administração caberão a um Reitor, assistido por um Conselho Universitário, que é constituído dos diretores dos diversos institutos integrantes da Universidade, de um representante da Congregação de Professores de cada um dos institutos universitários, de um representante dos ex-alunos diplomados dos vários institutos e de um representante dos atuais alunos. Tenho a honra de conhecer todos os diretores e, no meu modo de julgar, tendo em conta os seus altos e inconfundíveis méritos, poderei vantajosamente ser amanhã substituído na Reitoria por qualquer desses luminares, pois não lhes faltam ilustração superior à minha, idoneidade profissional e atividade para desempenhar tão elevado cargo.

Neste instante, senhores Diretores e Professores, em que, com a maior sinceridade, vos transmito, no pórtico desta Universidade, esse juízo, acompanhado de meu preito de veneração à nobre classe de professores a que, como figura apagada, tenho a insigne honra de pertencer, permitam-me meus colegas e amigos, que lhes rogue me ajudem com suas luzes, a fim de que possa a U. E. S. ombrear galhardamente com as outras universidades do país.

Tenho fé no futuro radiante desta Universidade, sobretudo porque confio nos Diretores e Professores dos institutos. O que se vai realizar não será obra do Reitor que, para ela, pouco ou quase nada contribuirá, mas sim uma obra esplendorosa, um edifício rutilante, que será construído pelo colendo Conselho Universitário.

Excelentíssimo Senhor Secretário da Educação e Cultura, Professor Rafael Grisi, sei que a alma de Vossa Excelência transborda hoje de alegria. Cumpriu Vossa Excelência conscienciosamente o seu dever, correspondendo aos ardentes desejos do senhor Governador de, antes do término do seu governo, deixar instalada a Universidade do Espírito Santo. A U. E. S. já não é um projeto, é obra realizada e, como velho docente dos cursos secundários desta minha terra querida, peço vênia a Vossa Excelência para o cumprimentar respeitosamente.

Excelentíssimo Senhor Governador do Estado, Dr. Jones dos Santos Neves, o eminente professor Dr. Fernando Azevedo em seu livro intitulado A Universidade do Mundo de Amanhã, depois de uma série de considerações referentes à capital paulistana, requintou em elogio ao Chefe do Executivo e opinou: "o Governador de S. Paulo, criando a Universidade, foi o libertador desse destino encantado. Acordou as vocações; iluminou as sombras; as atividades desinteressadas do espírito multiplicaram-se, e houve festas nas almas". O Governador do Espírito Santo, Doutor Jones dos Santos Neves, criando a Universidade do Espírito Santo, fez tudo isso, e não só houve festas nas almas, como também provou que o Espírito Santo pode, pelo seu elevado índice cultural, possuir uma Universidade. Excelentíssimo Senhor Governador, o Reitor da Universidade do Espírito Santo e os seus professores agradecem-lhe a magnífica dádiva que Vossa Excelência lhes deu. Esta dádiva, estou certo, produzirá frutos que exaltarão o Estado e o nome de Vossa Excelência.

Seletíssimo Auditório, há precisamente 419 anos que Vasco Fernandes Coutinho deu início ao povoamento do solo do Espírito Santo, depois de haver pelas armas rechaçado os indígenas, os donos da terra. Lançou os fundamentos da civilização cristã e marcou-a de modo indelével, quando batizou a capitania com o nome de Espírito Santo.

Deixou ele aos seus pósteros o exemplo de sua tenacidade, de seus sofrimentos, de sua resignação e de seu valor. O Reitor e os professores da U. E. S. seguirão, por certo, esses tão nobres predicados e de grande fortaleza de ânimo. E no que tange particularmente ao Reitor, declaro que ele, humilde, pedirá a Deus que, por misericórdia, lhe indique o caminho do Senhor, tão magnificamente expresso naquela frase eterna: Eu Sou o Caminho e a Verdade e a Vida.


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NOTAS


[ 1 ] Fernando de Azevedo, A Universidade do Mundo de Amanhã, p. 119.
[ 2 ] Idem, p. 120.
[ 3 ] Álvaro Magalhães, Dicionário.
[ 4 ] Amoroso Lima, Humanismo Pedagógico, p. 192, 193 e 194.

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Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

Se o atual governo do Espírito Santo, ao término dos quatro anos de seu mandato, nada mais houvesse logrado fazer além da fundação da Unive...


Se o atual governo do Espírito Santo, ao término dos quatro anos de seu mandato, nada mais houvesse logrado fazer além da fundação da Universidade que hoje solenemente inaugura — já teria feito bastante para suscitar a admiração e o respeito da gente capixaba e de toda a Nação brasileira. Se, além das grandes coisas que fez — estradas, pontes, represas, usinas, foros, hospitais, escolas, trabalhos de saneamento, de racionalização da atividade agrícola, de incentivo às indústrias, de penetração demográfica e jurisdicional no hinterland, de amparo e proteção à infância, de valorização econômica, enfim, da terra e do homem — não houvesse também empreendido a fundação da Universidade, sua imensa obra estaria incompleta e todos os empreendimentos em que ela se desdobra, obliterada a consciência dos seus desígnios e da unidade de concepção e de plano, correriam o risco de ter, em vez da posteridade fecunda a que foram destinados, a sobrevivência ornamental e vã das pirâmides egípcias, como testemunhos que, incrustados na paisagem mas sem vínculos com a cultura, servissem apenas para documentar uma época de riqueza e de esplêndida capacidade de ação, a que houvessem faltado, porém, a visão dos fins, o senso da harmonia e da funcionalidade, e, sobretudo, um sistema de valores que os justificassem.

Nesta data, pois, e neste ato, cuja singeleza não elide o caráter augusto de que se reveste, pode dizer-se que atinge ao seu objetivo culminante o programa de um dos mais vigorosos períodos governamentais do Estado. Congratulemo-nos, por isso, capixabas ou não, brasileiros todos, com a certeza de que, por mais rica e generosa que seja a história deste recanto do país, por mais prenhe de evocações de alevantado teor cívico e moral as datas de culto de seu calendário, a da instalação da Universidade será, doravante, pelos anos vindouros e por séculos, uma das de maior realce e significação.

Esta Universidade surge, na moldura de vossa crescente grandeza histórico-cultural, como a mais alta conquista de seu povo e seu governo, em momento magnífico de compreensão e convergência dos espíritos. E, num futuro que não será remoto, quando tiverem cessado os últimos ecos das paixões que tisnam e deformam, à visão contemporânea, os fatos da vida social e, com eles, as tábuas de valores que os sustêm e dirigem, o historiador da cultura espírito-santense — ao volver os olhos para estes dias atormentados e, particularmente, para este primeiro quadriênio do dealbar da segunda metade do século, ao qual se associa, indelevelmente o nome desse insigne capixaba que é Jones dos Santos Neves — dirá, por certo, com inteira justiça e sem nenhuma ênfase, que estes foram quatro anos decisivos na vida e nos destinos da antiga capitania de Vasco Fernandes Coutinho. Então saber-se-á, com a objetividade histórica necessariamente tardia, que, num instante de dúvidas e vacilações, quando esta parcela da nação brasileira, ainda presa afetivamente às estruturas tradicionais de seus padrões de vida consuetudinários e ao ritmo despretensioso e quase provinciano de seu desenvolvimento econômico e espiritual, se encontrou, hesitante e perplexa, em face dos imperativos de renovação de seus quadros culturais para reajustamento e integração nas conjunturas decorrentes das súbitas transformações sociais advindas do avanço das ciências e das técnicas — houve um homem que compreendeu profundamente, com visão clara de sociólogo e arrojo confiante de estadista, os emergentes fatos e caracteres da vida capixaba em processo de mudança; saber-se-á que esse homem, jungido ele próprio à tradição e ao passado de sua terra pela formação recebida na mocidade, mas sensível aos estímulos do vivo contexto situacional envolvente, soube, da colisão da tese e da antítese, operar a síntese de um plano de administração, lançando seu Estado definitivamente na vereda e na aventura da conquista de sua predestinada grandeza e preparando-o, através de um bem travado currículo de empreendimentos, para o advento, sem crises nem conflitos, da nova ordem econômica e social iminente; saber-se-á que por esse motivo — pela intuição que o guiava no plano das idéias, pela firmeza revelada no plano das atitudes, pela coragem posta à prova no plano da ação — foi ele visto, por mais de um contemporâneo coestaduano ou forasteiro, como um inovador audaz e megalomaníaco, um "cavalheiro de triste figura" a sonhar grandezas que ultrapassavam, por ventura, a sua própria capacidade de realização, a precipitar seu povo em compromissos financeiros superiores às potencialidades econômicas, numa palavra, como um visionário possuído de "mentalidade utópica". E saber-se-á que nessa censura ia o melhor elogio que se lhe poderia fazer.

Arguir ou classificar alguém como possuído de "mentalidade utópica" é proclamar-lhe a incontestável superioridade. Platão, na República — a maior de suas obras, aquela precisamente em que mais livres e plenos transbordam os produtos de seu "modo de pensar", por excelência, "utópico" — relembra uma velha lenda fenícia, segundo a qual a Terra, mãe comum dos homens, os fez desiguais, juntando à composição de todos ferro e bronze, de muitos, prata e de alguns raros, ouro. Os primeiros, homens de ferro e bronze, têm a vocação da riqueza e brilham nos negócios, nas atividades da lavoura, do comércio, das indústrias, sendo virtuosos se mantiverem a temperança em suas ações; os segundos, homens de prata, se engrandecem em feitos guerreiros por amor da fama e da glória e sua virtude é a coragem; os terceiros, homens de ouro, são prudentes e justos e a sabedoria é seu apanágio. A estes compete o governo da "República". Porque têm a visão clara das realidades e dos valores da vida, da vida melhor e da sociedade ideal, que embrionam e latejam, sob forma desiderativa, dentro da vida e da sociedade atuais; com os olhos voltados para o mundo dos valores que preside ao mundo dos fatos, somente eles têm o direito de governar, direito que lhes confere a "mentalidade utópica" que os caracteriza.

Bem hajam, pois, se quisermos dar crédito à velha lenda fenícia, os homens de "mentalidade utópica" — porque são eles "os que têm fome e sede de justiça", que não se podem saciar; porque são eles os que anunciam sempre a "boa nova " que ainda não chegou mas está iminente; porque falam de um "reino" de felicidade generalizada, a que todos terão acesso segundo suas obras; porque iluminam os caminhos e preparam o advento da vida cada vez mais digna do homem.

A Universidade, onde quer que se encontre — e ainda que esta proposição possa parecer estranha — é a filha dileta da Utopia. Quando pela primeira vez na História, uma Universidade se constituiu, foi uma Utopia que lhe deu origem e, em seguida, alento. Posteriormente, cada vez que novos centros de altos estudos universitários se organizaram, foram sempre novas Utopias que lhes deram força, elã e razão de ser. E a História atesta que, na generalidade dos casos de "decadência" de instituições universitárias, o que se verificou foi sempre o "envelhecimento" das Utopias que lhes deram origem e endereço. Não nos seria possível, por isso mesmo, compreender a essência e a missão das Universidades sem compreender a natureza e o destino das próprias Utopias.

A primeira grande Universidade de que se têm notícias certas é aquele centro de altos estudos filosóficos, fundado pelo "utópico" Platão, em Atenas, no "Jardim de Academus", pelos albores do quarto século anterior à era cristã. Em seu pórtico fora inscrito por determinação do Filósofo: "Não entre quem não souber Geometria." Mas sua inspiração vinha de mais longe, daquela advertência gnômica inscrita no templo do oráculo de Delfos e que Sócrates, o mestre de Platão, adotara como lema de toda Filosofia: Gnothi seauton, "Conhece-te a ti mesmo!"

Era uma Universidade em que professava um só homem de cultura universal e de "mentalidade utópica". Em que circunstâncias, por que causas e para que fins, se fundara essa Universidade? Será necessário, para bem o entendermos, recapitular, embora sucintamente, os sucessos, as vicissitudes e as transformações da cidade de Atenas no decurso daquele extraordinário período que foi cognominado "século de Péricles".

A capital da Ática é, na Grécia do período homérico, uma cidade mais ou menos obscura. Enquanto Esparta, fiel à tradição e à legislação de Licurgo, impõe sua hegemonia pela força e bravura de sua soldadesca disciplinada, Atenas fica na penumbra e na quase marginalidade da vida grega. Afora as reivindicações democratizantes que, em virtude de uma incipiente quebra de sua estabilidade social, se imiscuem nas reformas constitucionais de Sólon e de Clístenes, a cidade permanece "antiga", relativamente homogênea e introvertida, sustendo-se pelas forças da tradição e da mitologia. É somente depois da guerra contra os Persas, para a qual contribuíra com a esquadra, em seguida transformada em marinha mercante, que a "antiga" cidade, ao incentivo da navegação e do comércio, vê abolidas as barreiras de sua comunicação com o mundo exterior, especialmente o mundo dos "bárbaros", tornando-se centro cosmopolita, em que se acotovelam homens de todas as procedências e culturas, com seus interesses diversos, com seus costumes estranhos, suas idéias heréticas, seus ritos religiosos diferentes, suas variadas interpretações do universo e da vida. Nessa conjuntura, sob a contaminação de elementos "bárbaros", tem lugar um efervescente processo de "interculturação", em que a anterior convergência espiritual se desintegra, em que o espírito vacila entre diversas maneiras de conceber e valorizar o mundo e o homem, em que a dúvida se insinua na mente e a fecunda, em que, afinal, pelo conflito de duas mentalidades que se estruturam — a nativa e a adventícia — se constituem e se definem dois sistemas filosóficos, duas ideologias — uma tradicional, nativista e aristocratizante, outra revolucionária, laica e democratizante — opostas entre si e em encarniçada porfia de recíproco desmascaramento. Se os chamados sofistas do "'primeiro período" e, entre eles, Protágoras, apenas tomam consciência desse estado de coisas; se os do "segundo período", e entre eles Górgias, tiram conclusões agnósticas que abalam os fundamentos e as esperanças de construção da ciência e de sua utilização, os do "terceiro período" e, entre eles Cálicles, vão até as últimas conseqüências de um imoralismo alvar que ameaça estalar os travamentos do próprio arcabouço da vida social. Desordem nas idéias, desordem na sociedade.

É num momento assim, na moldura do desmoronamento dos valores antigos, quando o passado já não vige sobre o presente — "os mortos já não governam os vivos" — e o dia que entardece não traz indicações que permitam prever a aurora do amanhã, que o espírito se recolhe e medita, não tanto já em busca da explicação das "coisas" — que estas, depois de lhe parecerem tão sólidas e permanentes, se mostraram tão várias e transitórias — mas sobretudo em busca do conhecimento de si mesmo, do conhecimento do homem, de sua natureza e de seu destino, isto é, do endereço que deve imprimir à vida, numa palavra, do que lhe compete fazer em face da instabilidade de tudo, para que, deixando de ser o joguete das coisas, possa tornar-se se não senhor, ao menos isento dos movimentos delas. Esse é o momento socrático da Filosofia, do "conhece-te a ti mesmo", em que o homem, desesperado e cético em relação ao conhecimento do Kosmos — que parece desfazer-se em caos — se procura e se reencontra a si próprio como um microcosmo indestrutível, como uma "inteligência", que é capaz de introduzir-se no magma das coisas e reconstruir a ordem, restaurando a "idade de ouro" que se abisma. Momento luminoso de fé, que sustém a esperança e se transmuda em caridade — momento que se caracteriza pelo esforço de recuperação e de ensino dos valores que naufragam, de recrutamento pela persuasão para a tarefa de restauração dos quadros da vida e de sua preparação para uma nova "forma" de felicidade, possível em dias futuros. Momento generoso e fecundo, de um novo "modo de pensar", de feitio, por excelência utópico", que consiste em trabalhar no sentido não, propriamente, da busca de uma posição intermediária, conciliadora ou eclética — entre as "ideologias" em oposição, como tese e antítese — mas no da fusão, pela dialética da reconstrução, dos dados valiosos de ambas numa síntese ideal, de natureza superior, capaz de prever e prover o lugar do homem na moldura de seu próprio renascimento para uma nova ordem e para um novo conceito, mais justo porque mais equitativo, de felicidade generalizada, coletiva e individual.

Foi um momento assim o que viu, na cidade de Atenas, o bom Sócrates, perambulando pelas ruas e praças, ensinando a uns, corrigindo a outros, persuadindo a todos, pregando enfim as ideias e os valores que tinha por eternos e imanentes ao espírito e em cuja construção filosófica abotoa, sob a forma de uma nova Ética, de uma nova Política, de uma nova Pedagogia, a flor ideal de uma Utopia, a Utopia que desabrochará, com Platão, em toda a plenitude de seu viço, num livro — A República — e numa Universidade — a "Academia".

É uma frustração, portanto, o que se encontra na raiz de toda Utopia: a frustração de um status quo social nimbado em uma ideologia e que, em dado momento, sentindo embora faltarem as condições de sua sobrevivência, se obstina em perpetuar-se e, malferido de morte pela introjeção dos fatores de mudança e pelos golpes da Antiideologia, acaba sucumbindo para ressurgir, como a Fênix mitológica, das próprias cinzas, sob a forma de um novo "ideal", antevisão e expectativa de uma Terra da Promissão ou de um novo "status" social possível, que se traduz por um vago anseio popular de retorno ou reconquista de um "paraíso perdido" ou de uma "idade de ouro" pretérita, como que o fantasma ou "espírito" do futuro, errático, a aspirar à encarnação nos fatos porvindouros.

Quando essa frustração no plano da ordem social e esse vago anseio coletivo encontram, na personalidade de um indivíduo ou num grupo de indivíduos superiormente inteligentes, o drama de idêntica frustração no plano da existência individual, ela é, por estes, transfundida num livro, e, mais cedo ou mais tarde, numa Universidade, isto é, num núcleo de inteligências coalescentes, ligadas entre si por um compromisso solene, o de bem pensar e bem fazer, de especular indormidamente para a conquista do conhecimento, de propagar o conhecimento pelo ensino, para a dilatação de seu império, que propiciará o advento de uma época de harmonia dos espíritos e de felicidade comum.

Na história das Universidades, a primeira grande frustração social é a da cidade de Atenas, sentida, de modo autêntico, no plano psicológico, individual, por Sócrates e seu discípulo Platão. E a Utopia nascente de Sócrates vai brilhar, em todo o seu esplendor, na Universidade fundada por Platão, aquela Academia que surge, por um dinamismo que, na terminologia freudiana, seria considerado de fuga mas que é de recolhimento, de meditação, de catarse e experimentação, mais do que de isolamento em "torre de marfim", e que realiza, em escala reduzida, a própria Utopia da "República" sob o governo do Rei Filósofo.

Como esse exemplo histórico ilustra e atesta, é nos momentos de graves crises e de convulsões sociais, quando bruxuleiam as luzes da Ideologia que guiava uma época e uma nova era chamada "época de luzes" se entrevê e se proclama, que o pensamento humano, dilacerado pela dúvida, pela vacilação entre duas ordens de coisas, pela incerteza ante o caminho que se bifurca à sua frente, é nesses momentos que se apresenta mais vigorosa a especulação filosófica, mais alta a reflexão pedagógica e, em ambas, fecunda, túrgida, vivificante, a "mentalidade utópica". Tais momentos têm sido assinalados na História, pelo nascimento de novas Universidades nos lugares em que tiveram seu epicentro. E, entre estas, convém lembrar e incluir a própria Igreja fundada por Cristo, verdadeira Universidade no sentido mais preciso e mais amplo e, de certa maneira, modelo das que vieram depois. Ela se esboça também timidamente pelas ruas e caminhos palmilhados pelo Messias, sob a forma de um núcleo de discípulos em torno de um mestre universal, em cujo espírito repercute a tragédia de uma grande frustração do gênero humano, angustiado e aflito entre Ideologias em luta e em cuja obra se realiza uma nova "tomada de consciência" dos valores eternos da vida e o anúncio de uma "Boa Nova", de uma nova ordem possível — a "Utopia" nascente do Cristianismo que era uma construção ideal, em breve encarnada num livro — o "Evangelho", e numa Universidade — a Igreja, primariamente uma associação de catequistas e catecúmenos, a multiplicar-se mais tarde em novas agências de culto e de ensino — templos e escolas — para a dilatação do império da Verdade revelada.

Esta é também, não obstante a menor posteridade de sua repercussão social, a história dos núcleos de estudos superiores de Alexandria e, mais tarde, a daquela incerta e deambulante Universidade palaciana do Sacro Império Romano Germânico de Carlos Magno, em que pontificava, em diálogos apotegmáticos e cintilantes, o monge inglês Alcuíno, que o Imperador fizera vir à corte e que propugna a "Utopia" de, pela reunião das ciências "humanas e divinas", construir na França "uma nova Atenas, superior à antiga, porque instruída pela fé cristã".

São ainda Utopias que vão dar origem e razão de ser às novas Universidades que se organizam na Idade Média e nos tempos modernos. Para citar apenas a de maior pujança, no que diz respeito à Idade Média: é uma Utopia que se encontra no pensamento do monge dominicano Tomás de Aquino: a Utopia da conciliação entre a Razão e a Fé. Erroneamente se tem considerado muita vez a Idade Média um bloco maciço, como um período homogêneo e tedioso, de conformismo e aceitação passiva de uma Ideologia. Vista de perto e por dentro, ela é movimento, dúvida, pesquisa, polêmica. Sob certos aspectos, não seria exagerado dizer que nunca, antes ou depois, o homem pensou tanto, com mais empenho e pertinácia do que nesse período, e com o espírito desarmado para o conhecimento positivo. Na confusão de doutrinas e idéias em conflito, duas direções principais se podiam distinguir: a tese da Fé representada pela Ideologia da Revelação e, contraposta a ela, a antítese da Razão, representada pela Antiideologia de procedência arábica e judaica, nutrida em textos aristotélicos de recente descoberta. A Utopia de Tomás de Aquino é a da Síntese aristotélico-cristã, da Fé confirmada pela Razão. Dela sairá um Livro — a Summa Theologiae — e um sistema filosófico — a Philosophia Perennis — que dará origem e razão de ser a uma Universidade, a saber, a Scholastica.
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Transcorrido o tempo, e já no limiar da Idade Moderna, serão ainda escritos e livros de pura "mentalidade utópica", os que, no século XVII, alcançarão a máxima posteridade, tais a Instauratio Magna de Francis Bacon e o Discours de la Méthode de Descartes, propugnando nova Utopia, a Utopia da Ciência; o Tractatus, de Spinoza, propugnando uma Utopia política; e, para lembrar também um livro de Utopia puramente pedagógica, a Didactica Magna de João Amos Komensky; no século XVIII, nova Utopia, a da Igualdade, que fermenta na obra dos Enciclopedistas e explode, com toda a força, num livro que pretende conter o Evangelho da Nova Educação: o Emílio de Jean-Jacques Rousseau.

Cada um desses movimentos foi, a seu modo e em sua época, uma Renascença, gerou um Livro, pregou uma nova Filosofia como única verdadeira e deu origem a uma Universidade ou, ao menos, a uma nova orientação dos estudos universitários.

Se, vez por outra, aqui ou ali, um desses estabelecimentos de pesquisa e ensino se divorciou da linha da "mentalidade utópica", que lhe deu sentido e vigor, e se colocou a serviço de Ideologias, como ocorreu, por exemplo, com a Universidade de Coimbra, no século XVIII, ou com a de Paris ao tempo de Napoleão I, esses fatos não foram mais do que acidentes e hiatos em sua existência genuína, momentos difíceis e obscuros, durante os quais pouco ou nada produziram, mergulhando no descrédito e na rotina, de que entretanto saíram pela retomada dos caminhos de sua vocação utópica.

Em nossos dias, particularmente nas zonas do mundo de atmosfera mais límpida, característica do "clima social" da democracia, a Universidade continua fiel à sua vocação, e conta com algo mais do que a simples liberdade de organização, com o incentivo e o apoio do poder constituído, sensível aos reclamos e imperativos da hora presente e que tende a conceder-lhe, para sua maior possibilidade de contribuição ao bem-estar humano, crescente autonomia administrativa e financeira assim como de investigação e de ensino.

Nestes moldes se vazou a Universidade do Espírito Santo. Ela se apresenta, no plano político-administrativo, como a obra máxima de um governo que se mostrou sensível às vicissitudes da sociedade e da cultura capixaba em momento de crise de disritmia entre a herança do passado e os novos anseios populares de conteúdo utópico; no plano pedagógico, é a cúpula de uma reforma de base de suas estruturas de educação e será a alma mater da nova armadura educacional do Estado.

Sua missão é a de pensar e de fazer pensar. Essa é a missão de toda Universidade. Gerada no caldo da "mentalidade utópica", emaranhada embora na trama social vigente, ela aspira a superar esse condicionamento, para fazer "ciência pura" — não no mesquinho sentido de passa-tempo ocioso sem relação com as necessidades e aspirações do homem, mas no sentido de conhecimento objetivo, isento de contaminações ideológicas — para, por esse meio, entrever, construir e anunciar uma outra trama possível de sociedade, a sociedade ideal; sua missão é a de pensar e fazer pensar com clareza: pensar o mundo como ele é e como é possível, pensar a vida tal como ela é e tal como poderá vir a ser, melhor; pensar o lugar que deve caber aos fatos num mundo que é também mundo de valores e o lugar que deve caber aos valores no mundo dos fatos; numa palavra estabelecer o culto, pela pesquisa e pelo ensino, de todos os bens — Saúde, Bem-estar, Paz de consciência e Paz das Nações, Justiça, Liberdade, Verdade, Virtude, Beleza — pelo cultivo da Filosofia, das Ciências, das Letras, das Artes, das Técnicas, do Trabalho. Assim sejam a vocação e o futuro da Universidade do Espírito Santo.


Compreendereis certamente, e em vossa grande generosidade e tolerância haveis de me relevar, sem dúvida, a profunda emoção com que me levan...


Compreendereis certamente, e em vossa grande generosidade e tolerância haveis de me relevar, sem dúvida, a profunda emoção com que me levanto agora para declarar solenemente instalada a Universidade do Espírito Santo.

É este, em verdade, um momento estelar da nossa história. Temos o privilégio de vivê-lo, e, mais do que isto, reservou-nos a Providência Divina, em seus secretos e invioláveis desígnios, a nobre e excelsa missão de partilharmos, como artífice, deste capítulo excepcional dos nossos destinos culturais.

Como diria o Apóstolo: infirma mundi elegit Deus ut confundat fortia — Deus escolhe as pequenas coisas para confundir as grandes. É a explicação que encontro, na humildade do meu espírito, para justificar a minha obscura presença na madrugada de luz que representa, em nossa história, a fundação deste Instituto.

Na realidade, porém, se pesquisarmos mais fundo as circunstâncias fortuitas que permitiram e facilitaram a cristalização dessa ideia, quase utópica, há três anos passados, constataremos a evidência de que, pelo seu extraordinário surto de progresso econômico, já soara, para o Espírito Santo, o instante propício ao soerguimento das colunas eternas de seu futuro Panteon Cultural.

Somos um Estado pequeno que se agiganta no conceito da Federação. E deixamos definitivamente para trás os dias de vacilação e incertezas, de esmorecimentos e desânimos que nos entibiavam os passos. Resolvemos ser grande e estamos levando de vencida todos os obstáculos que se contraponham às nossas vontades. Precisávamos crescer, e vamos dilatando as nossas fronteiras internas, vencendo a selva e conquistando novos espaços sociais nos vazios geográficos do norte. Tínhamos necessidade de ampliar os horizontes urbanos da nossa Capital, e fizemos recuar o oceano, soterrando os marnéis e criando novas e extensas áreas de construção. Pretendíamos ampliar o nosso aparelhamento portuário e já somos hoje o primeiro porto do Brasil em tonelagem exportada. Vivíamos em crise de energia, e subjugamos a natureza construindo Rio Bonito, a grande Central Elétrica que comandará a plena valorização econômica do Estado. Quase não possuíamos escolas superiores, e. hoje temos uma Universidade. Estamos assim presentes ao encontro que tínhamos marcado com o destino para a conquista do nosso apogeu econômico. E aqui, como em toda parte do mundo, nos dias que correm, é a expansão econômica que dirige e norteia os ressurgimentos culturais.

Já vão longe os tempos em que as Universidades da idade média surgiam à sombra das catedrais, como represália ao jugo tirânico das aristocracias.

Hoje, no conceito lapidar de Anísio Teixeira, elas se abrem para "socializar a cultura, socializando os meios de adquiri-la".

"A Universidade é, pois, na sociedade moderna, uma das instituições características e indispensáveis, sem a qual não chega a existir um povo." "Trata-se de manter uma atmosfera de saber pelo saber, para se preparar o homem que o serve e o desenvolve. Trata-se de conservar o saber vivo e não morto, nos livros ou no empirismo das práticas não intelectualizadas. Trata-se de difundir a cultura humana, mas de fazê-lo com inspiração, enriquecendo e vitalizando o saber do passado com a sedução, a atração e o ímpeto do presente."

É, enfim, a "Educação para a Democracia". Essa a finalidade excelsa que vaticinamos para a nossa Universidade. Tal deve ser o seu lema e o seu objetivo. Pelo seu pórtico monumental, que hoje estamos a erigir, desfilarão gerações e gerações de moços, sôfregos de saber e de cultura, formando falanges, sucessivas, irmanadas pelo espírito universitário e pelas lições de liberdade e democracia, que lhes permitam cumprir, com dignidade e civismo, a sua nobre e eterna missão de assegurar e proteger a sagrada perpetuidade da Pátria.

Ás efusões de justificada alegria com que devemos todos nos congratular pela magnitude da solenidade, quisestes ainda acrescer outras emoções, cumulando-me de imerecidas homenagens que valem somente para avivar os brasões da vossa generosidade. Guardarei indelével na recordação, por todos os anos de minha existência, o carinho desses estímulos e a espontaneidade dos vossos generosos conceitos e gestos, que constituirão sempre os mais nobres pergaminhos da minha vida pública.

Dentre essas homenagens, devo destacar, no entanto, pela nobreza que encerra e pela emoção com que a recebo, o precioso depoimento da vibrante juventude universitária do nosso Estado.

Não sei, não posso saber, como poderia externar-lhe o meu reconhecimento senão repetindo o que sempre afirmei: a criação da Universidade do Espírito Santo é, sobretudo, um ato de fé na mocidade de minha terra.

Ou pedindo emprestado, ao gênio da raça, as palavras que têm sido um catecismo em minha vida pública: "as águias, para estenderem seus longos vôos, procuram os píncaros, donde descortinam, entre a terra e o céu, o oceano transparente dos espaços. Assim, parece que as grandes ideias, quando tentam a conquista do mundo, procuram a alma da mocidade, para dali desferirem, entre o passado e o futuro, o voo de sua dominação. Aos problemas que nos assaltam, oponhamos a alma da mocidade, para quem o direito não se fez do aço das espadas, mas do ouro da justiça, para quem a Pátria, grande, feliz e próspera, é a suprema aspiração de todos."

Meus senhores e minhas senhoras:

Está instalada a Universidade do Espírito Santo. Ela pertence aos moços e sob a sua inspiração foi criada. Seu destino será, assim a Glória e a Eternidade da Pátria.


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Jones dos Santos Neves graduou-se em Farmácia no Rio de Janeiro e, de volta a Vitória, casou-se, em 1925, com Alda Hithchings Magalhães, tornando-se sócio da firma G. Roubach & Cia, juntamente com Arnaldo Magalhães, seu sogro, e Gastão Roubach. A convite de interventor João Punaro Bley, em 1938 funda e dirige, juntamente com Mário Aristides Freire, o Banco de Crédito Agrícola (depois Banestes), tendo depois disso seu nome indicado juntamente com o de outros dois, para a sucessão na interventoria. Foi então escolhido por Getúlio Vargas como novo interventor, cargo em que permaneceu de 1943 a 1945. Em 1954 retomou seu trabalho no banco, chegando à presidência, sendo, em 1950, eleito  governador do estado. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)