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A delegacia da Chapot Presvot, 272, cerra portas e janelas. A quem interessa a notícia? Creio que apenas às suas personagens. E é em co...


A delegacia da Chapot Presvot, 272, cerra portas e janelas. A quem interessa a notícia?

Creio que apenas às suas personagens.

E é em consideração a elas, que me aturaram muito mais do que eu as aturei, que faço os comentários que se seguem.

Durante vários textos, arrisquei-me a retratar o que seria o cotidiano de uma delegacia de polícia, ficando, por incompetência pessoal, muito aquém de reproduzir o dramático dia-a-dia de um ambiente policial, em sua crua e dura realidade, na ingente luta contra a criminalidade.

Foi - assim o considero -, um longo e persistente trabalho de elaboração ficcional (e aqui faço o grifo), temperado com variadas pitadas de crítica e ironia, gozações e tragédias utilizadas na movimentação das personagens (delegado, escrivães, policiais, faxineira, et caterva) e do plantel de desditosos figurantes que deram o azar de passar pela delegacia (inclusive o autor-narrador que escapou por pouco de lá ficar retido) – e tiveram a honra de merecerem acolhida no site Estação Capixaba graças à bondade de sua criadora Maria Clara Medeiros Santos Neves.

Pessoas reais serviram de base para a montagem dessa fauna humana ficcional; fatos e acontecimentos forneceram miolo para muitos textos; falas, expressões e ditos ouvidos ao acaso e registrados seletivamente foram capturados para contextualizar diálogos e cacoetes verbais de personagens, quer em sua passagem ocasional pela delegacia, quer pela presença constante como “funcionários” da casa onde “trabalhavam”; histórias e casos que me caíram no colo ou bolações nascidas de leituras em geral, inclusive situações envolvendo a Livraria Logos e a confraria de amigos que lá se reúne aos sábados, deram alimento a sortidos episódios.

De fundamental importância para a consistência da delegacia foi minha fraternal amizade com o escritor Pedro J.Nunes que, por ter sido escrivão de polícia (hoje graças a Deus aposentado), prodigalizou-me - consciente ou inconscientemente -, farto material para os textos que escrevi, tendo sido ele mesmo o protótipo humano em que me fixei para criar o escrivão Pedro – porém, nada mais do que Pedro, de anônimo sobrenome – que se fez personagem âncora da Chapot Presvot, 272.

Neste particular, confesso, agradecido, que em nenhum momento o meu fraternal amigo teceu a mais mínima restrição à apropriação de sua imagem para o personagem chave da delegacia. Ao contrário, sempre deu mostra, inclusive verbalmente, e graças à sua visão esclarecida de autor literário, que entendia perfeitamente a distinção entre o escrivão de polícia que na vida real ele foi, e o escrivão fictício, seu factóide, por mim “invencionado”.

E já que pisei o terreno das confissões, apesar de não solicitadas, mencione-se, recuando-se à origem da série da Chapot Presvot, 272, que quando escrevi o primeiro texto, ponto de partida da galeria que veio depois, não pensava em lhe dar desdobramento, nem continuidade.

Era para ser um conto único, e ponto final. Haja vista que qualquer comparação entre aquele primeiro escrito e os que o seguiram mostra o descasamento de concepção existente entre eles, numa demonstração de que a ideia de criar e consolidar a delegacia como antro ficcional das ficções que nela se passaram somente se configurou no espírito do autor depois do texto de partida, embora contenha este algumas características que o tornaram o embrião da série.

Lá está, para citar um só exemplo, a descrição da casa-sede da delegacia, já então dada como funcionando numa antiga residência térrea da rua Chapot Presvot, na Praia do Canto, em Vitória, mas sem indicação do número 272, que apareceria no segundo texto (número que, na realidade não existe naquela rua).

Posteriormente, já com vários episódios escritos e divulgados pelo site Estação Capixaba, identifiquei uma casa no mesmo estilo arquitetônico que eu havia imaginado para a delegacia, situada, porém, na rua Cândido Portinari, bairro Santa Luiza, em Vitória, (Delegacia da Mulher), que elegi emblematicamente para sede da Chapot Presvot, 272.

A foto dessa casa, que figura no cabeçalho dos textos da Estação Capixaba, custou-me, quando a estava tirando, uma abordagem de dois policiais numa viatura tipo camburão que vieram saber das intenções do fotógrafo que, de máquina em punho, fazia seus flashes com veleidades meramente literárias.

A abordagem, que felizmente não foi além de uma explicação que matou a questão sem maiores consequências, deu trigo e fermento para o texto Amigos, amigos ou um flagrante delito, um dos últimos a sair do fundo do estoque de que eu dispunha para ser divulgado na Estação Capixaba.

Já me estendi em voo largo para dizer o que foi dito sem me ser perguntado.

Mas antes de sapecar o ponto final nesta despedida, duas informações forçam passagem: os dois últimos textos que encerram a montoeira um tanto ou quanto eclética da Chapot Presvot, 272, prestam homenagem a grandes e queridos amigos que já se foram: Dores na cervical ou crime inafiançável aproveita o relato que ouvi a Ivan Borgo, vítima do fato relatado; e Fim de papo & nunca mais remete a Renato Pacheco e aos seus magníficos Cantos de Fernão Ferreiro.

Alguma coisa resta por ser acrescentado?

Sim, e quase ia me esquecendo: por que me vali de uma delegacia ficticiamente localizada na rua Chapot Presvot para travessuras imaginativas?

A resposta é, por óbvio, personalíssima: uma rua numa cidade como Vitória com o nome desse grande médico brasileiro não é para ser literariamente desprezada.

Posto isto, e nada mais havendo a tratar, cerrem-se as cortinas, apaguem-se as luzes e... fim de papo & nunca mais.


[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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© 2019 Textos com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

“O Espírito Santo é azul e rosa” disse Pedro contemplando a luz diáfana de maio que tanto enlevo causa ao fotógrafo Humberto Capai. E acred...


“O Espírito Santo é azul e rosa” disse Pedro contemplando a luz diáfana de maio que tanto enlevo causa ao fotógrafo Humberto Capai. E acreditando ter lido em Fernão Ferreiro uma referência a essa luz divinal na terra capixaba, pegou os Cantos que estavam sobre a mesinha da Olivetti, ao lado de um exemplar dos Irmãos Karamasof, e se pôs à cata.

Foi uma caminhada cata-cata pelos versos do grande vate, heterônimo do não menos grande Renato Pacheco, desde o verso de abertura: “Agora é tudo novo e ao longe nos conduz...

E foi somente, ora finalmente!, no Canto 45, que Pedro achou o que procurava, embora não fosse o que esperava achar:

...mas é maio que eu amo mais que todos. Vitória, em maio, é a melhor terra das costas do Brasil.

Antes que fiquemos sabendo o que o escrivão de polícia ia fazer com sua descoberta poética, entra Lenilda neste textículo como um tornado caribenho.

“Seu Pedrinho, o home chegou com os capetas. Pro senhor ter uma ideia, está chutando a mesa, as cadeiras e até jogou o chapeleiro das boinas no chão.”

“Se chutou o chapeleiro, temos um Vesúvio prestes a destruir Pompéia... É caso delicado,” concordou Pedrinho.

“Bota delicado nisso. O pior é que vai sobrar pro senhor,” preveniu a faxineira.

“Eu hein, Lenilda! Vê se me erra...”

“Não tem erro, nem meio erro, seu Pedrinho. Põe um colete à prova de balas e vai logo lá que ele mandou te chamar,” desobrigou-se Lenilda da missão que Digital lhe conferira.

“E eu que pensei que este dia de maio ia ser diáfano e radioso sob o encanto dos versos de Fernão Ferreiro,” disse Pedro, dirigindo-se para o gabinete do delegado.

Quando entrou, Digital tinha as feições alteradas, a cara ruça de ódio – ou russa de ódio, se o gentílico descrever melhor a fúria reinante na alma da criatura. Sem dar tempo ao escrivão para abrir a boca, fuzilou:

“Você sabia que tudo que acontece aqui na delegacia está sendo escrito por aquele escritor seu amigo?”

“Quem foi que disse isso?” perguntou Pedro se fazendo de bobo.

“Quem foi que disse não interessa! Eu quero saber se é verdade o que me disseram? Porque me contaram que eu, você, Lenilda, Nanico, o deputado Ribeirinho, às vezes até minha mulher, Engracia, e tudo o mais que se passa dentro das quatro paredes desta casa está sendo usado como matéria de gracinha pelo seu amigo,” cresceu Digital nas canelas.

“Bem...” começou Pedro, estudando a resposta que ia dar. “Eu já tinha ouvido falar, mas...”

“Nem mais, nem menos, nem porém, contudo, todavia” interveio o delegado, descontrolado. “Se é verdade o que estão dizendo, eu exijo que você tome uma providência e vai ser agora mesmo! Pegue o telefone e ligue pra ele. Diga que eu – veja bem – eu, o delegado Archibaldo Evangelino de Souza, proíbo terminantemente que continuem a ser publicadas coisas sobre nós e sobre a minha delegacia. Deixe claro, muito claro, que não se trata de um pedido, mas de uma ordem. Se ele achar que é ameaça, diga que é ameaça mesmo. Porque do jeito que estou puto, aliás, putíssimo da vida, sou capaz de mordê-lo na julgular como um vampiro.”

Pedro coçou o queixo e fitou o delegado com um olhar de comiseração intelectual, antes de perguntar: “Julgular, Digital?”

“Julgular, sim. Você não sabe onde fica?”

“Fica no pelscoço?” ironizou Pedro.

“Não se faça de besta comigo, nem desvie a conversa,” bronqueou o delegado. E estendendo o celular para Pedro fazer a ligação. “Disque logo!”

“Um disque denúncia?”

“Entenda como quiser, mas dique agora!” gritou Digital.

“Você não acha melhor pensar mais um pouco no assunto?” quis Pedro chamar Digital à razão.

“Pensando morreu um burro. Eu quero ação. Ação imediata, ação da sua parte! Minha delegacia tem de deixar de ser assunto de conversa mole, de piadinhas bestas na internet...”

Pedro, porém, não se deu por vencido.

“Você já pensou, delegado, que se ele parar de escrever seremos removidos de onde estamos?”

“Removidos por quê? Ele tem tanta força assim? Ou você se esquece que sou amigo do deputado Ribeirinho?”

Sem perder o olhar comiserativo, Pedro foi mais claro:

“É preciso que você saiba, delegado, que quando o meu amigo escritor escreve sobre o que se passa aqui na delegacia é porque tudo o que se passa aqui na delegacia é o que ele escreve, entendeu?”

“Isso é uma charada ou uma pegadinha?” protestou Digital.

“É a pura verdade” explicou Pedro. “Uma verdade com todas as letras ou, para ser mais exato, é a verdade das Letras.”

“Pois pegue cada uma dessas letras, de a a z, sem esquecer o dabliu, e enfie uma a uma no traseiro do seu amigo. Agora, ligue pra ele que eu mesmo falo! Vamos, porra!”

Pedro cumpriu a ordem e digitou o número que sabia de cor. Quando reconheceu a voz do outro lado da linha, passou o celular para o delegado sem nem sequer dizer bom dia.

“Alhou” gritou o delegado. “Alhou?” [E dirigindo-se a Pedro]: “Ou está mudo ou então não está ouvindo nada. Você ligou o número certo?”

“Liguei, delegado,” disse Pedro desanimado.

“Alhou, alhou... Você aí, seu idiota, seu paspalhão, seu imbecil, seu merda de escritor não está me ouvindo ou está se fazendo de morto?”

Pedro se aproximou de Digital e fez um apelo definitivo: “Desliga o celular, chefe!”

“Cala a boca, idiota, e não me chame de chefe!” Sem descolar os dentes do aparelho, Digital continuou esbravejando: “Alhou! Alhou! Ô bosta de escritor, tá querendo brincar comigo? Pois vai quebrar a cara, porque vou estrumbicar com sua cartola, ouviu? Está ouvindo, ou perdeu a língua de medo?!”

“Me dá o celular, Digital” disse Pedro tomando o aparelho à força e desligando-o.

“Por que você cortou a ligação?” explodiu o delegado ruço-russo.

“Será possível, Digital, que você não esteja entendendo nada do que está se passando?” perguntou o escrivão, procurando ser paciente.

“O que estou vendo é que você está protegendo seu amigo contra o seu chefe.”

“Agora você é chefe?” rebateu Pedro.

“É porque está em jogo a minha autoridade...”

“Neste ponto você tem razão,” concordou Pedro. “Só que está em jogo muito mais do que a sua autoridade de chefe, chefe. Está em jogo você, eu, Lenilda, Nanico, o seu amigo do peito, o deputado Ribeirinho, sua digníssima esposa dona Engrácia, e mais todas as cagadas que você tem feito aqui e fora daqui e que vai continuar fazendo se a Delegacia não for pro beleléu...”

“Não me venha com insolência, seu escrivãzinho metido a grande escritor... Vê se me respeita senão...”

Antes que terminasse a ameaça, Lenilda entrou no gabinete com uma ousadia que ninguém seria capaz de esperar dela.

“Dotô, tem um mensageiro aí com uma coroa de flores,” informou a faxineira.

“Coroa de flores?!” surpreendeu-se Digital olhando para Pedro com a cara dos três patetas numa só.

“E o endereço está certinho,” adiantou a faxineira.

“Então mande entrar o elemento,” ordenou o delegado.

“Ponho aonde, chefia?” perguntou o recém chegado, o rosto aparecendo como uma calota de roda de carro no meio da coroa funerária.

“Bota aí na minha mesa!”, berrou Digital. “E suma da minha frente!”

O entregador cumpriu a ordem e escapuliu das vistas de Digital antes que fosse tarde.

“Tem uma mensagem na faixa roxa”, avisou Lenilda. “Uma mensagem em letras douradas...”

“Pois leia o que está escrito, Pedro,” ordenou o delegado.

Pedro aproximou-se da coroa e leu em voz alta: “À memória da delegacia da Chapot Presvot, 272, e de seus ilustres figurantes.”

“Viu, Digital? Eu avisei...”, disse o escrivão, encarando o chefe.

“Que sacanagem é esta?” bradou Digital.

Foram as últimas palavras que se ouviram na Chapot Presvot, 272, embora ainda tivesse acorrido à mente de Pedro o verso de Fernão Ferreiro “Aqui a vela bruxuleia e se apaga...


[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Quando viu entrar na delegacia o amigo de tertúlias literárias Pedro deu um pulo da cadeira. “Você por aqui?!” O amigo aproximou-se de ...


Quando viu entrar na delegacia o amigo de tertúlias literárias Pedro deu um pulo da cadeira.

“Você por aqui?!”

O amigo aproximou-se de Pedro e explicou-se: “Ia passando aí em frente e resolvi entrar para revê-lo, já que você sumiu da livraria Logos.”

Todo festas com a visita inesperada, Pedro escorregou sua desculpa: “Tenho dado plantão aos sábados. Mas vou reaparecer em breve. O que você me conta de novo?”

O visitante, que havia se sentado com cuidado na cadeira que Pedro lhe indicara, começou reclamando de dores na coluna. “É terrível! Às vezes melhora, mas é folga passageira. Vivo dopado por analgésicos”.

“Eu imagino o que está passando,” disse Pedro, solidário. “Também tenho umas dores ciáticas que às vezes me crucificam durante dias. Se bobear, elas me pegam pelas costas, literalmente. Basta dizer que minha bicicleta tem amortecedor, para eu pedalar sem problema.”

“Ah, então você sabe como é...” disse o visitante ligeiramente consolado. “Mas quando as dores se tornam crônicas, como no meu caso, vira suplício cruciante. E qualquer aborrecimento, por mais idiota que seja, agrava as crises. Sei que é efeito psicológico, mas é inevitável. Agora mesmo estou em brasas.”

“O que houve desta vez?” perguntou Pedro.

“Foi uma bobagem, que em outras condições seria até motivo de riso, mas que adquiriu foros de tormento kafiquiano. O pior é que tudo se passou dentro da minha casa. Quer dizer, o aborrecimento veio a domicílio. Você sabe onde eu moro, não sabe?”

“Ainda não tive a honra...”, disse o escrivão.

“Porque não quis, pois já o convidei para ir lá. Quando isso acontecer você vai ver que tenho em minha casa um quintal de causar inveja aos meus amigos.”

“Quintal é uma das minhas recorrências míticas,” disse Pedro. “Como você, eu sou nascido e criado no interior do Estado...”

“Então você vai ficar de queixo caído com o meu quintal. Não é nenhum latifúndio, mas é um recanto edênico onde tenho um pé de romã, um de café, outro de carambola, um de acerola, que dá mancheias das próprias e um mamoeiro. Meu sonho, porém, é cultivar uma videira...”

“Pé de sapoti, você tem?” perguntou Pedro, sem querer menosprezar as vantagens do amigo.

“Sapoti não, por quê?”

“Porque eu me lembrei de uma senhora que esteve aqui na delegacia e fez os maiores elogios aos pés de sapoti... Segundo ela, quem teve um pé de sapoti não o esquece jamais.”

“Deve ser verdade. Mas não é apenas de árvores que o meu quintal é feito,” voltou o visitante às suas vanglórias domésticas. “Como você sabe, eu tenho um grande apego pelos bichos. Chego a acordar cedo para espalhar miolo de pão para a passarinhada se banquetear. São dezenas de pardais e bem-te-vis que rodeiam minhas plagas, em bandos alvoroçados. Eles até já sabem a hora do maná e ficam voejando de tocaia. Outro dia mesmo me apareceu de surpresa um quero-quero, que pousou no pé de acerola e armou um fuzuê danado entre os outros pássaros, com a sua presença estrangeira de invasor. Você sabe o que é um quero-quero?”

“Lá em Calçado ele é chamado de batuíra ou maçarico,” disse Pedro.

“Mas você sabe que ele se lança em vôo quilométrico do Círculo Polar à Terra do Fogo...”

“Esta particularidade eu não sabia.”

“Pois eu a aprendi no tratado de ornitologia do Sick. É um senhor compêndio sobre as aves. A peregrinação do quero-quero é tão impressionante que eu me sinto um privilegiado por hospedá-lo de passagem no meu pé de acerola.”

“Pelo que estou vendo, o seu quintal é um show ornitológico. Lá também tem beija-flor?”

“O QUÊ?! Tem beija-flor a três por dois! Acho até que eles me confundem com o fantasma do Ruschi. E não é pra menos. Eu me dou ao luxo de abastecer todo dia um bebedouro com água açucarada para os bichinhos se refestelarem. É um festim a que assisto embevecido,” informou o visitante.

“Você conhece uma flor chamada camarão? É um favo vermelho que beija-flor adora sorver. Se quiser eu consigo uma muda com Dona Lenilda, a faxineira da delegacia,” disse Pedro, mostrando-se também connaisseur na arte de alimentar beija-flor.

“Eu sei qual é! Já plantei um pé lá em casa, mas ainda não deu flor,” vibrou o amigo feliz com a sapiência de Pedro. “Mas como ia dizendo, eu cuido dos beija-flores com carinho. E foi isso que acabou me trazendo o aborrecimento de que falei.”

“O tormento kafiquiano?”

“Exatamente. Tudo porque eu encontrei um beija-flor de asa quebrada debaixo do bebedouro. Sem saber o que fazer, e cheio de pena do coitadinho, este seu amigo teve a infeliz idéia de ligar para ...”

“Não me diga que você cometeu a besteira de telefonar para o...” e Pedro disse o nome da repartição que cuida do meio ambiente.

“Cometi. Liguei para pedir ajuda, num SOS aflito. Já foi uma dificuldade danada encontrar o telefone na lista que está cada vez mais complicada. Parece um quebra-cabeça. Porque eu ainda uso lista telefônica com os telefones e endereços impressos”.

“Todo mundo reclama dessas listas. Quero dizer, todo mundo que ainda as usa... Elas lembram aquele jogo de labirinto em que a gente tem de achar a saída riscando pelos quadradinhos. E às vezes não se encontra o que se quer,” observou Pedro.

“O pior é que ninguém toma providência... Mas depois de muito custo, consegui achar o número. Liguei pra lá e fui atendido por uma funcionária a quem relatei o acidente. Ela disse que o órgão ia cuidar do caso, anotou meu telefone e endereço.”

“E o órgão mandou socorro?” perguntou Pedro acentuando a palavra órgão.

“O QUÊ?! Eu estava esperando que aparecesse um motoqueiro para levar o beija-flor, mas o que estacionou na minha porta foi uma Kombi, toda pintada de verde com o nome FISCALIZAÇÃO em letras negras garrafais, da qual saltaram seis funcionários para atender o beija-flor ferido! Eu tomei até um susto. Parecia assalto da SS de Hitler.”

“Você está brincando...!”

“... seis funcionários sem contar o motorista, que ficou na Kombi. Eles vieram de crachá pendurado no pescoço, mas, mesmo assim, se identificaram dando os nomes e os cargos. Os nomes eu não guardei, mas os cargos sim. Veio um ornitólogo, um biólogo, um veterinário, um auxiliar administrativo que, aliás, me pareceu a princípio o menos importante da equipe, uma ambientalista e uma assistente social.”

“Você tem certeza que era uma assistente social?”

“Eu também fiquei atônito. Mas ela me disse que era especialista em socialização de animais no meio urbano. Pela estimativa que fiz, calculando por baixo os salários dos seis e o do motorista, davam uns trinta salários mínimos, apenas para socorrer um beija-flor!”

“E você os deixou entrar?”

“Quem era eu para barrar aquela blitz? Fi-los entrar, como diria Jânio Quadros, e levei-os até o beija-flor que eu tinha tirado do chão e posto com cuidado numa caixa de sapato. Afastei-me então respeitosamente para que a equipe de especialistas pudesse trabalhar à vontade, como se fosse uma junta médica no atendimento a um paciente em estado terminal.”

‘“Foi o senhor mesmo que botou a ave na caixa de sapato?’ perguntou, de repente, o ornitólogo, numa virada de cabeça na minha direção”.

“Foi, por quê?”

“‘Porque fez muito mal. Quem não tem prática não deve tocar em animal ferido. Ou será que o senhor se julga algum Augusto Ruschi para saber lidar com beija-flores?’ E só por esta reprovação, seu Pedrinho, eu vi a burrice que tinha feito com meu telefonema de socorro.”

“Sabe que se o beija-flor morrer o senhor pode ser enquadrado em crime inafiançável’ disse, de arremate, e também de cabeça virada sobre o ombro, o funcionário administrativo que eu tinha considerado o menos importante da equipe.”

“Esse pessoal não tem mesmo jeito,” criticou Pedrinho. “Eles deviam passar uns dias aqui na delegacia para aprender o que devia ser crime inafiançável’.

“É, meu caro, mas depois dessa, o seu amigo aqui começou a perder as estribeiras. ‘Vamos com calma, senhores! Fui eu quem os chamou para socorrer o beija-flor, que não sei como apareceu ferido no meu quintal, e querem me culpar pelo acidente? Que brincadeira é esta?”

‘“Um quintalzinho que eu reputo impróprio para socializar aves no meio urbano’, disse a assistente social, o desprezo estampado na face.”

‘“É necessário que as coisas fiquem perfeitamente claras. Ninguém o está culpando pelo acidente, mas pela inadequada remoção do pássaro, o que pode levá-lo a óbito’, voltou a se pronunciar o funcionário que me parecera o menos categorizado do grupo.”

“Sua responsabilidade é essa’ acresceu o biólogo, um sujeito de bigode espesso e pálpebra ameaçadoramente caída sobre o olho direito.”

“E se eu tivesse jogado o beija-flor no lixo, sem notificar o acidente? perguntei, quase esbravejando, e sentindo as primeiras pontadas na coluna cervical.”

“Boa pergunta,” aprovou Pedro.

‘“Mas acontece que o senhor fez a notificação e não podemos mais ignorá-la,’ sentenciou o ornitólogo.”

“‘Ainda bem que o senhor a fez, porque é a única atenuante a seu favor,’ espetou a ambientalista, encarando-me com um par de olhos verdes que, em outras circunstâncias eu classificaria de ecologicamente perfeitos.”

“‘E porque não podemos ignorar o que se passou vamos ter de lavrar um auto de infração pela sua total falta de perícia na remoção da ave,’ bateu de sola o administrativo.”

“‘Enquanto o senhor lavra o auto, chefe, nós vamos levar o beija-flor para a Kombi,’ disse o veterinário. E sem dizer mais nada, saíram os cinco em procissão compacta, levando a ave no estado terminal que me estava sendo atribuído, enquanto o auxiliar administrativo, que eu acabara de saber que era o chefe da equipe, agredia-me com uma autuação cheia de artigos, parágrafos e alíneas da lei de proteção aos animais e ao meio ambiente. Tem coluna dorsal que resista a uma porrada dessas?”

“E você vai responder à autuação?” indagou Pedro já pensando em se oferecer para ajudar na elaboração da defesa.

“Vou, não, já respondi!”

“Não teria sido melhor contratar um advogado?”, perguntou o escrivão. “Não que eu duvide da sua capacidade de se defender sozinho, mas para enfrentar a turma do meio ambiente nunca é demais contar com um rábula experimentado em questões ambientais... Esses advogados estão na moda”.

“Cheguei a pensar nisso, mas desisti. Seria humilhação demais, não sei se você me entende. Por isso me enchi de razões e elaborei uma catilinária desaforada em que me defendi com honra e garra, terminando por dizer que era um absurdo que uns inconsequentes pretendessem me fazer de fármaco de um acidente para o qual não tinha concorrido... Você sabe o que quer dizer fármaco? É bode expiatório, em grego...”

“Parece nome de remédio,” observou Pedro.

“Tenho certeza que li a expressão em algum lugar com o significado de bode expiatório... E não foi em termos metafóricos,” disse o visitante.

“Em termos metafóricos não seria vantagem porque metaforicamente até crocodilo é xoxota,” proclamou Pedro, rindo.

“Boa tirada, Pedrinho. Mas seja lá o que significa a palavra fármaco, eles que quebrem a cabeça para saber do que se trata. No mínimo, vão pensar que é um termo jurídico...”

“Boa tirada, meu amigo”, foi a vez de Pedro retribuir o elogio.

“Que em nada adiantou para aliviar a dor que desde aquele dia martiriza meus costados...” remoeu-se o visitante.

“E você ainda conserva o bebedouro para os beija-flores?”

“Por que não?”

“Porque se fosse eu tinha acabado com ele imediatamente e ainda ia ficar gritando no quintal, xô, beija-flor, xô.”

“Com esta eu vou embora.”

E o amigo do escrivão levantou-se devagar sendo acompanhado gentilmente por Pedro que o levou até a porta, só não o transportando numa cadeira de rodas porque na delegacia não tinha uma e, se tivesse, não teria rodas.


[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Naquela manhã, Pedro, o escrivão, entrou na delegacia com cara de Nosferatu que passou a noite sem achar uma jugular para saciar sua hemato...


Naquela manhã, Pedro, o escrivão, entrou na delegacia com cara de Nosferatu que passou a noite sem achar uma jugular para saciar sua hematofagia. O aspecto de vampiro famélico não passou despercebido a Lenilda.

“O senhor está esquisito, seu Pedrinho! Chegou para trabalhar de cara franzida, falando sozinho... Será que se esqueceu de tomar em jejum seu suco de limões galegos espremidos?” perguntou a faxineira ao escrivão de polícia que acabava de aportar na delegacia.

“De fato, Lenilda, tenho andado taciturno.”

“Taciturno?!”

“É... calado, tristonho, cismado... Nunca ouviu falar em taciturno?”

“Já, mas pensei que era nome de homem...”

“Não me diga, Lenilda! Parece que estou ouvindo Digital falar...”

“Por Deus que eu pensava... E por que o senhor está assim?”

“Tudo porque li no livro Amor e Erotismo, do mexicano Octavio Paz que, para os budistas o eu é uma construção mental sem existência própria, uma quimera...”

“Que idéia mais complicada, seu Pedrinho... Se eu ficasse pensando nessas coisas, acabaria lelé da cuca,” disse Lenilda.

“Você tem razão porque é mesmo para se perder a razão. Pensa bem: se o eu não existe, segundo os budistas, como é que eu e você podemos dizer que somos pessoas distintas uma da outra, com sentimentos, desejos e pensamentos próprios? Por que se o meu eu – preste bem atenção – se o meu eu não existe, porque só na minha consciência existe a crença de que o meu eu exista, nada tem significação e sentido, pois, por dedução lógica, o que existe é o nada absoluto, está entendendo?”

“Não entendi nadinha, seu Pedrinho. Não é à toa que o senhor está tão taci... como foi que o senhor disse?”

“Taciturno.”

“Isso aí. Para o senhor melhorar vamos na cozinha da delegacia que eu faço um café quentinho para nós dois. Depois o senhor fuma um cigarrinho pra suas idéias voltarem pro lugar.”

Mas não foi possível irem porque naquele momento chegou o delegado e chegou de cara mais “nosferática” do que a de Pedro. E já mostrava pelo carrancudismo da carranca que não ia ser um dia bom para o escrivão, que foi convocado para uma conversinha na sala do delegado.

[Deste parêntese em diante a cena se passa com o delegado, e o texto corre no estilo dialogado de peça de teatro, ficando aos leitores imaginar o cenário e as reações dos atores, conferindo-lhes dramatismo ou comicidade a livre gosto].

Digital: Eu fiquei sabendo, seu Pedro, que você tem um site na Internet...

Pedro: Quem lhe disse?

D: Minha mulher Engrácia. Ela é que fuça essas coisas. Não tem o que fazer, fica de rabo grudado em frente do computador.

P: E descobriu meu site?

D: Foi. Ela me disse até que seu site tem nome de mulher...

P: Nome de mulher?!

D: Se não me engano é Tertúlia. Tanto nome macho por aí e você vai logo arranjar um nome que mais parece de piranha.

P: É verdade, Digital. Eu podia ter posto Pedrão, não é mesmo?

D: Gostos (Digital falou a palavra com o aberto) não se ‘discute’. Eu, por exemplo, não como nada que tenha glúteo. Mas a questão “grucial” é que minha mulher disse que você está me desmoralizando no site...

P: Estou desmoralizando você no site?

D: Foi o que Engrácia disse. E ela é como eu – tem olho de águia.

P: E o que dona Engrácia viu contra você no meu site?

D: Ela leu no site uma peça de teatro que tem um delegado que se parece comigo. Um delegado que é a minha cara, ela disse.

P: Você podia ser mais claro?

D: Engrácia me mostrou... É uma peça chamada, se não me engano, Auto do Túmulo de Anchieta. Está lá e você não pode negar.

P: E você acha que o delegado da peça é você?

D: Claro que não sou eu com o meu nome, que ninguém ia chegar a tal “peitulância”. Mas é a minha cara cuspida e escarrada pelo que Engrácia falou.

P: Você leu a peça?

D: Você sabe que eu não gosto de ler. Mas Engrácia leu e deu a opinião dela, que para mim basta. É um delegado machão que gosta de respeito e não admite ser passado pra trás como eu.

P: Olha, Digital, por muito respeito que eu tenha pela opinião de dona Engrácia, desta vez o olho de águia dela se enganou. O delegado da peça não é você! Tira esta idéia da cabeça.

D: Tiro pícolas nenhuma. Eu já investiguei direitinho. Quem escreveu a peça foi aquele escritor seu amigo que já esteve preso aqui. Ele estava tirando umas fotos da delegacia quando foi encanado, está lembrado? Por isso me botou na peça sem a minha autorização. E isso eu não admito! Está usando a minha imagem sem o meu consentimento.

P: Mas é um absurdo, Digital! Não faz o menor sentido o que você está dizendo!

D: Preste atenção no meu aviso, seu Pedro: se você não tirar a peça do seu site eu vou chamar o escritor seu amigo para um bate-pau na minha sala. Ele não vai gostar nada do que vai ouvir e o que via lhe acontecer.

P: Se você fizer uma coisa destas, Digital, vai cair no ridículo!

D: Ridículo é você querendo proteger seu amigo.

P: Deixa eu lhe propor uma questão, delegado: você se considera uma pessoa de baixo nível de inteligência?

D: Qual o sentido oculto da sua pergunta?

P: Você se considera burro?

D: É lógico que não!

P: Pois então você não é o delegado da peça porque o delegado da peça faz papel de burro e de bocó ao mesmo tempo. Estou falando porque eu li a peça antes de botar no site. Por isso garanto que o delegado não é você!

D: Apesar do que você está dizendo vou conversar novamente com Engrácia. Se ela concordar com sua opinião dou o assunto por encerrado.

P: Ótimo, Digital. Converse com ela, diga que você falou comigo, pede para ela reler a peça com atenção, depois me conte o resultado.

D: É o que vou fazer.

P: Tenho certeza que o olho de águia de dona Engrácia não vai falhar desta vez.

D: O olho dela e o meu também, porque agora vou querer ler essa merda de peça do começo ao fim.

P: Nem precisa ler tudo, para não ficar cansado. Leia somente a parte do delegado. Leia devagar sílaba por sílaba e depois me dê sua opinião.

D: Como é mesmo o nome da peça?

P: Auto do Túmulo de Anchieta.

D: É auto por que o túmulo de Anchieta fica na cidade alta, em Vitória?

P: Taí, Digital, você acertou na mosca!

[Fim do teatrinho oferecido à imaginação dos leitores].

“Podemos ir ao café, seu Pedrinho? Ou o senhor já melhorou depois da conversa com o dotô?” perguntou Lenilda cercando Pedro no corredor da delegacia depois que ele saiu da sala de Digital.

“Vamos ao café, minha amiga. Vamos para comemorar porque na conversa que tive com o delegado acabei de confirmar que o eu realmente só existe na cabeça das pessoas, ou seja, na cabeça de cada eu. Digital me deu a prova de que nada tem significação e sentido a não ser a significação e o sentido que cada um, ou seja, que cada eu empresta ao seu próprio significado e sentido, por mais sem sentido que possa parecer.”

“Olha, seu Pedrinho, eu nunca pensei que dr. Digital fosse tão inteligente,” disse Lenilda admirada.

“Pelo contrário, minha amiga. Ele é o mais burro dos burros que já encontrei na minha vida. Vou dizer mais: ele raciocina como um tamanco!” disse Pedro.

“Agora é que não entendi nada,” confessou Lenilda de cara abobalhada.

“No cafezinho eu lhe explico,” disse Pedro puxando-a pela mão às gargalhadas.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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© 2019 Textos com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Pedro parou na banca de jornal, a três quadras da delegacia para comprar um maço de cigarros, quando a RP 015 encostou ao seu lado. Ao volan...

Pedro parou na banca de jornal, a três quadras da delegacia para comprar um maço de cigarros, quando a RP 015 encostou ao seu lado. Ao volante, Anastácio ofereceu carona.

Pedro podia ter recusado já que estava quase chegando ao trabalho, mas aceitou.

Anastácio, vez por outra, enriquecia o repertório de anedotas de Pedro que tinha apenas o trabalho de aprimorá-las com mise-en-scène para repassá-las aos amigos. Só que não deu tempo para Anastácio contar a última. O percurso era pequeno e logo chegaram à Chapot Presvot, 272, sendo atropelados pelo delegado Digital.

O delegado aguardava a RP indócil. Foi o tempo de abrir uma das portas laterais e entrar como um bólido, ordenando: “Toca para o centro da cidade. Dois pivetes assaltaram uma financeira e adentraram num prédio na Duque de Caxias. Rapidinho.”

“E eu, delegado!?” perguntou Pedro que não pode sair da viatura.

“Você vem junto!” decretou Digital.

“Mas eu sou escrivão de polícia!” reclamou Pedro, embora tardiamente porque a RP já havia partido rangendo as borrachas no asfalto.

“É bom que você aprenda como a polícia age,” disse Digital como se Pedro, escrivão calejado, ignorasse o modo de agir da polícia e, em particular, de Digital.

Na Duque de Caxias não faltam prédios velhos e desocupados. Se Pedro soubesse de cor as palavras com que o cronista José Carlos de Oliveira descreveu o local, era o caso de repeti-las: “estamos na tortuosa, ondulante, magnífica rua Duque de Caxias, onde o que restou do Brasil-Colônia se esfarela, se enferruja, se carcome, estala e de vez em quando desaba num fragor de tijolos bolorentos e telhados podres”.

Foi diante de um desses mulundus em frangalhos que a RP 015 parou de sirene aberta, as lanternas psicodélicas piscando como boate ambulante, atraindo gente de todos os lados. Os dois pivetes, depois de assaltarem a financeira Quadrângulo, na praça Costa Pereira, teriam sido vistos entrando, não se sabe como, num dos pardieiros “da tortuosa, ondulante e magnífica rua”.

Saltando da viatura com a fúria de um buldogue, Digital gritou para dois policiais que o precederam no encalço aos assaltantes: “Limpem a área! Afastem os pentelhos! A polícia é que é incumbente de pegar bandido!”

Pedro, que saiu da RP atrás do delegado, caiu na burrice de dizer: “Pela porta da frente não entrou ninguém. Está fechada com tapume.”

“Não meta o nariz onde não é chamado,” esbravejou Digital. “Você veio aqui para ver a polícia agir e não para dar pitaco!”

O escrivão se recolheu então à condição de aprendiz da ação comandada pelo delegado, e já que estava em frente de outro edifício ainda em funcionamento, no qual trabalhava seu amigo, autor da tira de textos da Chapot Presvot, 272, decidiu subir para rever o escritor e, lá de cima, assistir à investida de Digital na captura dos assaltantes da Quadrângulo.

Pedro sabia que a sala do amigo dava estrategicamente para o prédio em despedaços diante do qual a RP 015 havia estacionado, sendo possível devassar o interior do soturno pardieiro através dos velhos janelões escancarados.

Mas curiosamente, quando Pedro entrou na sala, o amigo não dava a mínima atenção para a balbúrdia que reinava na rua, concentrado sobre o teclado de um computador.

Constrangido por não ter sido percebido, Pedro se anunciou raspando o pigarro da garganta.

“Com todos os demônios, eu não vi você chegar,” disse o amigo de Pedro.

“Cheguei, mas sem os demônios,” respondeu ele, procurando ajustar sua magreza na cadeira de encosto flexível que lhe foi oferecida. Nisso que falou, nisso pensou, com os seus pigarros dos cigarros que o único demônio que o acompanhara tinha ficado na rua de arma no coldre e focinho arreganhado, dando ordens aos policiais que forçavam, com um pé de cabra saído não se sabe de onde, o tapume de madeira do prédio onde os dois pivetes teriam se infiltrado.

“Como você consegue ficar alheio ao rebuliço lá de fora?” indagou Pedro. “Não me diga que está em plena atividade literária.”

“É por aí... Se não me interesso pelo rebuliço lá de fora é porque dou preferência ao que está se passando aqui, nesta telinha iluminada,” e o amigo de Pedro indicou o monitor onde se alinhava o texto que estava escrevendo.

“Posso saber que texto é este?” perguntou Pedro desligando-se, como intelectual que era, do bafafá que reinava no rés da rua.

O amigo respondeu com bonomia:

“O texto é sobre o que está se passando lá fora. Em outras palavras: o que está se passando lá fora está se passando aqui dentro da telinha. Ou para ser mais explícito: só estão se passando coisas lá fora porque elas se passam diante dos meus olhos. Percebeu a dimensão em que se trava o nosso encontro?

Como Pedro ainda não tivesse captado o espírito da “coisa”, o amigo convidou: “Dê uma olhada no que escrevi linhas atrás,” e apontou o trecho com o dedo: “Cheguei, mas sem os demônios,” respondeu Pedro, procurando ajustar sua magreza na cadeira de encosto flexível que lhe foi oferecida.”

“Então estou diante do escritor atuando no espaço virtual da sua criação literária?” indagou Pedro animando-se com a própria indagação.

“Tu o disseste. É por isso que não preciso ir à janela para ver Digital em polvorosa, nem o que está se passando no entorno dele. Porque o que se passa lá fora se passa no ‘quadrângulodo computador, onde estamos eu, você, Digital, a RP de luzes espalhafatosas, o povo aglomerado na expectativa da prisão dos dois larápios que se ocultaram num prédio em pandarecos.

“Uma criação em se fazendo,” definiu Pedro para se manter no espírito literário da conversa.

“Tão em se fazendo que você pode dar uma mãozinha. Quer tentar?”

“Por onde começamos? Ou de onde continuamos,” arvorou-se Pedro, esfregando as mãos momentaneamente vazias de cigarro.

“Pegue do ponto onde o texto parou e mande bala. Mas lembre-se de que a questão principal a ser resolvida é como o delegado vai conseguir ou não prender os dois bandidos,” disse o escritor a Pedro.

“Ou como queremos que ele os prenda, se é que queiramos”, completou o escrivão.

Queiramos, não, porque estou passando a você a pilotagem do texto. Assuma o comando e continue a perseguição. Eu fico só de co-piloto para eventuais emergências. Proposta aprovada?”

Nem foi preciso dizer mais nada. Assumindo o lugar do amigo diante do computador, Pedro se pôs a digitar, e digitar rapidamente como bom escrivão que era. Cinco minutos depois, tinha terminado.

“Leia a sua contribuição,” pediu o amigo de Pedro.

E Pedro leu: Digital entra no velho prédio pelo tapume que foi posto abaixo e faz uma investigação completa, à procura dos sumidos assaltantes. Não encontra vivalma. No último andar, tropeça num restolho de parede demolida, bate com a cara no assoalho e quebra o nariz que sangra. O herói, que iniciara a busca aos bandidos num arrojo de mastim, deixa o prédio pela porta arrombada com a carranca envolta num lenço ensanguentado, a caminho do pronto-socorro. Vive a triste humilhação do anti-herói.

“O que você achou?” perguntou, concluída a leitura.

“Perfeito, inclusive pela sua desforra contra Digital,” elogiou o amigo.

“Que desforra?”

“O nariz quebrado do delegado, meu caro! No começo da batida, Digital disse para você não meter o nariz onde não era chamado. Inconscientemente você foi à forra, esmigalhando o nariz do seu chefe num assoalho desgastado. Solução primorosa, anticlímax perfeito que tem ainda a originalidade de partir de um dos protagonistas da história, um dos passageiros da RP 015, o escrivão da Chapot Presvot, 272. E quer saber de uma coisa? Está na hora de você ir ao encontro do delegado. Pela sua proposta de enredo, ele está precisando de ajuda. A missão é sua, meu caro. Não foi à toa que a Providência Divina o pôs na RP da batida na Duque de Caxias.”

“Providência Divina?” indagou Pedro que se preparava para sair. “Como você explica a intervenção dessa providência no contexto de um texto que é nosso?”

“Desde que você encare a expressão em tom de blague, ela vem a calhar. Não se esqueça de que estamos na tortuosa, ondulante e eu diria também soturna Duque de Caxias, onde tudo é possível!”

“Será que estamos mesmo?” perguntou Pedro retirando-se da sala.


[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Como todo bom leitor dos autores russos consagrados, Pedro também tem o seu dia de romance policial – “um policial facultativo” –, com pre...



Como todo bom leitor dos autores russos consagrados, Pedro também tem o seu dia de romance policial – “um policial facultativo” –, com preferência para Simenon, menos pelo teor detetivesco das histórias do comissário Maigret do que pela mestria com que o escritor belga arma a ambientação em que se desenvolvem suas narrativas.

Bem a propósito, Pedro costuma dizer, do alto do seu grau de imortal de Academia de Letras, que o melhor de Simenon está no lado extrínseco das suas histórias e não no seu viés intrínseco – quem quiser que decifre o não muito sherloqueano enigma.

“Eu sei o que estou dizendo,” limita-se aduzir batendo no peito magro. E a se considerar a força com que sublinha sua eloquência não muito fática, esmurrando a caixa toráxica intrinsicamente sombreada pela pátina enfumaçada dos cigarros que cigarreou de longa data, é de se crer que a sentença proferida tenha o valor de um princípio irrefutável. Há que se aceitá-la e pronto e ponto.

Diga-se agora, para a continuidade do que se vinha dizendo, que foi num fim de semana em Vargem Alta que Pedro leu A noite na encruzilhada, de Simenon.

O romance o deixou em estado de fascínio intelectual ante a técnica literária do autor ao descrever um caso de sedução não consumada entre o comissário Maigret e a principal personagem feminina da história.

A cena, de insinuante erotismo, se passa numa casa misteriosa, à beira de uma encruzilhada, no interior da França. O clima de envolvimento entre Maigret e a mulher solitária é favorecido pela meia-luz de um quarto onde os raios do sol penetram fatiados em lâminas pelas persianas da janela. O resto é um delicioso jogo de insinuações e meias palavras que Simenon põe na boca dos seus personagens, construindo uma página antológica que empolgou Pedro.

Paradoxalmente, porém, o escrivão teve uma noite de pesadelo, sob o efeito da leitura do capítulo magistral, conforme contou a Nanico, quando chegou à delegacia.

“Você tem que me ouvir, Nanico, para que eu esconjure o mau pedaço que passei dormindo. Aliás, dormindo e sofrendo.”

“Você sonhou que estava sendo trucidado pela personagem do romance?” perguntou Nanico, oferecendo a orelha amiga para que Pedro inoculasse nela o seu desabafo.

“Pior, meu amigo. Meu pesadelo se passou aqui na delegacia. Eu havia chegado cedo para trabalhar quando Digital me chamou à sala dele. A delegacia estava calma e lá fora um sol primaveril apascentava a cidade de Vitória. Lembro-me bem que bati na porta, antes de entrar, e o delegado, no seu estilo boçal, gritou “eeentraaaa”, e eu entrei.

A princípio não distingui direito o interior do gabinete porque eu saía de um ambiente de primavera iluminada para outro, à meia luz, entrecortado por faixas de sol, mortiçamente filtradas pelas persianas da sala, semelhante ao que havia lido no romance de Simenon. Se tivesse de definir o cenário onde me achava diria que era um lugar zebrado de luz e sombra (sem falar, é claro, na zebra do delegado). Mas ao contrário de uma mulher sedutora, que estivesse à minha espera, o que vi foi Digital em pé, em cima da mesa, como um boneco dançarino, cantando o samba de Ataulfo Alves e Mario Lago, Atire a primeira pedra, que começa com o verso covarde sei que me podem chamar. Era uma cena grotesca que, no entanto, me magnetizava: o delegado sobre a mesa, se requebrando como uma stripteaser ao som de um samba que ele mesmo cantava. E tenho que reconhecer que entoado Digital é!”

“Isso já era uma submissão de seduzido?”, perguntou Nanico brincalhão.

“Talvez fosse porque ao mesmo tempo em que eu desejava sair da sala para me livrar da visão agressiva e bizarra, queria ficar para ver até onde o delegado era capaz de ir. O curioso é que eu pensava exatamente assim, no pesadelo, como se dissesse para mim mesmo, num plano de entressonho, que a qualquer momento podia acabar com aquela situação vexatória, bastando que acordasse. Mas não acordei.”

“E o delegado foi em frente...” disse Nanico.

“Foi. À medida que cantava ia tirando a roupa peça por peça, com gestos patéticos, sem parar de cantar, começando por baixar os suspensórios e descalçar os sapatos de verniz de bico fino que jogou na minha direção, com um sorriso boçaloide sob o bigode obsceno, enquanto continuava a se despir e a cantarolar, atire a primeira pedra, ai, ai, ai, atirando-me a gravata vermelha e a camisa verde-clara, suada e pegajosa, de mangas compridas, aquele que nunca sofreu por amor, e me vieram à cara as calças largas com os suspensórios pendurados, eu sei que vão censurar o meu proceder, e me alcançam o nariz as meias mal-cheirosas, seguidas de outra pedrada que era uma camiseta do tipo regata que me bate na testa, eu sei, mulher, que você mesma vai dizer que eu voltei pra me humilhar, e assim peça por peça ou pedra por pedra toda a indumentária do delegado me foi arremessada em golpes indefensáveis até que, num desnudamento final aquela Salomé virago e peluda me lança a cueca azul de bolinhas brancas, enquanto repete eufórica e estridente, mas não faz mal, você pode até sorrir, exibindo-me a genitália ignóbil, aliás, a digitália ignóbil. Não satisfeito com a exposição vergonhosa, virou-me as costas e me mostrou os fundilhos brancos e sórdidos, cantando perdão foi feito pra gente pedir.

Nem assim você acordou?” perguntou Nanico agoniado com o relato de Pedro.

“Quase acordei, Nanico. Mas por um desses mistérios que só acontecem nos sonhos, creio que meu inconsciente foi tocado pelo meu consciente revoltado e, repentinamente, comigo ainda numa solonolência esgarçada e renitente deu-se uma reviravolta compensadora no rumo do pesadelo: o que antes era um Digital abominável transformou-se numa mulher deslumbrante que me seduzia, nua e tentadora, piscando-me os olhos de castanholas.”

“Olhos de castanholas?!”

“Capitu, de Machado de Assis, não tinha olhos de ressaca? A musa do meu sonho tinha olhos de castanholas, e daí?”

“Daí que foi então aquela festa flamenga entre você e os olhos de castanholas,” disse Nanico ansioso por conhecer o clímax do sonho de Pedro.

“Que nada, Nanico, porque no melhor do melhor do meu sonho o despertador tocou e eu acordei duplamente chateado: pelo vexame a que me vi exposto no pesadelo com Digital, e pela frustração de não ter ido em frente com a castanholeira que bailou para mim o bailado mais lascivo a que já assisti na minha vida.”

“Não é para menos...” disse Nanico solidário com a má sorte do colega.

“Mas o mais irônico veio depois, meu amigo. Eu tinha certeza de que havia visto a mulher sonhada em algum lugar e quis por que quis me lembrar onde foi. Já pensou se ela estivesse ao meu alcance, na vida real? Esta possibilidade me espicaçava.”

“Espicaçava é o verbo adequado. E se lembrou?”

“Lembrei-me, não. Apareceu a margarida quando o despertador me acordou: era a bailarina que estava decalcada no mostrador do relógio... Não é para arrebentar meu cavaquinho?”

“Se fosse você eu quebrava o despertador,” disse Nanico.

“Foi o que eu fiz, meu amigo. Quebrei-o com bailarina e tudo. E ainda trouxe para mostrar a você a dançarina que sobrou do quebra-quebra. Veja-a. Não é lindamente sedutora?”

“Ela me lembra Digital...”, disse Nanico, rindo debochado do dedo fálico que Pedro lhe mostrou.



[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)


Duas Palavras Este livro, à moda de Ellery Queen, é fruto de antiga e fraternal associação criativa entre Luiz Guilherme Santos Neves e R...

Duas Palavras


Este livro, à moda de Ellery Queen, é fruto de antiga e fraternal associação criativa entre Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco. Realiza, a quatro mãos, o primeiro romance policial "capixaba" do século XXI, e talvez o primeiro romance policial "capixaba" de todos os tempos, se não levarmos em conta o livro de Azambuja Suzano, do século XIX.

O Dr. Silva Pontes foi inspirado no famoso e humanitário Dr. Silva Melo (1886-1973), tragicamente morto por seu mordomo e descobridor das maravilhas curativas de Guarapari. O padre Manezinho é o padre Manoel do Nascimento, cuja vida é descrita em A Centopéia, de Jayme Santos Neves (Vitória, edição do autor, 1989, p. 81 a 85).

As demais personagens são misturas de pessoas que viveram, à época, em Guarapari ou moraram na imaginação dos autores.


1. Um corpo no jardim


Os cães de rua, invadindo o amplo jardim do Radium Hotel, à beira da praia da Areia Preta, é que, com seus latidos, deram o alarme. Já lambiam e mordiscavam um cadáver desnudo.

Dona Maria Silveira, a cozinheira-chefe, e suas duas auxiliares, vieram correndo para ver que tanto barulho era aquele.

Encontraram o cadáver de uma hóspede, Dona Marinalva Cunha, em decúbito dorsal, sobre uma moita de azaléias. Dona Maria gritou:

"Socorro, socorro!"

As auxiliares, Pretinha e Jorete, correram para o interior do hotel, em busca de ajuda. Logo uma pequena multidão de hóspedes, empregados e curiosos se formou em torno do corpo.

O gerente, Delduque Bonfim, telefonou para a delegacia e, peremptório, disse: — Afastem-se. Não mexam em nada.

Num jipe velho, o delegado leigo Manoel Lyra chegou e dispersou os curiosos. Soube que era hóspede do hotel o famoso Dr. Silva Pontes e logo o convidou para presidir a autópsia.

O médico, descobridor das areias radioativas, se desculpou com sua próxima viagem para o Rio e eximiu-se da função. — Então — disse o delegado — como faço sempre, vou chamar o sacristão e o padre Manezinho para peritos... — E se justificou: — O sacristão fez até o 3° ano de medicina...

Silva Pontes, embora tenha se desobrigado do encargo, observou detidamente o local em que o corpo caíra, o possível ponto de queda na varanda do segundo andar do hotel, e, com surpresa, ao virar-se o corpo, verificou tratar-se de uma quase paralítica, sempre em cadeira de rodas, vítima de avançado reumatismo.


2. O Radium Hotel


Não se pode dizer que o prédio do Radium Hotel é bonito. Grande, isto ele é, um sobradão em forma de V, com mais de dois mil metros quadrados de jardim externo.

Sua construção fora planejada por um amazonense que estudara em Vitória, Adalberto Ferreira do Vale, presidente da Previdência Capitalização. Na falta de recursos ele vendera o prédio ao Governo do Estado, que o concluiu, aproveitando a planta previamente desenhada.

O hotel competia com os outros dois hotéis da localidade: o Vernistas e o Guará, menores e não tão bem localizados.

O Dr. Silva Pontes soubera na Suíça das virtudes radioativas das praias de Guarapari e resolvera visitar a pacata localidade de pescadores, 60 km ao sul de Vitória, famosa pelo discurso do vereador Quinca Nunes que dissera que Guarapari "era país formoso e hereditário, onde se respira o ar por conseqüência, tendo de um lado o oceano marital e, do outro, o oceano matagal..."

E também porque seu cemitério, para ser inaugurado, logo abaixo da secular Matriz, e olhando para o mar, precisou pedir um defunto emprestado à vizinha cidade de Benevente, onde morrera, em 1597, o padre Anchieta.

Silva Pontes pegou seu Ford 29 e enfrentando a falta de estradas saiu do Rio e foi a Muriaé, em Minas Gerais, ao norte, desceu para leste, em São Miguel do Veado, Cachoeiro de Itapemirim, e três dias depois e dois pneus trocados, chegou à paradisíaca cidade, então com cerca de 400 moradores, a maioria pescadores. Examinou detidamente as condições de salubridade, as virtudes radioativas da monazita e ilmenita, abundantes nas praias da cidade, e voltando ao Rio, passou a receitar para seus doentes de reumatismo que viessem enterrar-se nas areias de Guarapari.

Os resultados foram miraculosos, e com a propaganda boca a boca, em pouco tempo um fluxo de "visitantes" se dirigia, todos os anos, à bela região praiana, em busca de melhoras para seus males ou simplesmente pelo prazer de gozar de clima tão agradável, mesmo nos meses mais quentes.

Quando o Radium Hotel foi inaugurado, o Governo do Estado destinou uma suíte permanente ao grande divulgador da cidade.


3. Um laudo duvidoso


O sacristão Honorato chegou com o padre Manoel, mas logo se viu que, embora o primeiro conhecesse mais anatomia, era o padre quem dirigia o espetáculo.

De posse do Manual do Delegado, de autoria do desembargador Eurípides Queiroz do Valle, que o Governo distribuíra a todos os municípios, o padre lavrou o auto de corpo de delito, e concluiu, sem tergiversar:

"Foi suicídio."

Observava-o uma figura altiva de pincenê, costeletas bem aparadas, botinas, e cabelos visivelmente pintados de roxo.

O delegado Lyra olhou para o médico carioca, mas este se manteve discreto, sem nada comentar. Como não fora apresentado aos peritos leigos, relutava em pronunciar-se sobre o laudo. Porém sentia que algo estava errado. Chamou o delegado, em particular, e expôs-lhe suas dúvidas:

"Esta mulher foi morta por asfixia. Eu a examinei em vida e com as juntas tomadas pela artrite ela não conseguiria este feito miraculoso de lançar-se tão longe no jardim."

O delegado chamou o padre e o sacristão e lhes comunicou as objeções do médico. Padre Manezinho, apresentado à sumidade, subiu nas tamancas:

"Embora se lhe negue o repouso em solo sagrado, o veredicto é mais compatível com o interesse social..."

"Mas não com a verdade..."

"Ora, nem Cristo quis responder o que era verdade. Está em São João, 18:38, a conferir."

O delegado conciliador:

"Façamos um trato. Fica suicídio por uns dias, e eu investigo. Aí então se mantém ou não o laudo."

O escrivão, que fora investigar o quarto da morta, em companhia do soldado Ananias, trouxe à baila dois fatos surpreendentes: 1) Uma carta do irmão dela, de São Mateus, informando que, em vista da baixa do café, ele não poderia mais mantê-la naquele hotel de luxo; 2) quinze mil cruzeiros, em notas, importância muito alta para quem ia suicidar-se, que estavam no pequeno cofre que o hotel mantinha em todos os aposentos.

A carta, pensou o médico, justificaria o suicídio; o dinheiro seria, talvez, o móvel do homicídio.

"Sei não, neste pau tem formiga..."


4. Pequena biografia da falecida


Afinal, quem era Dona Marinalva Cunha que, com tanta pompa, ocupava a suíte presidencial do Radium Hotel desde o dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade?

Era uma simples professora primária em São Mateus, norte do Estado. Acometida de um reumatismo crônico, foi aposentada, com proventos proporcionais. Inválida, com inflamação na articulação do joelho, usava uma velha cadeira de rodas e, por recomendação do farmacêutico Silvares, que lhe receitava salicilato de sódio, banhos de luz e uma estada em Guarapari, veio com recursos que lhe foram fornecidos pelo irmão, rico proprietário da Fazenda da Cachoeira, às margens do Cricaré. (Nisso havia uma ponta de remorso fraternal, pois, quando do inventário do velho Leandro Cunha, conhecido como Lelé, o irmão fraudara a herança de Marinalva, então menor e sob sua tutela).

A moça fez espetaculares melhoras enterrando-se nas areias pretas e já dava até uns passinhos. No cassino clandestino do Hotel jogava sempre alto. Ouvido pelo delegado, José Wilson, o jovem gerente da tolerada casa de jogo, disse que não podia precisar, mas era bem possível que os 15 mil encontrados no cofrezinho do apartamento fossem lucros do jogo.

O irmão veio imediatamente de São Mateus, num avião teco-teco fretado, e tomou todas as providências para remover o corpo para sua cidade e, desde logo, requereu, como único herdeiro, a devolução do dinheiro que, incontestavelmente, pertencia à falecida.


5. Sobre o Padre Manezinho


Silva Pontes fora a Vitória almoçar com seu velho amigo, o pneumologista Dr. Jayme Santos Neves. À sobremesa, tomando um licor na varanda do apartamento do colega, de onde se descortinava bela vista do Parque Moscoso, falou-lhe da estranheza que lhe causara um padre legista leigo.

"Pois olha, Pontes, eu sou grande amigo do Padre Manezinho. Ele foi capelão do Exército no 3º RI da Praia Vermelha, ao tempo da Intentona Comunista de 1935. Lá ele atendia tanto aos militares quanto aos presos políticos. Fez-se amigo destes e levou, escondidas na batina, cartas para seus familiares. Certa feita, num arroubo de alegria, saudou-os, erguendo o braço esquerdo com o punho fechado. O guarda o revistou e ele também foi preso por causa das muitas cartas e pequenas encomendas. A pedido do Cardeal Leme foi solto e removido para a remota paróquia da Serra do Espírito Santo."

"E como ele foi parar no país calmoso e hereditário?"

"No dia de São Benedito, algumas velhas beatas entraram na sacristia e encontraram o santo pintado de branco. No inquérito que se abriu, o padre disse que estava restaurando a imagem, mas as devotas consideraram aquilo o supremo acinte. Donde o bispo Dom Luiz, que não quer confusão, o removeu para Guarapari, onde ele reza missa só para os pescadores locais, acrescidos de uns poucos veranistas, nesta época de calor. A propósito, determinado dia, segundo contam, o padre notou que não havia mais ninguém na missa. Perguntou ao sacristão e ele disse que dera xeréu nas redes, que seriam fatalmente destruídas se não fossem retiradas logo. O padre suspendeu a celebração e disse afobado: 'E o que você está fazendo que não vai puxar a nossa rede?'."

"Homem assaz curioso", foi o comentário do cientista. "Vou procurar conhecê-lo melhor..."

"Dê-lhe minhas lembranças", pediu Jayme.


6. A cozinheira faz importante revelação


É fácil de compreender que a morte de Dona Marinalva Cunha causou forte comoção na cidadezinha praiana. Suicídio? Homicídio? As opiniões se dividiam.

No amplo salão de almoço do Radium Hotel, Silva Pontes palitava os dentes, hábito que adquiriu desde que colocara um incômodo "root" na boca. A cozinheira do hotel foi-se chegando e lhe perguntou se gostava da moqueca de badejo...

"Sim, como não? Seu tempero é de primeira água..."

A empregada tomou coragem, perante tão elevada figura, e:

"Pois é, que coisa estranha, a morte de Dona Marinalva. Ainda ontem estava aí jogando buraco com a gente... E sabe, doutor Silva Pontes, na última tarde que jogamos (à noite ela ia para o cassininho, creio que o sr. já sabe), ela disse uma coisa que não me sai da cabeça."

Sem mostrar curiosidade, o médico disse apenas:

"Sim..."

"Pois é, Dona Marinalva disse que nem todas as mortes naturais que acontecem aqui em Guarapari são tão naturais como se propala... Que é que o sr. acha disso?"

"Eu não acho nada, minha senhora."

E deu início a um pequeno cochilo que parecia não ter fim.


7. Informações sobre as areias raras


Daquele pequeno "cochilo" que durou mais de uma hora surgiu na cabeça de Silva Pontes uma certeza: a morte do hotel estava relacionada com alguma morte trágica (e possivelmente criminosa) anterior. Decidiu ir conversar com o Padre Manezinho, na fresquinha da tarde.

Saiu pela Areia Preta, a mais famosa entre as trinta praias da vila municipal. Gostava de acompanhar aquele povo crente, enterrado na areia, em busca de cura para seus males reumáticos. Aquilo era invenção dele e ainda ia conseguir que se fizesse um pequeno hospital para estudar, cientificamente, os efeitos da radioatividade sobre o reumatismo.

Num guarda-sol perto da ponta do Siribeira, encontrou seu velho conhecido, o famoso cronista Rubem Braga, copo de uísque à mão.

O cronista o apresentou ao pintor Carybé, sempre silencioso, e disse:

"Estamos, eu e o Carybé, por contrato com o Governo, fazendo um livro de crônicas e desenhos sobre o Estado. Mas hoje é sábado, e como nos poemas de Vinícius e Ascenso Ferreira, ninguém é de ferro..."

"Você está bem e não precisa destas areias radioativas."

O cronista, meio alegrinho, retrucou:

"Mas aqui estão as velhas milionárias entrevadas e suas sobrinhas casadouras... Falando sério, ontem passamos o dia a entrevistar o Boris Ackermann, um judeu danado de sabido (pleonasmo, não?), diretor da Monazita e Ilmenita do Brasil Ltda."

Silva Pontes interessou-se logo pelo assunto, pois se relacionava diretamente com suas investigações médicas.

"Conte-me o que você registrou..."

O cronista não se fez de rogado:

"No fim do século 19 um inglês de nome Arthur Gordon obteve concessão para explorar estas areias desde Porto Seguro, na Bahia, a Marataízes, no sul do Espírito Santo. As areias iam para a Europa como lastro de navio, sem deixar nenhuma vantagem para o país. Depois ele vendeu a concessão a uma empresa francesa, Monazitique e Ilmenite du Brésil. Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas passaram a controlar a empresa e Boris Ackermann, então gerente, convenceu Oswaldo Aranha da necessidade de nacionalizar a empresa, criando-se então a firma Mibra, Monazita e Ilmenita do Brasil, sob a presidência do secretário da Fazenda do Estado. É isso aí... Agora parece que o Boris está às turras com o prefeito..."

E concluiu, dando uma golada grande na bebida:

"Sob o pretexto de, com as areias, fazerem lixas industriais e camisinhas para lampeões, estavam tirando minerais raros — plutônio, urânio — que eventualmente serviram ao projeto Manhattan, que deu origem à bomba atômica..."

E deu uma grande gargalhada, chamando a atenção dos poucos veranistas que ainda estavam na praia.


8. Visita ao Padre Manezinho


Agora, sim, Silva Pontes pôde encaminhar-se para a Casa Paroquial no outro lado da cidade. Na praia do Meio alguns garotos jogavam bola de borracha, que correu em direção ao médico.

"Chuta, vovô, chuta ela..."

Não se fez de rogado. Deu um bico na bolinha, e desajeitado como ele só, a bola subiu, atravessou a rua e foi espatifar uma vidraça do Carneiro da Cunha...

O dono da casa apareceu na varanda gritando com os meninos e com a bola cortada em pedaços, na mão.

Imediatamente Silva Pontes foi justificar-se perante o velho amigo Heliomar, prontificando-se a pagar o prejuízo.

"Que é isto, Dr. Silva Pontes. De jeito nenhum... Foi um infelicitas facti," disse, lembrando-se que, embora fiscal federal aposentado, era bacharel em direito como toda gente.

Despediram-se e finalmente desceu a rua principal em busca do padre.

Encontrou-o na sala da frente da colonial Casa Paroquial, fazendo malas com o aproveitamento de caixas de banha. Estava, diligentemente, colocando a fechadura numa mala vermelha.

Recebeu friamente o médico e só se abriu quando descobriu que ambos eram mineiros e de cidades próximas. O médico de Juiz de Fora e o padre de Lima Duarte, ali pertinho. [Renato se esqueceu que Silva Pontes foi dado antes como carioca].

Silva Pontes só não disse que estudara no Granberry, colégio evangélico de inspiração norte-americana.

"A que devo a sua honrosa visita, doutor?"

"Uma dúvida que eu tenho. Queria que o senhor me dissesse quais, na cidade, os casos recentes de mortes acidentais, que o senhor tenha examinado como legista leigo..."

O padre colocou o dedo sujo de cola na testa, pensou e disse:

"Foram poucos... Na Olaria, um queimado que caiu no forno... Hum... Hum... Um caminhãozinho que caiu da balsa e o motorista morreu afogado..."

E depois de algum tempo:

"O caso mais comentado foi a morte do milionário Laurindo Pitani, um homem muito herege e o mais rico da cidade. Levou, na protuberância occipital externa, uma pancada da vela bujarrona do barco dele, com conseqüente fratura do crânio e comoção cerebral... Foi encontrado morto no barco Andaluzia."

"Bingo. É esse aí..."

"É esse aí, o quê?"

Silva Pontes fez-se de misterioso, mas adiantou:

"Eu acho que esta morte tem ligação com a da professora Cunha..."

O padre abriu os olhos incrédulo.

"Estais brincando?"

"É o que veremos..."

Uma bela afro-brasileira, jovem baixinha e gordota, chegou à porta e disse:

"Senhor padre, o almoço está servido..."

O padre convidou o médico para acompanhá-lo no repasto de peixe frito, mas este, polidamente, recusou:

"Então o senhor fica intimado para a sexta-feira que vem. A Maria vai fazer torta capixaba, ouviu falar?"

E, à guisa de despedida, disse:

"A Maria eu não posso apresentar ao senhor como minha esposa porque a Santa Igreja Católica não deixa, mas não posso dizer que é minha empregada porque ela dorme comigo..."

Ante o espanto do médico saiu arrastando as alpercatas em direção à sala, deixando Silva Pontes sozinho no salão. Ele resolveu, por isto, sair de fininho, à francesa como se diz...


9. Levantamento urgente


Como o fórum era próximo, Silva Pontes passou por lá. O escrivão Lyra (irmão do delegado), devia-lhe favores no tratamento gratuito da esposa e fez-lhe muita festa.

"A que devo a honra de sua visita?"

"Eu queria um favor seu... Preciso dar uma olhada no inventário do senhor Laurindo Pitani."

"Ora, está aqui em cima da mesa, para levar para o juiz..."

Silva Pontes olhou a petição e as declarações iniciais, e se surpreendeu com um pedido, do final de novembro, cinco dias depois da morte do milionário, para levantamento de vinte mil cruzeiros, para despesas urgentes, inclusive da reforma da casa de moradia... O pedido fora imediatamente atendido.

Mais uma vez em seu cochilo no salão do Radium Hotel o médico pensou:

"Nesse mato há coisa... Está me cheirando a chantagem... Só não sei por quê, mas vou descobrir."


10. Intermezzo musical e amoroso


Silva Pontes não gostava de barulho, sofria com seus efeitos e dizia:

"Quem não sente considera frescura..."

Mas aquela noite todos os hóspedes do hotel, uns vinte mais ou menos, estavam convidados para uma serenata de Sílvio Caldas.

O caboclinho querido, como era chamado, viera, em outubro, cantar no hotel. Sob o patrocínio do Heitor Latorraca, arrendatário do Cassino (clandestino e tolerado pela polícia e pela Justiça), gostara da cidade e dois meses depois ainda se deixava ficar, comendo, bebendo e cantando. Dizia que já lançara suas músicas de Carnaval, e voltaria para o Rio depois do tríduo momesco.

Pois naquela noite de segunda-feira, Silva Pontes se viu sentado na pedra do Trampolim, entre a praia das Virtudes e a das Castanheiras, ouvindo Sílvio Caldas, dedilhando seu violão e cantando velhos sucessos sentimentais, "sertaneja se eu pudesse, se papai do Céu me desse um cantinho pra morar..."

Além dos veranistas, o povo da cidade também se fez presente e o recital ao ar livre (e gratuito) se prolongou até de madrugada.

Finalmente o cantor se despediu do público cantando "Aquarela do Brasil".

Na volta, o grupinho do hotel se compactou, mas Silva Pontes, mais lento, ficou um pouco para trás. Dona Débora Almeida, uma linda senhora vitoriense, cujo marido comerciante na Capital só vinha nos finais de semana, distanciou-se dos demais e disse:

"Vou fazer companhia ao grande médico..."

Com muita familiaridade deu-lhe o braço e, com surpresa para Silva Pontes, cravou-lhe as unhas afiadas no pulso, o que era uma notória manifestação histérica.

Diante disso, quando chegaram ao hotel, Silva Pontes em vez de entrar no seu apartamento, sem uma palavra sequer, entrou nos aposentos da moça, para experimentar do mel que aquela abelhinha produzia. Excelente mel, de flores de laranjeira, capaz de acalmar qualquer varão.

No domingo, Débora Almeida, com seu maiô vermelho de duas peças, estava muito feliz na praia, com seu marido e amigos. Contava o sucesso da serenata com o grande Sílvio Caldas. Só não relatou o epílogo.


11. Suspeita rechaçada


Silva Pontes foi procurar o delegado Manoel Lyra.

"Amigo, estou convencido que a morte de Dona Marinalva Cunha está ligada, por qualquer laço que ainda não descobri, com a do senhor Laurindo Pitani.."

"O quê? O senhor me desculpe, doutor, eu o respeito muito, mas o senhor anda lendo muito romance policial... O homem ia pescar... Ainda estava escuro... O mastro bateu-lhe na cabeça... Morte acidental. A mulherzinha está sem melhora no seu artritismo. Pula da varanda do hotel. Que tem (com perdão da má palavra) o cu com as calças?"

"O senhor se esquece dos quinze mil cruzeiros no cofre... É dinheiro pra chuchu, dá para comprar cinco fusquinhas..."

"Este dinheiro ela ganhou no jogo... Está mais que provado..."

O médico lançou seu último trunfo:

"Eu vi no inquérito, anexo ao inventário, que não encontraram a chave da caminhonete do falecido. Tiveram que rebocá-la para a garagem dele e trouxeram um chaveiro da Capital para fazer a chave..."

"Vamos supor que quando o Laurindo levou a pancada estivesse com as chaves na mão e elas tivessem caído no canal. Que me diz a isto, doutor detetive?"

O médico não disse nada.


12. A torta capixaba


Era sexta-feira e, conforme combinado, Silva Pontes saiu do hotel para comer a torta do padre. Passou antes na agência dos Correios, retirou de sua caixa postal A Tribuna da Imprensa, de cinco dias atrás, jornal do Carlos Lacerda de que era assinante, e três cartões atrasados com votos de boas festas, que rasgou e deixou na cesta que estava à porta.

Passou no armazém do Passinho, onde só havia um vinho português Alvarelhão, que comprou para dar de presente ao senhor vigário. Chegando à casa paroquial encontrou o padre, na porta, em animada conversa com três pescadores. Cumprimentou a todos e verificou que o mais falante dos três era também da família Lyra, o José, conhecido como Irmão. Não entendeu bem a história, pois chegou no meio, mas referia-se a um sacristão que roubava rapé do padre, e o substituía por merda de gato seca...

De repente, eis que desponta para os lados do canal, saindo do prédio da Prefeitura, e acompanhada de um cidadão de terno e que logo se soube que era o Dr. Monteiro, de Vitória, eis que surge uma bela morena toda vestida de preto.

José Lyra logo falou:

"Tem roupa na corda..." o que, no jargão local, significava que não poderia continuar com a conversa enquanto a moça não passasse.

Silva Pontes, curioso, perguntou ao padre:

"Quem é esta miss Guarapari?"

"Ora, meu caro, é Dona Lili Pitani, viúva daquele falecido milionário cuja morte chamou sua atenção outro dia..."

Quando a gente aprende uma palavra nova se surpreende nas horas ou dias seguintes ao vê-la, com freqüência. Assim também ocorre com uma pessoa. Porque, depois que o padre e Silva Pontes entraram, e os pescadores se dispersaram, Silva Pontes começou a jogar conversa fora dizendo que "é necessário ensinar nosso povo a plantar, a colher, a comer, a pescar e a agir."

O padre ficou indiferente às palavras do médico, que prosseguiu:

"A culinária é arte superior..."

E fez um rasgado elogio à mandioca, ao fubá, amendoim, melado e rapadura, e à soja, tão apreciada no Oriente. Foi então que, para mudar de assunto, Silva Pontes perguntou:

"Padre Manezinho, por que o prefeito Elésio brigou com o Boris Ackermann da Mibra? Falam em contrabando de areia, com sonegação de impostos..."

Os olhos do padre brilharam. Levantou-se. Ajeitou a puída batina. Deu dois passos para trás, balançando a bem fornida pança. E soletrou, compassado e solene, uma só palavra: "BO-CE-TA."

Ante o olhar espantado do convidado, esclareceu:

"Ambos estão arrastando a asa para a viúva do Laurindo, esta mesma que pisou nossas areias ardentes aí da frente, há poucos minutos..."

O almoço transcorreu muito bem. Comeram apenas arroz e a famosa torta capixaba. Mas que torta!

"É comer e chorar por demais," disse o médico.

Chamada a dar a receita, a Maria, mulher-cozinheira do padre, se embaralhou todinha. Falou no peixe, no caranguejo desfiado, nas ostras, nos camarões descascados, no palmito, os peixes são moídos e picados, temperados, refogados...

Silva Pontes, barriga cheia, uma leve sonolência, não prestou muita atenção, mas louvou os dotes culinários da moça.

"Se for boa de cama como cozinha, o padre está feito..."


13. Tosse providencial


No sábado chegou uma frente fria muito comum em dias muito quentes do verão, aqui chamada de "vento sul".

Silva Pontes, sujeito a gripes e tosses, preveniu-se com um cachecol, que ele chamava à antiga de cachenê, mas de nada adiantou. Começou a tossir, uma tosse seca de cachorro... Ficou dois dias de molho, sentado numa chaise longue, olhando o mar e a ilha Escalvada com seus castelos de luz e sombra, lá longe.

O enfermeiro do hotel, um empregado todo mesuroso, veio perguntar-lhe se podia ser útil, mas recebeu resposta negativa.

Na segunda, desceu até a farmácia do velho Trajano, única na cidade, em busca de um paliativo, um vinho de Bromil, no dizer de Rubem Braga, "o amigo do peito".

Não deixou de passar nos Correios, onde não havia correspondência, as cartas aqui chegam a passo de cágado, cumprimentou o padre Manezinho que o escorou:

"Continua suas investigações, doutor-detetive?"

"Ah, padre, depois daquela torta magnífica, o vento sul me derrubou..."

Trajano fez muitas festas ao famoso esculápio. Sua farmácia ocupava uma pequena e velha casa, ao lado da Usina de Beneficiamento da Mibra e na lateral do cais, no canal.

O farmacêutico disse que estava em falta do Bromil, muita gente estava tossindo, com a friagem, mas ainda lhe restaram três frascos de Mastruço Creosotado, do Laboratório Pelotense.

"O efeito é o mesmo. Tem gente que até prefere este."

"Ora, Trajano, este você paga seis e recebe uma dúzia, pensa que não sei?" disse, rindo, o médico, que acabou comprando por dois cruzeiros o remédio indicado pelo seu "colega" farmacêutico.

Depois este começou a falar na recente morte do Sr. Aleixo Neto, o homem mais velho da cidade, devia ter cerca de 106 anos.

"Imagine o senhor que ele mora aí na frente e demorou muito a morrer. Passava noites insones, arquejando com falta de ar... Eu não tenho oxigênio, mas fazia-lhe massagens nos peitos... Uma noite, dois ou três meses atrás, digo com precisão, dia da padroeira Nossa Senhora da Conceição, tenho certeza pois havia festa em frente à Prefeitura, do boi Jaraguá, e a zoada só fazia enervar o moribundo. De madrugada, pela janela, ao longe, eu vi chegar a caminhonete do Laurindo Pitani e um vulto saiu carregando outro como se estivesse bêbado...Depois o doente chamou meus cuidados e só vi um homem sair correndo, canal acima, deixando a caminhonete lá..."

Silva Pontes arregalou os olhos:

"E você não contou isto ao delegado?"

"Eu aqui, doutor, sou da oposição. Eu sigo o PTB, do Dr. Getúlio Vargas. O governo é da UDN e nós não nos damos."

Silva Pontes sentiu que sua investigação tomaria, agora, novo rumo.


14. Um tiro à luz do dia


Procurou o delegado e relatou sua nova e sensacional descoberta. Manoel Lyra disse-lhe, aborrecido:

"Ah, doutor, isto já está enchendo o saco. O que o senhor quer que eu faça?"

"Que descubra quem era o vulto na madrugada..."

"Pode deixar, doutor. Agora mesmo vou determinar ao investigador Pepê as diligências necessárias."

O médico saiu da delegacia incrédulo e resolveu ele mesmo encetar investigação paralela. Sua hipótese de que havia algo de podre na morte do milionário, e que resultara na conseqüente morte da professora, estava cada vez mais forte.

Passou, como sempre fazia, pelo bequinho que, saindo da rua Principal, dava nos Correios. Um farfalhar de folhas de um grande cajueiro chamou-lhe a atenção. Virou-se rapidamente e recebeu, no braço, o impacto de uma bala.

O tiro passou de raspão e a observação que fez da minúscula bala mostrou que era de uma garrucha de pequeno calibre. Entendeu que, embora o disparo fosse para ele, era apenas uma advertência porque estava revolvendo defuntos já enterrados. Resolveu nem comunicar o fato ao delegado.

No hotel, fez um ligeiro curativo e sentou-se na varanda, a tirar seu famoso cochilo meditativo, onde tudo se esclarecia.


15. A identidade do sr. X


À noite, no jantar, foi conversar com Dona Maria Silveira, a cozinheira sabe-tudo que já lhe dera importante dica a respeito da falecida Marinalva Cunha.

"Dona Maria, quem costumava dirigir a caminhonete F-16 do senhor Laurindo Pitani?"

"Todo mundo, doutor... Seu Pitani era o mais mão aberta da cidade. Era só pedir-lhe as chaves para levar doentes ou transportar manjubas."

"Sim, mas não tinha alguns mais chegados?"

"Só os companheiros de pôquer, três fazendeirões do sul do Estado e o enfermeiro aqui do hotel, que o povo dizia que era o fatoto do milionário..."

Silva Pontes deu-se por satisfeito. Excluiu os companheiros do pôquer que haviam voltado para passar o Natal em casa, e fixou-se no enfermeiro, um belo índio misturado com libanês, cheio de salamaleques.

Chamou-o e pediu que removesse o curativo no braço ferido.

"Virge, doutor, que foi isso?"

As mãos do rapaz tremiam.

"Uma bala perdida que quase me atingiu."

Feito o curativo, o médico procurou, de novo, o delegado.

"Seu Manoel, quem matou a professora e provavelmente o milionário foi o Militão Jorge, enfermeiro do hotel."

"Doutor, parece até idéia fixa, obsessão... O que o senhor quer que eu faça?"

"Que o intime à delegacia e me permita fazer-lhe as perguntas."


16. Uma dupla confissão


Militão Jorge era daqueles que diziam que nunca haviam ido a uma delegacia, nem como testemunha. Criado na beira da praia, trabalhou quando adolescente na farmácia do Trajano e, quando o Radium Hotel foi inaugurado, foi contratado como enfermeiro, quase uma sinecura que se limitava a levar os hóspedes, pela manhã, para enterrá-los na areia preta e trazê-los na hora do almoço.

Morando perto da mansão do Laurindo Pitani, nas horas vagas fazia de um tudo para o milionário.

Entrou na sala do delegado branco como cera. Espantou-se de encontrar ali o famoso Dr. Silva Pontes, assessorando o delegado Lyra.

E foi o Dr. Pontes quem formalmente lhe perguntou:

"Sr. Militão, onde o senhor estava na noite do dia 8 de dezembro passado?"

"Eu acho que fui dormir cedo. Havia boi Jaraguá na cidade e eu não gosto de barulho."

O médico sentiu uma estranha afinidade com o interrogado, ele também não gostava de barulho, mas prosseguiu austero:

"Pois duas testemunhas o viram, madrugadinha já, no cais da balsa."

"Mentira pura..." (Aí o enfermeiro se enrascou.) "Não havia ninguém na praça Municipal..."

"Ora, ora, pois muito que bem, meu manduca... Você dormia ou estava lá?"

O rapaz desfez-se de sua versão do sono reparador. O delegado resolveu apoiar integralmente o médico.

"E tem mais uma coisa, meu velho. Este chaveiro que está no seu bolso era do falecido..."

"Foi meu patrão que me deu..."

"Como, se era o chaveiro que ele mais mostrava aos amigos, aqui na cidade? Ele dizia que foi um presente do Boris, quando veio de Nova Iorque. Peça fina, de prata, representando a estátua da liberdade."

O enfermeiro balbuciava:

"Foi presente do patrão..."

O delegado se exaltou:

"Vou mandar o soldado 500 dar um couro nesse cabra."

"Não, doutor, não, isso não."

Todos tinham medo do soldado 500, um afro-brasileiro forte, de quase dois metros, conhecido como matador e estuprador.

"Então conte o que aconteceu na noite do dia 8 de dezembro do ano findo."

"Conto. Conto a verdade. Foi assim. Seu Laurindo mandou-me dizer à Dona Lili que ele ia jogar pôquer até de madrugada. Bati, bati, e nada da mulher atender. Depois ela abriu a janela e disse — eu vi que ela estava de camisola: 'Ah, é você, Militão?' Dei o recado do patrão, quando, para mal dos meus pecados, já ia embora, a mulher disse: 'Entre, Militão, que eu quero que você faça um servicinho na pia da copa...' Quase meia noite e um mulherão daquele querendo um serviço na copa? Entrei. Ela nem botou um peignoir por cima da curtíssima camisola. Quando eu me abaixei para ver o vazamento ela deitou em cima de mim... E foi nessa posição que o patrão nos encontrou... Ele estava embriagado, mas puxou do revólver... Como sou mais jovem e mais forte, tomei-lhe a arma, ele caiu e Dona Lili o acertou com um rolo de macarrão. Podes crer, o homem exalou ali seu último suspiro. Aí eu disse: 'Vamos chamar o delegado.' A Dona Lili disse: 'Nada disso. Você vai na lancha e simula lá um acidente.' Dito e feito. Peguei o homem pelas pernas, puxei-o para a caminhonete. Era noite de festa, o senhor já disse, e eu tive que dar uma volta imensa pelo morro dos Cascais..."

"Tudo bem," disse o delegado, "que fez você então?"

O enfermeiro pediu um copo d'água.

"Eu devia dar-lhe um copo de vinagre..."

O rapaz continuou:

"Bati com a cabeça do homem no mastro, no mesmo lugar em que a mulher o feriu... Deixei-o estatelado no convés. Meu azar, quando saí correndo, foi que esqueci de deixar as chaves com ele... E o chaveiro eu invejava ele e aí deu na minha telha ficar com ele... Burrice, não?"

"Tudo bem. Isto está esclarecido. Mas o que tem Dona Marinalva Cunha a ver com isto?"

"A velha, de sua janela, viu tudo. Escreveu a Dona Lili uma carta anônima exigindo quinze mil cruzeiros sob pena de nos denunciar. Eu fui encarregado de colocar o dinheiro junto ao extintor de incêndio do segundo andar do Radium Hotel. Coloquei, e cumprindo ordens de Dona Lili, escondi-me atrás de uma cortina de gorgorão vermelho. A paralítica lá evém em sua cadeira de rodas, ring-ring-ring. Parece que desconfiou de alguma coisa, passou pelo extintor e continuou até a porta do cassino. Depois voltou e com uma rapidez que eu não a julgava capaz, retirou o embrulhinho de cima da peça e foi para o apartamento dela. Voltei e contei tudo a Dona Lili."

"Você tem que matar esta mulher..."

"Mas..."

"Nem fusa, nem fó de ferreiro...É hoje..."

"Eu estava meio abilolado, meio apaixonado. Já fizera muitas massagens na pobre professora. Tinha pena dela e das gorjetas de um cruzeiro que ela me dava. Fui. Pé ante pé, peguei um travesseiro e a sufoquei. Depois, de acordo com a sugestão da patroa, joguei-a ao pátio, semelhando um suicídio, que quase foi aceito... Isto é tudo."

"Tudo não," lembrou-se o delegado. "Não foi você que deu um tiro no doutor aqui?"

"Foi sim, foi sim, mas por ordem de madame. Ela soube que o médico estava bisbilhotando as mortes e mandou eu dar-lhe um susto... Usei uma garrucha velha que não mata nem preá..."

[Renato esqueceu que o médico não havia contado o incidente ao delegado.]

O delegado se deu por satisfeito e gritou, fazendo valer sua autoridade:

"Seu cachorro, recolha este safado no pior cubículo da cadeia."

[Outra passagem sem sentido. A quem se dirigia o delegado?]


17. Enfrentando a viúva


"E agora, doutor? Está satisfeito?"

"Agora o senhor tem que acarear o enfermeiro com a viúva."

"Eu? Vou pedir um delegado especial, bacharel em direito. A mulher é rica e está nas graças do prefeito..."

"Faça como quiser... Minha missão, considero-a finda satisfatoriamente," disse o médico carioca.

O delegado especial veio. Era um advogado recém-formado, cuidadoso com os trajes e perfumes, alfinete de gravata com uma caveirinha, e muito falante. Tinha um grande anel de advogado e fazia questão de ser chamado Doutor Paulo Thomé.

Por motivo ignorado, convidou Silva Pontes para assistir à conversa que teria com a viúva. O médico relutou, mas, ao final, não tinha nada a perder, foi.

A casa senhorial tinha fachada coberta de antigos azulejos portugueses, restos de uma demolição que, segundo informaram, tinha uma finalidade mais protetora do estuque do que estética. Enquanto esperava, ficou a admirar a bela construção, e tentando identificar os santos reproduzidos em grupos selecionados de azulejos.

Foram admitidos no salão.

A viúva estava linda, num vestido decotadíssimo e um colar com uma pequena cruz. Recebeu o delegado, o escrivão e o médico toda sorrisos. Assessorava-a o advogado Dr. Monteiro, famoso chicanista da Capital.

O delegado entrou todo maneiroso no assunto. Tinha um depoimento do sr. Militão Jorge que desejava ler. E perguntou:

"A senhora conhece o sr. Militão?"

"Claro. Ele trabalhava para meu falecido marido, mas estava brigado com ele por causa de acerto de salário..." A mulher ficou impassível durante toda a leitura que o escrivão fez.

Enquanto isto, Silva Pontes a observava discretamente. Que mulheraço! Constava, na cidade, que o Laurindo Pitani, desquitado, sem filhos (a falta de filhos fora a causa da separação), a trouxera de um bordel de Itabuna ou Ilhéus. Ela era odiada pelas senhoras locais, por causa da sua arrogância.

Ao fim e ao cabo, o advogado disse:

"Não fale nada..."

"Mas, Dr. Monteiro, eu quero falar. Isto é uma mentira cruel. Eu nunca cheguei nem perto desse filho da puta, arraia miúda, pé de chinelo. Eu sou bem nascida da família Dupin, de Salvador. Esse aí é lá de Meaípe."

E virando-se para Silva Pontes, com raiva incontida e chispas faiscando nos olhos:

"Todos estão dizendo que isto foi insinuado pelo senhor, doutor. Eu nunca lhe fiz mal... Se o senhor é tão mau médico quanto detetive, seus clientes estão perdidos..."

O delegado assumiu o comando da situação:

"Então a senhora nega todas as acusações?"

"Nego. Todas. Todinhas. Perguntem ao acusado o que aconteceu, na verdade, e ele vai esclarecer..."

O delegado mandou lavrar o termo de depoimento, e retiraram-se todos em silêncio.


18. Surpresa!


No dia seguinte a cidade amanheceu cheia de boatos. Aos poucos Silva Pontes ficou sabendo que o Militão Jorge retificara sua confissão!

Pela nova versão ele fora o autor dos dois crimes, que não tinham nada um com o outro.

Na madrugada do dia 8 de dezembro ele ia pescar, em alto mar, com o patrão, que chegou no barco "Andaluzia" muito bêbado. Desentenderam-se e entraram em luta. O milionário caiu, bateu com a cabeça na quina do motor da lancha, e morrera. Apavorado, ele deixou o morto lá e saiu correndo, levando, na pressa, as chaves da caminhonete do Pitani.

Meio mês depois ele soube, no Hotel, que Dona Marinalva Cunha tinha ganhado uma bolada na roleta. Como enfermeiro da casa e massagista da professora tinha conhecimento de que ela tinha insônia e dormia sob efeitos de remédios.

De madrugada, entrou no quarto para roubar ("não todo o dinheiro, eu não faria isso com a pobrezinha") um pouco do cofre que ficava no armário do apartamento. Quando abriu a porta fez barulho, a mulher estava acordada, olhou-o com olhos de medo, e o jeito foi silenciá-la com um travesseiro. Jogá-la no jardim foi uma idéia súbita, pois queria (como foi pensado) que parecesse suicídio.

É isto aí.

Falaram também que a casa da mãe do enfermeiro, em Meaípe, que era de tábuas, num passe de mágica, virou de alvenaria e que colocaram no Banco do Brasil, em Vitória, polpuda importância em seu nome, em conta conjunta com o filho, fofocas que permitiram à maioria entender que havia maracutaia no caso.


19. A denúncia


O inquérito concluído foi para Anchieta, cabeça da comarca, de que Guarapari era termo.

O promotor público, Dr. Geraldo Alves, analisou todas as peças e se convenceu da culpa do enfermeiro e da viúva.

Denunciou ambos, e como mandava a lei, pediu fosse decretada sua prisão preventiva.

Era sexta-feira e o juiz, Dr. José Firme, levou os autos para casa. No sábado, um carro oficial veio requisitar-lhe, da parte do Tribunal, informações urgentes sobre o processo, imediatamente fornecidas com a bela letra do magistrado.

Na segunda-feira, por decisão do relator, desembargador Honestino Guedes, o processo foi trancado no que concerne à acusada Liliane Dupin Pitani, por falta de justa causa.

No devido tempo, Militão Jorge foi condenado pelo júri a 13 anos de reclusão, pena pequena se se levar em conta que havia em pauta dois homicídios qualificados.

20. E agora me vou...

Silva Pontes deu por encerrado seu veraneio daquele ano. Pediu que a caminhonete do hotel o levasse à Capital, onde tomaria o avião para o Rio.

Passou na Casa Paroquial onde o padre Manezinho o abraçou efusivamente, sob o olhar atônito de D. Maria, que apreciava aquele balancê ridículo do padre baixote e gordo e do médico espigado e magro, como que dançando, sem música.

No cais da balsa [Renato volta ao tempo da balsa, quando anteriormente o texto sugeria que a época do romance fosse posterior à construção da ponte de Guarapari, pois falou até em fusquinhas] já havia três carros na fila. Enquanto esperava, ficou o médico a olhar a usina da Mibra, onde eram separadas, pelo peso, em esteiras rolantes, as diversas areias raras — monazita amarela do sol, ilmenita preta como a noite.

Enfim, atravessaram o estreito canal e começaram a viagem de duas horas, levantando poeira em Muquiçaba, nas Neves, Amarelos.

No Barro Branco um homem de alpercata e boné tipo roceiro pediu carona. O motorista não queria dar, mas Silva Pontes reconheceu no suplicante seu velho amigo, o desembargador Vicente Saavedra, dono de um sítio ali.

"Perdi o ônibus e tenho que chegar ao Tribunal antes do meio dia..."

O motorista queria que o desembargador ocupasse lugar na carroceria, onde havia dois servidores do hotel e um engradado com galinhas, mas Silva Pontes bateu o pé:

"Não senhor. O homem é importante. A gente aperta na boléia."

Em Araçatiba, o radiador do velho carro ferveu e o motorista teve de parar para conseguir água no rio Jucu.

Enquanto esperava em baixo de uma mangueira, o velho magistrado confidenciou:

"Pois é, eu lhe peço sigilo, mas estou indo para uma sessão secreta muito dolorosa pois vão entrar em pauta denúncias contra um colega, o Honestino Guedes. Há diversas acusações, inclusive um trancamento escabroso de um processo de uma viúva milionária aí de Guarapari..."

Silva Pontes sentiu-se, de certa forma, vingado. O homem que livrara a cara da viúva agora estava sendo julgado... Disse ao amigo:

"Entrou por um ouvido, saiu pelo outro..."

Deixaram o desembargador no Parque Moscoso, onde ele ia trocar de roupa e almoçar, e foram, pela Avenida Vitória e Reta da Penha, para o campo de aviação, em Goiabeiras.

Silva Pontes tinha passagem na Aerovias Brasil, que operava uns velhos DC 3 salvos da Segunda Guerra, despressurizados. O médico detestava a viagem, pois enjoava, terrivelmente.

Usando o seu prestígio, entrou logo no avião e sentou-se no primeiro banco. Bem depois começaram a chegar os demais passageiros.

Uma mulher belíssima, bem maquiada, num vestido branco impecável, bateu no ombro do médico, piscou-lhe um olho e deu uma risadinha.

No primeiro momento não reconheceu a viúva Pitani. Logo atrás dela, tendo à mão uma trousse feminina, o delegado Paulo Thomé, terno de tergal preto, brilhoso e cafona, de agente secreto, o qual virou o rosto para não cumprimentar o médico. Fez que não o conhecia.

Em cinco minutos, mesmo antes de o avião decolar, o Dr. Silva Pontes já estava nos seus cochilos silenciosos, sonhando com Guarapari, maravilha da Natureza.

[Texto corrido extraído da primeira versão manuscrita do romance, com 58 folhas numeradas, escritas na frente e no verso. Reprodução autorizada pela família.]


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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)