Dores na cervical ou crime inafiançável
Quando viu entrar na delegacia o amigo de tertúlias literárias Pedro deu um pulo da cadeira.
“Você por aqui?!”
O amigo aproximou-se de Pedro e explicou-se: “Ia passando aí em frente e resolvi entrar para revê-lo, já que você sumiu da livraria Logos.”
Todo festas com a visita inesperada, Pedro escorregou sua desculpa: “Tenho dado plantão aos sábados. Mas vou reaparecer em breve. O que você me conta de novo?”
O visitante, que havia se sentado com cuidado na cadeira que Pedro lhe indicara, começou reclamando de dores na coluna. “É terrível! Às vezes melhora, mas é folga passageira. Vivo dopado por analgésicos”.
“Eu imagino o que está passando,” disse Pedro, solidário. “Também tenho umas dores ciáticas que às vezes me crucificam durante dias. Se bobear, elas me pegam pelas costas, literalmente. Basta dizer que minha bicicleta tem amortecedor, para eu pedalar sem problema.”
“Ah, então você sabe como é...” disse o visitante ligeiramente consolado. “Mas quando as dores se tornam crônicas, como no meu caso, vira suplício cruciante. E qualquer aborrecimento, por mais idiota que seja, agrava as crises. Sei que é efeito psicológico, mas é inevitável. Agora mesmo estou em brasas.”
“O que houve desta vez?” perguntou Pedro.
“Foi uma bobagem, que em outras condições seria até motivo de riso, mas que adquiriu foros de tormento kafiquiano. O pior é que tudo se passou dentro da minha casa. Quer dizer, o aborrecimento veio a domicílio. Você sabe onde eu moro, não sabe?”
“Ainda não tive a honra...”, disse o escrivão.
“Porque não quis, pois já o convidei para ir lá. Quando isso acontecer você vai ver que tenho em minha casa um quintal de causar inveja aos meus amigos.”
“Quintal é uma das minhas recorrências míticas,” disse Pedro. “Como você, eu sou nascido e criado no interior do Estado...”
“Então você vai ficar de queixo caído com o meu quintal. Não é nenhum latifúndio, mas é um recanto edênico onde tenho um pé de romã, um de café, outro de carambola, um de acerola, que dá mancheias das próprias e um mamoeiro. Meu sonho, porém, é cultivar uma videira...”
“Pé de sapoti, você tem?” perguntou Pedro, sem querer menosprezar as vantagens do amigo.
“Sapoti não, por quê?”
“Porque eu me lembrei de uma senhora que esteve aqui na delegacia e fez os maiores elogios aos pés de sapoti... Segundo ela, quem teve um pé de sapoti não o esquece jamais.”
“Deve ser verdade. Mas não é apenas de árvores que o meu quintal é feito,” voltou o visitante às suas vanglórias domésticas. “Como você sabe, eu tenho um grande apego pelos bichos. Chego a acordar cedo para espalhar miolo de pão para a passarinhada se banquetear. São dezenas de pardais e bem-te-vis que rodeiam minhas plagas, em bandos alvoroçados. Eles até já sabem a hora do maná e ficam voejando de tocaia. Outro dia mesmo me apareceu de surpresa um quero-quero, que pousou no pé de acerola e armou um fuzuê danado entre os outros pássaros, com a sua presença estrangeira de invasor. Você sabe o que é um quero-quero?”
“Lá em Calçado ele é chamado de batuíra ou maçarico,” disse Pedro.
“Mas você sabe que ele se lança em vôo quilométrico do Círculo Polar à Terra do Fogo...”
“Esta particularidade eu não sabia.”
“Pois eu a aprendi no tratado de ornitologia do Sick. É um senhor compêndio sobre as aves. A peregrinação do quero-quero é tão impressionante que eu me sinto um privilegiado por hospedá-lo de passagem no meu pé de acerola.”
“Pelo que estou vendo, o seu quintal é um show ornitológico. Lá também tem beija-flor?”
“O QUÊ?! Tem beija-flor a três por dois! Acho até que eles me confundem com o fantasma do Ruschi. E não é pra menos. Eu me dou ao luxo de abastecer todo dia um bebedouro com água açucarada para os bichinhos se refestelarem. É um festim a que assisto embevecido,” informou o visitante.
“Você conhece uma flor chamada camarão? É um favo vermelho que beija-flor adora sorver. Se quiser eu consigo uma muda com Dona Lenilda, a faxineira da delegacia,” disse Pedro, mostrando-se também connaisseur na arte de alimentar beija-flor.
“Eu sei qual é! Já plantei um pé lá em casa, mas ainda não deu flor,” vibrou o amigo feliz com a sapiência de Pedro. “Mas como ia dizendo, eu cuido dos beija-flores com carinho. E foi isso que acabou me trazendo o aborrecimento de que falei.”
“O tormento kafiquiano?”
“Exatamente. Tudo porque eu encontrei um beija-flor de asa quebrada debaixo do bebedouro. Sem saber o que fazer, e cheio de pena do coitadinho, este seu amigo teve a infeliz idéia de ligar para ...”
“Não me diga que você cometeu a besteira de telefonar para o...” e Pedro disse o nome da repartição que cuida do meio ambiente.
“Cometi. Liguei para pedir ajuda, num SOS aflito. Já foi uma dificuldade danada encontrar o telefone na lista que está cada vez mais complicada. Parece um quebra-cabeça. Porque eu ainda uso lista telefônica com os telefones e endereços impressos”.
“Todo mundo reclama dessas listas. Quero dizer, todo mundo que ainda as usa... Elas lembram aquele jogo de labirinto em que a gente tem de achar a saída riscando pelos quadradinhos. E às vezes não se encontra o que se quer,” observou Pedro.
“O pior é que ninguém toma providência... Mas depois de muito custo, consegui achar o número. Liguei pra lá e fui atendido por uma funcionária a quem relatei o acidente. Ela disse que o órgão ia cuidar do caso, anotou meu telefone e endereço.”
“E o órgão mandou socorro?” perguntou Pedro acentuando a palavra órgão.
“O QUÊ?! Eu estava esperando que aparecesse um motoqueiro para levar o beija-flor, mas o que estacionou na minha porta foi uma Kombi, toda pintada de verde com o nome FISCALIZAÇÃO em letras negras garrafais, da qual saltaram seis funcionários para atender o beija-flor ferido! Eu tomei até um susto. Parecia assalto da SS de Hitler.”
“Você está brincando...!”
“... seis funcionários sem contar o motorista, que ficou na Kombi. Eles vieram de crachá pendurado no pescoço, mas, mesmo assim, se identificaram dando os nomes e os cargos. Os nomes eu não guardei, mas os cargos sim. Veio um ornitólogo, um biólogo, um veterinário, um auxiliar administrativo que, aliás, me pareceu a princípio o menos importante da equipe, uma ambientalista e uma assistente social.”
“Você tem certeza que era uma assistente social?”
“Eu também fiquei atônito. Mas ela me disse que era especialista em socialização de animais no meio urbano. Pela estimativa que fiz, calculando por baixo os salários dos seis e o do motorista, davam uns trinta salários mínimos, apenas para socorrer um beija-flor!”
“E você os deixou entrar?”
“Quem era eu para barrar aquela blitz? Fi-los entrar, como diria Jânio Quadros, e levei-os até o beija-flor que eu tinha tirado do chão e posto com cuidado numa caixa de sapato. Afastei-me então respeitosamente para que a equipe de especialistas pudesse trabalhar à vontade, como se fosse uma junta médica no atendimento a um paciente em estado terminal.”
‘“Foi o senhor mesmo que botou a ave na caixa de sapato?’ perguntou, de repente, o ornitólogo, numa virada de cabeça na minha direção”.
“Foi, por quê?”
“‘Porque fez muito mal. Quem não tem prática não deve tocar em animal ferido. Ou será que o senhor se julga algum Augusto Ruschi para saber lidar com beija-flores?’ E só por esta reprovação, seu Pedrinho, eu vi a burrice que tinha feito com meu telefonema de socorro.”
“Sabe que se o beija-flor morrer o senhor pode ser enquadrado em crime inafiançável’ disse, de arremate, e também de cabeça virada sobre o ombro, o funcionário administrativo que eu tinha considerado o menos importante da equipe.”
“Esse pessoal não tem mesmo jeito,” criticou Pedrinho. “Eles deviam passar uns dias aqui na delegacia para aprender o que devia ser crime inafiançável’.
“É, meu caro, mas depois dessa, o seu amigo aqui começou a perder as estribeiras. ‘Vamos com calma, senhores! Fui eu quem os chamou para socorrer o beija-flor, que não sei como apareceu ferido no meu quintal, e querem me culpar pelo acidente? Que brincadeira é esta?”
‘“Um quintalzinho que eu reputo impróprio para socializar aves no meio urbano’, disse a assistente social, o desprezo estampado na face.”
‘“É necessário que as coisas fiquem perfeitamente claras. Ninguém o está culpando pelo acidente, mas pela inadequada remoção do pássaro, o que pode levá-lo a óbito’, voltou a se pronunciar o funcionário que me parecera o menos categorizado do grupo.”
“Sua responsabilidade é essa’ acresceu o biólogo, um sujeito de bigode espesso e pálpebra ameaçadoramente caída sobre o olho direito.”
“E se eu tivesse jogado o beija-flor no lixo, sem notificar o acidente? perguntei, quase esbravejando, e sentindo as primeiras pontadas na coluna cervical.”
“Boa pergunta,” aprovou Pedro.
‘“Mas acontece que o senhor fez a notificação e não podemos mais ignorá-la,’ sentenciou o ornitólogo.”
“‘Ainda bem que o senhor a fez, porque é a única atenuante a seu favor,’ espetou a ambientalista, encarando-me com um par de olhos verdes que, em outras circunstâncias eu classificaria de ecologicamente perfeitos.”
“‘E porque não podemos ignorar o que se passou vamos ter de lavrar um auto de infração pela sua total falta de perícia na remoção da ave,’ bateu de sola o administrativo.”
“‘Enquanto o senhor lavra o auto, chefe, nós vamos levar o beija-flor para a Kombi,’ disse o veterinário. E sem dizer mais nada, saíram os cinco em procissão compacta, levando a ave no estado terminal que me estava sendo atribuído, enquanto o auxiliar administrativo, que eu acabara de saber que era o chefe da equipe, agredia-me com uma autuação cheia de artigos, parágrafos e alíneas da lei de proteção aos animais e ao meio ambiente. Tem coluna dorsal que resista a uma porrada dessas?”
“E você vai responder à autuação?” indagou Pedro já pensando em se oferecer para ajudar na elaboração da defesa.
“Vou, não, já respondi!”
“Não teria sido melhor contratar um advogado?”, perguntou o escrivão. “Não que eu duvide da sua capacidade de se defender sozinho, mas para enfrentar a turma do meio ambiente nunca é demais contar com um rábula experimentado em questões ambientais... Esses advogados estão na moda”.
“Cheguei a pensar nisso, mas desisti. Seria humilhação demais, não sei se você me entende. Por isso me enchi de razões e elaborei uma catilinária desaforada em que me defendi com honra e garra, terminando por dizer que era um absurdo que uns inconsequentes pretendessem me fazer de fármaco de um acidente para o qual não tinha concorrido... Você sabe o que quer dizer fármaco? É bode expiatório, em grego...”
“Parece nome de remédio,” observou Pedro.
“Tenho certeza que li a expressão em algum lugar com o significado de bode expiatório... E não foi em termos metafóricos,” disse o visitante.
“Em termos metafóricos não seria vantagem porque metaforicamente até crocodilo é xoxota,” proclamou Pedro, rindo.
“Boa tirada, Pedrinho. Mas seja lá o que significa a palavra fármaco, eles que quebrem a cabeça para saber do que se trata. No mínimo, vão pensar que é um termo jurídico...”
“Boa tirada, meu amigo”, foi a vez de Pedro retribuir o elogio.
“Que em nada adiantou para aliviar a dor que desde aquele dia martiriza meus costados...” remoeu-se o visitante.
“E você ainda conserva o bebedouro para os beija-flores?”
“Por que não?”
“Porque se fosse eu tinha acabado com ele imediatamente e ainda ia ficar gritando no quintal, xô, beija-flor, xô.”
“Com esta eu vou embora.”
E o amigo do escrivão levantou-se devagar sendo acompanhado gentilmente por Pedro que o levou até a porta, só não o transportando numa cadeira de rodas porque na delegacia não tinha uma e, se tivesse, não teria rodas.
[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]
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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
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