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11/11/2016
PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO
1. Limites
A província do Espírito Santo, compreendida entre os rios Itabapoana e São Mateus nas latitudes austrais 21° 23' e 18° 45', contém, com pouca diferença, cinqüenta léguas[ 1 ] de costa de mar, que a limita pelo leste; é separada da província de Minas Gerais por uma linha de norte a sul entre os rios Guandu e Manhuaçu, uns dos que engrandecem o rio Doce. A primeira divisão e demarcação da província principiou na ponta austral do rio Mucuri até Santa Catarina das Mós, meia légua ao sul do rio Itabapoana, compreensão da carta de doação do Senhor D. João III a Vasco Fernandes Coutinho em 1525 pelos seus serviços feitos na Índia. Foi possuída pelos seus descendentes até que o Senhor D. João V a comprou a Cosme de Moura Rolim por escritura de 6 de abril de 1718, a quem pertenceu por sentença da Relação[ 2 ] da Bahia pelo falecimento do donatário Manuel Garcia Pimentel.
Por auto, celebrado em 8 de outubro de 1800, de acordo entre os governadores de Minas e desta província se regulou os limites dela pelo rio Doce e pela dita linha de norte a sul que passa pelo sertão entre ambas as províncias, o que foi aprovado por carta régia de 4 de dezembro de 1816; ignora-se, porém, a longitude desta dita linha.
Por portaria de 10 de abril de 1823 da Secretaria dos Negócios do Império ficou pertencendo São Mateus a esta província até a decisão da Assembléia, estando desligada [da província da Bahia] pela dita carta régia.
2. Atmosfera
A sua atmosfera podia passar por saudável se não aparecessem na primavera e outono febres de diferentes caracteres[ 3 ] , cuja causa se pode atribuir aos muitos lagos, ao alimento salgado, e às matas vizinhas que contornam as povoações, o que em parte se podia corrigir com esgoto daqueles e decote destas. O máximo de calor e frio nos quatro anos mais próximos não tem excedido a 88° e 63° do termômetro de Fahrenheit na cidade da Vitória, capital da província. Os ventos dominantes desde março até setembro são sul, sueste e su-sueste, e desde setembro até março são norte, nordeste e leste com algumas variações para outros quadrantes, sendo os mais prejudiciais em toda a costa [os ventos] sueste, leste e su-sueste chamados travessia[ 4 ] pelos marítimos, sendo os do mar úmidos e frios e os outros pelo contrário. As marés têm o seu máximo e mínimo nos meses de março e agosto, e a sua elevação seis para sete palmos. As geadas e neblinas são raríssimas, e de mui poucas horas, e só aparecem nas vizinhanças das montanhas com os ventos sul e leste nos meses de junho e julho. A seis para sete anos a esta parte rara é a trovoada, tendo sido, aliás, mui freqüentes. As chuvas quase têm faltado nos anos desde 1820 até 1826, o que fez tornar em pastagens o que antes eram terrenos impraticáveis, e secou regatos, aliás, em outros tempos perenes; ignoram-se as causas, sendo certo ser uma delas as contínuas derribadas de matos virgens, deixando os montes escalvados.[ 5 ] Os tempos das chuvas eram desde setembro até dezembro, mas em 1827 parece ter passado de outubro para janeiro.
3. Aspecto do país
É montanhoso, desigual, alto, cortado de rios, o terreno em geral é argiloso e areento sobre pedra quartzosa[ 6 ] e micácea,[ 7 ] oca e cascalho; [os solos são] úmidos e leves enquanto novos, mas compactos e secos depois de trabalhados e estragados pelos fogos, do qual método se não afastam. A grossura média da terra vegetal é quatro palmos.
4. Serras e montes
A costa toda da província é acompanhada por uma cordilheira de montanhas, de que como espinha dorsal fazem de vértebras todas as mais, havendo, contudo, isoladas como a serra do Mestre Álvaro, utilíssima aos navegantes por ter a propriedade de apresentar por todos os lados o mesmo aspecto, o monte Moreno, a Penha e outros muitos. Esta cordilheira se aproxima mais a Guarapari que a outro ponto da costa, e dela distará talvez oito léguas. Não consta que curioso algum investigasse a altura de algum deles, à exceção do da Penha que está acima do nível do mar 100 varas.[ 8 ] São raras as montanhas descobertas, suposto que todas em geral são riquíssimas de pedras, e talvez bem preciosas, como a serra das Esmeraldas, de que ninguém do país[ 9 ] dá notícia, mas que de fato existem. As que são cobertas e ainda incultas possuem excelentes madeiras de construção.
5. Fontes
A pouca cultura da província por pessoas de instrução tem, sem dúvida, obstado ao conhecimento das fontes e da natureza de suas águas. De maneira que apenas consta por tradição que em uma fazenda denominada Santana, pouco mais de légua distante da Cidade,[ 10 ] há um pequeno regato de águas férreas, tais asseveradas pelo ex-governador, o ilustríssimo Antônio Pires da Silva Pontes, sendo comuns as de que se servem os habitantes. A cidade da Vitória contém três: a da Capixaba, a Fonte Grande e a da Lapa, pequenos regatos que vertem entre morros contíguos, aproveitados por canos que rematam em chafarizes, mas tão pobres em tempo seco que têm chegado os moradores a mandá-las buscar em canoas no rio Marinho, quarto de légua distante da Cidade. Os mais habitantes das vilas e povoações ou se servem dos rios e regatos contíguos ou de fontes denominadas cacimbas. As águas da cidade passam por boas, não obstante principiarem ao terceiro dia de guardadas a alterarem-se, adquirindo um gosto aluminoso[ 11 ] ou nitroso.
6. Rios
A província é toda cortada de rios, em geral piscosos em abundância, tendo as suas vertentes pelos sertões de Minas e desaguando ao mar, onde tomam os nomes seguintes principiando da parte do sul.
Itapaboana – vindo da serra do Pico ou dos Guarulhos perto de Muriaé, é na sua barra de três a nove palmos[ 12 ] no máximo baixa-mar e preamar; seu fundo e margens areentas e variáveis e de largura na barra de 24 braças;[ 13 ] para cima tem mais largura e fundo, e corre de oeste a leste.
Itapemirim – formado dos rios do Castelo e Muqui, é na sua barra de 4 a 11 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar; seu fundo e margem esquerda de areia e a direita de pedra, de largura na barra de seis a sete braças, tem para cima mais largura e fundo.
Piúma – formado pelo Piúma propriamente e rio Iconha; é na sua barra de natureza do Itabapoana, é célebre pelas ilhas que tem fora da barra, que abrigam com todos os ventos todos os navios de porte; as suas matas contêm excelentes madeiras de construção e sem moradores, e por isso próprias para uma colônia.
Benevente – é na sua barra de 5 a 10 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar; sua margem direita de pedra, a esquerda de areia dura e seu fundo de lama e areia solta, a sua largura dezoito braças; corre de oeste a leste e é formado dos rios Três Barras, Pongal e Quatinga.
Guarapari – é na sua barra de 34 a 40 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar; margem de pedras e fundo de areia, de largura de trinta e cinco braças, corre de nordeste a sudoeste.
Perocão – de 3 a 9 palmos na sua barra no seu máximo baixa-mar e preamar, de largura de quatro braças, fundo e margem de areia, quinhentas braças acima tem uma ponte de madeira sobre pegões[ 14 ] de pedra e cal.
Jucu – tem a sua barra de 3 a 10 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar, de largura de quatro braças, fundo e margens de pedra, e cinqüenta braças acima tem muito maior largura e fundo; sempre tem tido ponte de madeira, mas atualmente está desconsertada.
Espírito Santo[ 15 ] – braço de mar, é um dardanelo[ 16 ] até a cidade da Vitória distante uma légua da sua barra, que tem de fundo 17 a 24 palmos no seu baixa-mar e preamar; recebe as águas do rio Santa Maria que é formado dos rios Mangaraí, Caioaba, Curubixá Mirim e Açu, São Miguel, Tauá e Jaculû, e as águas do Cariacica, e um braço do rio Jucu que é formado dos rios Tanque, Santo Agostinho, Pimentas, Manducongo e Araçatiba.
Rio da Passagem – braço de mar com ponte de pegões de pedra e cal e madeira sobreposta, de largura de vinte braças que com o rio Espírito Santo forma a ilha onde está a capital da província.
Jacaraípe – pequeno rio cuja barra se seca todas as vezes que há falta d'águas, ou ventos do mar que a entulhem d'areias, mas navegável para o sertão por espaço de cinco léguas.
Nova Almeida – recebe o rio Sauanha, é de 10 a 16 palmos de fundo na sua barra no máximo baixa-mar e preamar, margem e fundo d'areia, de largura de 25 braças, corre de sudoeste a nordeste, acima tem mais largura e fundo.
Aldeia Velha – de largura de 90 braças, de 10 a 16 palmos de fundo na sua barra no máximo baixa-mar e preamar, fundo e margem de areia, e corre de oeste a leste, e é formado do Piraquê-açu e Piraquê-mirim, da esquerda e margem direita.
Riacho – formado do pequeno rio Comboios e das lagoas seguidas e continuadas do Campo do Riacho, de Aguiar e de Anadia, tem a sua barra de 3 a 8 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar, margens e fundo de areias e pedras, de largura de quatro braças, corre de oeste a leste.
Rio Doce – de largura de um quarto de légua pouco mais ou menos na sua barra, e de 16 a 20 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar, de muita velocidade, de margens de areia e fundo de areia e lama, cheio de baixios e ilhas acima da barra, corre de oeste a leste, recebendo da parte direita as águas dos rios Preto, Anadia, Santa Joana, rio d'Alva, e da parte esquerda dos rios Juparanã, Juparanã-mirim, Pancas, Santo Antônio, São João e Mutum, ficando todos do Porto de Souza para baixo, [local situado a] vinte léguas da barra e daí para cima recebe as águas de outros rios como Manhuaçu, Guandu no território desta província, o ribeirão do Carmo, etc. da província de Minas.
Barra Seca – pequeno rio que nasce no rio Mariricu, um dos que deságuam em São Mateus, e da mesma natureza do Jacaraípe respeito à barra.
São Mateus – formado do rio Mariricu, que vem da lagoa Juparanã, e dos rios Itaúnas, São Domingos e Santana, sendo o primeiro da parte direita; tem na sua barra 6 a 12 palmos d'água no máximo baixa-mar e preamar, margens e fundo de areia, e mudável o seu canal de largura de seis braças; a largura do rio é de 25 braças, e corre do oeste a leste.
Cada um destes rios, nos quais nada tem a arte feito em benefício seu, serão talvez formados por muitos outros, cujo número, situação e nomes se ignoram, bem como os seus produtos pouco ou nada explorados até esta época.
7. Portos e enseadas
Todos os rios acima oferecem portos de desembarque mais ou menos consideráveis em razão do fundo das suas barras, havendo nalgumas delas enseadas, bem como a enseada de Itapemirim cheia de baixios e pedras; de Piúma excelente abrigo para todas as embarcações e com todos os ventos; a de Benevente de pouco fundo; a de Guarapari não abrigada, mas de bom fundo para entrar a barra, excetuando de noite, pelo que se verá no número oito; a de Perocão inabrigável[ 17 ] pelas pedras ocultas e baixios; a de Nova Almeida de baixios e pouco fundo; a de Aldeia Velha de bom fundo, mas de pedras e baixios; a do rio Doce, de nome Concha, boa para fundear toda a qualidade de barcos, mas com bonança ou nordeste; a de São Mateus de bom fundo, onde se espera para entrar ventos ou enchentes.[ 18 ]
Há além destas as seguintes enseadas: a de Itabapoana, três léguas ao norte da barra deste rio, espaçosa, mas de baixios e pedras, podendo fundear quaisquer barcos na distância de duas léguas da praia; a de Ubu, duas léguas ao norte de Benevente, insignificante e de pouco fundo; a de Meaípe duas léguas ao sul de Guarapari, mas de pouco fundo e inabrigável com vento sul; a de Una duas léguas ao norte de Guarapari e a da Ponta da Fruta quatro léguas; a da Costa meia légua ao sul do Espírito Santo; a de Piraém uma légua ao norte do Espírito Santo; a de Carapebus duas léguas; a de Jacaraípe cinco; a de Capuba seis léguas ao norte do Espírito Santo; a de Flecheiras uma légua ao norte de Nova Almeida — são todas insignificantes por cheias de baixios e pedras. Em geral, todas as enseadas acima se não podem demandar sem risco, sem prático[ 19 ] delas.
8. Ilhas
Em Itapemirim há duas ilhas fora da barra, uma denominada dos Ovos fronteira a ela, e outra denominada Escalvada ao norte dela. Três léguas ao norte do rio Itabapoana, meia légua distante da praia, há a ilha das Andorinhas, pequena, mas agricultada pelo destacamento das Barreiras, que está defronte aquartelado. Neste lugar constantemente aparecia gentio e fazia estrago nos passageiros, o que se corrigiu com este destacamento, do qual saem dois soldados armados a encontrar com quem avistam, tanto de uma parte como de outra, e o acompanham até ficar livre de perigo.
Piúma tem duas ilhas defronte da barra, e a ilha do Francês ao sul dela. Esta ilha continha um poço natural e de mui boa água, e foi mandada atulhar em 1827 pelo Comandante de Itapemirim por se terem dela servido os piratas que infestaram a costa este ano. Guarapari tem a Rasa, Escalvada, outra à terra dela de nome Raposa, e duas pedras alagadas que se descobrem com a maré ao nordeste da Escalvada denominadas Feiticeiras, por causa das quais se não pode à noite demandar este porto. Perocão, ao norte, tem três ilhas e muitas pedras descobertas. Jucu tem uma ilha a leste da barra e entre esta e a barra do Espírito Santo existem as seguintes: Tanguetá, Itatiaia, Pitauã, Jorge Fernandes e Pacotes. O Espírito Santo tem as ilhas do Boi e dos Frades e pelo rio acima se encontram várias; a dos Frades é agricultada. Nova Almeida tem quatro ilhas defronte da barra; a que está à terra se denomina Raposa e as outras mais ao mar, Três Irmãos. Todas estas ilhas são inabitadas[ 20 ] e de pouca consideração pela sua grandeza e produtos, sendo a maior parte de pedras e não produzindo mais que pequenas matas, cardos e musgos.
9. Lagos e pântanos
Sendo os lugares cultos[ 21 ] da província a costa do mar, de que talvez se não tenham apartado os moradores três léguas, e pelas margens do rio acima quando muito em alguns lugares dez léguas, só se conhecem os lagos que nestes sítios estão, e são os seguintes. Lagoa Salgada ao sul de Itabapoana, junto ao mesmo rio. Morobá, duas léguas ao norte de Itabapoana, junto ao mar. Tabua, meia légua ao norte de Morobá. Tiririca, meia légua ao norte de Tabua. Cocolocage, quarto de légua ao norte de Tiririca. Campinho, quarto de légua distante da Cocolocage ao norte. Siri, quarto de légua distante do Campinho ao norte. Lagoa d'Anta, perto de meia légua do Siri para o norte. Lagoa Funda, quarto de légua distante da antecedente da parte do norte. Piabanha, meia légua ao norte de Itapemirim. Iriri, meia légua ao norte de Piúma. Maimbá, duas léguas ao norte de Benevente. Abaí, meia légua ao norte de Maimbá. Lagoa de Meaípe, quarto de légua ao norte de Abaí. Graçaí, meia légua ao norte de Meaípe. Lagoa do Campo do Riacho, quatro léguas ao norte de Aldeia Velha, e duas distante do mar; esta se comunica com a lagoa de Aguiar, meia légua para o oeste. Juparanã, sete léguas distante do mar e uma do rio Doce da parte do norte é a mais célebre pela sua grandeza, que tem pelo menos uma légua e meia de diâmetro. Juparanã-mirim, distante desta três léguas [para o lado contrário] do mar e contígua ao rio Doce. Lagoa de Aviz, meia légua ao norte do rio Doce, e oito distante da barra. Lagoa dos Patos, na mesma margem e para o mar distante da antecedente um quarto de légua. Juparanã da Praia, contígua ao mar e duas léguas ao norte do rio Doce.
Todos estes lagos abundam de peixe e nunca secam; é bem provável que pelo interior não haja poucos, os quais inda são desconhecidos, sendo todos acima de água comum, à exceção de Juparanã, que se diz conter muito antimônio.
Não há pântanos memoráveis mais que algumas pequenas margens destas lagoas; há porém alguns lugares paludosos em terrenos tão balofos que qualquer corpo, entrando neles de súbito, quase desaparece; tais são as vertentes do rio Mariricu e rio Preto, e a margem do meio-dia[ 22 ] da lagoa Juparanã. Em geral, há imensos brejos pelas margens dos rios e lagoas e entre montes, que produzem juncos, tabuas, lírios e tiriricas, em algumas das margens, dos quais se fazem belas plantações de arroz. Nas margens do mar tais brejos estão cheios de mangues de diferentes qualidades.
Com bem pouco trabalho se podiam tornar estes terrenos excelentes para as lavouras e criação, o que se não faz ou por indolência, ou pela abundância de terras.
10. Planícies baldios e matas
Bem como as montanhas, possui também a província muitas planícies, sendo em geral as margens dos rios tão próprias para a agricultura como para a criação, mas as mais notáveis pela sua extensão são as seguintes. A Muribeca, de nove léguas de costa de mar e seis de largo mais ou menos, pertencente à fazenda do mesmo nome junto ao rio Itabapoana. Campo da vila do Espírito Santo,[ 23 ] baldio de duas léguas de extensão em comprimento e uma de largura, de que se servem os moradores vizinhos para a criação. Carapina, distrito da Cidade, tem um baldio de três léguas de extensão e uma de largura, de que se servem os moradores contíguos para criação. Desde o rio Doce até São Mateus há um baldio de vinte léguas, de imenso gado montado,[ 24 ] nenhuma parte dele é empregada em cultura nem criação; o Marquês de Baependi aqui possui uma sesmaria de três léguas que as houve por compra. O Campo do Riacho possui um baldio de duas léguas em quadra, de que se servem os índios tanto para plantações como criação.
À exceção do que está descrito, quase tudo o mais são matas virgens, e riquíssimas em madeiras de toda a qualidade e de outros mil produtos incógnitos até esta época, e só habitadas por feras e selvagens. [Como] muitos anos de esforço por hábeis naturalistas não seriam suficientes para a completa descrição dos produtos vegetais, referirei das madeiras indígenas as mais triviais, e geralmente conhecidas no país. Madeiras de construção da ribeira: sucupira, maraçanatiba, grapiapunha, jataí-peba, caubi, pequi, guaiti, sapucaia-mirim, guanandi-carvalho, sobro, peroba, amarelo, tapinhoã, canela, araribá, angelim, cerejeira, sapucaia-açu e camará. Madeiras de construção de edifícios civis: inhuíba de rego, dito[ 25 ] pimenta, dito cheirosa, dito funcho, dito canela, dito tapinhoã, cedro, guaticica, guarabu-roxo, dito mirim, imbiriba, ubatinga, caingá, bicuíba, paraju, maçaranduba, arariba, caixeta, jequitibá, ouri, taicica-roxa, ubapeba, pequiá de duas qualidades, ipê, paratudo, ingá, óleo, cubixá, aderno, faia, guaraná, pimentinha, brasil, tatagiba, vinhático, roxinho, jacarandás de diferentes qualidades, jiriquitim, louro, guarabu-açu semelhante ao sebastião-arruda, [mas que] em lugar de vermelho tem as ondas sobre-escuras.
11. Sesmarias
O governo, por carta régia de 17 de janeiro de 1814, é autorizado para conceder sesmarias[ 26 ] e, com efeito, as tem concedido [em número de] cento e setenta e quatro, sendo cada uma de meia légua quadrada[ 27 ] (excetuando algumas) das quais a maior parte não está nem cultivada, nem confirmada,[ 28 ] pertencendo todas a súditos brasileiros.
No rio Doce e margens de Juparanã estão concedidas oitenta e duas, das quais apenas são cultivadas duas, e nenhuma confirmada. Em Monsarás há duas não confirmadas. Em Aldeia Velha, compreendendo a povoação do Riacho e Nova Almeida, há uma toda cultivada de doze léguas [de comprimento] e seis de fundo pelo sertão, concedida a 6 de novembro de 1610 pelo donatário Manuel Garcia Pimentel aos índios destas aldeias, confirmada pelo alvará de 2 de janeiro de 1759; há dentro desta uma de meia légua concedida pelo governo em razão de não estar por eles cultivada, a qual inda não está nem cultivada, nem confirmada. Na freguesia da Serra há sete cultivadas, mas uma só confirmada. No termo da Cidade há quatorze cultivadas, mas só quatro confirmadas.
Na povoação de Viana, à esquerda do rio Santo Agostinho, há cinqüenta [sesmarias] de 112 braças de testada e 500 de fundo cada uma concedida pelo governo em 1812 aos colonos vindos das ilhas dos Açores por ordem da polícia de 17 de novembro daquele ano, as quais são cultivadas e confirmadas; há mais seis não confirmadas, porém cultivadas, pertencentes aos descendentes dos mesmos.
Em Guarapari há uma só cultivada, mas não confirmada. Em Benevente[ 29 ] há dez cultivadas, e destas só duas confirmadas. Em Itapemirim há seis cultivadas, e destas só três confirmadas. Na Estrada de Minas há uma só, de quarto de légua, cultivada e não confirmada.
O cumprimento exato das leis relativas a sesmarias talvez pusesse a maior parte delas em mãos de quem as trabalhasse e cultivasse.
Há na província porções de território denominados indivisos,[ 30 ] isto é, terrenos em que muitos têm posse sem saberem o quantum nem o ubi,[ 31 ] mas as porções lavradas deles lhes pertencem particularmente, e só as perdem passando 10 anos sem as cultivar. Desta sorte cada um dos possuidores procura lavrar muitas terras para lhes chamar suas, e com elas crescendo a ambição, e não podendo cultivar tantas, se tornam capoeiras; outro as roça com o mesmo intento — eis a origem das demandas em que se despedaçam, puxando cada um todas as pontas, que lhe subministra[ 32 ] a sua ambição e a chicana[ 33 ] ordinária. O meio de evitar tais pleitos era demarcar e dividir o indiviso na proporção do que cada um tem nele. Esta divisão não pode ser feita por juízes leigos, e só o poderia ser sendo geômetra, e por isso seria bom haver para este fim um juízo privativo, para que tais divisões se fizessem de modo que cada um tivesse igual parte nas vantagens, inconvenientes e desigualdade das terras, e no bem ou mal que produzem, sendo preciso que em terras variáveis e sujeitas a inundações as porções desiguais em quantidade difiram em qualidade: uma braça de terra, por exemplo, que produz 100 por 1 equivale a duas que produzam 50 por 1. Por tal juízo se devem fazer as medições, e não se confiar em simples pilotos[ 34 ] e infiéis bússolas e cordas.[ 35 ] Seria também muito bom que ninguém chamasse sua certa porção de terras sem ter a planta delas, registrada no mesmo juízo onde se notariam as vendas e compras; e da reunião destas cópias se formaria exata e insensivelmente a topografia do país. Para se fazer alguma idéia basta dizer que o indiviso que pertence a vários, fuão[ 36 ] tem 1$000 réis[ 37 ] e fuão tem 16$000 réis, e outro tem igual, maior ou menor parte, e com igual direito; ignora-se se em outras províncias do Império acontece o mesmo. Os indivisos mais notáveis são os seguintes: Campo Grande de 4 léguas quadradas com pouca diferença, Carapina e Laranjeiras 3 quadradas, Costa da Praia 2 léguas quadradas, Curipé e Mulundu duas quadradas, e quase todo o terreno da ilha da Vitória que contém ¾ de légua quadrada.
Além das terras ditas há as fazendas do Conde de Vila Nova de São José junto ao rio de Guarapari de 4 léguas de costa de mar; a Muribeca de 9 léguas de costa de mar e 8 de fundo; a fazenda dos Falcões denominada Araçatiba, de 2 léguas quadradas à margem do Jucu e a fazenda Jacaruaba de 2 e ½ léguas de comprimento e 2 de largura, que foram dos extintos jesuítas, e provavelmente concedidas pelos donatários, como sempre o fizeram, dando, aforando e vendendo como lhes convinha qualquer parte do território e marinhas.
As câmaras se arrogaram o direito de conceder foros sem princípio ou motivo, mas este procedimento foi mandado obstar pelo governo.
12. Agricultura
É a agricultura em que se emprega a mor parte dos habitantes da província, onde com preferência se cultiva a cana-de-açúcar, mandioca, algodão, milho, café, feijão e arroz; o único meio de preparar as terras para este fim é roçar, derribar, queimar, depois de secas suficientemente, e plantar.
Preferem-se as terras baixas e alagadiças para arroz, e matos virgens para mandioca, porque nestes são mais volumosas as raízes e se conservam mais tempo incorruptíveis quando a falta de tempo não lhes permite colher no próprio, além de que em matos virgens se faz até três plantações sem incômodo das formigas, que em terra velha não deixa vicejar a planta; quanto para as mais plantações todo o terreno é bom, com pouca diferença.
O valor das terras é mui variável e dependente do seu estado, da sua posição e do seu benefício, podendo-se computar em 500$000 réis uma sesmaria de meia légua quadrada. As primeiras plantações se fazem de março até abril, e as segundas de setembro até outubro, não esquecendo a lua nova que muitos querem que influa nelas. A sua colheita se faz sem a menor arte.
Os transportes se fazem em carros com bois, em cargas com animais cavalares e a maior parte se transporta em canoas símplices.[ 38 ]
Os instrumentos de que se servem para as plantações são enxadas, foices, facões e machados.
Os agrícolas pouco ou nada se empregam em plantas alimentárias; sem embargo fazem alguns mais curiosos suas plantações de abóboras, alfaces, batatas, couves, ervilhas, favas, mostardas, inhames, repolhos, pepinos, melões, melancias, ananases, mandubis,[ 39 ] gergelins, bananeiras de árvores frutíferas, laranjeiras, limeiras, limoeiros, cidreiras e figueiras, mangueiras, jaqueiras, romeiras, tamarindos, coqueiros de diferentes qualidades, sendo espontâneas as goiabeiras e cajueiros, agriões, beldroegas, bredos, serralhas e erva-moura.
Acham-se também muitas plantas medicinais como artemísia, alecrim, arruda, malvas, avenca, babosa, alfazema, mechoacão ou batata-de-purga, boas-noites, salsaparrilha, cardo-santo, cocleária, mastruço, chicória, dormideira, endro, saião, feto-macho, grama, erva-de-bicho ou cataia, erva-capitão, lírio-de-florença, quina, labaça-aguda, língua-de-vaca, orjevão, parietária, sabugueiro, salsa-da-praia, tanchagem, trevo-azedo, balsameira, almecegueira, fedegoso, pau-de-óleo, pariparoba ou capeba, poaia, joanésia, copaibeira, bicuíba, pinhão-purgante, jandiroba-oleoso, fumo-bravo ou saçoaiá ou erva-colégio, mentrasto, maririçó, cordão-de-frade, bucha-dos-paulistas; especiarias como a alfavaca, alhos, manjeronas, baunilha, salsa, cebolas, coentro, erva-doce, gengibre, hortelã, pimentas de todas as qualidades, pau-cravo, cuja casca tem o próprio aroma de cravo-da-índia.
Também se acham em algumas hortas as flores boninas, bem-me-queres, malmequeres, saudades, cravos, cravelins, cravos-de-defunto, esporas, jasmins, girassol, melindres, perpétuas, rosas cheirosas e da índia, suspiros, angélica, sensitivas, açucenas e alecrim.
Também se acham tinturarias como açafrão e casca de arariba que produzem escarlate com pedra-ume; urucum e a casca de aroeira, que produzem vermelho; tatagiba que produz amarelo; guaraúna, cujo cozimento é preto; pacoba que produz roxo; pau-brasil e casca do ingá que produzem vermelho; casca de sapucaia-mirim que faz roxo, e com lama faz preto; fruta do pau-ferro que é talvez a verdadeira noz-de-galha; o anil, que já aqui se fabricou muito e se desusou este ramo de comércio porque houve anos em que as folhas foram todas estragadas por nova espécie de insetos, que talvez agora não apareçam; um arbusto no Porto de Souza cuja maceração das folhas produz lindíssimo roxo, não se lhe sabe o nome e nem se descreve por falta de tempo, e não se achar com prontidão que se deseja.
Também se encontram plantas venenosas como o tingui, tipi, oficial-de-sala, esponja, aqui chamada coronha-triste[ 40 ] e outras muitas.
As de fiação são as seguintes: algodão, tucum, gravatá e piteira. O tempo de florescência é em setembro e da maturação, abril e maio. Viveiros de plantas unicamente se faz para café, que desta província não é o melhor, e de fumo, que também se cultiva no país, sendo tão pouco que é gênero que inda se importa. São nocivas às plantações a paca, o caititu, a cotia, os porcos-do-mato, os guaxinins, a maitaca, a nandaia, o papa-juá, que comem as espigas de milho e algodão antes de sazonado,[ 41 ] o grumará e a rola que arrancam o grão do milho e do arroz quando começa a nascer, o papa-arroz que o come desde que começa a granizar,[ 42 ] as lagartas de diferentes cores, a formiga, que é imensa, o grilo, o tortulho, que debaixo da terra se transforma em inseto e come a raiz das plantas, o gorgulho, de nome provisório, de figura de um percevejo preto que se cria no feijão e o arrasa, e finalmente a broca que fura todo o pau. Ora, estes inimigos, o sistema de queimar as terras depois de escalvadas, a nenhuma arte de adubá-las faz que seja módico o rendimento da lavoura que já seria nulo se não houvesse ainda muitas matas a derribar e queimar, isto é, para estragá-las.
Não há estabelecimento algum de agricultura e coudelaria.[ 43 ]
O milho produz 50 por um alqueire[ 44 ] e custa em termo médio 440. O arroz 100 por um alqueire que custa a 320. O feijão 40 por um alqueire que custa 1$200, e o algodão 25 por uma arroba[ 45 ] que custa 960 réis. O arroz se planta com palmo e meio de intervalo, o feijão com três palmos, o milho com cinco e o algodão com seis; donde se vê que há desvantagem em plantar algodão, mas é compensada porque quando se planta o milho ou feijão, se planta o algodão, e este fica quando algum daqueles se colhe. A braça quadrada dá nove covas de mandioca; dezesseis covas dão um alqueire. Um carro de cana caiana plantada dá vinte e cinco carros; cada carro de cana dá duas arrobas de açúcar. Um carro de milho descascado dá vinte alqueires. O feijão, arroz e milho dão de três meses; o algodão e mandioca de ano, e a cana de ano e meio.
Tal ou qual particular tem em sua casa dois ou três cortiços,[ 46 ] talvez só por ter. Pela Tabela da Exportação ao fim se vê que os gêneros produzidos excedem às necessidades do país.
13. Animais
Uma parte dos lavradores se emprega também na criação do gado de diferentes espécies, de maneira que há na província, com pouca diferença, oito mil cabeças de gado vacum, dos quais se mata semanalmente nos açougues 10. Nenhuns são empregados na lavoura, mas do gênero masculino, que serão três mil e quinhentos, se empregaram mil e quinhentos em fábricas de açúcar e algumas conduções em carros. O seu alimento ordinário é o capim, que nasce naturalmente nos baldios ou em prados artificiais, nos quais se têm sem separação alguma, nem de sexo, nem de idade. O preço médio de um boi é 14$000 réis e o seu peso oito arrobas; o preço de uma vaca é 12$000 e seu peso seis arrobas. As suas moléstias são a bicheira, procedente de qualquer arranhadura, onde as moscas depositam os seus ovos, donde saem as varejas[ 47 ] que, estimulando e correndo as carnes, chegam a aumentar a chaga, emagrecer e matar o animal — a sua cura ordinária é o mercúrio doce que as mata; a papeira, que é uma inflamação na mandíbula inferior que cresce e faz emagrecer o gado até morrer — a sua cura é queimar com ferro em brasa e curar a chaga resultante com algum dessecante, ou folha, ou casca adstringente como a de aroeira ou outra qualquer; o carbúnculo, que faz inchar o gado e morrer ficando com as unhas abertas — ignora-se remédio para este mal; a falta de pastos faz também que o gado sôfrego não escolha pasto e assim come com ele ervas venenosas que o matam. O gado cavalar em ambos os sexos monta a 1.060, sendo do gênero feminino 430, e o preço médio destes é a 20$000 réis e daqueles 32$000; as suas espécies são guinilhas,[ 48 ] mestiços e sendeiros;[ 49 ] o seu sustento é igual ao do gado vacum, nenhum é empregado em fábricas, tais e quais se empregam em cargas, e tal ou qual é ferrado e de estrebaria.
O gado muar em ambos os sexos não excede a 100, o seu preço médio 32$000 réis, metade se emprega em fábricas e metade em transportes. O gado caprino há 200 de ambas as espécies, nenhum se mata nos açougues e o seu preço é 1$280 [réis]. Gado ovelhum há dois mil, nenhum vai ao açougue e o seu preço é 1$000 réis. Porcos há 800, é raro o que vem ao açougue, seu preço 8$000 réis e a libra[ 50 ] a 60 réis.
As galinhas de ambos os sexos custam a 480 réis e há 4.000 cabeças, e poucas as chamadas da índia. Patos custam a 320 e há 1.000. Perus custam a 880 réis e há 200. Marrecos custam a 320 e há 1.000. Capões custam a 560 e há 100. Frangos custam a 120 e há 6.000. Pombos custam a 120 e há 300.
Há na província muitos animais de caça, sendo os mais triviais macacos de diferentes espécies, raposas, onças, quatis, lontras, ouriços, lebres, coelhos, veados, porcos-do-mato, tamanduás, preguiças, antas, tatus, cotias; araras, papagaios, garças, mergulhões, pombas; tartarugas, cágados, lagartos. Também há muitos [animais] de pesca como são a arraia, peixe-prego, lixa, tubarão, cação, moréia, peixe-rei, peixe-espada, pescadas, galos, gudião, sarda, cavala, carapiá, salmonete, cabrinha, cornuda, tainhas, sardinhas. Insetos: besouros de diferentes qualidades, carochas, baratas, gafanhotos, grilos, louva-a-deus, percevejos, borboletas de todas as qualidades, traças, vespas de diferentes qualidades, abelhas, formigas, moscas, mosquitos, piolhos, pulgas, escorpião, lagostas, camarões. Vermes: minhocas, sanguessugas, lesmas, polvos, estrelas-do-mar e ouriço-do-mar, berbigão, mexilhão, búzios, caracóis, conchas, esponjas. Répteis: sapos, rãs, cobras de diferentes qualidades. Além dos acima mencionados existem muitos cuja zoologia ocuparia muitos anos e, talvez, muitos volumes.
14. Minas e pedreiras
Ao ex-capitão-mor desta província João de Velásquez Molina em 1693 foi anunciada a existência de ouro nas margens do rio Doce, junto ao córrego do Ouro Preto, e lhe foram apresentadas três oitavas dele que, recebendo a câmara, mandou fazer duas memórias:[ 51 ] uma para o capitão-mor e outra para o anunciante Antônio Dias Arzão, natural de Taubaté, homem empreendedor, que se recolhia[ 52 ] desse sítio com cinqüenta homens de sua comitiva; nesta ocasião se lhes prestaram o que lhes era necessário para nova entrada dos sertões. Esta foi a primeira descoberta de ouro nesta província.
Pedro Bueno Cacunda descobriu as Minas do Castelo em 1732 às margens do rio Itapemirim, doze léguas da barra, e participando ao capitão-mor desta vila, este lhe mandou ali estabelecer um arraial, nomeando provedor, tesoureiro e escrivão para melhor arrecadação dos direitos, e como trabalhavam sem arte alguma, dificultando-se a extração deste metal, e sendo incomodados do gentio, se foram retirando, de sorte que atualmente nenhum morador tem. É de fato ter recebido a extinta Provedoria em 1738 cento e vinte e uma oitavas. Consta que chegaram a ter cinco povoações, cuja maior parte formaram a vila de Itapemirim.
Em 1614 Marcos de Azeredo Coutinho foi encarregado por Sua Majestade (que então governava Portugal) com promessas de mercês de descobrir as Minas das Esmeraldas de que lhe tinha pessoalmente mostrado as amostras; e em 1644 ordenou Sua Majestade Fidelíssima a Francisco do Souto Maior auxiliasse o descobrimento e entabulamento[ 53 ] das ditas minas, de cuja existência estava informado, podendo levar os dois filhos de Marcos de Azeredo, os padres Inácio de Siqueira e Francisco de Moraes, e os índios que precisassem com licença dos padres; ignora-se porém o resultado de tais comissões, e só se sabe que o dito Marcos faleceu em 1618. São estas as únicas notícias que há de minas na província, sendo certo haver muitos e muitos lugares mais ou menos ricos de ouro, especialmente nas vertentes dos rios que deságuam no Jucu, no Juparanã, nas cabeceiras de Itapemirim, nas vertentes de Santa Maria, rio Castelo, etc. e ouro muito, e muito puro.
Não consta de minas de ferro, pois alguma pedra que contém algum óxido é em tão pequena quantidade, que não faz supor existência deste metal; nem tão pouco consta de outro algum mineral. É muito provável haverem muitos produtos, e talvez abundantes, o que se não tem explorado, sendo muito triviais cristais de rocha, com algumas variedades como ametistas.
15. Curiosidades naturais
No rio Doce foi achada uma figura petrificada de homem com mãos na cintura por João Felipe de Almeida Calmon, ignora-se a sua perfeição, e o gênero de pedra, e se existe.
Em 1815 foi achado um hipopótamo da grandeza de um cavalo, e com cauda de sete varas no rio da vila nova de Almeida, encalhado com a vazante.
Em muitos lugares da província há grutas, que não têm aqui lugar por nada conterem de notável nem pela sua regularidade e forma, nem pela matéria de que são formadas, servindo até aqui de asilo de alguns escravos fugidos, bem como a conhecida no morro da Lapa denominada de Pai Inácio. Quantos destes objetos terão sido desprezados pela ignorância!
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[Reprodução autorizada por Fernando Achiamé.]
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Fernando Achiamé
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Inácio Acióli de Vasconcelos
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Vitória, 1860. Foto de Jean Victor Frond. Autor: Inácio Acióli de Vasconcelos Edição de Texto, Estudo e Notas: Fernando Achiamé...
Memória estatística da província do Espírito Santo escrita no ano de 1828
Edição de Texto, Estudo e Notas: Fernando Achiamé
Les meprises d'un impartial excitent une
discussion d'où sortira la lumière de la vérité
PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO
1. Limites
A província do Espírito Santo, compreendida entre os rios Itabapoana e São Mateus nas latitudes austrais 21° 23' e 18° 45', contém, com pouca diferença, cinqüenta léguas[ 1 ] de costa de mar, que a limita pelo leste; é separada da província de Minas Gerais por uma linha de norte a sul entre os rios Guandu e Manhuaçu, uns dos que engrandecem o rio Doce. A primeira divisão e demarcação da província principiou na ponta austral do rio Mucuri até Santa Catarina das Mós, meia légua ao sul do rio Itabapoana, compreensão da carta de doação do Senhor D. João III a Vasco Fernandes Coutinho em 1525 pelos seus serviços feitos na Índia. Foi possuída pelos seus descendentes até que o Senhor D. João V a comprou a Cosme de Moura Rolim por escritura de 6 de abril de 1718, a quem pertenceu por sentença da Relação[ 2 ] da Bahia pelo falecimento do donatário Manuel Garcia Pimentel.
Por auto, celebrado em 8 de outubro de 1800, de acordo entre os governadores de Minas e desta província se regulou os limites dela pelo rio Doce e pela dita linha de norte a sul que passa pelo sertão entre ambas as províncias, o que foi aprovado por carta régia de 4 de dezembro de 1816; ignora-se, porém, a longitude desta dita linha.
Por portaria de 10 de abril de 1823 da Secretaria dos Negócios do Império ficou pertencendo São Mateus a esta província até a decisão da Assembléia, estando desligada [da província da Bahia] pela dita carta régia.
2. Atmosfera
A sua atmosfera podia passar por saudável se não aparecessem na primavera e outono febres de diferentes caracteres[ 3 ] , cuja causa se pode atribuir aos muitos lagos, ao alimento salgado, e às matas vizinhas que contornam as povoações, o que em parte se podia corrigir com esgoto daqueles e decote destas. O máximo de calor e frio nos quatro anos mais próximos não tem excedido a 88° e 63° do termômetro de Fahrenheit na cidade da Vitória, capital da província. Os ventos dominantes desde março até setembro são sul, sueste e su-sueste, e desde setembro até março são norte, nordeste e leste com algumas variações para outros quadrantes, sendo os mais prejudiciais em toda a costa [os ventos] sueste, leste e su-sueste chamados travessia[ 4 ] pelos marítimos, sendo os do mar úmidos e frios e os outros pelo contrário. As marés têm o seu máximo e mínimo nos meses de março e agosto, e a sua elevação seis para sete palmos. As geadas e neblinas são raríssimas, e de mui poucas horas, e só aparecem nas vizinhanças das montanhas com os ventos sul e leste nos meses de junho e julho. A seis para sete anos a esta parte rara é a trovoada, tendo sido, aliás, mui freqüentes. As chuvas quase têm faltado nos anos desde 1820 até 1826, o que fez tornar em pastagens o que antes eram terrenos impraticáveis, e secou regatos, aliás, em outros tempos perenes; ignoram-se as causas, sendo certo ser uma delas as contínuas derribadas de matos virgens, deixando os montes escalvados.[ 5 ] Os tempos das chuvas eram desde setembro até dezembro, mas em 1827 parece ter passado de outubro para janeiro.
3. Aspecto do país
É montanhoso, desigual, alto, cortado de rios, o terreno em geral é argiloso e areento sobre pedra quartzosa[ 6 ] e micácea,[ 7 ] oca e cascalho; [os solos são] úmidos e leves enquanto novos, mas compactos e secos depois de trabalhados e estragados pelos fogos, do qual método se não afastam. A grossura média da terra vegetal é quatro palmos.
4. Serras e montes
A costa toda da província é acompanhada por uma cordilheira de montanhas, de que como espinha dorsal fazem de vértebras todas as mais, havendo, contudo, isoladas como a serra do Mestre Álvaro, utilíssima aos navegantes por ter a propriedade de apresentar por todos os lados o mesmo aspecto, o monte Moreno, a Penha e outros muitos. Esta cordilheira se aproxima mais a Guarapari que a outro ponto da costa, e dela distará talvez oito léguas. Não consta que curioso algum investigasse a altura de algum deles, à exceção do da Penha que está acima do nível do mar 100 varas.[ 8 ] São raras as montanhas descobertas, suposto que todas em geral são riquíssimas de pedras, e talvez bem preciosas, como a serra das Esmeraldas, de que ninguém do país[ 9 ] dá notícia, mas que de fato existem. As que são cobertas e ainda incultas possuem excelentes madeiras de construção.
5. Fontes
A pouca cultura da província por pessoas de instrução tem, sem dúvida, obstado ao conhecimento das fontes e da natureza de suas águas. De maneira que apenas consta por tradição que em uma fazenda denominada Santana, pouco mais de légua distante da Cidade,[ 10 ] há um pequeno regato de águas férreas, tais asseveradas pelo ex-governador, o ilustríssimo Antônio Pires da Silva Pontes, sendo comuns as de que se servem os habitantes. A cidade da Vitória contém três: a da Capixaba, a Fonte Grande e a da Lapa, pequenos regatos que vertem entre morros contíguos, aproveitados por canos que rematam em chafarizes, mas tão pobres em tempo seco que têm chegado os moradores a mandá-las buscar em canoas no rio Marinho, quarto de légua distante da Cidade. Os mais habitantes das vilas e povoações ou se servem dos rios e regatos contíguos ou de fontes denominadas cacimbas. As águas da cidade passam por boas, não obstante principiarem ao terceiro dia de guardadas a alterarem-se, adquirindo um gosto aluminoso[ 11 ] ou nitroso.
6. Rios
A província é toda cortada de rios, em geral piscosos em abundância, tendo as suas vertentes pelos sertões de Minas e desaguando ao mar, onde tomam os nomes seguintes principiando da parte do sul.
Itapaboana – vindo da serra do Pico ou dos Guarulhos perto de Muriaé, é na sua barra de três a nove palmos[ 12 ] no máximo baixa-mar e preamar; seu fundo e margens areentas e variáveis e de largura na barra de 24 braças;[ 13 ] para cima tem mais largura e fundo, e corre de oeste a leste.
Itapemirim – formado dos rios do Castelo e Muqui, é na sua barra de 4 a 11 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar; seu fundo e margem esquerda de areia e a direita de pedra, de largura na barra de seis a sete braças, tem para cima mais largura e fundo.
Piúma – formado pelo Piúma propriamente e rio Iconha; é na sua barra de natureza do Itabapoana, é célebre pelas ilhas que tem fora da barra, que abrigam com todos os ventos todos os navios de porte; as suas matas contêm excelentes madeiras de construção e sem moradores, e por isso próprias para uma colônia.
Benevente – é na sua barra de 5 a 10 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar; sua margem direita de pedra, a esquerda de areia dura e seu fundo de lama e areia solta, a sua largura dezoito braças; corre de oeste a leste e é formado dos rios Três Barras, Pongal e Quatinga.
Guarapari – é na sua barra de 34 a 40 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar; margem de pedras e fundo de areia, de largura de trinta e cinco braças, corre de nordeste a sudoeste.
Perocão – de 3 a 9 palmos na sua barra no seu máximo baixa-mar e preamar, de largura de quatro braças, fundo e margem de areia, quinhentas braças acima tem uma ponte de madeira sobre pegões[ 14 ] de pedra e cal.
Jucu – tem a sua barra de 3 a 10 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar, de largura de quatro braças, fundo e margens de pedra, e cinqüenta braças acima tem muito maior largura e fundo; sempre tem tido ponte de madeira, mas atualmente está desconsertada.
Espírito Santo[ 15 ] – braço de mar, é um dardanelo[ 16 ] até a cidade da Vitória distante uma légua da sua barra, que tem de fundo 17 a 24 palmos no seu baixa-mar e preamar; recebe as águas do rio Santa Maria que é formado dos rios Mangaraí, Caioaba, Curubixá Mirim e Açu, São Miguel, Tauá e Jaculû, e as águas do Cariacica, e um braço do rio Jucu que é formado dos rios Tanque, Santo Agostinho, Pimentas, Manducongo e Araçatiba.
Rio da Passagem – braço de mar com ponte de pegões de pedra e cal e madeira sobreposta, de largura de vinte braças que com o rio Espírito Santo forma a ilha onde está a capital da província.
Jacaraípe – pequeno rio cuja barra se seca todas as vezes que há falta d'águas, ou ventos do mar que a entulhem d'areias, mas navegável para o sertão por espaço de cinco léguas.
Nova Almeida – recebe o rio Sauanha, é de 10 a 16 palmos de fundo na sua barra no máximo baixa-mar e preamar, margem e fundo d'areia, de largura de 25 braças, corre de sudoeste a nordeste, acima tem mais largura e fundo.
Aldeia Velha – de largura de 90 braças, de 10 a 16 palmos de fundo na sua barra no máximo baixa-mar e preamar, fundo e margem de areia, e corre de oeste a leste, e é formado do Piraquê-açu e Piraquê-mirim, da esquerda e margem direita.
Riacho – formado do pequeno rio Comboios e das lagoas seguidas e continuadas do Campo do Riacho, de Aguiar e de Anadia, tem a sua barra de 3 a 8 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar, margens e fundo de areias e pedras, de largura de quatro braças, corre de oeste a leste.
Rio Doce – de largura de um quarto de légua pouco mais ou menos na sua barra, e de 16 a 20 palmos no seu máximo baixa-mar e preamar, de muita velocidade, de margens de areia e fundo de areia e lama, cheio de baixios e ilhas acima da barra, corre de oeste a leste, recebendo da parte direita as águas dos rios Preto, Anadia, Santa Joana, rio d'Alva, e da parte esquerda dos rios Juparanã, Juparanã-mirim, Pancas, Santo Antônio, São João e Mutum, ficando todos do Porto de Souza para baixo, [local situado a] vinte léguas da barra e daí para cima recebe as águas de outros rios como Manhuaçu, Guandu no território desta província, o ribeirão do Carmo, etc. da província de Minas.
Barra Seca – pequeno rio que nasce no rio Mariricu, um dos que deságuam em São Mateus, e da mesma natureza do Jacaraípe respeito à barra.
São Mateus – formado do rio Mariricu, que vem da lagoa Juparanã, e dos rios Itaúnas, São Domingos e Santana, sendo o primeiro da parte direita; tem na sua barra 6 a 12 palmos d'água no máximo baixa-mar e preamar, margens e fundo de areia, e mudável o seu canal de largura de seis braças; a largura do rio é de 25 braças, e corre do oeste a leste.
Cada um destes rios, nos quais nada tem a arte feito em benefício seu, serão talvez formados por muitos outros, cujo número, situação e nomes se ignoram, bem como os seus produtos pouco ou nada explorados até esta época.
7. Portos e enseadas
Todos os rios acima oferecem portos de desembarque mais ou menos consideráveis em razão do fundo das suas barras, havendo nalgumas delas enseadas, bem como a enseada de Itapemirim cheia de baixios e pedras; de Piúma excelente abrigo para todas as embarcações e com todos os ventos; a de Benevente de pouco fundo; a de Guarapari não abrigada, mas de bom fundo para entrar a barra, excetuando de noite, pelo que se verá no número oito; a de Perocão inabrigável[ 17 ] pelas pedras ocultas e baixios; a de Nova Almeida de baixios e pouco fundo; a de Aldeia Velha de bom fundo, mas de pedras e baixios; a do rio Doce, de nome Concha, boa para fundear toda a qualidade de barcos, mas com bonança ou nordeste; a de São Mateus de bom fundo, onde se espera para entrar ventos ou enchentes.[ 18 ]
Há além destas as seguintes enseadas: a de Itabapoana, três léguas ao norte da barra deste rio, espaçosa, mas de baixios e pedras, podendo fundear quaisquer barcos na distância de duas léguas da praia; a de Ubu, duas léguas ao norte de Benevente, insignificante e de pouco fundo; a de Meaípe duas léguas ao sul de Guarapari, mas de pouco fundo e inabrigável com vento sul; a de Una duas léguas ao norte de Guarapari e a da Ponta da Fruta quatro léguas; a da Costa meia légua ao sul do Espírito Santo; a de Piraém uma légua ao norte do Espírito Santo; a de Carapebus duas léguas; a de Jacaraípe cinco; a de Capuba seis léguas ao norte do Espírito Santo; a de Flecheiras uma légua ao norte de Nova Almeida — são todas insignificantes por cheias de baixios e pedras. Em geral, todas as enseadas acima se não podem demandar sem risco, sem prático[ 19 ] delas.
Tábua das Latitudes e Longitudes dos Lugares mais Notáveis da Costa da
Província do Espírito Santo referidas ao Meridiano da Capital do Império do Brasil
Lugares | Latitude Sul | Longitude a Leste |
Barra de Campos | 21° 35' 40" | 2° 26' 55" |
Riacho Guaxindiba | 21° 35' 00" | |
Santa Catarina das Mós | 21° 24' | |
Barra de Itabapoana | 21° 23' | |
Barra do Siri | 21° 13' | |
Barra de Itapemirim | 21° 10' 30" | 2° 31' 45" |
Ilha do Francês | 21° 07' 30" | 2° 31' 45" |
Barra de Piúma | 21° 00' 00" | |
Barra de Benevente | 20° 56" 00" | 2° 35' 25" |
Barra de Guarapari | 20° 45' | 2° 39' 25" |
Barra de Perocão | 20° 50' 00" | 2° 39' 55" |
Ponta da Fruta | 20° 28' 00" | 2° 43' 55" |
Barra do Espírito Santo | 20° 10' 00" | 2° 42' 25" |
Colégio da Cidade da Vitória | 20° 17' | 2° 42' 25" |
Ponta do Tagano | 19° 52' | 2° 44' 25" |
Barra de Almeida | 19° 49' 30" | 2° 41' 45" |
Barra de Aldeia Velha | 19° 43' | 2° 42' 05" |
Rio Doce | 19° 30' | 2° 40' 45" |
Barra Seca | 19° 09' 30" | 2° 40' 45" |
São Mateus | 18° 45' | 2° 40' 45" |
8. Ilhas
Em Itapemirim há duas ilhas fora da barra, uma denominada dos Ovos fronteira a ela, e outra denominada Escalvada ao norte dela. Três léguas ao norte do rio Itabapoana, meia légua distante da praia, há a ilha das Andorinhas, pequena, mas agricultada pelo destacamento das Barreiras, que está defronte aquartelado. Neste lugar constantemente aparecia gentio e fazia estrago nos passageiros, o que se corrigiu com este destacamento, do qual saem dois soldados armados a encontrar com quem avistam, tanto de uma parte como de outra, e o acompanham até ficar livre de perigo.
Piúma tem duas ilhas defronte da barra, e a ilha do Francês ao sul dela. Esta ilha continha um poço natural e de mui boa água, e foi mandada atulhar em 1827 pelo Comandante de Itapemirim por se terem dela servido os piratas que infestaram a costa este ano. Guarapari tem a Rasa, Escalvada, outra à terra dela de nome Raposa, e duas pedras alagadas que se descobrem com a maré ao nordeste da Escalvada denominadas Feiticeiras, por causa das quais se não pode à noite demandar este porto. Perocão, ao norte, tem três ilhas e muitas pedras descobertas. Jucu tem uma ilha a leste da barra e entre esta e a barra do Espírito Santo existem as seguintes: Tanguetá, Itatiaia, Pitauã, Jorge Fernandes e Pacotes. O Espírito Santo tem as ilhas do Boi e dos Frades e pelo rio acima se encontram várias; a dos Frades é agricultada. Nova Almeida tem quatro ilhas defronte da barra; a que está à terra se denomina Raposa e as outras mais ao mar, Três Irmãos. Todas estas ilhas são inabitadas[ 20 ] e de pouca consideração pela sua grandeza e produtos, sendo a maior parte de pedras e não produzindo mais que pequenas matas, cardos e musgos.
9. Lagos e pântanos
Sendo os lugares cultos[ 21 ] da província a costa do mar, de que talvez se não tenham apartado os moradores três léguas, e pelas margens do rio acima quando muito em alguns lugares dez léguas, só se conhecem os lagos que nestes sítios estão, e são os seguintes. Lagoa Salgada ao sul de Itabapoana, junto ao mesmo rio. Morobá, duas léguas ao norte de Itabapoana, junto ao mar. Tabua, meia légua ao norte de Morobá. Tiririca, meia légua ao norte de Tabua. Cocolocage, quarto de légua ao norte de Tiririca. Campinho, quarto de légua distante da Cocolocage ao norte. Siri, quarto de légua distante do Campinho ao norte. Lagoa d'Anta, perto de meia légua do Siri para o norte. Lagoa Funda, quarto de légua distante da antecedente da parte do norte. Piabanha, meia légua ao norte de Itapemirim. Iriri, meia légua ao norte de Piúma. Maimbá, duas léguas ao norte de Benevente. Abaí, meia légua ao norte de Maimbá. Lagoa de Meaípe, quarto de légua ao norte de Abaí. Graçaí, meia légua ao norte de Meaípe. Lagoa do Campo do Riacho, quatro léguas ao norte de Aldeia Velha, e duas distante do mar; esta se comunica com a lagoa de Aguiar, meia légua para o oeste. Juparanã, sete léguas distante do mar e uma do rio Doce da parte do norte é a mais célebre pela sua grandeza, que tem pelo menos uma légua e meia de diâmetro. Juparanã-mirim, distante desta três léguas [para o lado contrário] do mar e contígua ao rio Doce. Lagoa de Aviz, meia légua ao norte do rio Doce, e oito distante da barra. Lagoa dos Patos, na mesma margem e para o mar distante da antecedente um quarto de légua. Juparanã da Praia, contígua ao mar e duas léguas ao norte do rio Doce.
Todos estes lagos abundam de peixe e nunca secam; é bem provável que pelo interior não haja poucos, os quais inda são desconhecidos, sendo todos acima de água comum, à exceção de Juparanã, que se diz conter muito antimônio.
Não há pântanos memoráveis mais que algumas pequenas margens destas lagoas; há porém alguns lugares paludosos em terrenos tão balofos que qualquer corpo, entrando neles de súbito, quase desaparece; tais são as vertentes do rio Mariricu e rio Preto, e a margem do meio-dia[ 22 ] da lagoa Juparanã. Em geral, há imensos brejos pelas margens dos rios e lagoas e entre montes, que produzem juncos, tabuas, lírios e tiriricas, em algumas das margens, dos quais se fazem belas plantações de arroz. Nas margens do mar tais brejos estão cheios de mangues de diferentes qualidades.
Com bem pouco trabalho se podiam tornar estes terrenos excelentes para as lavouras e criação, o que se não faz ou por indolência, ou pela abundância de terras.
10. Planícies baldios e matas
Bem como as montanhas, possui também a província muitas planícies, sendo em geral as margens dos rios tão próprias para a agricultura como para a criação, mas as mais notáveis pela sua extensão são as seguintes. A Muribeca, de nove léguas de costa de mar e seis de largo mais ou menos, pertencente à fazenda do mesmo nome junto ao rio Itabapoana. Campo da vila do Espírito Santo,[ 23 ] baldio de duas léguas de extensão em comprimento e uma de largura, de que se servem os moradores vizinhos para a criação. Carapina, distrito da Cidade, tem um baldio de três léguas de extensão e uma de largura, de que se servem os moradores contíguos para criação. Desde o rio Doce até São Mateus há um baldio de vinte léguas, de imenso gado montado,[ 24 ] nenhuma parte dele é empregada em cultura nem criação; o Marquês de Baependi aqui possui uma sesmaria de três léguas que as houve por compra. O Campo do Riacho possui um baldio de duas léguas em quadra, de que se servem os índios tanto para plantações como criação.
À exceção do que está descrito, quase tudo o mais são matas virgens, e riquíssimas em madeiras de toda a qualidade e de outros mil produtos incógnitos até esta época, e só habitadas por feras e selvagens. [Como] muitos anos de esforço por hábeis naturalistas não seriam suficientes para a completa descrição dos produtos vegetais, referirei das madeiras indígenas as mais triviais, e geralmente conhecidas no país. Madeiras de construção da ribeira: sucupira, maraçanatiba, grapiapunha, jataí-peba, caubi, pequi, guaiti, sapucaia-mirim, guanandi-carvalho, sobro, peroba, amarelo, tapinhoã, canela, araribá, angelim, cerejeira, sapucaia-açu e camará. Madeiras de construção de edifícios civis: inhuíba de rego, dito[ 25 ] pimenta, dito cheirosa, dito funcho, dito canela, dito tapinhoã, cedro, guaticica, guarabu-roxo, dito mirim, imbiriba, ubatinga, caingá, bicuíba, paraju, maçaranduba, arariba, caixeta, jequitibá, ouri, taicica-roxa, ubapeba, pequiá de duas qualidades, ipê, paratudo, ingá, óleo, cubixá, aderno, faia, guaraná, pimentinha, brasil, tatagiba, vinhático, roxinho, jacarandás de diferentes qualidades, jiriquitim, louro, guarabu-açu semelhante ao sebastião-arruda, [mas que] em lugar de vermelho tem as ondas sobre-escuras.
11. Sesmarias
O governo, por carta régia de 17 de janeiro de 1814, é autorizado para conceder sesmarias[ 26 ] e, com efeito, as tem concedido [em número de] cento e setenta e quatro, sendo cada uma de meia légua quadrada[ 27 ] (excetuando algumas) das quais a maior parte não está nem cultivada, nem confirmada,[ 28 ] pertencendo todas a súditos brasileiros.
No rio Doce e margens de Juparanã estão concedidas oitenta e duas, das quais apenas são cultivadas duas, e nenhuma confirmada. Em Monsarás há duas não confirmadas. Em Aldeia Velha, compreendendo a povoação do Riacho e Nova Almeida, há uma toda cultivada de doze léguas [de comprimento] e seis de fundo pelo sertão, concedida a 6 de novembro de 1610 pelo donatário Manuel Garcia Pimentel aos índios destas aldeias, confirmada pelo alvará de 2 de janeiro de 1759; há dentro desta uma de meia légua concedida pelo governo em razão de não estar por eles cultivada, a qual inda não está nem cultivada, nem confirmada. Na freguesia da Serra há sete cultivadas, mas uma só confirmada. No termo da Cidade há quatorze cultivadas, mas só quatro confirmadas.
Na povoação de Viana, à esquerda do rio Santo Agostinho, há cinqüenta [sesmarias] de 112 braças de testada e 500 de fundo cada uma concedida pelo governo em 1812 aos colonos vindos das ilhas dos Açores por ordem da polícia de 17 de novembro daquele ano, as quais são cultivadas e confirmadas; há mais seis não confirmadas, porém cultivadas, pertencentes aos descendentes dos mesmos.
Em Guarapari há uma só cultivada, mas não confirmada. Em Benevente[ 29 ] há dez cultivadas, e destas só duas confirmadas. Em Itapemirim há seis cultivadas, e destas só três confirmadas. Na Estrada de Minas há uma só, de quarto de légua, cultivada e não confirmada.
O cumprimento exato das leis relativas a sesmarias talvez pusesse a maior parte delas em mãos de quem as trabalhasse e cultivasse.
Há na província porções de território denominados indivisos,[ 30 ] isto é, terrenos em que muitos têm posse sem saberem o quantum nem o ubi,[ 31 ] mas as porções lavradas deles lhes pertencem particularmente, e só as perdem passando 10 anos sem as cultivar. Desta sorte cada um dos possuidores procura lavrar muitas terras para lhes chamar suas, e com elas crescendo a ambição, e não podendo cultivar tantas, se tornam capoeiras; outro as roça com o mesmo intento — eis a origem das demandas em que se despedaçam, puxando cada um todas as pontas, que lhe subministra[ 32 ] a sua ambição e a chicana[ 33 ] ordinária. O meio de evitar tais pleitos era demarcar e dividir o indiviso na proporção do que cada um tem nele. Esta divisão não pode ser feita por juízes leigos, e só o poderia ser sendo geômetra, e por isso seria bom haver para este fim um juízo privativo, para que tais divisões se fizessem de modo que cada um tivesse igual parte nas vantagens, inconvenientes e desigualdade das terras, e no bem ou mal que produzem, sendo preciso que em terras variáveis e sujeitas a inundações as porções desiguais em quantidade difiram em qualidade: uma braça de terra, por exemplo, que produz 100 por 1 equivale a duas que produzam 50 por 1. Por tal juízo se devem fazer as medições, e não se confiar em simples pilotos[ 34 ] e infiéis bússolas e cordas.[ 35 ] Seria também muito bom que ninguém chamasse sua certa porção de terras sem ter a planta delas, registrada no mesmo juízo onde se notariam as vendas e compras; e da reunião destas cópias se formaria exata e insensivelmente a topografia do país. Para se fazer alguma idéia basta dizer que o indiviso que pertence a vários, fuão[ 36 ] tem 1$000 réis[ 37 ] e fuão tem 16$000 réis, e outro tem igual, maior ou menor parte, e com igual direito; ignora-se se em outras províncias do Império acontece o mesmo. Os indivisos mais notáveis são os seguintes: Campo Grande de 4 léguas quadradas com pouca diferença, Carapina e Laranjeiras 3 quadradas, Costa da Praia 2 léguas quadradas, Curipé e Mulundu duas quadradas, e quase todo o terreno da ilha da Vitória que contém ¾ de légua quadrada.
Além das terras ditas há as fazendas do Conde de Vila Nova de São José junto ao rio de Guarapari de 4 léguas de costa de mar; a Muribeca de 9 léguas de costa de mar e 8 de fundo; a fazenda dos Falcões denominada Araçatiba, de 2 léguas quadradas à margem do Jucu e a fazenda Jacaruaba de 2 e ½ léguas de comprimento e 2 de largura, que foram dos extintos jesuítas, e provavelmente concedidas pelos donatários, como sempre o fizeram, dando, aforando e vendendo como lhes convinha qualquer parte do território e marinhas.
As câmaras se arrogaram o direito de conceder foros sem princípio ou motivo, mas este procedimento foi mandado obstar pelo governo.
12. Agricultura
É a agricultura em que se emprega a mor parte dos habitantes da província, onde com preferência se cultiva a cana-de-açúcar, mandioca, algodão, milho, café, feijão e arroz; o único meio de preparar as terras para este fim é roçar, derribar, queimar, depois de secas suficientemente, e plantar.
Preferem-se as terras baixas e alagadiças para arroz, e matos virgens para mandioca, porque nestes são mais volumosas as raízes e se conservam mais tempo incorruptíveis quando a falta de tempo não lhes permite colher no próprio, além de que em matos virgens se faz até três plantações sem incômodo das formigas, que em terra velha não deixa vicejar a planta; quanto para as mais plantações todo o terreno é bom, com pouca diferença.
O valor das terras é mui variável e dependente do seu estado, da sua posição e do seu benefício, podendo-se computar em 500$000 réis uma sesmaria de meia légua quadrada. As primeiras plantações se fazem de março até abril, e as segundas de setembro até outubro, não esquecendo a lua nova que muitos querem que influa nelas. A sua colheita se faz sem a menor arte.
Os transportes se fazem em carros com bois, em cargas com animais cavalares e a maior parte se transporta em canoas símplices.[ 38 ]
Os instrumentos de que se servem para as plantações são enxadas, foices, facões e machados.
Os agrícolas pouco ou nada se empregam em plantas alimentárias; sem embargo fazem alguns mais curiosos suas plantações de abóboras, alfaces, batatas, couves, ervilhas, favas, mostardas, inhames, repolhos, pepinos, melões, melancias, ananases, mandubis,[ 39 ] gergelins, bananeiras de árvores frutíferas, laranjeiras, limeiras, limoeiros, cidreiras e figueiras, mangueiras, jaqueiras, romeiras, tamarindos, coqueiros de diferentes qualidades, sendo espontâneas as goiabeiras e cajueiros, agriões, beldroegas, bredos, serralhas e erva-moura.
Acham-se também muitas plantas medicinais como artemísia, alecrim, arruda, malvas, avenca, babosa, alfazema, mechoacão ou batata-de-purga, boas-noites, salsaparrilha, cardo-santo, cocleária, mastruço, chicória, dormideira, endro, saião, feto-macho, grama, erva-de-bicho ou cataia, erva-capitão, lírio-de-florença, quina, labaça-aguda, língua-de-vaca, orjevão, parietária, sabugueiro, salsa-da-praia, tanchagem, trevo-azedo, balsameira, almecegueira, fedegoso, pau-de-óleo, pariparoba ou capeba, poaia, joanésia, copaibeira, bicuíba, pinhão-purgante, jandiroba-oleoso, fumo-bravo ou saçoaiá ou erva-colégio, mentrasto, maririçó, cordão-de-frade, bucha-dos-paulistas; especiarias como a alfavaca, alhos, manjeronas, baunilha, salsa, cebolas, coentro, erva-doce, gengibre, hortelã, pimentas de todas as qualidades, pau-cravo, cuja casca tem o próprio aroma de cravo-da-índia.
Também se acham em algumas hortas as flores boninas, bem-me-queres, malmequeres, saudades, cravos, cravelins, cravos-de-defunto, esporas, jasmins, girassol, melindres, perpétuas, rosas cheirosas e da índia, suspiros, angélica, sensitivas, açucenas e alecrim.
Também se acham tinturarias como açafrão e casca de arariba que produzem escarlate com pedra-ume; urucum e a casca de aroeira, que produzem vermelho; tatagiba que produz amarelo; guaraúna, cujo cozimento é preto; pacoba que produz roxo; pau-brasil e casca do ingá que produzem vermelho; casca de sapucaia-mirim que faz roxo, e com lama faz preto; fruta do pau-ferro que é talvez a verdadeira noz-de-galha; o anil, que já aqui se fabricou muito e se desusou este ramo de comércio porque houve anos em que as folhas foram todas estragadas por nova espécie de insetos, que talvez agora não apareçam; um arbusto no Porto de Souza cuja maceração das folhas produz lindíssimo roxo, não se lhe sabe o nome e nem se descreve por falta de tempo, e não se achar com prontidão que se deseja.
Também se encontram plantas venenosas como o tingui, tipi, oficial-de-sala, esponja, aqui chamada coronha-triste[ 40 ] e outras muitas.
As de fiação são as seguintes: algodão, tucum, gravatá e piteira. O tempo de florescência é em setembro e da maturação, abril e maio. Viveiros de plantas unicamente se faz para café, que desta província não é o melhor, e de fumo, que também se cultiva no país, sendo tão pouco que é gênero que inda se importa. São nocivas às plantações a paca, o caititu, a cotia, os porcos-do-mato, os guaxinins, a maitaca, a nandaia, o papa-juá, que comem as espigas de milho e algodão antes de sazonado,[ 41 ] o grumará e a rola que arrancam o grão do milho e do arroz quando começa a nascer, o papa-arroz que o come desde que começa a granizar,[ 42 ] as lagartas de diferentes cores, a formiga, que é imensa, o grilo, o tortulho, que debaixo da terra se transforma em inseto e come a raiz das plantas, o gorgulho, de nome provisório, de figura de um percevejo preto que se cria no feijão e o arrasa, e finalmente a broca que fura todo o pau. Ora, estes inimigos, o sistema de queimar as terras depois de escalvadas, a nenhuma arte de adubá-las faz que seja módico o rendimento da lavoura que já seria nulo se não houvesse ainda muitas matas a derribar e queimar, isto é, para estragá-las.
Não há estabelecimento algum de agricultura e coudelaria.[ 43 ]
O milho produz 50 por um alqueire[ 44 ] e custa em termo médio 440. O arroz 100 por um alqueire que custa a 320. O feijão 40 por um alqueire que custa 1$200, e o algodão 25 por uma arroba[ 45 ] que custa 960 réis. O arroz se planta com palmo e meio de intervalo, o feijão com três palmos, o milho com cinco e o algodão com seis; donde se vê que há desvantagem em plantar algodão, mas é compensada porque quando se planta o milho ou feijão, se planta o algodão, e este fica quando algum daqueles se colhe. A braça quadrada dá nove covas de mandioca; dezesseis covas dão um alqueire. Um carro de cana caiana plantada dá vinte e cinco carros; cada carro de cana dá duas arrobas de açúcar. Um carro de milho descascado dá vinte alqueires. O feijão, arroz e milho dão de três meses; o algodão e mandioca de ano, e a cana de ano e meio.
Tal ou qual particular tem em sua casa dois ou três cortiços,[ 46 ] talvez só por ter. Pela Tabela da Exportação ao fim se vê que os gêneros produzidos excedem às necessidades do país.
13. Animais
Uma parte dos lavradores se emprega também na criação do gado de diferentes espécies, de maneira que há na província, com pouca diferença, oito mil cabeças de gado vacum, dos quais se mata semanalmente nos açougues 10. Nenhuns são empregados na lavoura, mas do gênero masculino, que serão três mil e quinhentos, se empregaram mil e quinhentos em fábricas de açúcar e algumas conduções em carros. O seu alimento ordinário é o capim, que nasce naturalmente nos baldios ou em prados artificiais, nos quais se têm sem separação alguma, nem de sexo, nem de idade. O preço médio de um boi é 14$000 réis e o seu peso oito arrobas; o preço de uma vaca é 12$000 e seu peso seis arrobas. As suas moléstias são a bicheira, procedente de qualquer arranhadura, onde as moscas depositam os seus ovos, donde saem as varejas[ 47 ] que, estimulando e correndo as carnes, chegam a aumentar a chaga, emagrecer e matar o animal — a sua cura ordinária é o mercúrio doce que as mata; a papeira, que é uma inflamação na mandíbula inferior que cresce e faz emagrecer o gado até morrer — a sua cura é queimar com ferro em brasa e curar a chaga resultante com algum dessecante, ou folha, ou casca adstringente como a de aroeira ou outra qualquer; o carbúnculo, que faz inchar o gado e morrer ficando com as unhas abertas — ignora-se remédio para este mal; a falta de pastos faz também que o gado sôfrego não escolha pasto e assim come com ele ervas venenosas que o matam. O gado cavalar em ambos os sexos monta a 1.060, sendo do gênero feminino 430, e o preço médio destes é a 20$000 réis e daqueles 32$000; as suas espécies são guinilhas,[ 48 ] mestiços e sendeiros;[ 49 ] o seu sustento é igual ao do gado vacum, nenhum é empregado em fábricas, tais e quais se empregam em cargas, e tal ou qual é ferrado e de estrebaria.
O gado muar em ambos os sexos não excede a 100, o seu preço médio 32$000 réis, metade se emprega em fábricas e metade em transportes. O gado caprino há 200 de ambas as espécies, nenhum se mata nos açougues e o seu preço é 1$280 [réis]. Gado ovelhum há dois mil, nenhum vai ao açougue e o seu preço é 1$000 réis. Porcos há 800, é raro o que vem ao açougue, seu preço 8$000 réis e a libra[ 50 ] a 60 réis.
As galinhas de ambos os sexos custam a 480 réis e há 4.000 cabeças, e poucas as chamadas da índia. Patos custam a 320 e há 1.000. Perus custam a 880 réis e há 200. Marrecos custam a 320 e há 1.000. Capões custam a 560 e há 100. Frangos custam a 120 e há 6.000. Pombos custam a 120 e há 300.
Há na província muitos animais de caça, sendo os mais triviais macacos de diferentes espécies, raposas, onças, quatis, lontras, ouriços, lebres, coelhos, veados, porcos-do-mato, tamanduás, preguiças, antas, tatus, cotias; araras, papagaios, garças, mergulhões, pombas; tartarugas, cágados, lagartos. Também há muitos [animais] de pesca como são a arraia, peixe-prego, lixa, tubarão, cação, moréia, peixe-rei, peixe-espada, pescadas, galos, gudião, sarda, cavala, carapiá, salmonete, cabrinha, cornuda, tainhas, sardinhas. Insetos: besouros de diferentes qualidades, carochas, baratas, gafanhotos, grilos, louva-a-deus, percevejos, borboletas de todas as qualidades, traças, vespas de diferentes qualidades, abelhas, formigas, moscas, mosquitos, piolhos, pulgas, escorpião, lagostas, camarões. Vermes: minhocas, sanguessugas, lesmas, polvos, estrelas-do-mar e ouriço-do-mar, berbigão, mexilhão, búzios, caracóis, conchas, esponjas. Répteis: sapos, rãs, cobras de diferentes qualidades. Além dos acima mencionados existem muitos cuja zoologia ocuparia muitos anos e, talvez, muitos volumes.
14. Minas e pedreiras
Ao ex-capitão-mor desta província João de Velásquez Molina em 1693 foi anunciada a existência de ouro nas margens do rio Doce, junto ao córrego do Ouro Preto, e lhe foram apresentadas três oitavas dele que, recebendo a câmara, mandou fazer duas memórias:[ 51 ] uma para o capitão-mor e outra para o anunciante Antônio Dias Arzão, natural de Taubaté, homem empreendedor, que se recolhia[ 52 ] desse sítio com cinqüenta homens de sua comitiva; nesta ocasião se lhes prestaram o que lhes era necessário para nova entrada dos sertões. Esta foi a primeira descoberta de ouro nesta província.
Pedro Bueno Cacunda descobriu as Minas do Castelo em 1732 às margens do rio Itapemirim, doze léguas da barra, e participando ao capitão-mor desta vila, este lhe mandou ali estabelecer um arraial, nomeando provedor, tesoureiro e escrivão para melhor arrecadação dos direitos, e como trabalhavam sem arte alguma, dificultando-se a extração deste metal, e sendo incomodados do gentio, se foram retirando, de sorte que atualmente nenhum morador tem. É de fato ter recebido a extinta Provedoria em 1738 cento e vinte e uma oitavas. Consta que chegaram a ter cinco povoações, cuja maior parte formaram a vila de Itapemirim.
Em 1614 Marcos de Azeredo Coutinho foi encarregado por Sua Majestade (que então governava Portugal) com promessas de mercês de descobrir as Minas das Esmeraldas de que lhe tinha pessoalmente mostrado as amostras; e em 1644 ordenou Sua Majestade Fidelíssima a Francisco do Souto Maior auxiliasse o descobrimento e entabulamento[ 53 ] das ditas minas, de cuja existência estava informado, podendo levar os dois filhos de Marcos de Azeredo, os padres Inácio de Siqueira e Francisco de Moraes, e os índios que precisassem com licença dos padres; ignora-se porém o resultado de tais comissões, e só se sabe que o dito Marcos faleceu em 1618. São estas as únicas notícias que há de minas na província, sendo certo haver muitos e muitos lugares mais ou menos ricos de ouro, especialmente nas vertentes dos rios que deságuam no Jucu, no Juparanã, nas cabeceiras de Itapemirim, nas vertentes de Santa Maria, rio Castelo, etc. e ouro muito, e muito puro.
Não consta de minas de ferro, pois alguma pedra que contém algum óxido é em tão pequena quantidade, que não faz supor existência deste metal; nem tão pouco consta de outro algum mineral. É muito provável haverem muitos produtos, e talvez abundantes, o que se não tem explorado, sendo muito triviais cristais de rocha, com algumas variedades como ametistas.
15. Curiosidades naturais
No rio Doce foi achada uma figura petrificada de homem com mãos na cintura por João Felipe de Almeida Calmon, ignora-se a sua perfeição, e o gênero de pedra, e se existe.
Em 1815 foi achado um hipopótamo da grandeza de um cavalo, e com cauda de sete varas no rio da vila nova de Almeida, encalhado com a vazante.
Em muitos lugares da província há grutas, que não têm aqui lugar por nada conterem de notável nem pela sua regularidade e forma, nem pela matéria de que são formadas, servindo até aqui de asilo de alguns escravos fugidos, bem como a conhecida no morro da Lapa denominada de Pai Inácio. Quantos destes objetos terão sido desprezados pela ignorância!
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NOTAS
[ 1 ] Antiga unidade brasileira de medida itinerária, equivalente a 3.000 braças, ou seja, 6.600m.
[ 2 ] Antiga denominação comum aos tribunais de justiça de segunda instância.
[ 3 ] Qualidades.
[ 4 ] Vento que sopra em direção normal à costa, ou em direção normal ao rumo seguido pela embarcação.
[ 5 ] Faltos de vegetação; áridos, estéreis, calvos, descalvados.
[ 6 ] Relativa ao quartzo, ou que tem a natureza dele.
[ 7 ] Que contém mica ou é da natureza dela.
[ 8 ] Antiga unidade de medida de comprimento, equivalente a cinco palmos, ou seja, 1,10m.
[ 9 ] Região, terra, território.
[ 10 ] Quando o autor escreve a palavra Cidade com inicial maiúscula refere-se a Vitória, única localidade espírito-santense possuidora deste atributo na época em que o texto foi produzido, o que recomenda manter esta grafia.
[ 11 ] Que contém alúmen.
[ 12 ] Antiga unidade de medida de comprimento, equivalente a oito polegadas , ou seja, 22cm.
[ 13 ] Antiga unidade de medida de comprimento equivalente a dez palmos, ou seja, 2,2m.
[ 14 ] Grandes pilares de alvenaria.
[ 15 ] Atual baía de Vitória.
[ 16 ] Estreito.
[ 17 ] Que não oferece abrigo para embarcações.
[ 18 ] Fase da maré entre a baixa-mar e a preamar seguinte.
[ 19 ] Homem que conhece minuciosamente os acidentes hidrográficos de áreas restritas, e que com esses conhecimentos conduz embarcação através dessas áreas.
[ 20 ] Desabitadas.
[ 21 ] Cultivados, habitados.
[ 22 ] O ponto cardeal Sul.
[ 23 ] Atual município de Vila Velha.
[ 24 ] Com muitos animais a esmo?
[ 25 ] Mencionado, referido.
[ 26 ] Lote de terra inculto ou abandonado, que os reis de Portugal cediam a sesmeiros que se dispusessem a cultivá-lo.
[ 27 ] Légua de sesmaria – antiga unidade de medida de superfície agrária, equivalente a um quadrado de 3.000 braças de lado, ou seja, 4.356ha.
[ 28 ] Os sesmeiros só recebiam do governo a confirmação de suas terras após ocupá-las e cultivá-las.
[ 29 ] Atual município de Anchieta.
[ 30 ] Não dividido; que pertence cumulativamente a vários indivíduos.
[ 31 ] Sem saberem o tamanho e a localização exata.
[ 32 ] Fornece, ministra.
[ 33 ] Sutileza capciosa, em questões judiciais.
[ 34 ] Agrimensores, medidores de terras.
[ 35 ] Antiga unidade de medida de comprimento equivalente a 15 palmos, ou seja, 3,3m. Por extensão, instrumento de medição que tinha esta medida ou múltiplos dela.
[ 36 ] Forma sincopada de fulano.
[ 37 ] O sistema monetário da época pode ser assim exemplificado: 1 real, 10 réis, 100 réis (ou um tostão), 1$000 (mil-réis), 100$000 (cem mil réis), 1:000$000 (um conto de réis).
[ 38 ] Simples.
[ 39 ] Amendoins.
[ 40 ] Existe dicionarizada a palavra coroa-crísti.
[ 41 ] Pronto para se colher (fruto); maduro, amadurecido.
[ 42 ] Dar forma de grãos a.
[ 43 ] Haras – campo ou fazenda de criação de cavalos de corrida; caudelaria.
[ 44 ] Antiga unidade de medida de capacidade para secos, equivalente a quatro quartas, ou seja, 36,27 litros.
[ 45 ] Antiga unidade de medida de peso, equivalente a 32 arráteis, ou seja, 14,7kg, aproximadamente.
[ 46 ] Caixas cilíndricas, de cortiça, nas quais as abelhas se criam e fabricam o mel e a cera; colméias.
[ 47 ] Designação vulgar dos ovos da mosca-varejeira, antes de atingirem a fase de larva.
[ 48 ] Cavalos de andadura pesada, ou que andam pouco.
[ 49 ] Diz-se de, ou os cavalos de carga, robustos, mas de corpulência escassa.
[ 50 ] Unidade de medida de massa, igual a 0,45359237kg, utilizada no sistema inglês de pesos e medidas.
[ 51 ] Anéis comemorativos.
[ 52 ] Que voltava para casa.
[ 53 ] Início de exploração.
[Reprodução autorizada por Fernando Achiamé.]
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© 1978 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Inácio Acióli de Vasconcelos foi o primeiro presidente da província do Espírito Santo e governou de 1824 a 1829, período em que a província atravessava grande dificuldade econômica e decadência geral das instituições. A partir de 1858, como primeiro tenente, foi comandante do navio de guerra Ibicuí, da Marinha do Brasil.
Fernando Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
10/12/2016
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© 1999 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Fernando Achiamé
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Autor: Padre Francisco Antunes de Siqueira Edição de texto, estudo e notas: Fernando Achiamé Introdução O culpado pela...
Memórias do passado: A Vitória através de meio século
Autor: Padre Francisco Antunes de Siqueira
Edição de texto, estudo e notas: Fernando Achiamé
Introdução
O culpado pela elaboração deste trabalho é Reinaldo Santos Neves. Há mais de dez anos me entregou uma transcrição de artigos publicados de forma anônima no jornal A Província do Espírito Santo em 1885. Pediu que fizesse um breve estudo sobre eles, adiantando que faltavam algumas partes que não pudera obter. O estudo e a transcrição seriam publicados pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida, em cuja editora Reinaldo trabalhava na época. Fui logo lendo a transcrição. Achei a obra muito interessante e interessado fiquei em localizar as partes faltantes (cinco artigos ao todo) e preencher as poucas lacunas da transcrição. E, é claro, descobrir o autor do escrito.
Os artigos que faltavam (de números 14, 15, 16, 24 e 26) foram facilmente obtidos, bem como preencheram-se as lacunas da transcrição, no acervo de microfilmes do Arquivo Público Estadual que por essa época já tinha microfilmado (em conjunto com a Biblioteca Nacional) os jornais mais antigos da nossa terra. Aproveitei para corrigir alguns trechos incorretos da transcrição. Já estava completamente tomado pela obra e comecei a conversar com ela procurando resposta para minha pergunta fundamental: “Quem te escreveu?” Não demorei muito a descobrir o autor da façanha entre os escritores capixabas do século passado. Acredito mesmo que o padre Francisco Antunes de Siqueira (filho) queria encobrir-se, ma non troppo. Levantei passagens significativas da vida do ilustre capixaba em jornais da época e em livros de história espírito-santense. Cotejei a obra em causa com outra do mesmo autor para comprovar a atribuição, esbocei as partes da presente crítica e… larguei o trabalho de lado, embora pensando nele de vez em quando.
Tencionava pesquisar no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro os processos de habilitação de genere e vita et moribus, já que a figura em causa era padre secular. Aliás cheguei a ter em mãos os referidos processos em 1995 em rápida estada naquela cidade, fiquei de voltar no dia seguinte para fazer uma transcrição das suas peças principais, mas encontrei o arquivo fechado, helas. Este negócio de a gente querer sempre fazer um trabalho muito perfeito e completo resulta em que não se faz trabalho algum. Usava a consulta aos citados documentos como uma desculpa para ir adiando a elaboração desta crítica de atribuição.
Ano passado tive oportunidade de consultar os referidos processos e perante mim mesmo a desculpa não mais existia. Também ano passado, num lançamento literário, o Reinaldo, após mais de dez anos de cobrança (com a média de duas tentativas anuais para me arrancar o trabalho), lança o repto: “Termine o estudo sobre o texto do padre. Você é um homem ou um pé de alface?” E isto na presença de outras pessoas. Uma conhecida até brincou: “Mais de dez anos? Reinaldo, você é muito paciente!” Gosto de alface, mas não a ponto de querer ser um pé de.
Assim, aqui vai o que foi possível fazer. Pela demora e pelos eventuais erros o culpado sou eu, exclusivamente.
Fernando Achiamé.
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Sumário
Artigos
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Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Fernando (Antônio de Moraes) Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
1/01/2016
Com base no processo de habilitação de vita et moribus pude confirmar que o padre Francisco Antunes de Sequeira (essa era a grafia original do seu sobrenome, atualizada para Siqueira por reformas ortográficas mais recentes) nasceu em Vitória a 3 de fevereiro de 1832. No requerimento em que solicita sua habilitação de vita et moribus aparece ele como filho natural de Maria Luíza do Rosário e mais adiante comprova-se seu batismo em 10 de março de 1832 na matriz de Nossa Senhora da Vitória celebrado pelo vigário Manoel Alves de Souza (por sinal o documento é transcrito por seu pai, que se assina como “o coadjutor padre Francisco Antunes de Siqueira”), constando como padrinhos o vigário Domingos Leal e D. Ana Maria da Penha de Jesus. Em documentos desse processo constata-se também que sua mãe “vive de costurar” e que seus avós maternos, Francisco Gomes Rodrigues e Vitória Maria da Conceição, eram oriundos de Cabo Frio, onde ele “vivia da pescaria do alto mar”.[ 14 ]
Em artigo (de uma série publicada com o título de “Padre Antunes de Siqueira”) Antônio Tinoco informa ter lido as dedicatórias impressas na obra A Província do Espírito Santo (Poemeto) do padre Antunes localizada na Biblioteca Nacional nos seguintes termos: “À memória de meu pai, Cônego Arcipreste Francisco A. de Siqueira, — Uma lágrima da mais pungente saudade. A minha prezada mãe D. Maria Luíza do Rosário, — Tributo de veneração e respeito[ 15 ]
Primeiros estudos
A infância e adolescência do padre Antunes estão relativamente bem descritas no decorrer da obra ora estudada, e é interessante o depoimento do padre sobre as brincadeiras e costumes da época de sua infância, um testemunho vivo e de primeira mão. Através destes escritos sabemos que ele tinha duas irmãs, conforme nos diz na seguinte passagem no final do artigo número 25:
O jornal O Estado do Espírito Santo de 3 e 4 de dezembro de 1897, impresso em Vitória, estampa convite para a missa de sétimo dia por alma do padre Antunes de Siqueira assinado por Antônio da Silva Pádua e Adelaide Antunes de Siqueira Pádua, sendo moradores em Viana e que se identificam como cunhado e irmã do falecido.
Podemos avaliar até em que local de Vitória Antunes de Siqueira habitava na juventude, “ali junto da ponte do Reguinho, que dá passagem para a rua da Várzea” (nas imediações das atuais ruas Graciano Neves e Sete de Setembro) pela descrição que no artigo 3 o autor das Memórias do passado faz de uns vizinhos seus que de noite, comendo caranguejos e falando alto, não o deixavam dormir.
Sobre os primeiros estudos do jovem Francisco Antunes de Siqueira nos dá notícia Amâncio Pereira em seu artigo acima referido:
O autor das Memórias do passado nos artigos 16 e 17 descreve o mestre major Inácio dos Santos Pinto, o seu método de ensino, como participava das aulas e o que nelas aprendeu.
Vida no seminário
O ano de 1849 marca a ida do estudante Antunes, já então com dezessete anos, para o Rio de Janeiro a fim de ingressar no Seminário de São José. Recebe a primeira tonsura e os quatro graus de ordens menores no dia 12 de setembro de 1849. Seu pai não só lhe deu o mesmo nome como lhe destinou a mesma carreira eclesiástica, meio seguro de ascensão social, na época. Neste sentido são significativas as seguintes palavras de Maria Stella de Novaes referindo-se a outro padre mas que, em linhas gerais, se podem aplicar à vida do padre Antunes:
Para complementar o panorama sobre as questões envolvendo as atividades de trabalho e de estudo e a situação social dos padres espírito-santenses do século XIX, convém citar estas palavras de Oscar Gama Filho:
No seminário o jovem Antunes se distingue nas diversas disciplinas e, nos processos de habilitação antes referidos, podem ser conferidas suas notas e os atestados que os professores deram como requisito para sua formação sacerdotal, como este: “Entrou para o Seminário de São José em março de 1849 e nele concluiu os estudos preparatórios em que já vinha adiantado, começou os teológicos que também concluiu no fim deste ano letivo, tendo sempre merecido aprovações honrosas. E pelo que pertence aos seus costumes deu sempre provas de boa morigeração”.[ 19 ]
Recusa em 1851 um convite para secretário interino do bispado do Maranhão “à instância de sua veneranda mãe”,[ 20 ] que já tinha perdido o seu “companheiro”, por sinal.
Antunes de Siqueira entra para a irmandade de São Pedro em 22 de junho de 1853 (neste ano é morador do Colégio de São Pedro de Alcântara), recebe a ordem de subdiácono em 10 de julho de 1853, e a 24 do mesmo mês é ordenado diácono.
Como seminarista “pregou pela primeira vez na capelinha de Nossa Senhora da Conceição em Niterói, com aplauso do grande orador cônego Barbosa França, pelo que s. ex. rvdm. lhe concedeu provisão, sem tempo, para pregar em toda a diocese"[ 21 ] e ainda como seminarista pronunciou brilhantes sermões em diversas igrejas do Rio de Janeiro e na capela imperial.
Em setembro de 1854, é dada uma apólice da dívida pública de juro anual de 5% no valor de seiscentos mil réis para estabelecer o patrimônio do futuro sacerdote, ordenado em 5 de novembro de 1854.[ 22 ] Amâncio Pereira registra que o padre Antunes cantou sua “primeira missa a 21 deste mesmo mês e ano na capela de Santa Efigênia situada à rua da Alfândega no Rio de Janeiro”.[ 23 ]
Padre secular
Principia sua carreira de padre secular como pároco da freguesia de Carapina em 20 de janeiro de 1855, onde também foi professor efetivo, deixando a mesma freguesia em 8 de novembro de 1856. Em Carapina houve um incidente com o padre, relatado de forma enviesada nos processos existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro e referido pelo próprio padre em seu Poemeto, conforme citação de Afonso Cláudio.[ 24 ]
A presença do padre Antunes no Espírito Santo em 1855 coincide com sua participação na festa da Penha, relato constante no artigo 22 das Memórias do passado, onde o autor faz um auto-elogio.
Tomou posse em 16 de fevereiro de 1857 como pároco de Santa Cruz, então sede de município espírito-santense. Logo principia a cobrar do governo provincial verbas para construção de nova matriz e para aquisição de objetos imprescindíveis ao culto religioso. Em ofício de 14 de abril de 1857 ao vice- presidente da província, Antunes de Siqueira afirma:
Por meio de outro ofício enviado de Santa Cruz ao Dr. Carlos de Cerqueira Pinto, vice-presidente da província, o padre Antunes presta os seguintes esclarecimentos:
Levy Rocha assinala em Viajantes Estrangeiros no Espírito Santo as seguintes observações, referindo-se à igreja da vila de Santa Cruz: “Aquele templo vinha sendo construído pelo vigário Francisco Antunes de Siqueira, filho do lugar [sic], que morava no alto dum monte, à esquerda da estrada. As obras foram começadas a 9 de maio de 1857 e, decorridos cinco meses, já se achava pronto o frontispício, no estilo gótico-romano."[ 27 ]
No final de 1858 padre Antunes conhece na localidade em que é vigário o pintor e viajante francês Auguste-François Biard, que dele registra as seguintes impressões:
Em 12 de agosto de 1859 uma carta imperial o declara vigário colado (isto é, estável) em Santa Cruz, tendo tomado posse no cargo a 23 de outubro do mesmo ano..[ 29 ]
Sobre a visita de D. Pedro II e comitiva a Vitória, José Teixeira de Oliveira reproduz reportagem publicada no jornal Correio da Vitória de sábado, 28 de janeiro de 1860. Da referida reportagem transcrevo este trecho:
Acerca desse episódio Amâncio Pereira informa: “Pregou com aplausos diante do Imperador e numeroso auditório quando ele viera em visita à então província em 1860, pelo que mereceu ser agraciado com o hábito de Cristo.[ 31 ] Será? Outros autores consignam que a condecoração foi concedida ao biografado por serviços prestados ao país. Se bem que, na época, pregar perante o imperador poderia ser considerado um serviço prestado ao país. O certo é que D. Pedro registra em seu diário de bolso, conforme nos dá notícia Levy Rocha: “Te Deum na Igreja do Colégio dos Jesuítas; hoje Palácio – lápide da sepultura de Anchieta na Capela-mor perto dos degraus do altar-mor. Sermão sofrível do Vigário de Santa Cruz (Aldeia Velha)."[ 32 ]
Em Santa Cruz o padre Antunes conheceu Pedro Tabachi, maçom da Loja União e Progresso em Vitória e pioneiro da imigração italiana em nossa terra. Por sinal está relatado no artigo 30 das Memórias do Passado um episódio vivido por ambos. O padre Antunes deixou o vicariato de Santa Cruz em princípios de 1869.[ 33 ]
Serve depois como pároco em Conceição da Barra. A sua presença nessa última localidade pode ser confirmada por meio da correspondência que manteve com o presidente da província. Dessa correspondência devem ser destacados o ofício de 9 de janeiro de 1872 (o primeiro no códice com a assinatura do padre Antunes) remetendo “o mapa dos batizados, casamentos e óbitos havidos durante o ano p. passado nesta paróquia”, (sendo que o mapa anexo está assinado pelo padre como pro-pároco) e o ofício de 29 de fevereiro do mesmo ano comunicando que naquela data “tomou posse e entrou no exercício de vigário encomendado [isto é, suscetível de remoção] da Vila da Barra de São Mateus por provisão da Vigararia-geral do bispado.” Outros ofícios firmados pelo mesmo vigário existem no códice até abril de 1872, somente.[ 34 ] Esta passagem do padre Antunes por Conceição da Barra, apesar de curta, é muito significativa para o presente estudo, de vez que comprova a afirmação do autor das Memórias do passado, antes ressaltada, sobre sua presença em janeiro daquele ano na referida localidade assistindo ao alardo.
Por meio de um recurso interposto ao imperador, datado de 14 de novembro de 1876, o padre Antunes nos cientifica que “requereu e foi nomeado em 9 de setembro de 1872 capelão extranumerário da Armada com exercício de professor” na Companhia de Aprendizes Marinheiros em Vila Velha, sendo elogiado pelos superiores. O interessado no recurso também informa que “em novembro de 1873 na efervescência da questão religiosa foi suspenso das ordens e em consequência dessa censura foi dispensado do ofício de capelão”. Declara que foi ao Rio se defender e obteve novamente o exercício das ordens e a restituição do ofício na Companhia por provisão que tinha validade anual e que foi renovada até 1875. No citado recurso o padre Antunes se julga suspenso de ordens sem sentença jurídica e pede que novamente seja provido como capelão por estar atacado de “elefantíase dos árabes” (motivo que o fez deixar o exercício de pároco em pequenas localidades, ficando sem a correspondente remuneração) e por estar privado dos escassos recursos com que se alimenta e à mãe sexagenária, a quem serve de arrimo.[ 35 ]
Após muitos anos como educador em Vitória, é pároco na matriz do Rosário da Prainha em Vila Velha, onde termina seus dias.
Maçonaria e amizades
Afonso Cláudio[ 36 ] refere-se de passagem a desavenças do padre Antunes com o bispo D. Pedro Maria de Lacerda, “que o suspendeu por diversas vezes do exercício das ordens sacras”. Mesmo sem aprofundar muito a pesquisa sabe-se hoje que essas discórdias estão relacionadas, entre outros aspectos, com o fato de o padre capixaba ter ligações com a maçonaria, instituição que estava sendo combatida por aquele bispo. A Questão Religiosa, apesar de mais exacerbada no Rio de Janeiro, em Recife e Belém com prisão de bispos e outros incidentes, também teve sua presença, em ponto menor, na província do Espírito Santo.
A fundação da Loja Maçônica União e Progresso em Vitória se dá no mesmo ano de 1872 em que a referida questão está no auge. Compulsando o livro Maçonaria no Espírito Santo de Christiano Woelffel Fraga localiza-se a transcrição de documentos da época e relatos de fatos desagradáveis ocorridos entre seguidores das duas instituições, a Igreja e a Maçonaria. Por exemplo, a proibição dos maçons de servirem como padrinhos de crisma, e a sua represália em não mais ajudarem no custeio dos cultos católicos, destinando as ofertas a obras de caridade.
Mas, para o que interessa na biografia do padre Antunes, existe uma referência na obra acima citada de que na sessão de 24 de setembro de 1876 foi aprovada sua admissão na Loja União e Progresso, a mais antiga até hoje em funcionamento em nosso Estado. Na ocasião o venerável Tito da Silva Machado recomenda completo sigilo a respeito, “visto como sofrendo a nossa instituição encarniçada guerra do jesuitismo, necessariamente este profano proposto, quando iniciado, sofrerá grande perseguição, por ser Padre”. O professor Christiano Woelffel Fraga acrescenta que nos arquivos maçônicos “não consta sua iniciação”.[ 37 ] Muitos amigos do padre e de seu pai pertenciam ao quadro da Loja União e Progresso. Dois maçons nela muito atuantes, Cleto Nunes Pereira e José de Melo Carvalho Muniz Freire, são os redatores do jornal A Província do Espírito Santo no qual estão estampados os artigos que compõem as Memórias do passado. Inclusive no início do artigo 24 o autor afirma que “A influência afável, ao estímulo poderoso de um espírito cultivado devo o fazer este quadro mais completo. Tinha-o reduzido muito, desconfiado da sorte que aguarda minhas pobres composições; como porém animam-me o afago e a benevolência do endossante desta letra, penhor de amizade, lá vai mais alguma curiosidade que me sugere a memória.”
Note-se que no final da obra Esboço histórico o padre Francisco Antunes de Siqueira faz rasgados elogios a Muniz Freire. Afonso Cláudio[ 38 ] refere-se ao Poemeto do padre Antunes como impresso nas oficinas de A Província do Espírito Santo em 1884. Aliás, no canto inferior direito da primeira página na edição do dia 22 de março de 1885 (que iniciou a publicação do folhetim Memórias do passado) lê-se no anúncio de obras literárias: “A Província do Espírito Santo – poema do padre Antunes de Sequeira – 1 vol. – 2$000”.
A família do padre
Sobre a família do padre Antunes de Siqueira algumas luzes são lançadas a partir de referências provenientes de fontes diversas.
No artigo do jornalista Antônio Tinoco antes referido[ 39 ] está registrado também o final da dedicatória impressa do padre Antunes no seu Poemeto: “[…] Às minhas queridas filhas – D. Dalmácia Antunes de Siqueira e D. Petronilha Antunes de Siqueira – Momentos de recreação e da mais viva lembrança.”
Elmo Elton nos oferece uma visão da vida do padre Antunes:
Afonso Cláudio refere-se a uma filha do padre como sendo casada com o poeta Virgílio Vidigal, dando para este poeta os anos de 1866 e 1907 como extremos de sua vida e nos oferece visão diferente daquela acima apresentada sobre a vida e obra do padre Antunes.[ 41 ]
O padre Antunes confessa publicamente o seu estado de “pecador” em carta estampada, junto com outros documentos, no jornal A Província do Espírito Santo de 30 de março de 1885, poucos dias depois do início da publicação das Memórias do Passado. A boataria é inusitada (sobre o rapto de uma donzela por sacerdote de Vitória) e pode ter sido lançada por inimigos do padre Antunes, (cf. Anexo 1).
O abolicionista
Maria Stella de Novaes registra a presença em julho de 1884 das “senhoras Dalmácia e Petronilha Antunes de Siqueira” numa quermesse em benefício da Libertadora Domingos Martins, ocasião em que elas ofereceram um adorno de mesa em forma de serpente para ser vendido e o dinheiro apurado a favor da libertação de escravos. O presente vinha acompanhado de uma poesia (lavra do pai?):
O. D. C.
De nossas livres florestas
Volve também a serpente,
Para assistir nossas festas,
De um povo independente.
Ao altar da Pátria amada,
Ela vem se devotar,
Querendo com o seu produto
Os escravos libertar.[ 42 ]
Na Sociedade Abolicionista Domingos Martins o padre Antunes proferiu palestras contra a escravidão. Sobre este assunto Amâncio Pereira informa que “o Dr. Afonso Cláudio ocupou também o cargo de orador da sociedade [Libertadora Domingos Martins] enquanto ela existiu; e, com o Dr. Antônio Ataíde, padre Antunes de Siqueira e outros, no paço da Câmara Municipal da Capital, fez diversas conferências em noites de dias santificados, concorrendo a elas escravos e o que a sociedade tinha de escolhido em artes, ciências e filantropia”.[ 43 ]
Também são coerentes na vida do padre Antunes suas ideias liberais com sua pregação contra a escravatura, posição enunciada de forma veemente no último artigo das Memórias do Passado. Na sua biografia é famoso e muito referido por historiadores o discurso que proferiu por ocasião do término da escravidão em nosso país.
O educador
O padre Antunes teve atuação destacada como educador desde os tempos de seminário e em diversas localidades do Espírito Santo, como ressaltam muitos biógrafos e comentaristas de sua obra. Nos apêndices números dois e três do Esboço Histórico ele inclui seu próprio nome como pertencendo aos seguintes estabelecimentos de ensino como professor:
a) de retórica e, depois da reforma, de latim e geografia no Colégio Espírito Santo;
b) de latim e filosofia no Ateneu Provincial (regulamento de 1862);
c) de português nas Escolas Normais Masculina e Feminina;
d) professor público primário em Vitória.[ 44 ]
Estes registros são complementados e enriquecidos com as informações sobre o mesmo assunto prestadas por Amâncio Pereira[ 45 ] no artigo de jornal antes referido:
Terezinha Tristão Bichara[ 46 ] refere-se ao padre Antunes de Siqueira como vigário de Santa Cruz em 1867 e diretor naquela vila da “única escola particular [com 18 alunos] que conseguiu permanecer em funcionamento na Província”. Também registra que “em 1886, o Chefe da Administração Provincial, nomeou uma comissão, formada pelos educadores […] e padre Antunes de Sequeira para criar um novo regulamento de ensino com a pretensão de introduzir no sistema educacional um novo método — o experimental — considerado o mais eficiente por provocar a curiosidade da criança, educar a memória, prender a atenção e exercitar a inteligência."[ 47 ]
A erudição demonstrada pelo padre Antunes era um costume da época, e não devemos julgá-la com as lentes de hoje, sem dar os devidos descontos. Em sendo professor de filosofia, de retórica, de história, de português, tinha que assegurar, reiterar e eventualmente exibir aos conterrâneos e contemporâneos seu cabedal de conhecimentos, citando Horácios e Virgílios. Nesse sentido, o primeiro artigo das Memórias do passado lista temas, depois desenvolvidos no Esboço histórico, como a história dos gregos, romanos, judeus, a história sacra, e outros.
As ideias e práticas do padre
O padre Antunes foi eleito deputado à Assembleia Legislativa Provincial para o biênio de 1862-63, tendo ocupado o cargo de segundo secretário da mesa daquela Casa de Leis. O seu partido devia ser o conservador (apesar de muitos de seus amigos serem simpatizantes do partido liberal — inclusive os redatores de A Província do Espírito Santo), mas não logramos documentar essa opção partidária. Devia pertencer ao partido conservador porque o padre Antunes, no artigo 13 das Memórias do passado, demonstra de forma apaixonada ser um caramuru, partidário da cor verde, ligado ao convento de São Francisco. Chega a descrever no artigo 12 de forma desfavorável e até sarcástica a festa dos peroás do Rosário. E segundo Adelpho Poli Monjardim “[…] o povo dividiu-se e do campo religioso passou ao político, como não poderia deixar de acontecer […] Em Vitória não houve neutros. Os conservadores apoiaram os Caramurus e os liberais se filiaram aos Peroás, da igreja do Rosário”.[ 48 ] Liberal ou conservador, o padre Antunes (que pode ter variado de agremiação política ou se constituído numa exceção no panorama das facções locais) viveu numa época em que os partidos possuíam pouca consistência ideológica e os políticos não cultivavam a coerência partidária.
Alguns historiadores referem-se ao mesmo padre Antunes como deputado também no período de 1849-50, evidentemente confundindo-o com seu pai (que realmente foi deputado em tal legislatura), pois naqueles anos, além de estudar no Rio de Janeiro, o jovem Antunes só contava com 17 para 18 anos de idade.
No texto das Memórias do passado, o autor faz referência ao seu pioneirismo em propugnar pela educação feminina quando no artigo de número 17 diz: “Não condeno a instrução da mulher, tanto que fui eu o primeiro a levantar minha humilde voz em 1863 para que se criassem cadeiras em todas as vilas da província.” No mesmo ano foi aprovado pela Assembleia Legislativa Provincial do Espírito Santo um projeto instituindo aulas femininas em Santa Cruz, onde o padre e deputado era pároco.
A Lei n.° 3 de 26 de novembro de 1863,[ 49 ] projeto do deputado Francisco Antunes de Siqueira, determina que a inspeção escolar passe a ser executada pelas câmaras municipais.
Segundo informações registradas pela historiadora Terezinha Tristão Bichara, o padre Antunes propôs um projeto à Assembleia Legislativa Provincial autorizando a venda em hasta pública da casa que, em Cariacica, servia de residência ao vigário, empregando o produto da venda no reparo do relógio público de Vitória; “apesar de aprovada, a lei não foi sancionada, mas a 15 de dezembro de 1863 voltou ao Executivo pois, por unanimidade de votos, não foram aceitas as razões da recusa presidencial”.[ 50 ]
O já muito citado Amâncio Pereira registra que o padre Antunes “exerceu também a advocacia, sendo patrono de alguns clientes perante o tribunal do júri desta comarca”.[ 51 ]
As ideias expostas nos escritos do professor de filosofia e padre Antunes indicam que era partidário de correntes filosóficas anteriores ao positivismo, sendo dele simpatizante, provavelmente.
De qualquer sorte, o jornal em que publica seus artigos era francamente positivista. Ivan Lins em sua História do Positivismo no Brasil refere-se a Muniz Freire como “a figura mais eminente do Positivismo capixaba”.[ 52 ] Antes afirmou ser “tal o entusiasmo despertado pela atuação de Silva Jardim que ‘A Província do Espírito Santo’, fundado em 1882, e de que eram redatores Muni/. Freire e Cleto Nunes, passou a adotar o calendário positivista, acerca do qual deu uma notícia em seu número de 9 de agosto de 1882."[ 53 ] De fato, as edições consultadas do referido periódico trazem as datas de acordo com os calendários gregoriano e positivista. Por exemplo, o dia 22 de março de 1885, quando começa a publicação das Memórias do passado, também está registrado como 96 (anos contados a partir da grande crise ou Revolução Francesa), mês de Aristóteles (A filosofia antiga).
O certo é que o padre Antunes tinha livre acesso ao periódico aqui tratado. Para exemplificar mencione-se a série de artigos do padre, agora publicados com o nome do seu autor, que começa a ser estampada no periódico sob o título de A educação do povo dois dias depois (9 de maio de 1885) de se encerrar a publicação das Memórias do Passado. Afonso Cláudio julgou identificar as ideias do autor com base no canto IV do Poemeto: “[…] o padre cantor diz a direção filosófica a que obedece o seu espirito. […] A sua filosofia à Cousin, sente-se bem glosando os motes da imortalidade e da separação da alma do respectivo invólucro."[ 54 ]
Victor Cousin (1792-1867) era um filósofo francês “chefe da escola eclética”. Registre-se que um exemplar de livro dele (o tomo IV das Oeuvres de Victor Cousin, impresso em Bruxelas em 1845 e com o carimbo da Biblioteca Pública Provincial) ainda existe no acervo da Biblioteca Pública Estadual. Cousin “esforçou-se por combinar as ideias de Descartes, da escola escocesa, de Kant, num espiritualismo pouco coerente mas brilhantemente expresso."[ 55 ]
O padre Antunes cita por duas vezes, às paginas 26 e 57 da 2a edição do Esboço histórico, as ideias de Emílio Castelar (1832-1899), escritor e político espanhol, republicano e o maior orador parlamentar da Espanha na segunda metade do século XIX.[ 56 ] Vemo-lo citando também Eugène Sue (1808-1857), romancista francês que fez enorme sucesso com romances em folhetim descrevendo o submundo parisiense[ 57 ] e Cesare Cantu (1804-1895), escritor e historiador italiano, que escreveu de 1838 a 1846 a História Universal em 35 volumes inspirada pelos ideais de um catolicismo liberal e obra muito lida, inclusive no Brasil.[ 58 ]
Um perfil do padre Antunes de Siqueira pode ser elaborado a partir de palavras registradas por diversas pessoas.
Amâncio Pereira[ 59 ] fala com o coração da amizade: “Espírito esclarecido, talentoso e excelente orador sacro. […] Era ilustrado, de um gênio expansivo e possuía invejável memória. Teve amigos que o apreciavam e que jamais olvidarão sua memória!”
Afonso Cláudio[ 60 ] faz uma análise maios para o lado psicológico:
O próprio padre se analisa: “Tenho um gênio sôfrego; por isso a pressa faz imperfeito o meu trabalho e, na associação de ideias, corro longas digressões […] Ambição de escrever, desejos de agradar, glória de corresponder à confiança, tudo isso me exalta, a ponto de esquentar-se a cabeça pela ebulição de ideias que, às vezes, chegam a engurgitar o pensamento!” (final do artigo 32 das Memórias do passado).
Hoje podemos falar que sua vida, principalmente intelectual, foi como a fachada em relação ao corpo da igreja de Santa Cruz: maior na aparência do que é na realidade. Mas isso não tira de modo algum o seu valor como pessoa ou artista.
Como provado antes, foi o padre Antunes, na qualidade de pároco local, quem principiou a construção da matriz na vila de Santa Cruz por sua fachada principal e nisto ele acompanhou iniciativas semelhantes daquele período. Diversos fatores contribuíram para a interrupção da obra, que ficou incompleta e, por isso mesmo, constituindo-se em valioso e interessante documento para a história e a arte.
Também o padre Antunes se formou visando muito a aparência, a eloquência, a erudição. Tendo-se dispersado nos caminhos da vida não pôde erigir em toda sua plenitude e acabamento o edifício de sua personalidade. E esse ente intelectual restou com uma grande e imponente fachada, mas sem toda a substância correspondente por detrás. De qualquer forma, até estes contrastes bizarros são válidos e esclarecedores, tanto na vida de uma pessoa, quanto na existência de um edifício.
O padre Francisco Antunes de Siqueira morreu “vitimado por uma congestão cerebral"[ 61 ] às 8 horas da noite do dia 29 de novembro de 1897 em Vila Velha, onde era pároco, cargo de que tinha solicitado exoneração dois dias antes. O enterro do seu corpo deu-se no dia seguinte na então matriz de Vila Velha, atual igreja do Rosário na Prainha, com “presença de muitas autoridades e numeroso povo”,[ 62 ] falando na ocasião o bispo d. João Néry[ 63 ] e “a talentosa aluna da Escola Normal, d. Alice Corrêa"[ 64 ]
É patrono da cadeira n° 16 da Academia Espírito-santense de Letras.
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Para estes apontamentos biográficos utilizei-me largamente do artigo de Amâncio Pinto Pereira [ 12 ] publicado no jornal Comércio do Espíri...
Biografia do Pe. Francisco Antunes de Siqueira
Para estes apontamentos biográficos utilizei-me largamente do artigo de Amâncio Pinto Pereira[ 12 ] publicado no jornal Comércio do Espírito Santo poucos dias depois do falecimento do sacerdote, e escrito por um amigo seu, conhecedor de sua vida e obra. Afonso Cláudio[ 13 ] também se serviu muito desse artigo.Com base no processo de habilitação de vita et moribus pude confirmar que o padre Francisco Antunes de Sequeira (essa era a grafia original do seu sobrenome, atualizada para Siqueira por reformas ortográficas mais recentes) nasceu em Vitória a 3 de fevereiro de 1832. No requerimento em que solicita sua habilitação de vita et moribus aparece ele como filho natural de Maria Luíza do Rosário e mais adiante comprova-se seu batismo em 10 de março de 1832 na matriz de Nossa Senhora da Vitória celebrado pelo vigário Manoel Alves de Souza (por sinal o documento é transcrito por seu pai, que se assina como “o coadjutor padre Francisco Antunes de Siqueira”), constando como padrinhos o vigário Domingos Leal e D. Ana Maria da Penha de Jesus. Em documentos desse processo constata-se também que sua mãe “vive de costurar” e que seus avós maternos, Francisco Gomes Rodrigues e Vitória Maria da Conceição, eram oriundos de Cabo Frio, onde ele “vivia da pescaria do alto mar”.[ 14 ]
Em artigo (de uma série publicada com o título de “Padre Antunes de Siqueira”) Antônio Tinoco informa ter lido as dedicatórias impressas na obra A Província do Espírito Santo (Poemeto) do padre Antunes localizada na Biblioteca Nacional nos seguintes termos: “À memória de meu pai, Cônego Arcipreste Francisco A. de Siqueira, — Uma lágrima da mais pungente saudade. A minha prezada mãe D. Maria Luíza do Rosário, — Tributo de veneração e respeito[ 15 ]
Primeiros estudos
A infância e adolescência do padre Antunes estão relativamente bem descritas no decorrer da obra ora estudada, e é interessante o depoimento do padre sobre as brincadeiras e costumes da época de sua infância, um testemunho vivo e de primeira mão. Através destes escritos sabemos que ele tinha duas irmãs, conforme nos diz na seguinte passagem no final do artigo número 25:
[…] zás, lá derramava eu a tinta pelo papel, inutilizando duas e mais folhas escritas… Que frenesi! Batia o pé, arrancava os cabelos, praguejava a mim mesmo: Aí está! O que e lá isso? perguntava minha boa mãe. Acudiam logo duas denunciantes, duas irmãs, dizendo: o nhonhô borrou a escrita! Toma lá… bem feito… oh! oh! |
O jornal O Estado do Espírito Santo de 3 e 4 de dezembro de 1897, impresso em Vitória, estampa convite para a missa de sétimo dia por alma do padre Antunes de Siqueira assinado por Antônio da Silva Pádua e Adelaide Antunes de Siqueira Pádua, sendo moradores em Viana e que se identificam como cunhado e irmã do falecido.
Podemos avaliar até em que local de Vitória Antunes de Siqueira habitava na juventude, “ali junto da ponte do Reguinho, que dá passagem para a rua da Várzea” (nas imediações das atuais ruas Graciano Neves e Sete de Setembro) pela descrição que no artigo 3 o autor das Memórias do passado faz de uns vizinhos seus que de noite, comendo caranguejos e falando alto, não o deixavam dormir.
Sobre os primeiros estudos do jovem Francisco Antunes de Siqueira nos dá notícia Amâncio Pereira em seu artigo acima referido:
A primeira aula que frequentou e para a qual entrou a 7 de janeiro de 1839 foi a do finado major Inácio dos Santos Pinto. Criada uma 2a cadeira em 1842 e nela provida o professor Manoel Ferreira das Neves que iniciou o seu ensinamento com o Método Valdetaro — passou o nosso biografado a frequentar esta cadeira, na qual fez rápidos progressos, preparando-se nas matérias do ensino primário no fim do ano de 1845. Com este professor estudou ele a língua francesa no ano seguinte, frequentando ao mesmo tempo a aula de latim do padre mestre Inácio Félix de Alvarenga Sales. Aprovado em ambos os preparatórios em exame público, realizado no Palácio do Governo, quando presidente o Dr. Luís Pedreira do Couto Ferraz (Visconde do Bom Retiro), isto em 1848 […].[ 16 ] |
O autor das Memórias do passado nos artigos 16 e 17 descreve o mestre major Inácio dos Santos Pinto, o seu método de ensino, como participava das aulas e o que nelas aprendeu.
Vida no seminário
O ano de 1849 marca a ida do estudante Antunes, já então com dezessete anos, para o Rio de Janeiro a fim de ingressar no Seminário de São José. Recebe a primeira tonsura e os quatro graus de ordens menores no dia 12 de setembro de 1849. Seu pai não só lhe deu o mesmo nome como lhe destinou a mesma carreira eclesiástica, meio seguro de ascensão social, na época. Neste sentido são significativas as seguintes palavras de Maria Stella de Novaes referindo-se a outro padre mas que, em linhas gerais, se podem aplicar à vida do padre Antunes:
Vivia-se no tempo em que devia o mestre de latim alfabetizar os rapazes; dar- lhes a instrução primária, ler, escrever e contar. Ordenado sacerdote, Marcelino Duarte estaria no início do ministério do Altar; mas, possuidor já de uma série de sonetos, nos quais clamava dolorosamente sua desdita: — a vocação forçada, como ocorreu a muitos outros jovens espírito-santenses. Tudo porque o mestre de latim decidia a vocação dos alunos e, de par a essa aula, dava-lhes conhecimentos de filosofia, retórica, história e outras disciplinas, “moldadas na aprendizagem que tinha, por sua vez, feito no Seminário”. De fato, era uma norma do tempo: — moço inteligente, ansioso de ilustração, devia ser padre. Tinha o destino traçado: — o Seminário. Assim, para o Espírito Santo o Seminário São José, na Corte, era a tábua-de-salvação. Os ricos iam para Coimbra.[ 17 ] |
Para complementar o panorama sobre as questões envolvendo as atividades de trabalho e de estudo e a situação social dos padres espírito-santenses do século XIX, convém citar estas palavras de Oscar Gama Filho:
Aliás, as vidas intelectual — arte, direito, política, jornalismo e outras atividades afins — e sacerdotal constituíam, no século passado, duas das poucas formas de ascensão social de que os indivíduos podiam se valer. Alguns se dedicavam a ambas ao mesmo tempo, entre esses, João Clímaco, Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, Francisco Antunes de Siqueira, Fraga Loureiro, Eurípedes Pedrinha e Inácio Félix de Alvarenga Sales, todos simultaneamente padres, escritores e políticos.[ 18 ] |
No seminário o jovem Antunes se distingue nas diversas disciplinas e, nos processos de habilitação antes referidos, podem ser conferidas suas notas e os atestados que os professores deram como requisito para sua formação sacerdotal, como este: “Entrou para o Seminário de São José em março de 1849 e nele concluiu os estudos preparatórios em que já vinha adiantado, começou os teológicos que também concluiu no fim deste ano letivo, tendo sempre merecido aprovações honrosas. E pelo que pertence aos seus costumes deu sempre provas de boa morigeração”.[ 19 ]
Recusa em 1851 um convite para secretário interino do bispado do Maranhão “à instância de sua veneranda mãe”,[ 20 ] que já tinha perdido o seu “companheiro”, por sinal.
Antunes de Siqueira entra para a irmandade de São Pedro em 22 de junho de 1853 (neste ano é morador do Colégio de São Pedro de Alcântara), recebe a ordem de subdiácono em 10 de julho de 1853, e a 24 do mesmo mês é ordenado diácono.
Como seminarista “pregou pela primeira vez na capelinha de Nossa Senhora da Conceição em Niterói, com aplauso do grande orador cônego Barbosa França, pelo que s. ex. rvdm. lhe concedeu provisão, sem tempo, para pregar em toda a diocese"[ 21 ] e ainda como seminarista pronunciou brilhantes sermões em diversas igrejas do Rio de Janeiro e na capela imperial.
Em setembro de 1854, é dada uma apólice da dívida pública de juro anual de 5% no valor de seiscentos mil réis para estabelecer o patrimônio do futuro sacerdote, ordenado em 5 de novembro de 1854.[ 22 ] Amâncio Pereira registra que o padre Antunes cantou sua “primeira missa a 21 deste mesmo mês e ano na capela de Santa Efigênia situada à rua da Alfândega no Rio de Janeiro”.[ 23 ]
Padre secular
Principia sua carreira de padre secular como pároco da freguesia de Carapina em 20 de janeiro de 1855, onde também foi professor efetivo, deixando a mesma freguesia em 8 de novembro de 1856. Em Carapina houve um incidente com o padre, relatado de forma enviesada nos processos existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro e referido pelo próprio padre em seu Poemeto, conforme citação de Afonso Cláudio.[ 24 ]
A presença do padre Antunes no Espírito Santo em 1855 coincide com sua participação na festa da Penha, relato constante no artigo 22 das Memórias do passado, onde o autor faz um auto-elogio.
Tomou posse em 16 de fevereiro de 1857 como pároco de Santa Cruz, então sede de município espírito-santense. Logo principia a cobrar do governo provincial verbas para construção de nova matriz e para aquisição de objetos imprescindíveis ao culto religioso. Em ofício de 14 de abril de 1857 ao vice- presidente da província, Antunes de Siqueira afirma:
Depois de haver consultado, o que bem me recomendou V. Exa., a opinião das pessoas mais sensatas desta freguesia acerca do local em que se tem de erigir a nova igreja matriz, deliberei dar princípio à obra, que tanto urge o estado ruinoso da velha; […] e sendo assim a pequena quantia, que me foi dada não satisfaz as despesas da obra, que por ora limita-se ao frontispício, feito com proporções para a nova matriz […].[ 25 ] |
Por meio de outro ofício enviado de Santa Cruz ao Dr. Carlos de Cerqueira Pinto, vice-presidente da província, o padre Antunes presta os seguintes esclarecimentos:
[…] em abril de 1857 lancei a pedra fundamental de uma nova matriz com regulares proporções sob plano e regras de arquitetura de forma gótica, empregando o escasso produto de 200$000, colhido pelo povo, e mais algumas consignações do cofre provincial, conseguida assim a conclusão de um vistoso frontispício e o levantamento até a altura de 12 palmos das paredes no quadrado da capela-mor. […] Desde 1860 sem mais auxílios […] suspenderam-se os trabalhos, estragando-se a obra hoje exposta à inconstância do tempo.[ 26 ] |
Levy Rocha assinala em Viajantes Estrangeiros no Espírito Santo as seguintes observações, referindo-se à igreja da vila de Santa Cruz: “Aquele templo vinha sendo construído pelo vigário Francisco Antunes de Siqueira, filho do lugar [sic], que morava no alto dum monte, à esquerda da estrada. As obras foram começadas a 9 de maio de 1857 e, decorridos cinco meses, já se achava pronto o frontispício, no estilo gótico-romano."[ 27 ]
No final de 1858 padre Antunes conhece na localidade em que é vigário o pintor e viajante francês Auguste-François Biard, que dele registra as seguintes impressões:
Travei então conhecimento com o padre, um jovem sem preconceito, que não recuava diante de uma garrafa de porto ou de aguardente, nem diante de muitas outras coisas. Mas como, após alguns dias, ele tivesse declarado aos que não davam nada por mim que eu parecia ter alguns conhecimentos a respeito de diversos assuntos, embora francês, restringirei a isso as minhas observações. Esse padre me emprestou um fuzil e, munidos de pólvora e chumbo, partimos um dia bem cedinho numa caçada em que rivalizamos em imperícia.[ 28 ] |
Em 12 de agosto de 1859 uma carta imperial o declara vigário colado (isto é, estável) em Santa Cruz, tendo tomado posse no cargo a 23 de outubro do mesmo ano..[ 29 ]
Sobre a visita de D. Pedro II e comitiva a Vitória, José Teixeira de Oliveira reproduz reportagem publicada no jornal Correio da Vitória de sábado, 28 de janeiro de 1860. Da referida reportagem transcrevo este trecho:
No colégio [que também abrigava a capela nacional e é o atual palácio Anchieta] SS. MM. sentaram-se debaixo de um rico dossel, e daí assistiram ao Te Deum, mandado cantar pela Câmara Municipal. Orou o vigário de Santa Cruz, padre Francisco Antunes de Siqueira. O discurso foi conciso, brilhante e eloquente. Agradou a todos pela sublimidade de seus pensamentos, elegância e colorido de seu estilo.[ 30 ] |
Acerca desse episódio Amâncio Pereira informa: “Pregou com aplausos diante do Imperador e numeroso auditório quando ele viera em visita à então província em 1860, pelo que mereceu ser agraciado com o hábito de Cristo.[ 31 ] Será? Outros autores consignam que a condecoração foi concedida ao biografado por serviços prestados ao país. Se bem que, na época, pregar perante o imperador poderia ser considerado um serviço prestado ao país. O certo é que D. Pedro registra em seu diário de bolso, conforme nos dá notícia Levy Rocha: “Te Deum na Igreja do Colégio dos Jesuítas; hoje Palácio – lápide da sepultura de Anchieta na Capela-mor perto dos degraus do altar-mor. Sermão sofrível do Vigário de Santa Cruz (Aldeia Velha)."[ 32 ]
Em Santa Cruz o padre Antunes conheceu Pedro Tabachi, maçom da Loja União e Progresso em Vitória e pioneiro da imigração italiana em nossa terra. Por sinal está relatado no artigo 30 das Memórias do Passado um episódio vivido por ambos. O padre Antunes deixou o vicariato de Santa Cruz em princípios de 1869.[ 33 ]
Serve depois como pároco em Conceição da Barra. A sua presença nessa última localidade pode ser confirmada por meio da correspondência que manteve com o presidente da província. Dessa correspondência devem ser destacados o ofício de 9 de janeiro de 1872 (o primeiro no códice com a assinatura do padre Antunes) remetendo “o mapa dos batizados, casamentos e óbitos havidos durante o ano p. passado nesta paróquia”, (sendo que o mapa anexo está assinado pelo padre como pro-pároco) e o ofício de 29 de fevereiro do mesmo ano comunicando que naquela data “tomou posse e entrou no exercício de vigário encomendado [isto é, suscetível de remoção] da Vila da Barra de São Mateus por provisão da Vigararia-geral do bispado.” Outros ofícios firmados pelo mesmo vigário existem no códice até abril de 1872, somente.[ 34 ] Esta passagem do padre Antunes por Conceição da Barra, apesar de curta, é muito significativa para o presente estudo, de vez que comprova a afirmação do autor das Memórias do passado, antes ressaltada, sobre sua presença em janeiro daquele ano na referida localidade assistindo ao alardo.
Por meio de um recurso interposto ao imperador, datado de 14 de novembro de 1876, o padre Antunes nos cientifica que “requereu e foi nomeado em 9 de setembro de 1872 capelão extranumerário da Armada com exercício de professor” na Companhia de Aprendizes Marinheiros em Vila Velha, sendo elogiado pelos superiores. O interessado no recurso também informa que “em novembro de 1873 na efervescência da questão religiosa foi suspenso das ordens e em consequência dessa censura foi dispensado do ofício de capelão”. Declara que foi ao Rio se defender e obteve novamente o exercício das ordens e a restituição do ofício na Companhia por provisão que tinha validade anual e que foi renovada até 1875. No citado recurso o padre Antunes se julga suspenso de ordens sem sentença jurídica e pede que novamente seja provido como capelão por estar atacado de “elefantíase dos árabes” (motivo que o fez deixar o exercício de pároco em pequenas localidades, ficando sem a correspondente remuneração) e por estar privado dos escassos recursos com que se alimenta e à mãe sexagenária, a quem serve de arrimo.[ 35 ]
Após muitos anos como educador em Vitória, é pároco na matriz do Rosário da Prainha em Vila Velha, onde termina seus dias.
Maçonaria e amizades
Afonso Cláudio[ 36 ] refere-se de passagem a desavenças do padre Antunes com o bispo D. Pedro Maria de Lacerda, “que o suspendeu por diversas vezes do exercício das ordens sacras”. Mesmo sem aprofundar muito a pesquisa sabe-se hoje que essas discórdias estão relacionadas, entre outros aspectos, com o fato de o padre capixaba ter ligações com a maçonaria, instituição que estava sendo combatida por aquele bispo. A Questão Religiosa, apesar de mais exacerbada no Rio de Janeiro, em Recife e Belém com prisão de bispos e outros incidentes, também teve sua presença, em ponto menor, na província do Espírito Santo.
A fundação da Loja Maçônica União e Progresso em Vitória se dá no mesmo ano de 1872 em que a referida questão está no auge. Compulsando o livro Maçonaria no Espírito Santo de Christiano Woelffel Fraga localiza-se a transcrição de documentos da época e relatos de fatos desagradáveis ocorridos entre seguidores das duas instituições, a Igreja e a Maçonaria. Por exemplo, a proibição dos maçons de servirem como padrinhos de crisma, e a sua represália em não mais ajudarem no custeio dos cultos católicos, destinando as ofertas a obras de caridade.
Mas, para o que interessa na biografia do padre Antunes, existe uma referência na obra acima citada de que na sessão de 24 de setembro de 1876 foi aprovada sua admissão na Loja União e Progresso, a mais antiga até hoje em funcionamento em nosso Estado. Na ocasião o venerável Tito da Silva Machado recomenda completo sigilo a respeito, “visto como sofrendo a nossa instituição encarniçada guerra do jesuitismo, necessariamente este profano proposto, quando iniciado, sofrerá grande perseguição, por ser Padre”. O professor Christiano Woelffel Fraga acrescenta que nos arquivos maçônicos “não consta sua iniciação”.[ 37 ] Muitos amigos do padre e de seu pai pertenciam ao quadro da Loja União e Progresso. Dois maçons nela muito atuantes, Cleto Nunes Pereira e José de Melo Carvalho Muniz Freire, são os redatores do jornal A Província do Espírito Santo no qual estão estampados os artigos que compõem as Memórias do passado. Inclusive no início do artigo 24 o autor afirma que “A influência afável, ao estímulo poderoso de um espírito cultivado devo o fazer este quadro mais completo. Tinha-o reduzido muito, desconfiado da sorte que aguarda minhas pobres composições; como porém animam-me o afago e a benevolência do endossante desta letra, penhor de amizade, lá vai mais alguma curiosidade que me sugere a memória.”
Note-se que no final da obra Esboço histórico o padre Francisco Antunes de Siqueira faz rasgados elogios a Muniz Freire. Afonso Cláudio[ 38 ] refere-se ao Poemeto do padre Antunes como impresso nas oficinas de A Província do Espírito Santo em 1884. Aliás, no canto inferior direito da primeira página na edição do dia 22 de março de 1885 (que iniciou a publicação do folhetim Memórias do passado) lê-se no anúncio de obras literárias: “A Província do Espírito Santo – poema do padre Antunes de Sequeira – 1 vol. – 2$000”.
A família do padre
Sobre a família do padre Antunes de Siqueira algumas luzes são lançadas a partir de referências provenientes de fontes diversas.
No artigo do jornalista Antônio Tinoco antes referido[ 39 ] está registrado também o final da dedicatória impressa do padre Antunes no seu Poemeto: “[…] Às minhas queridas filhas – D. Dalmácia Antunes de Siqueira e D. Petronilha Antunes de Siqueira – Momentos de recreação e da mais viva lembrança.”
Elmo Elton nos oferece uma visão da vida do padre Antunes:
Os padres, em sua quase total maioria, escandalizavam a população pela negligência ou até desprezo com que tratavam os assuntos pertinentes a seu ofício, enquanto o povo, em decorrência disso, deixava de frequentar as igrejas e os sacramentos, comparecendo apenas às festas de cunho mais folclórico que religioso, como o eram as de São Benedito, celebradas tanto aqui como em outras localidades do interior do Estado. Diga-se, de passagem, que alguns sacerdotes, em Vitória, mantinham, às vezes, mais de uma concubina, com as quais pernoitavam diariamente, tendo filhos com elas, não escondendo aos fieis tal situação. O padre Francisco Antunes de Siqueira (1832-1897), que gozava fama de homem culto, teve, por exemplo, mais de uma companheira, viveu, anos seguidos, com uma filha [sic] do poeta Virgílio Vidigal (1866- 1891), com quem teve duas ou três filhas, disso não fazendo o menor segredo, conforme se constata na dedicatória, impressa, que apôs num de seus livros. Sabe-se que, quando da chegada da notícia do fim da Guerra do Paraguai, em Vitória, o povo, eufórico, o procurou, a fim de que ele se manifestasse sobre tão auspicioso acontecimento. Foi encontrado, às primeiras horas do dia, na casa da companheira, tendo, da sacada, ainda de camisolão de dormir, pronunciado um soneto alusivo à vitória dos brasileiros contra os paraguaios, soneto naturalmente adrede preparado, mas que o povo aplaudiu como coisa dita de improviso. Antunes de Sequeira gostava de se passar por poeta repentista, embora não o fosse, já que suas produções poéticas, de fragilíssima inspiração, eram sempre forçadas, de métrica e ritmo imperfeitos, portanto, de pouco ou nenhum valor como peças de arte.[ 40 ] |
Afonso Cláudio refere-se a uma filha do padre como sendo casada com o poeta Virgílio Vidigal, dando para este poeta os anos de 1866 e 1907 como extremos de sua vida e nos oferece visão diferente daquela acima apresentada sobre a vida e obra do padre Antunes.[ 41 ]
O padre Antunes confessa publicamente o seu estado de “pecador” em carta estampada, junto com outros documentos, no jornal A Província do Espírito Santo de 30 de março de 1885, poucos dias depois do início da publicação das Memórias do Passado. A boataria é inusitada (sobre o rapto de uma donzela por sacerdote de Vitória) e pode ter sido lançada por inimigos do padre Antunes, (cf. Anexo 1).
O abolicionista
Maria Stella de Novaes registra a presença em julho de 1884 das “senhoras Dalmácia e Petronilha Antunes de Siqueira” numa quermesse em benefício da Libertadora Domingos Martins, ocasião em que elas ofereceram um adorno de mesa em forma de serpente para ser vendido e o dinheiro apurado a favor da libertação de escravos. O presente vinha acompanhado de uma poesia (lavra do pai?):
O. D. C.
De nossas livres florestas
Volve também a serpente,
Para assistir nossas festas,
De um povo independente.
Ao altar da Pátria amada,
Ela vem se devotar,
Querendo com o seu produto
Os escravos libertar.[ 42 ]
Na Sociedade Abolicionista Domingos Martins o padre Antunes proferiu palestras contra a escravidão. Sobre este assunto Amâncio Pereira informa que “o Dr. Afonso Cláudio ocupou também o cargo de orador da sociedade [Libertadora Domingos Martins] enquanto ela existiu; e, com o Dr. Antônio Ataíde, padre Antunes de Siqueira e outros, no paço da Câmara Municipal da Capital, fez diversas conferências em noites de dias santificados, concorrendo a elas escravos e o que a sociedade tinha de escolhido em artes, ciências e filantropia”.[ 43 ]
Também são coerentes na vida do padre Antunes suas ideias liberais com sua pregação contra a escravatura, posição enunciada de forma veemente no último artigo das Memórias do Passado. Na sua biografia é famoso e muito referido por historiadores o discurso que proferiu por ocasião do término da escravidão em nosso país.
O educador
O padre Antunes teve atuação destacada como educador desde os tempos de seminário e em diversas localidades do Espírito Santo, como ressaltam muitos biógrafos e comentaristas de sua obra. Nos apêndices números dois e três do Esboço Histórico ele inclui seu próprio nome como pertencendo aos seguintes estabelecimentos de ensino como professor:
a) de retórica e, depois da reforma, de latim e geografia no Colégio Espírito Santo;
b) de latim e filosofia no Ateneu Provincial (regulamento de 1862);
c) de português nas Escolas Normais Masculina e Feminina;
d) professor público primário em Vitória.[ 44 ]
Estes registros são complementados e enriquecidos com as informações sobre o mesmo assunto prestadas por Amâncio Pereira[ 45 ] no artigo de jornal antes referido:
Em 1868 abriu um internato e externato nesta capital com o qual prestou um bom serviço à terra de seu nascimento. Em 1870 foi nomeado lente de geografia e história do colégio Espírito Santo. Em 1875 passou a lecionar geografia, história do Brasil e sagrada no colégio N. Sa. da Penha, e em 1877 foi nomeado para reger a cadeira de latim do Ateneu Provincial, cargo que exerceu com assiduidade até a extinção deste instituto pela criação das escolas normais em 1892, sendo o nosso biografado aproveitado na cadeira de português. Cremos que em 1878 ou 1879 organizou em sua casa um curso particular de preparatórios, o qual foi bastante concorrido pela mocidade que frequentava o Ateneu Provincial. Desempenhou as funções de capelão da extinta companhia de aprendizes marinheiros desta cidade e da qual foi também professor primário. |
Terezinha Tristão Bichara[ 46 ] refere-se ao padre Antunes de Siqueira como vigário de Santa Cruz em 1867 e diretor naquela vila da “única escola particular [com 18 alunos] que conseguiu permanecer em funcionamento na Província”. Também registra que “em 1886, o Chefe da Administração Provincial, nomeou uma comissão, formada pelos educadores […] e padre Antunes de Sequeira para criar um novo regulamento de ensino com a pretensão de introduzir no sistema educacional um novo método — o experimental — considerado o mais eficiente por provocar a curiosidade da criança, educar a memória, prender a atenção e exercitar a inteligência."[ 47 ]
A erudição demonstrada pelo padre Antunes era um costume da época, e não devemos julgá-la com as lentes de hoje, sem dar os devidos descontos. Em sendo professor de filosofia, de retórica, de história, de português, tinha que assegurar, reiterar e eventualmente exibir aos conterrâneos e contemporâneos seu cabedal de conhecimentos, citando Horácios e Virgílios. Nesse sentido, o primeiro artigo das Memórias do passado lista temas, depois desenvolvidos no Esboço histórico, como a história dos gregos, romanos, judeus, a história sacra, e outros.
As ideias e práticas do padre
O padre Antunes foi eleito deputado à Assembleia Legislativa Provincial para o biênio de 1862-63, tendo ocupado o cargo de segundo secretário da mesa daquela Casa de Leis. O seu partido devia ser o conservador (apesar de muitos de seus amigos serem simpatizantes do partido liberal — inclusive os redatores de A Província do Espírito Santo), mas não logramos documentar essa opção partidária. Devia pertencer ao partido conservador porque o padre Antunes, no artigo 13 das Memórias do passado, demonstra de forma apaixonada ser um caramuru, partidário da cor verde, ligado ao convento de São Francisco. Chega a descrever no artigo 12 de forma desfavorável e até sarcástica a festa dos peroás do Rosário. E segundo Adelpho Poli Monjardim “[…] o povo dividiu-se e do campo religioso passou ao político, como não poderia deixar de acontecer […] Em Vitória não houve neutros. Os conservadores apoiaram os Caramurus e os liberais se filiaram aos Peroás, da igreja do Rosário”.[ 48 ] Liberal ou conservador, o padre Antunes (que pode ter variado de agremiação política ou se constituído numa exceção no panorama das facções locais) viveu numa época em que os partidos possuíam pouca consistência ideológica e os políticos não cultivavam a coerência partidária.
Alguns historiadores referem-se ao mesmo padre Antunes como deputado também no período de 1849-50, evidentemente confundindo-o com seu pai (que realmente foi deputado em tal legislatura), pois naqueles anos, além de estudar no Rio de Janeiro, o jovem Antunes só contava com 17 para 18 anos de idade.
No texto das Memórias do passado, o autor faz referência ao seu pioneirismo em propugnar pela educação feminina quando no artigo de número 17 diz: “Não condeno a instrução da mulher, tanto que fui eu o primeiro a levantar minha humilde voz em 1863 para que se criassem cadeiras em todas as vilas da província.” No mesmo ano foi aprovado pela Assembleia Legislativa Provincial do Espírito Santo um projeto instituindo aulas femininas em Santa Cruz, onde o padre e deputado era pároco.
A Lei n.° 3 de 26 de novembro de 1863,[ 49 ] projeto do deputado Francisco Antunes de Siqueira, determina que a inspeção escolar passe a ser executada pelas câmaras municipais.
Segundo informações registradas pela historiadora Terezinha Tristão Bichara, o padre Antunes propôs um projeto à Assembleia Legislativa Provincial autorizando a venda em hasta pública da casa que, em Cariacica, servia de residência ao vigário, empregando o produto da venda no reparo do relógio público de Vitória; “apesar de aprovada, a lei não foi sancionada, mas a 15 de dezembro de 1863 voltou ao Executivo pois, por unanimidade de votos, não foram aceitas as razões da recusa presidencial”.[ 50 ]
O já muito citado Amâncio Pereira registra que o padre Antunes “exerceu também a advocacia, sendo patrono de alguns clientes perante o tribunal do júri desta comarca”.[ 51 ]
As ideias expostas nos escritos do professor de filosofia e padre Antunes indicam que era partidário de correntes filosóficas anteriores ao positivismo, sendo dele simpatizante, provavelmente.
De qualquer sorte, o jornal em que publica seus artigos era francamente positivista. Ivan Lins em sua História do Positivismo no Brasil refere-se a Muniz Freire como “a figura mais eminente do Positivismo capixaba”.[ 52 ] Antes afirmou ser “tal o entusiasmo despertado pela atuação de Silva Jardim que ‘A Província do Espírito Santo’, fundado em 1882, e de que eram redatores Muni/. Freire e Cleto Nunes, passou a adotar o calendário positivista, acerca do qual deu uma notícia em seu número de 9 de agosto de 1882."[ 53 ] De fato, as edições consultadas do referido periódico trazem as datas de acordo com os calendários gregoriano e positivista. Por exemplo, o dia 22 de março de 1885, quando começa a publicação das Memórias do passado, também está registrado como 96 (anos contados a partir da grande crise ou Revolução Francesa), mês de Aristóteles (A filosofia antiga).
O certo é que o padre Antunes tinha livre acesso ao periódico aqui tratado. Para exemplificar mencione-se a série de artigos do padre, agora publicados com o nome do seu autor, que começa a ser estampada no periódico sob o título de A educação do povo dois dias depois (9 de maio de 1885) de se encerrar a publicação das Memórias do Passado. Afonso Cláudio julgou identificar as ideias do autor com base no canto IV do Poemeto: “[…] o padre cantor diz a direção filosófica a que obedece o seu espirito. […] A sua filosofia à Cousin, sente-se bem glosando os motes da imortalidade e da separação da alma do respectivo invólucro."[ 54 ]
Victor Cousin (1792-1867) era um filósofo francês “chefe da escola eclética”. Registre-se que um exemplar de livro dele (o tomo IV das Oeuvres de Victor Cousin, impresso em Bruxelas em 1845 e com o carimbo da Biblioteca Pública Provincial) ainda existe no acervo da Biblioteca Pública Estadual. Cousin “esforçou-se por combinar as ideias de Descartes, da escola escocesa, de Kant, num espiritualismo pouco coerente mas brilhantemente expresso."[ 55 ]
O padre Antunes cita por duas vezes, às paginas 26 e 57 da 2a edição do Esboço histórico, as ideias de Emílio Castelar (1832-1899), escritor e político espanhol, republicano e o maior orador parlamentar da Espanha na segunda metade do século XIX.[ 56 ] Vemo-lo citando também Eugène Sue (1808-1857), romancista francês que fez enorme sucesso com romances em folhetim descrevendo o submundo parisiense[ 57 ] e Cesare Cantu (1804-1895), escritor e historiador italiano, que escreveu de 1838 a 1846 a História Universal em 35 volumes inspirada pelos ideais de um catolicismo liberal e obra muito lida, inclusive no Brasil.[ 58 ]
Um perfil do padre Antunes de Siqueira pode ser elaborado a partir de palavras registradas por diversas pessoas.
Amâncio Pereira[ 59 ] fala com o coração da amizade: “Espírito esclarecido, talentoso e excelente orador sacro. […] Era ilustrado, de um gênio expansivo e possuía invejável memória. Teve amigos que o apreciavam e que jamais olvidarão sua memória!”
Afonso Cláudio[ 60 ] faz uma análise maios para o lado psicológico:
Antunes de Siqueira fazia parte da legião de brincalhões inteligentes que se foram e da qual é hoje o único documento autêntico. […] Regressando a sua terra […] foi então quando começou a experimentar o efeito das amargas desilusões; de um lado o seu temperamento facilmente impressionável e de outro o meio deletério em que tinha de atuar […] mas o padre não tinha a couraça que forra as energias aos lutadores seletos; sua sensibilidade não lhe permitia prolongado dispêndio de forças em repelir ultrajes […] Sitiado pelas paixões, ora iracundo, ora compassivo, volúvel nos atos e nos gestos, distendendo-lhe a veia irônica e o poeta surge como um complemento do folgazão. É de vê-lo tomar à incultura do populacho os dictérios da moda, os ridículos e sarcasmos com que revida as agressões. |
O próprio padre se analisa: “Tenho um gênio sôfrego; por isso a pressa faz imperfeito o meu trabalho e, na associação de ideias, corro longas digressões […] Ambição de escrever, desejos de agradar, glória de corresponder à confiança, tudo isso me exalta, a ponto de esquentar-se a cabeça pela ebulição de ideias que, às vezes, chegam a engurgitar o pensamento!” (final do artigo 32 das Memórias do passado).
Hoje podemos falar que sua vida, principalmente intelectual, foi como a fachada em relação ao corpo da igreja de Santa Cruz: maior na aparência do que é na realidade. Mas isso não tira de modo algum o seu valor como pessoa ou artista.
Como provado antes, foi o padre Antunes, na qualidade de pároco local, quem principiou a construção da matriz na vila de Santa Cruz por sua fachada principal e nisto ele acompanhou iniciativas semelhantes daquele período. Diversos fatores contribuíram para a interrupção da obra, que ficou incompleta e, por isso mesmo, constituindo-se em valioso e interessante documento para a história e a arte.
Também o padre Antunes se formou visando muito a aparência, a eloquência, a erudição. Tendo-se dispersado nos caminhos da vida não pôde erigir em toda sua plenitude e acabamento o edifício de sua personalidade. E esse ente intelectual restou com uma grande e imponente fachada, mas sem toda a substância correspondente por detrás. De qualquer forma, até estes contrastes bizarros são válidos e esclarecedores, tanto na vida de uma pessoa, quanto na existência de um edifício.
O padre Francisco Antunes de Siqueira morreu “vitimado por uma congestão cerebral"[ 61 ] às 8 horas da noite do dia 29 de novembro de 1897 em Vila Velha, onde era pároco, cargo de que tinha solicitado exoneração dois dias antes. O enterro do seu corpo deu-se no dia seguinte na então matriz de Vila Velha, atual igreja do Rosário na Prainha, com “presença de muitas autoridades e numeroso povo”,[ 62 ] falando na ocasião o bispo d. João Néry[ 63 ] e “a talentosa aluna da Escola Normal, d. Alice Corrêa"[ 64 ]
É patrono da cadeira n° 16 da Academia Espírito-santense de Letras.
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NOTAS
[ 12 ] PEREIRA, Amâncio Pinto. Antunes de Siqueira. Comércio do Espírito Santo, Vitória, 2 dez. 1897, p. 2.
[ 13 ] CLÁUDIO, Afonso. História da Literatura Espírito-santense. Porto: Comércio do Porto, 1912. p. 214.
[ 14 ] ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA, Rio de Janeiro. Processos de genere e vita et moribus em nome de Francisco Antunes de Sequeira.
[ 15 ] TINOCO, Antônio. Padre Antunes de Siqueira. A Gazeta, Vitória, 26 jan. 1951.
[ 16 ] PEREIRA, Amâncio Pinto. Antunes de Siqueira. Comércio do Espírito Santo, Vitória, 2 dez. 1897, p. 2.
[ 17 ] NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, s. d., p. 122-3. Na mesma obra à p. 171 a autora, noticiando o nascimento do padre Antunes, registra: “Seguiu o destino de tantos jovens espírito-santenses, conforme escrevemos noutro capítulo.”
[ 18 ] GAMA FILHO, Oscar. Razão do Brasil: em uma sociopsicanálise da literatura capixaba. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 44-5.
[ 19 ] Documento datado do Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1851, e assinado por Manoel Joaquim da Silveira, constante dos processos de genere e vita et moribus antes citados.
[ 20 ] PEREIRA, Amâncio Pinto. Antunes de Siqueira. Comércio do Espírito Santo, Vitória, 2 dez. 1897, p. 2.
[ 21 ] Ibidem.
[ 22 ] Informações obtidas nos processos de genere e vita et moribus antes referenciados.
[ 23 ] PEREIRA, Amâncio Pinto. Antunes de Siqueira. Comércio do Espírito Santo, Vitória, 2 dez. 1897, p. 2.
[ 24 ] CLÁUDIO, Afonso. História da Literatura Espírito-santense. Porto: Comércio do Porto, 1912. p. 224.
[ 25 ] ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL DO ESPÍRITO SANTO. Vitória. Série Accioly, livro 311.
[ 26 ] Ibidem.
[ 27 ] ROCHA, Levy. Viajantes Estrangeiros no Espírito Santo. Brasília: EBRASA, 1971. p. 94. O autor não menciona no texto a fonte de onde teria extraído estas observações. Deve-se assinalar o equívoco cometido pelo criterioso historiador referindo-se a Santa Cruz como o local de nascimento do padre Antunes, equívoco que se repetiu na nota 14 à página 33 da obra Viagem à Província do Espírito Santo de Auguste-François Biard.
[ 28 ] BIARD, Agugust-François. Viagem à província do Espírito Santo. Vitória: Cultural-ES. s/d, p.33.
[ 29 ] Informações colhidas nos processos de habilitação de genere e de vita et moribus do padre Antunes pesquisados no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro e no livro 311 da série Accioly existente no Arquivo Público Estadual do Espírito Santo.
[ 30 ] OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. 2. ed. ampl. e atual. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1974-75. p. 382.
[ 31 ] PEREIRA, Amâncio Pinto. Antunes de Siqueira. Comércio do Espírito Santo. Vitória, 2 dez. 1897, p. 2.
[ 32 ] ROCHA, Levy. Viagem de Pedro II ao Espírito Santo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. IHGB, 1960. v. 246. Separata. p. 40.
[ 33 ] ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL DO ESPÍRITO SANTO. Vitória. Série Accioly – livro n° 311.0 último ofício assinado pelo vigário Francisco Antunes de Siqueira é datado de 24 de fevereiro de 1869.
[ 34 ] ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL DO ESPÍRITO SANTO. Vitória. Série Accioly – livro n° 187.
[ 35 ] ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL DO ESPÍRITO SANTO. Vitória. Série Accioly – livro n° 199. O recurso é acompanhado de pública-forma de oito atestados favoráveis ao padre Antunes assinados por diversas autoridades que elogiam o seu comportamento e, em alguns deles, o eximem de participação nos acontecimentos antes referidos de 8 de setembro de 1876 envolvendo a irmandade do SS. Sacramento.
[ 36 ] CLÁUDIO, Afonso. História da Literatura Espírito-santense. Porto: Comércio do Porto, 1912. p. 226. Cita também “desavenças que teve com o comandante da companhia de aprendizes marinheiros, de que foi capelão, [e] com o capitão do porto.”
[ 37 ] FRAGA, Christiano Woelffel. A Maçonaria no Espírito Santo. Vitória: s.n., 1995. p. 129.
[ 38 ] CLÁUDIO, Afonso. História da Literatura Espírito-santense. Porto: Comércio do Porto, 1912. p. 214.
[ 39 ] TINOCO, Antônio. Padre Antunes de Siqueira. A Gazeta, Vitória, 26 jan. 1951.
[ 40 ] ELTON, Elmo. Velhos templos de Vitória & outros temas capixabas. Vitória: Conselho Estadual de Cultura, 1987. p. 89.
[ 41 ] CLÁUDIO, Afonso. História da Literatura Espírito-santense. Porto: Comércio do Porto, 1912. p. 329 e 232.
[ 42 ] NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, s. d., p. 294. (O. D. C. significa Oferece, Dedica e Consagra, segundo fórmula da época.).
[ 43 ] PEREIRA, Amâncio Pinto. Homens e Cousas Espírito-Santenses. Vitória: Artes Gráficas, 1914. 1o. livro, p. 129.
[ 44 ] SIQUEIRA, Francisco Antunes de. Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense. 2. ed. Vitória: Imprensa Oficial, 1944. p. 137 a 144.
[ 45 ] PEREIRA, Amâncio Pinto. Antunes de Siqueira. Comércio do Espírito Santo, Vitória, 2 dez. 1897, p. 2.
[ 46 ] BICHARA, Terezinha Tristão. História do Poder Legislativo do Espírito Santo - 1835-1889. Vitória: Leoprint, 1984. v. 1.1. 1. p. 199.
[ 47 ] Op. cit. p. 328.
[ 48 ] MONJARDIM, Adelpho Poli. O Espírito Santa na história, na lenda e no folclore. Vitória, s.n., 1983. p. 97. Nesta obra o ilustre historiador reproduz trechos sobre o mesmo assunto existentes às páginas 116-117 do livro Biografia de Uma Ilha de Luiz Serafim Derenzi. 2 ed. Vitória: PMV, 1995, editado originalmente em 1965.
[ 49 ] BICHARA, Terezinha Tristão. História do Poder Legislativo do Espírito Santo - 1835-1889. Vitória: Leoprint, 1984. v. 1.1. 1. p. 197.
[ 50 ] Op. cit. p. 188.
[ 51 ] PEREIRA, Amâncio Pinto. Antunes de Siqueira. Comércio do Espírito Santo, Vitória, 2 dez. 1897, p. 2.
[ 52 ] LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. São Paulo: Nacional, 1964. p. 227.
[ 53 ] Op. cit. p. 221.
[ 54 ] CLÁUDIO, Afonso. História da Literatura Espírito-santense. Porto: Comércio do Porto, 1912. p. 227.
[ 55 ] Grande Enciclopédia Delta Larousse. Rio de Janeiro: Editora Delta, 1972. v. 5.
[ 56 ] Ibidem. v. 4.
[ 57 ] Ibidem. v. 14.
[ 58 ] Ibidem. v. 5.
[ 59 ] PEREIRA, Amâncio Pinto. Antunes de Siqueira. Comércio do Espírito Santo, Vitória, 2 dez. 1897, p. 2.
[ 60 ] CLÁUDIO, Afonso. História da Literatura Espírito-santense. Porto: Comércio do Porto, 1912. p. 223-6.
[ 61 ] Estado do Espírito Santo, Vitória, 30 nov. 1897. p.
[ 62 ] Ibidem. 1o dez. 1897.
[ 63 ] PEREIRA. Amâncio Pinto. Antunes de Siqueira. Comércio do Espírito Santo, Vitória, 2 dez. 1897, p. 2. Na relação que Amâncio Pereira faz das obras impressas do padre Antunes está a “Alocução Congratulatória ao exmo. sr. bispo diocesano d. João Batista Corrêa Néry, em homenagem a sua visita pastoral à cidade do Espírito Santo [atual Vila Velha] no dia 21 de novembro de 1897″.
[ 64 ] Ibidem.
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© 1999 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Fernando Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
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