Um olhar
O olhar da minha nonna quando eu tinha cinco ou seis anos é um velho tesouro que guardo comigo. Seria bem mais pobre se não pudesse contar com o estoque de ternura que essa avozinha italiana depositou em minha sensibilidade. Ela era pequenina, vestia uma roupa simples de camponesa com a saia quase arrastando no chão e usava um lenço branco na cabeça.
Nas festas de São Miguel colocava um lenço estampado de seda e isso era o máximo de vaidade que se permitia. Mas em compensação seu olhar era puro luxo. Havia nele uma sombra nostálgica, mas sobretudo era um olhar inteligente e compassivo que chegava a mim com a marca da compreensão irrestrita.
Nunca vi minha avó reclamar de nada. Aos impacientes sempre aconselhava calma com a frase infalível: “Dio provede.” Não sei se se trata de uma frase gramaticalmente correta ou se é uma forma dialetal. Não me preocupo com essas nicas. Sei apenas que a frase era dita dessa forma e era um exemplo de armadura na resistência daquele bravo povo das montanhas do Espírito Santo.
A história da nonna é uma história extremamente comum entre o pessoal que desembarcou aqui no final do século passado. Quando ela chegou ao Brasil era muito novinha e, por isso, não se lembrava de quase nada de sua pátria. Trabalhou na lavoura de café e às vezes, quando tomo essa bebida, me lembro da célebre visita de Goethe a um matadouro de Chicago e sua observação de que jamais havia imaginado que seu bife exigisse tanta fealdade. Do mesmo modo, não raro sinto um travo especial ao degustar a famosa rubiácea e lembrar-me das condições penosas em que foi produzida nos primeiros tempos em nosso estado.
Talvez por não haver grande variedade de gêneros ela era especialista de uns poucos pratos cozinhados em fogão de lenha. É preciso lembrar também que era um tempo onde havia possibilidade de diálogos desse tipo: “Bepi, pegue a peneira e vá apanhar umas piabas que está quase na hora do almoço.” O Bepi apanhava a peneira de taquara, descia até o ribeirão e não demorava muito para trazer um samburá cheio de peixinhos.
Talvez pelo ar puro da montanha ou porque fazíamos muito exercício em corridas intermináveis pelo pasto e pelo mato, a verdade é que na hora do almoço estávamos sempre azuis de fome. Lá vinha a nonna com sua tábua de polenta.
Ficava às nossas costas e dali mesmo, com uma linha, cortava a polenta e o pedaço voava por cima de nossos ombros e caía no prato, com precisão. Polenta com piabinhas: como parar de comer? Saíamos da mesa pesados e lerdos mas com a boa sensação de animais saciados. O cardápio era quase sempre esse com acréscimo de um radicchio, um tomate, coisas assim. As únicas exceções vinham na época do Natal quando ela assava castanhas e distribuía nozes.
As portas rangiam ao servir de quebra-nozes e por todo lado restavam cascas dessas frutas de nossa tradição natalina.
Como disse, a nonna veio bem novinha para o Brasil e sua experiência urbana era nula. Seu raio de ação limitava-se a uns trinta quilômetros, no máximo. Festa de San Miguel, em Araguaia, visita a uma parenta em San Martin, uma festa de casamento em Sagrada Família, um batizado em Batatal, uma reza no Cristo e só. No restante do tempo ficava mesmo na colônia em sua rotina de camponesa.
Mais tarde viemos morar em Vitória. Por isso ficou mais difícil visitá-la nos seus ermos de Santo Antônio. Algum tempo depois minha mãe me disse que a nonna viria nos visitar.
Tomei um susto. Era muito difícil imaginar aquela velhinha andando pelas ruas da cidade. Mas lá no fundo fiquei alegre porque sentia falta daquela presença tão terna. No dia marcado fui buscá-la na estação da Leopoldina, em Argolas.
Ao vê-la na plataforma achei que ela era ainda menor do que imaginava. O lenço na cabeça era o estampado de seda. Senti que a nonna estava assustada. Olhava para mim apreensiva e tive que acalmá-la para colocá-la no bote que nos levaria para o cais de Vitória. Fez toda a travessia da baía em silêncio.
Por mais que tentasse provocar um assunto ela sempre respondia com monossílabos. Acabei desistindo e passei a mão em seus ombros como que para protegê-la dos perigos urbanos que seus olhinhos iam identificando em cada detalhe da cidade grande. Senti que meu gesto acalmou-a um pouco. Somente ao chegar em casa consegui reconhecer minha nonna no velho sorriso que era sua marca pessoal. Confessou-me que estava realmente apavorada com tudo o que via na cidade. Nunca podia imaginar que a cidade fosse tão grande e com tanta confusão (registre-se que estamos nos referindo à Vitória do final dos anos quarenta).
Nos dias seguintes foi quase voltando ao seu estado normal. Morávamos em Jucutuquara e certo dia minha mãe levou-a ao centro da cidade para fazer compras.
A grande quantidade de pessoas na rua, porém, voltou a preocupá-la. Pegou no braço de minha mãe e perguntou: “Cara, hoje é dia de procissão?” “Por quê?” — perguntou-lhe minha mãe. “Tanta gente na rua…” — respondeu ela.
Não demorou muito e disse que precisava voltar para Santo Antônio. Levei-a de volta à estação e pouco antes de entrar no trem me confidenciou: “Vê se vai me ver lá no meu canto porque acho que nunca mais volto para a cidade.” A nonna não voltou para a cidade conforme suspeitara. Nunca mais a vi porque morreu poucos meses depois. Ficou o seu olhar. Grazie nonna.
[Transcrito de Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.]
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
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