AS CIDADES ASSIMÉTRICAS Não retorne às cidades passadas, vãs poeiras cobririam seu corpo. Cidades são esfinges: decifradas se desfaze...

Poemas inéditos de O livro simples ou Tudo por um triz (títulos provisórios)

AS CIDADES ASSIMÉTRICAS


Não retorne às cidades passadas,
vãs poeiras cobririam seu corpo.
Cidades são esfinges: decifradas
se desfazem, previstas já acabam.

Não visite cidades do futuro,
pois seu dorso viraria fumaça.
Utopias boas só após findas;
planos existem para o fracasso.

Não fale das cidades no presente,
troncos e pedras se levantariam.
Cidades têm grandes pés postos no ar,
ilusão a riscar longos desenhos.

Não queira tracejar tais desígnios.
Ou queira, arrume-lhes mais desejos.
Ao abrirem-se, cidades se abatem.
Que mistérios as fixam na história?

Não erga estátuas nas novas urbes,
mas de sua argamassa guarde o traço:
umas partes de pó, outras de vazio,
porções de fel, e grande esquecimento.

Não consuma citadino glacê
sem comer os recheios desse bolo.
Como amantes se dão, cave no urbano
sem saber ao certo se há um solo.

Não habite aglomerações jovens,
a menos que fabrique sua memória;
nem tente entender antigos burgos,
salvo se invejar seus construtores.

Não ame cidades; de nada serve.
Ou ame-as, por sua conta e risco.
Ame-as sim. Assim: sem fé, com furor,
numa ainda incriada dimensão.

Por que conhecer o que junto se destrói?



DICIONÁRIO ELETRÔNICO

Para Antonia Colbari

Dicionário, dicionário, é sábado de noite.
Me diga, que palavras andam em seu coração?
Como é difícil arrancar um nome de você!
Em meu socorro, o que seus programas escolhem?
Será que nada acontece dentro desse computador?

O relógio andou, já é domingo,
um “poeta de domingo” agora sou.
Dicionário, em você não coloco um só nome!
Ao menos me responda: quais palavras desinvento
para esse poema que passou?



BASHÔS


Encontro Bashô
Luar na poça d’água
E outro haicai

Pequeno Bashô
Poça d’água e luar
Mais um haicai

Depois de Bashô
Toda poça e luar
Haicai de novo



POESIA SOBRE MÃE PRA FILHA DE ONZE ANOS
APRESENTAR NA ESCOLA


— Pai, arranja uma poesia sobre mãe,
pra eu apresentar na escola?
— Alessandra, pra você eu faço a poesia:

Coisa simples é mãe;
quando só nos resta nós, aí ela está.

Da mãe sempre nos separam
(cordão inicial, peito lácteo, palmada,
escola maternal, amor táctil, namorada)
e maior ela fica a cada separação.

Junto-longe dela vivemos,
sempre grávidos de mãe.
Mas a volta ao paraíso é pro seu dentro:
ventre-éden, mundo de prazer,
sentidos na satisfação.

Mãe é uma só — como a vida.
Vida é como mãe — pois nos cria.
E nos criamos nessas criações.

Mãe é coisa simples;
a quem recorremos pelo resto de nós.



NA TERCEIRA VEZ


Na beira-mar de manhã nevoenta
acariciei a saia dos seus pequenos lábios surdos.
Com espanto, eles logo ouviram:
— Pára, não é por aí.

Dentro de lenta tarde automóvel
apertei a seda dos seus pequenos lábios cegos.
Pasmos, eles logo enxergaram:
— Por que essa tesão toda?

Debaixo de um chuveiro noturno
toquei firme os seus pequenos lábios mudos.
Em espasmos, eles logo gritaram:
— A duração do desejo é a mesma da vida!



VIDA E OBRA DE JOÃO GOMES


Estamos no ano de mil novecentos e noventa e oito.
João Gomes desapareceu há 25 anos.
No início da carreira trabalhou como destoldador —
tirava toldos dos caminhões
e conferia a carga para os fiscais de renda.
Vigilante de fronteira de 1963 a 1973,
neste último ano foi designado pra mexer com café
em coletoria do norte do Estado
no cargo comissionado de escrivão de rendas estaduais.
— Estou com medo, desabafou um dia com a mulher.
Depois dele sumido vieram dizer pra ela
que não se preocupasse,
os filhos, um ainda na barriga,
teriam assistência, pensão; ela também.

O que aconteceu com João Gomes em 1973?
Fugiu pra Rondônia com outra companheira?
Foi morto pela máfia do café?
A ditadura desapareceu com ele?
A mulher não deu queixa à polícia.
Foi pra casa da mãe num subúrbio do Rio
e criou os filhos sem nada falar. Por quê?
Carlos, agora carteiro em Vitória,
levanta nos arquivos a história funcional do pai.
Tenta ajudar a mãe de 55 anos,
que não viu o marido sumir no mundo,
ou sumir deste mundo.

Pra que mexer com uma história dessa?
Não tenho nada com isso.
O problema é que a poesia
só diz o que lhe interessa:
João Gomes continua desaparecido.
Para sempre?



DIVINDADES VIRTUAIS


Pro Demônio da Dispersão acendo pequena vela —
sempre jogo paciência ao iniciar o computador.

Aos Espíritos da Luxúria também sacrifico —
por vezes um hot site na internet visito.

E a Deusa Ilusão vive me mandando e-mail —
foi ela quem teclou o que você acaba de ler.

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Fernando Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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