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A delegacia da Chapot Presvot, 272, cerra portas e janelas. A quem interessa a notícia? Creio que apenas às suas personagens. E é em co...


A delegacia da Chapot Presvot, 272, cerra portas e janelas. A quem interessa a notícia?

Creio que apenas às suas personagens.

E é em consideração a elas, que me aturaram muito mais do que eu as aturei, que faço os comentários que se seguem.

Durante vários textos, arrisquei-me a retratar o que seria o cotidiano de uma delegacia de polícia, ficando, por incompetência pessoal, muito aquém de reproduzir o dramático dia-a-dia de um ambiente policial, em sua crua e dura realidade, na ingente luta contra a criminalidade.

Foi - assim o considero -, um longo e persistente trabalho de elaboração ficcional (e aqui faço o grifo), temperado com variadas pitadas de crítica e ironia, gozações e tragédias utilizadas na movimentação das personagens (delegado, escrivães, policiais, faxineira, et caterva) e do plantel de desditosos figurantes que deram o azar de passar pela delegacia (inclusive o autor-narrador que escapou por pouco de lá ficar retido) – e tiveram a honra de merecerem acolhida no site Estação Capixaba graças à bondade de sua criadora Maria Clara Medeiros Santos Neves.

Pessoas reais serviram de base para a montagem dessa fauna humana ficcional; fatos e acontecimentos forneceram miolo para muitos textos; falas, expressões e ditos ouvidos ao acaso e registrados seletivamente foram capturados para contextualizar diálogos e cacoetes verbais de personagens, quer em sua passagem ocasional pela delegacia, quer pela presença constante como “funcionários” da casa onde “trabalhavam”; histórias e casos que me caíram no colo ou bolações nascidas de leituras em geral, inclusive situações envolvendo a Livraria Logos e a confraria de amigos que lá se reúne aos sábados, deram alimento a sortidos episódios.

De fundamental importância para a consistência da delegacia foi minha fraternal amizade com o escritor Pedro J.Nunes que, por ter sido escrivão de polícia (hoje graças a Deus aposentado), prodigalizou-me - consciente ou inconscientemente -, farto material para os textos que escrevi, tendo sido ele mesmo o protótipo humano em que me fixei para criar o escrivão Pedro – porém, nada mais do que Pedro, de anônimo sobrenome – que se fez personagem âncora da Chapot Presvot, 272.

Neste particular, confesso, agradecido, que em nenhum momento o meu fraternal amigo teceu a mais mínima restrição à apropriação de sua imagem para o personagem chave da delegacia. Ao contrário, sempre deu mostra, inclusive verbalmente, e graças à sua visão esclarecida de autor literário, que entendia perfeitamente a distinção entre o escrivão de polícia que na vida real ele foi, e o escrivão fictício, seu factóide, por mim “invencionado”.

E já que pisei o terreno das confissões, apesar de não solicitadas, mencione-se, recuando-se à origem da série da Chapot Presvot, 272, que quando escrevi o primeiro texto, ponto de partida da galeria que veio depois, não pensava em lhe dar desdobramento, nem continuidade.

Era para ser um conto único, e ponto final. Haja vista que qualquer comparação entre aquele primeiro escrito e os que o seguiram mostra o descasamento de concepção existente entre eles, numa demonstração de que a ideia de criar e consolidar a delegacia como antro ficcional das ficções que nela se passaram somente se configurou no espírito do autor depois do texto de partida, embora contenha este algumas características que o tornaram o embrião da série.

Lá está, para citar um só exemplo, a descrição da casa-sede da delegacia, já então dada como funcionando numa antiga residência térrea da rua Chapot Presvot, na Praia do Canto, em Vitória, mas sem indicação do número 272, que apareceria no segundo texto (número que, na realidade não existe naquela rua).

Posteriormente, já com vários episódios escritos e divulgados pelo site Estação Capixaba, identifiquei uma casa no mesmo estilo arquitetônico que eu havia imaginado para a delegacia, situada, porém, na rua Cândido Portinari, bairro Santa Luiza, em Vitória, (Delegacia da Mulher), que elegi emblematicamente para sede da Chapot Presvot, 272.

A foto dessa casa, que figura no cabeçalho dos textos da Estação Capixaba, custou-me, quando a estava tirando, uma abordagem de dois policiais numa viatura tipo camburão que vieram saber das intenções do fotógrafo que, de máquina em punho, fazia seus flashes com veleidades meramente literárias.

A abordagem, que felizmente não foi além de uma explicação que matou a questão sem maiores consequências, deu trigo e fermento para o texto Amigos, amigos ou um flagrante delito, um dos últimos a sair do fundo do estoque de que eu dispunha para ser divulgado na Estação Capixaba.

Já me estendi em voo largo para dizer o que foi dito sem me ser perguntado.

Mas antes de sapecar o ponto final nesta despedida, duas informações forçam passagem: os dois últimos textos que encerram a montoeira um tanto ou quanto eclética da Chapot Presvot, 272, prestam homenagem a grandes e queridos amigos que já se foram: Dores na cervical ou crime inafiançável aproveita o relato que ouvi a Ivan Borgo, vítima do fato relatado; e Fim de papo & nunca mais remete a Renato Pacheco e aos seus magníficos Cantos de Fernão Ferreiro.

Alguma coisa resta por ser acrescentado?

Sim, e quase ia me esquecendo: por que me vali de uma delegacia ficticiamente localizada na rua Chapot Presvot para travessuras imaginativas?

A resposta é, por óbvio, personalíssima: uma rua numa cidade como Vitória com o nome desse grande médico brasileiro não é para ser literariamente desprezada.

Posto isto, e nada mais havendo a tratar, cerrem-se as cortinas, apaguem-se as luzes e... fim de papo & nunca mais.


[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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© 2019 Textos com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

“O Espírito Santo é azul e rosa” disse Pedro contemplando a luz diáfana de maio que tanto enlevo causa ao fotógrafo Humberto Capai. E acred...


“O Espírito Santo é azul e rosa” disse Pedro contemplando a luz diáfana de maio que tanto enlevo causa ao fotógrafo Humberto Capai. E acreditando ter lido em Fernão Ferreiro uma referência a essa luz divinal na terra capixaba, pegou os Cantos que estavam sobre a mesinha da Olivetti, ao lado de um exemplar dos Irmãos Karamasof, e se pôs à cata.

Foi uma caminhada cata-cata pelos versos do grande vate, heterônimo do não menos grande Renato Pacheco, desde o verso de abertura: “Agora é tudo novo e ao longe nos conduz...

E foi somente, ora finalmente!, no Canto 45, que Pedro achou o que procurava, embora não fosse o que esperava achar:

...mas é maio que eu amo mais que todos. Vitória, em maio, é a melhor terra das costas do Brasil.

Antes que fiquemos sabendo o que o escrivão de polícia ia fazer com sua descoberta poética, entra Lenilda neste textículo como um tornado caribenho.

“Seu Pedrinho, o home chegou com os capetas. Pro senhor ter uma ideia, está chutando a mesa, as cadeiras e até jogou o chapeleiro das boinas no chão.”

“Se chutou o chapeleiro, temos um Vesúvio prestes a destruir Pompéia... É caso delicado,” concordou Pedrinho.

“Bota delicado nisso. O pior é que vai sobrar pro senhor,” preveniu a faxineira.

“Eu hein, Lenilda! Vê se me erra...”

“Não tem erro, nem meio erro, seu Pedrinho. Põe um colete à prova de balas e vai logo lá que ele mandou te chamar,” desobrigou-se Lenilda da missão que Digital lhe conferira.

“E eu que pensei que este dia de maio ia ser diáfano e radioso sob o encanto dos versos de Fernão Ferreiro,” disse Pedro, dirigindo-se para o gabinete do delegado.

Quando entrou, Digital tinha as feições alteradas, a cara ruça de ódio – ou russa de ódio, se o gentílico descrever melhor a fúria reinante na alma da criatura. Sem dar tempo ao escrivão para abrir a boca, fuzilou:

“Você sabia que tudo que acontece aqui na delegacia está sendo escrito por aquele escritor seu amigo?”

“Quem foi que disse isso?” perguntou Pedro se fazendo de bobo.

“Quem foi que disse não interessa! Eu quero saber se é verdade o que me disseram? Porque me contaram que eu, você, Lenilda, Nanico, o deputado Ribeirinho, às vezes até minha mulher, Engracia, e tudo o mais que se passa dentro das quatro paredes desta casa está sendo usado como matéria de gracinha pelo seu amigo,” cresceu Digital nas canelas.

“Bem...” começou Pedro, estudando a resposta que ia dar. “Eu já tinha ouvido falar, mas...”

“Nem mais, nem menos, nem porém, contudo, todavia” interveio o delegado, descontrolado. “Se é verdade o que estão dizendo, eu exijo que você tome uma providência e vai ser agora mesmo! Pegue o telefone e ligue pra ele. Diga que eu – veja bem – eu, o delegado Archibaldo Evangelino de Souza, proíbo terminantemente que continuem a ser publicadas coisas sobre nós e sobre a minha delegacia. Deixe claro, muito claro, que não se trata de um pedido, mas de uma ordem. Se ele achar que é ameaça, diga que é ameaça mesmo. Porque do jeito que estou puto, aliás, putíssimo da vida, sou capaz de mordê-lo na julgular como um vampiro.”

Pedro coçou o queixo e fitou o delegado com um olhar de comiseração intelectual, antes de perguntar: “Julgular, Digital?”

“Julgular, sim. Você não sabe onde fica?”

“Fica no pelscoço?” ironizou Pedro.

“Não se faça de besta comigo, nem desvie a conversa,” bronqueou o delegado. E estendendo o celular para Pedro fazer a ligação. “Disque logo!”

“Um disque denúncia?”

“Entenda como quiser, mas dique agora!” gritou Digital.

“Você não acha melhor pensar mais um pouco no assunto?” quis Pedro chamar Digital à razão.

“Pensando morreu um burro. Eu quero ação. Ação imediata, ação da sua parte! Minha delegacia tem de deixar de ser assunto de conversa mole, de piadinhas bestas na internet...”

Pedro, porém, não se deu por vencido.

“Você já pensou, delegado, que se ele parar de escrever seremos removidos de onde estamos?”

“Removidos por quê? Ele tem tanta força assim? Ou você se esquece que sou amigo do deputado Ribeirinho?”

Sem perder o olhar comiserativo, Pedro foi mais claro:

“É preciso que você saiba, delegado, que quando o meu amigo escritor escreve sobre o que se passa aqui na delegacia é porque tudo o que se passa aqui na delegacia é o que ele escreve, entendeu?”

“Isso é uma charada ou uma pegadinha?” protestou Digital.

“É a pura verdade” explicou Pedro. “Uma verdade com todas as letras ou, para ser mais exato, é a verdade das Letras.”

“Pois pegue cada uma dessas letras, de a a z, sem esquecer o dabliu, e enfie uma a uma no traseiro do seu amigo. Agora, ligue pra ele que eu mesmo falo! Vamos, porra!”

Pedro cumpriu a ordem e digitou o número que sabia de cor. Quando reconheceu a voz do outro lado da linha, passou o celular para o delegado sem nem sequer dizer bom dia.

“Alhou” gritou o delegado. “Alhou?” [E dirigindo-se a Pedro]: “Ou está mudo ou então não está ouvindo nada. Você ligou o número certo?”

“Liguei, delegado,” disse Pedro desanimado.

“Alhou, alhou... Você aí, seu idiota, seu paspalhão, seu imbecil, seu merda de escritor não está me ouvindo ou está se fazendo de morto?”

Pedro se aproximou de Digital e fez um apelo definitivo: “Desliga o celular, chefe!”

“Cala a boca, idiota, e não me chame de chefe!” Sem descolar os dentes do aparelho, Digital continuou esbravejando: “Alhou! Alhou! Ô bosta de escritor, tá querendo brincar comigo? Pois vai quebrar a cara, porque vou estrumbicar com sua cartola, ouviu? Está ouvindo, ou perdeu a língua de medo?!”

“Me dá o celular, Digital” disse Pedro tomando o aparelho à força e desligando-o.

“Por que você cortou a ligação?” explodiu o delegado ruço-russo.

“Será possível, Digital, que você não esteja entendendo nada do que está se passando?” perguntou o escrivão, procurando ser paciente.

“O que estou vendo é que você está protegendo seu amigo contra o seu chefe.”

“Agora você é chefe?” rebateu Pedro.

“É porque está em jogo a minha autoridade...”

“Neste ponto você tem razão,” concordou Pedro. “Só que está em jogo muito mais do que a sua autoridade de chefe, chefe. Está em jogo você, eu, Lenilda, Nanico, o seu amigo do peito, o deputado Ribeirinho, sua digníssima esposa dona Engrácia, e mais todas as cagadas que você tem feito aqui e fora daqui e que vai continuar fazendo se a Delegacia não for pro beleléu...”

“Não me venha com insolência, seu escrivãzinho metido a grande escritor... Vê se me respeita senão...”

Antes que terminasse a ameaça, Lenilda entrou no gabinete com uma ousadia que ninguém seria capaz de esperar dela.

“Dotô, tem um mensageiro aí com uma coroa de flores,” informou a faxineira.

“Coroa de flores?!” surpreendeu-se Digital olhando para Pedro com a cara dos três patetas numa só.

“E o endereço está certinho,” adiantou a faxineira.

“Então mande entrar o elemento,” ordenou o delegado.

“Ponho aonde, chefia?” perguntou o recém chegado, o rosto aparecendo como uma calota de roda de carro no meio da coroa funerária.

“Bota aí na minha mesa!”, berrou Digital. “E suma da minha frente!”

O entregador cumpriu a ordem e escapuliu das vistas de Digital antes que fosse tarde.

“Tem uma mensagem na faixa roxa”, avisou Lenilda. “Uma mensagem em letras douradas...”

“Pois leia o que está escrito, Pedro,” ordenou o delegado.

Pedro aproximou-se da coroa e leu em voz alta: “À memória da delegacia da Chapot Presvot, 272, e de seus ilustres figurantes.”

“Viu, Digital? Eu avisei...”, disse o escrivão, encarando o chefe.

“Que sacanagem é esta?” bradou Digital.

Foram as últimas palavras que se ouviram na Chapot Presvot, 272, embora ainda tivesse acorrido à mente de Pedro o verso de Fernão Ferreiro “Aqui a vela bruxuleia e se apaga...


[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Quando viu entrar na delegacia o amigo de tertúlias literárias Pedro deu um pulo da cadeira. “Você por aqui?!” O amigo aproximou-se de ...


Quando viu entrar na delegacia o amigo de tertúlias literárias Pedro deu um pulo da cadeira.

“Você por aqui?!”

O amigo aproximou-se de Pedro e explicou-se: “Ia passando aí em frente e resolvi entrar para revê-lo, já que você sumiu da livraria Logos.”

Todo festas com a visita inesperada, Pedro escorregou sua desculpa: “Tenho dado plantão aos sábados. Mas vou reaparecer em breve. O que você me conta de novo?”

O visitante, que havia se sentado com cuidado na cadeira que Pedro lhe indicara, começou reclamando de dores na coluna. “É terrível! Às vezes melhora, mas é folga passageira. Vivo dopado por analgésicos”.

“Eu imagino o que está passando,” disse Pedro, solidário. “Também tenho umas dores ciáticas que às vezes me crucificam durante dias. Se bobear, elas me pegam pelas costas, literalmente. Basta dizer que minha bicicleta tem amortecedor, para eu pedalar sem problema.”

“Ah, então você sabe como é...” disse o visitante ligeiramente consolado. “Mas quando as dores se tornam crônicas, como no meu caso, vira suplício cruciante. E qualquer aborrecimento, por mais idiota que seja, agrava as crises. Sei que é efeito psicológico, mas é inevitável. Agora mesmo estou em brasas.”

“O que houve desta vez?” perguntou Pedro.

“Foi uma bobagem, que em outras condições seria até motivo de riso, mas que adquiriu foros de tormento kafiquiano. O pior é que tudo se passou dentro da minha casa. Quer dizer, o aborrecimento veio a domicílio. Você sabe onde eu moro, não sabe?”

“Ainda não tive a honra...”, disse o escrivão.

“Porque não quis, pois já o convidei para ir lá. Quando isso acontecer você vai ver que tenho em minha casa um quintal de causar inveja aos meus amigos.”

“Quintal é uma das minhas recorrências míticas,” disse Pedro. “Como você, eu sou nascido e criado no interior do Estado...”

“Então você vai ficar de queixo caído com o meu quintal. Não é nenhum latifúndio, mas é um recanto edênico onde tenho um pé de romã, um de café, outro de carambola, um de acerola, que dá mancheias das próprias e um mamoeiro. Meu sonho, porém, é cultivar uma videira...”

“Pé de sapoti, você tem?” perguntou Pedro, sem querer menosprezar as vantagens do amigo.

“Sapoti não, por quê?”

“Porque eu me lembrei de uma senhora que esteve aqui na delegacia e fez os maiores elogios aos pés de sapoti... Segundo ela, quem teve um pé de sapoti não o esquece jamais.”

“Deve ser verdade. Mas não é apenas de árvores que o meu quintal é feito,” voltou o visitante às suas vanglórias domésticas. “Como você sabe, eu tenho um grande apego pelos bichos. Chego a acordar cedo para espalhar miolo de pão para a passarinhada se banquetear. São dezenas de pardais e bem-te-vis que rodeiam minhas plagas, em bandos alvoroçados. Eles até já sabem a hora do maná e ficam voejando de tocaia. Outro dia mesmo me apareceu de surpresa um quero-quero, que pousou no pé de acerola e armou um fuzuê danado entre os outros pássaros, com a sua presença estrangeira de invasor. Você sabe o que é um quero-quero?”

“Lá em Calçado ele é chamado de batuíra ou maçarico,” disse Pedro.

“Mas você sabe que ele se lança em vôo quilométrico do Círculo Polar à Terra do Fogo...”

“Esta particularidade eu não sabia.”

“Pois eu a aprendi no tratado de ornitologia do Sick. É um senhor compêndio sobre as aves. A peregrinação do quero-quero é tão impressionante que eu me sinto um privilegiado por hospedá-lo de passagem no meu pé de acerola.”

“Pelo que estou vendo, o seu quintal é um show ornitológico. Lá também tem beija-flor?”

“O QUÊ?! Tem beija-flor a três por dois! Acho até que eles me confundem com o fantasma do Ruschi. E não é pra menos. Eu me dou ao luxo de abastecer todo dia um bebedouro com água açucarada para os bichinhos se refestelarem. É um festim a que assisto embevecido,” informou o visitante.

“Você conhece uma flor chamada camarão? É um favo vermelho que beija-flor adora sorver. Se quiser eu consigo uma muda com Dona Lenilda, a faxineira da delegacia,” disse Pedro, mostrando-se também connaisseur na arte de alimentar beija-flor.

“Eu sei qual é! Já plantei um pé lá em casa, mas ainda não deu flor,” vibrou o amigo feliz com a sapiência de Pedro. “Mas como ia dizendo, eu cuido dos beija-flores com carinho. E foi isso que acabou me trazendo o aborrecimento de que falei.”

“O tormento kafiquiano?”

“Exatamente. Tudo porque eu encontrei um beija-flor de asa quebrada debaixo do bebedouro. Sem saber o que fazer, e cheio de pena do coitadinho, este seu amigo teve a infeliz idéia de ligar para ...”

“Não me diga que você cometeu a besteira de telefonar para o...” e Pedro disse o nome da repartição que cuida do meio ambiente.

“Cometi. Liguei para pedir ajuda, num SOS aflito. Já foi uma dificuldade danada encontrar o telefone na lista que está cada vez mais complicada. Parece um quebra-cabeça. Porque eu ainda uso lista telefônica com os telefones e endereços impressos”.

“Todo mundo reclama dessas listas. Quero dizer, todo mundo que ainda as usa... Elas lembram aquele jogo de labirinto em que a gente tem de achar a saída riscando pelos quadradinhos. E às vezes não se encontra o que se quer,” observou Pedro.

“O pior é que ninguém toma providência... Mas depois de muito custo, consegui achar o número. Liguei pra lá e fui atendido por uma funcionária a quem relatei o acidente. Ela disse que o órgão ia cuidar do caso, anotou meu telefone e endereço.”

“E o órgão mandou socorro?” perguntou Pedro acentuando a palavra órgão.

“O QUÊ?! Eu estava esperando que aparecesse um motoqueiro para levar o beija-flor, mas o que estacionou na minha porta foi uma Kombi, toda pintada de verde com o nome FISCALIZAÇÃO em letras negras garrafais, da qual saltaram seis funcionários para atender o beija-flor ferido! Eu tomei até um susto. Parecia assalto da SS de Hitler.”

“Você está brincando...!”

“... seis funcionários sem contar o motorista, que ficou na Kombi. Eles vieram de crachá pendurado no pescoço, mas, mesmo assim, se identificaram dando os nomes e os cargos. Os nomes eu não guardei, mas os cargos sim. Veio um ornitólogo, um biólogo, um veterinário, um auxiliar administrativo que, aliás, me pareceu a princípio o menos importante da equipe, uma ambientalista e uma assistente social.”

“Você tem certeza que era uma assistente social?”

“Eu também fiquei atônito. Mas ela me disse que era especialista em socialização de animais no meio urbano. Pela estimativa que fiz, calculando por baixo os salários dos seis e o do motorista, davam uns trinta salários mínimos, apenas para socorrer um beija-flor!”

“E você os deixou entrar?”

“Quem era eu para barrar aquela blitz? Fi-los entrar, como diria Jânio Quadros, e levei-os até o beija-flor que eu tinha tirado do chão e posto com cuidado numa caixa de sapato. Afastei-me então respeitosamente para que a equipe de especialistas pudesse trabalhar à vontade, como se fosse uma junta médica no atendimento a um paciente em estado terminal.”

‘“Foi o senhor mesmo que botou a ave na caixa de sapato?’ perguntou, de repente, o ornitólogo, numa virada de cabeça na minha direção”.

“Foi, por quê?”

“‘Porque fez muito mal. Quem não tem prática não deve tocar em animal ferido. Ou será que o senhor se julga algum Augusto Ruschi para saber lidar com beija-flores?’ E só por esta reprovação, seu Pedrinho, eu vi a burrice que tinha feito com meu telefonema de socorro.”

“Sabe que se o beija-flor morrer o senhor pode ser enquadrado em crime inafiançável’ disse, de arremate, e também de cabeça virada sobre o ombro, o funcionário administrativo que eu tinha considerado o menos importante da equipe.”

“Esse pessoal não tem mesmo jeito,” criticou Pedrinho. “Eles deviam passar uns dias aqui na delegacia para aprender o que devia ser crime inafiançável’.

“É, meu caro, mas depois dessa, o seu amigo aqui começou a perder as estribeiras. ‘Vamos com calma, senhores! Fui eu quem os chamou para socorrer o beija-flor, que não sei como apareceu ferido no meu quintal, e querem me culpar pelo acidente? Que brincadeira é esta?”

‘“Um quintalzinho que eu reputo impróprio para socializar aves no meio urbano’, disse a assistente social, o desprezo estampado na face.”

‘“É necessário que as coisas fiquem perfeitamente claras. Ninguém o está culpando pelo acidente, mas pela inadequada remoção do pássaro, o que pode levá-lo a óbito’, voltou a se pronunciar o funcionário que me parecera o menos categorizado do grupo.”

“Sua responsabilidade é essa’ acresceu o biólogo, um sujeito de bigode espesso e pálpebra ameaçadoramente caída sobre o olho direito.”

“E se eu tivesse jogado o beija-flor no lixo, sem notificar o acidente? perguntei, quase esbravejando, e sentindo as primeiras pontadas na coluna cervical.”

“Boa pergunta,” aprovou Pedro.

‘“Mas acontece que o senhor fez a notificação e não podemos mais ignorá-la,’ sentenciou o ornitólogo.”

“‘Ainda bem que o senhor a fez, porque é a única atenuante a seu favor,’ espetou a ambientalista, encarando-me com um par de olhos verdes que, em outras circunstâncias eu classificaria de ecologicamente perfeitos.”

“‘E porque não podemos ignorar o que se passou vamos ter de lavrar um auto de infração pela sua total falta de perícia na remoção da ave,’ bateu de sola o administrativo.”

“‘Enquanto o senhor lavra o auto, chefe, nós vamos levar o beija-flor para a Kombi,’ disse o veterinário. E sem dizer mais nada, saíram os cinco em procissão compacta, levando a ave no estado terminal que me estava sendo atribuído, enquanto o auxiliar administrativo, que eu acabara de saber que era o chefe da equipe, agredia-me com uma autuação cheia de artigos, parágrafos e alíneas da lei de proteção aos animais e ao meio ambiente. Tem coluna dorsal que resista a uma porrada dessas?”

“E você vai responder à autuação?” indagou Pedro já pensando em se oferecer para ajudar na elaboração da defesa.

“Vou, não, já respondi!”

“Não teria sido melhor contratar um advogado?”, perguntou o escrivão. “Não que eu duvide da sua capacidade de se defender sozinho, mas para enfrentar a turma do meio ambiente nunca é demais contar com um rábula experimentado em questões ambientais... Esses advogados estão na moda”.

“Cheguei a pensar nisso, mas desisti. Seria humilhação demais, não sei se você me entende. Por isso me enchi de razões e elaborei uma catilinária desaforada em que me defendi com honra e garra, terminando por dizer que era um absurdo que uns inconsequentes pretendessem me fazer de fármaco de um acidente para o qual não tinha concorrido... Você sabe o que quer dizer fármaco? É bode expiatório, em grego...”

“Parece nome de remédio,” observou Pedro.

“Tenho certeza que li a expressão em algum lugar com o significado de bode expiatório... E não foi em termos metafóricos,” disse o visitante.

“Em termos metafóricos não seria vantagem porque metaforicamente até crocodilo é xoxota,” proclamou Pedro, rindo.

“Boa tirada, Pedrinho. Mas seja lá o que significa a palavra fármaco, eles que quebrem a cabeça para saber do que se trata. No mínimo, vão pensar que é um termo jurídico...”

“Boa tirada, meu amigo”, foi a vez de Pedro retribuir o elogio.

“Que em nada adiantou para aliviar a dor que desde aquele dia martiriza meus costados...” remoeu-se o visitante.

“E você ainda conserva o bebedouro para os beija-flores?”

“Por que não?”

“Porque se fosse eu tinha acabado com ele imediatamente e ainda ia ficar gritando no quintal, xô, beija-flor, xô.”

“Com esta eu vou embora.”

E o amigo do escrivão levantou-se devagar sendo acompanhado gentilmente por Pedro que o levou até a porta, só não o transportando numa cadeira de rodas porque na delegacia não tinha uma e, se tivesse, não teria rodas.


[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Naquela manhã, Pedro, o escrivão, entrou na delegacia com cara de Nosferatu que passou a noite sem achar uma jugular para saciar sua hemato...


Naquela manhã, Pedro, o escrivão, entrou na delegacia com cara de Nosferatu que passou a noite sem achar uma jugular para saciar sua hematofagia. O aspecto de vampiro famélico não passou despercebido a Lenilda.

“O senhor está esquisito, seu Pedrinho! Chegou para trabalhar de cara franzida, falando sozinho... Será que se esqueceu de tomar em jejum seu suco de limões galegos espremidos?” perguntou a faxineira ao escrivão de polícia que acabava de aportar na delegacia.

“De fato, Lenilda, tenho andado taciturno.”

“Taciturno?!”

“É... calado, tristonho, cismado... Nunca ouviu falar em taciturno?”

“Já, mas pensei que era nome de homem...”

“Não me diga, Lenilda! Parece que estou ouvindo Digital falar...”

“Por Deus que eu pensava... E por que o senhor está assim?”

“Tudo porque li no livro Amor e Erotismo, do mexicano Octavio Paz que, para os budistas o eu é uma construção mental sem existência própria, uma quimera...”

“Que idéia mais complicada, seu Pedrinho... Se eu ficasse pensando nessas coisas, acabaria lelé da cuca,” disse Lenilda.

“Você tem razão porque é mesmo para se perder a razão. Pensa bem: se o eu não existe, segundo os budistas, como é que eu e você podemos dizer que somos pessoas distintas uma da outra, com sentimentos, desejos e pensamentos próprios? Por que se o meu eu – preste bem atenção – se o meu eu não existe, porque só na minha consciência existe a crença de que o meu eu exista, nada tem significação e sentido, pois, por dedução lógica, o que existe é o nada absoluto, está entendendo?”

“Não entendi nadinha, seu Pedrinho. Não é à toa que o senhor está tão taci... como foi que o senhor disse?”

“Taciturno.”

“Isso aí. Para o senhor melhorar vamos na cozinha da delegacia que eu faço um café quentinho para nós dois. Depois o senhor fuma um cigarrinho pra suas idéias voltarem pro lugar.”

Mas não foi possível irem porque naquele momento chegou o delegado e chegou de cara mais “nosferática” do que a de Pedro. E já mostrava pelo carrancudismo da carranca que não ia ser um dia bom para o escrivão, que foi convocado para uma conversinha na sala do delegado.

[Deste parêntese em diante a cena se passa com o delegado, e o texto corre no estilo dialogado de peça de teatro, ficando aos leitores imaginar o cenário e as reações dos atores, conferindo-lhes dramatismo ou comicidade a livre gosto].

Digital: Eu fiquei sabendo, seu Pedro, que você tem um site na Internet...

Pedro: Quem lhe disse?

D: Minha mulher Engrácia. Ela é que fuça essas coisas. Não tem o que fazer, fica de rabo grudado em frente do computador.

P: E descobriu meu site?

D: Foi. Ela me disse até que seu site tem nome de mulher...

P: Nome de mulher?!

D: Se não me engano é Tertúlia. Tanto nome macho por aí e você vai logo arranjar um nome que mais parece de piranha.

P: É verdade, Digital. Eu podia ter posto Pedrão, não é mesmo?

D: Gostos (Digital falou a palavra com o aberto) não se ‘discute’. Eu, por exemplo, não como nada que tenha glúteo. Mas a questão “grucial” é que minha mulher disse que você está me desmoralizando no site...

P: Estou desmoralizando você no site?

D: Foi o que Engrácia disse. E ela é como eu – tem olho de águia.

P: E o que dona Engrácia viu contra você no meu site?

D: Ela leu no site uma peça de teatro que tem um delegado que se parece comigo. Um delegado que é a minha cara, ela disse.

P: Você podia ser mais claro?

D: Engrácia me mostrou... É uma peça chamada, se não me engano, Auto do Túmulo de Anchieta. Está lá e você não pode negar.

P: E você acha que o delegado da peça é você?

D: Claro que não sou eu com o meu nome, que ninguém ia chegar a tal “peitulância”. Mas é a minha cara cuspida e escarrada pelo que Engrácia falou.

P: Você leu a peça?

D: Você sabe que eu não gosto de ler. Mas Engrácia leu e deu a opinião dela, que para mim basta. É um delegado machão que gosta de respeito e não admite ser passado pra trás como eu.

P: Olha, Digital, por muito respeito que eu tenha pela opinião de dona Engrácia, desta vez o olho de águia dela se enganou. O delegado da peça não é você! Tira esta idéia da cabeça.

D: Tiro pícolas nenhuma. Eu já investiguei direitinho. Quem escreveu a peça foi aquele escritor seu amigo que já esteve preso aqui. Ele estava tirando umas fotos da delegacia quando foi encanado, está lembrado? Por isso me botou na peça sem a minha autorização. E isso eu não admito! Está usando a minha imagem sem o meu consentimento.

P: Mas é um absurdo, Digital! Não faz o menor sentido o que você está dizendo!

D: Preste atenção no meu aviso, seu Pedro: se você não tirar a peça do seu site eu vou chamar o escritor seu amigo para um bate-pau na minha sala. Ele não vai gostar nada do que vai ouvir e o que via lhe acontecer.

P: Se você fizer uma coisa destas, Digital, vai cair no ridículo!

D: Ridículo é você querendo proteger seu amigo.

P: Deixa eu lhe propor uma questão, delegado: você se considera uma pessoa de baixo nível de inteligência?

D: Qual o sentido oculto da sua pergunta?

P: Você se considera burro?

D: É lógico que não!

P: Pois então você não é o delegado da peça porque o delegado da peça faz papel de burro e de bocó ao mesmo tempo. Estou falando porque eu li a peça antes de botar no site. Por isso garanto que o delegado não é você!

D: Apesar do que você está dizendo vou conversar novamente com Engrácia. Se ela concordar com sua opinião dou o assunto por encerrado.

P: Ótimo, Digital. Converse com ela, diga que você falou comigo, pede para ela reler a peça com atenção, depois me conte o resultado.

D: É o que vou fazer.

P: Tenho certeza que o olho de águia de dona Engrácia não vai falhar desta vez.

D: O olho dela e o meu também, porque agora vou querer ler essa merda de peça do começo ao fim.

P: Nem precisa ler tudo, para não ficar cansado. Leia somente a parte do delegado. Leia devagar sílaba por sílaba e depois me dê sua opinião.

D: Como é mesmo o nome da peça?

P: Auto do Túmulo de Anchieta.

D: É auto por que o túmulo de Anchieta fica na cidade alta, em Vitória?

P: Taí, Digital, você acertou na mosca!

[Fim do teatrinho oferecido à imaginação dos leitores].

“Podemos ir ao café, seu Pedrinho? Ou o senhor já melhorou depois da conversa com o dotô?” perguntou Lenilda cercando Pedro no corredor da delegacia depois que ele saiu da sala de Digital.

“Vamos ao café, minha amiga. Vamos para comemorar porque na conversa que tive com o delegado acabei de confirmar que o eu realmente só existe na cabeça das pessoas, ou seja, na cabeça de cada eu. Digital me deu a prova de que nada tem significação e sentido a não ser a significação e o sentido que cada um, ou seja, que cada eu empresta ao seu próprio significado e sentido, por mais sem sentido que possa parecer.”

“Olha, seu Pedrinho, eu nunca pensei que dr. Digital fosse tão inteligente,” disse Lenilda admirada.

“Pelo contrário, minha amiga. Ele é o mais burro dos burros que já encontrei na minha vida. Vou dizer mais: ele raciocina como um tamanco!” disse Pedro.

“Agora é que não entendi nada,” confessou Lenilda de cara abobalhada.

“No cafezinho eu lhe explico,” disse Pedro puxando-a pela mão às gargalhadas.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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© 2019 Textos com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Pedro parou na banca de jornal, a três quadras da delegacia para comprar um maço de cigarros, quando a RP 015 encostou ao seu lado. Ao volan...

Pedro parou na banca de jornal, a três quadras da delegacia para comprar um maço de cigarros, quando a RP 015 encostou ao seu lado. Ao volante, Anastácio ofereceu carona.

Pedro podia ter recusado já que estava quase chegando ao trabalho, mas aceitou.

Anastácio, vez por outra, enriquecia o repertório de anedotas de Pedro que tinha apenas o trabalho de aprimorá-las com mise-en-scène para repassá-las aos amigos. Só que não deu tempo para Anastácio contar a última. O percurso era pequeno e logo chegaram à Chapot Presvot, 272, sendo atropelados pelo delegado Digital.

O delegado aguardava a RP indócil. Foi o tempo de abrir uma das portas laterais e entrar como um bólido, ordenando: “Toca para o centro da cidade. Dois pivetes assaltaram uma financeira e adentraram num prédio na Duque de Caxias. Rapidinho.”

“E eu, delegado!?” perguntou Pedro que não pode sair da viatura.

“Você vem junto!” decretou Digital.

“Mas eu sou escrivão de polícia!” reclamou Pedro, embora tardiamente porque a RP já havia partido rangendo as borrachas no asfalto.

“É bom que você aprenda como a polícia age,” disse Digital como se Pedro, escrivão calejado, ignorasse o modo de agir da polícia e, em particular, de Digital.

Na Duque de Caxias não faltam prédios velhos e desocupados. Se Pedro soubesse de cor as palavras com que o cronista José Carlos de Oliveira descreveu o local, era o caso de repeti-las: “estamos na tortuosa, ondulante, magnífica rua Duque de Caxias, onde o que restou do Brasil-Colônia se esfarela, se enferruja, se carcome, estala e de vez em quando desaba num fragor de tijolos bolorentos e telhados podres”.

Foi diante de um desses mulundus em frangalhos que a RP 015 parou de sirene aberta, as lanternas psicodélicas piscando como boate ambulante, atraindo gente de todos os lados. Os dois pivetes, depois de assaltarem a financeira Quadrângulo, na praça Costa Pereira, teriam sido vistos entrando, não se sabe como, num dos pardieiros “da tortuosa, ondulante e magnífica rua”.

Saltando da viatura com a fúria de um buldogue, Digital gritou para dois policiais que o precederam no encalço aos assaltantes: “Limpem a área! Afastem os pentelhos! A polícia é que é incumbente de pegar bandido!”

Pedro, que saiu da RP atrás do delegado, caiu na burrice de dizer: “Pela porta da frente não entrou ninguém. Está fechada com tapume.”

“Não meta o nariz onde não é chamado,” esbravejou Digital. “Você veio aqui para ver a polícia agir e não para dar pitaco!”

O escrivão se recolheu então à condição de aprendiz da ação comandada pelo delegado, e já que estava em frente de outro edifício ainda em funcionamento, no qual trabalhava seu amigo, autor da tira de textos da Chapot Presvot, 272, decidiu subir para rever o escritor e, lá de cima, assistir à investida de Digital na captura dos assaltantes da Quadrângulo.

Pedro sabia que a sala do amigo dava estrategicamente para o prédio em despedaços diante do qual a RP 015 havia estacionado, sendo possível devassar o interior do soturno pardieiro através dos velhos janelões escancarados.

Mas curiosamente, quando Pedro entrou na sala, o amigo não dava a mínima atenção para a balbúrdia que reinava na rua, concentrado sobre o teclado de um computador.

Constrangido por não ter sido percebido, Pedro se anunciou raspando o pigarro da garganta.

“Com todos os demônios, eu não vi você chegar,” disse o amigo de Pedro.

“Cheguei, mas sem os demônios,” respondeu ele, procurando ajustar sua magreza na cadeira de encosto flexível que lhe foi oferecida. Nisso que falou, nisso pensou, com os seus pigarros dos cigarros que o único demônio que o acompanhara tinha ficado na rua de arma no coldre e focinho arreganhado, dando ordens aos policiais que forçavam, com um pé de cabra saído não se sabe de onde, o tapume de madeira do prédio onde os dois pivetes teriam se infiltrado.

“Como você consegue ficar alheio ao rebuliço lá de fora?” indagou Pedro. “Não me diga que está em plena atividade literária.”

“É por aí... Se não me interesso pelo rebuliço lá de fora é porque dou preferência ao que está se passando aqui, nesta telinha iluminada,” e o amigo de Pedro indicou o monitor onde se alinhava o texto que estava escrevendo.

“Posso saber que texto é este?” perguntou Pedro desligando-se, como intelectual que era, do bafafá que reinava no rés da rua.

O amigo respondeu com bonomia:

“O texto é sobre o que está se passando lá fora. Em outras palavras: o que está se passando lá fora está se passando aqui dentro da telinha. Ou para ser mais explícito: só estão se passando coisas lá fora porque elas se passam diante dos meus olhos. Percebeu a dimensão em que se trava o nosso encontro?

Como Pedro ainda não tivesse captado o espírito da “coisa”, o amigo convidou: “Dê uma olhada no que escrevi linhas atrás,” e apontou o trecho com o dedo: “Cheguei, mas sem os demônios,” respondeu Pedro, procurando ajustar sua magreza na cadeira de encosto flexível que lhe foi oferecida.”

“Então estou diante do escritor atuando no espaço virtual da sua criação literária?” indagou Pedro animando-se com a própria indagação.

“Tu o disseste. É por isso que não preciso ir à janela para ver Digital em polvorosa, nem o que está se passando no entorno dele. Porque o que se passa lá fora se passa no ‘quadrângulodo computador, onde estamos eu, você, Digital, a RP de luzes espalhafatosas, o povo aglomerado na expectativa da prisão dos dois larápios que se ocultaram num prédio em pandarecos.

“Uma criação em se fazendo,” definiu Pedro para se manter no espírito literário da conversa.

“Tão em se fazendo que você pode dar uma mãozinha. Quer tentar?”

“Por onde começamos? Ou de onde continuamos,” arvorou-se Pedro, esfregando as mãos momentaneamente vazias de cigarro.

“Pegue do ponto onde o texto parou e mande bala. Mas lembre-se de que a questão principal a ser resolvida é como o delegado vai conseguir ou não prender os dois bandidos,” disse o escritor a Pedro.

“Ou como queremos que ele os prenda, se é que queiramos”, completou o escrivão.

Queiramos, não, porque estou passando a você a pilotagem do texto. Assuma o comando e continue a perseguição. Eu fico só de co-piloto para eventuais emergências. Proposta aprovada?”

Nem foi preciso dizer mais nada. Assumindo o lugar do amigo diante do computador, Pedro se pôs a digitar, e digitar rapidamente como bom escrivão que era. Cinco minutos depois, tinha terminado.

“Leia a sua contribuição,” pediu o amigo de Pedro.

E Pedro leu: Digital entra no velho prédio pelo tapume que foi posto abaixo e faz uma investigação completa, à procura dos sumidos assaltantes. Não encontra vivalma. No último andar, tropeça num restolho de parede demolida, bate com a cara no assoalho e quebra o nariz que sangra. O herói, que iniciara a busca aos bandidos num arrojo de mastim, deixa o prédio pela porta arrombada com a carranca envolta num lenço ensanguentado, a caminho do pronto-socorro. Vive a triste humilhação do anti-herói.

“O que você achou?” perguntou, concluída a leitura.

“Perfeito, inclusive pela sua desforra contra Digital,” elogiou o amigo.

“Que desforra?”

“O nariz quebrado do delegado, meu caro! No começo da batida, Digital disse para você não meter o nariz onde não era chamado. Inconscientemente você foi à forra, esmigalhando o nariz do seu chefe num assoalho desgastado. Solução primorosa, anticlímax perfeito que tem ainda a originalidade de partir de um dos protagonistas da história, um dos passageiros da RP 015, o escrivão da Chapot Presvot, 272. E quer saber de uma coisa? Está na hora de você ir ao encontro do delegado. Pela sua proposta de enredo, ele está precisando de ajuda. A missão é sua, meu caro. Não foi à toa que a Providência Divina o pôs na RP da batida na Duque de Caxias.”

“Providência Divina?” indagou Pedro que se preparava para sair. “Como você explica a intervenção dessa providência no contexto de um texto que é nosso?”

“Desde que você encare a expressão em tom de blague, ela vem a calhar. Não se esqueça de que estamos na tortuosa, ondulante e eu diria também soturna Duque de Caxias, onde tudo é possível!”

“Será que estamos mesmo?” perguntou Pedro retirando-se da sala.


[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Como todo bom leitor dos autores russos consagrados, Pedro também tem o seu dia de romance policial – “um policial facultativo” –, com pre...



Como todo bom leitor dos autores russos consagrados, Pedro também tem o seu dia de romance policial – “um policial facultativo” –, com preferência para Simenon, menos pelo teor detetivesco das histórias do comissário Maigret do que pela mestria com que o escritor belga arma a ambientação em que se desenvolvem suas narrativas.

Bem a propósito, Pedro costuma dizer, do alto do seu grau de imortal de Academia de Letras, que o melhor de Simenon está no lado extrínseco das suas histórias e não no seu viés intrínseco – quem quiser que decifre o não muito sherloqueano enigma.

“Eu sei o que estou dizendo,” limita-se aduzir batendo no peito magro. E a se considerar a força com que sublinha sua eloquência não muito fática, esmurrando a caixa toráxica intrinsicamente sombreada pela pátina enfumaçada dos cigarros que cigarreou de longa data, é de se crer que a sentença proferida tenha o valor de um princípio irrefutável. Há que se aceitá-la e pronto e ponto.

Diga-se agora, para a continuidade do que se vinha dizendo, que foi num fim de semana em Vargem Alta que Pedro leu A noite na encruzilhada, de Simenon.

O romance o deixou em estado de fascínio intelectual ante a técnica literária do autor ao descrever um caso de sedução não consumada entre o comissário Maigret e a principal personagem feminina da história.

A cena, de insinuante erotismo, se passa numa casa misteriosa, à beira de uma encruzilhada, no interior da França. O clima de envolvimento entre Maigret e a mulher solitária é favorecido pela meia-luz de um quarto onde os raios do sol penetram fatiados em lâminas pelas persianas da janela. O resto é um delicioso jogo de insinuações e meias palavras que Simenon põe na boca dos seus personagens, construindo uma página antológica que empolgou Pedro.

Paradoxalmente, porém, o escrivão teve uma noite de pesadelo, sob o efeito da leitura do capítulo magistral, conforme contou a Nanico, quando chegou à delegacia.

“Você tem que me ouvir, Nanico, para que eu esconjure o mau pedaço que passei dormindo. Aliás, dormindo e sofrendo.”

“Você sonhou que estava sendo trucidado pela personagem do romance?” perguntou Nanico, oferecendo a orelha amiga para que Pedro inoculasse nela o seu desabafo.

“Pior, meu amigo. Meu pesadelo se passou aqui na delegacia. Eu havia chegado cedo para trabalhar quando Digital me chamou à sala dele. A delegacia estava calma e lá fora um sol primaveril apascentava a cidade de Vitória. Lembro-me bem que bati na porta, antes de entrar, e o delegado, no seu estilo boçal, gritou “eeentraaaa”, e eu entrei.

A princípio não distingui direito o interior do gabinete porque eu saía de um ambiente de primavera iluminada para outro, à meia luz, entrecortado por faixas de sol, mortiçamente filtradas pelas persianas da sala, semelhante ao que havia lido no romance de Simenon. Se tivesse de definir o cenário onde me achava diria que era um lugar zebrado de luz e sombra (sem falar, é claro, na zebra do delegado). Mas ao contrário de uma mulher sedutora, que estivesse à minha espera, o que vi foi Digital em pé, em cima da mesa, como um boneco dançarino, cantando o samba de Ataulfo Alves e Mario Lago, Atire a primeira pedra, que começa com o verso covarde sei que me podem chamar. Era uma cena grotesca que, no entanto, me magnetizava: o delegado sobre a mesa, se requebrando como uma stripteaser ao som de um samba que ele mesmo cantava. E tenho que reconhecer que entoado Digital é!”

“Isso já era uma submissão de seduzido?”, perguntou Nanico brincalhão.

“Talvez fosse porque ao mesmo tempo em que eu desejava sair da sala para me livrar da visão agressiva e bizarra, queria ficar para ver até onde o delegado era capaz de ir. O curioso é que eu pensava exatamente assim, no pesadelo, como se dissesse para mim mesmo, num plano de entressonho, que a qualquer momento podia acabar com aquela situação vexatória, bastando que acordasse. Mas não acordei.”

“E o delegado foi em frente...” disse Nanico.

“Foi. À medida que cantava ia tirando a roupa peça por peça, com gestos patéticos, sem parar de cantar, começando por baixar os suspensórios e descalçar os sapatos de verniz de bico fino que jogou na minha direção, com um sorriso boçaloide sob o bigode obsceno, enquanto continuava a se despir e a cantarolar, atire a primeira pedra, ai, ai, ai, atirando-me a gravata vermelha e a camisa verde-clara, suada e pegajosa, de mangas compridas, aquele que nunca sofreu por amor, e me vieram à cara as calças largas com os suspensórios pendurados, eu sei que vão censurar o meu proceder, e me alcançam o nariz as meias mal-cheirosas, seguidas de outra pedrada que era uma camiseta do tipo regata que me bate na testa, eu sei, mulher, que você mesma vai dizer que eu voltei pra me humilhar, e assim peça por peça ou pedra por pedra toda a indumentária do delegado me foi arremessada em golpes indefensáveis até que, num desnudamento final aquela Salomé virago e peluda me lança a cueca azul de bolinhas brancas, enquanto repete eufórica e estridente, mas não faz mal, você pode até sorrir, exibindo-me a genitália ignóbil, aliás, a digitália ignóbil. Não satisfeito com a exposição vergonhosa, virou-me as costas e me mostrou os fundilhos brancos e sórdidos, cantando perdão foi feito pra gente pedir.

Nem assim você acordou?” perguntou Nanico agoniado com o relato de Pedro.

“Quase acordei, Nanico. Mas por um desses mistérios que só acontecem nos sonhos, creio que meu inconsciente foi tocado pelo meu consciente revoltado e, repentinamente, comigo ainda numa solonolência esgarçada e renitente deu-se uma reviravolta compensadora no rumo do pesadelo: o que antes era um Digital abominável transformou-se numa mulher deslumbrante que me seduzia, nua e tentadora, piscando-me os olhos de castanholas.”

“Olhos de castanholas?!”

“Capitu, de Machado de Assis, não tinha olhos de ressaca? A musa do meu sonho tinha olhos de castanholas, e daí?”

“Daí que foi então aquela festa flamenga entre você e os olhos de castanholas,” disse Nanico ansioso por conhecer o clímax do sonho de Pedro.

“Que nada, Nanico, porque no melhor do melhor do meu sonho o despertador tocou e eu acordei duplamente chateado: pelo vexame a que me vi exposto no pesadelo com Digital, e pela frustração de não ter ido em frente com a castanholeira que bailou para mim o bailado mais lascivo a que já assisti na minha vida.”

“Não é para menos...” disse Nanico solidário com a má sorte do colega.

“Mas o mais irônico veio depois, meu amigo. Eu tinha certeza de que havia visto a mulher sonhada em algum lugar e quis por que quis me lembrar onde foi. Já pensou se ela estivesse ao meu alcance, na vida real? Esta possibilidade me espicaçava.”

“Espicaçava é o verbo adequado. E se lembrou?”

“Lembrei-me, não. Apareceu a margarida quando o despertador me acordou: era a bailarina que estava decalcada no mostrador do relógio... Não é para arrebentar meu cavaquinho?”

“Se fosse você eu quebrava o despertador,” disse Nanico.

“Foi o que eu fiz, meu amigo. Quebrei-o com bailarina e tudo. E ainda trouxe para mostrar a você a dançarina que sobrou do quebra-quebra. Veja-a. Não é lindamente sedutora?”

“Ela me lembra Digital...”, disse Nanico, rindo debochado do dedo fálico que Pedro lhe mostrou.



[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)


Nota do site Estação Capixaba O livro de contos Mina Rakastan Sinua , de Reinaldo Santos Neves, editado pela CÂNDIDA e site ESTAÇÃO ...




Nota do site Estação Capixaba


O livro de contos Mina Rakastan Sinua, de Reinaldo Santos Neves, editado pela CÂNDIDA e site ESTAÇÃO CAPIXABA, foi publicado em 2016 com patrocínio da LEI RUBEM BRAGA e apoio cultural da SPASSU TECNOLOGIA. O projeto apresentado, tendo como proponente Eurico Scaramussa, previa, à guisa de contrapartida, além da doação de exemplares ao patrocinador e à empresa apoiadora, dois outros itens: (a) realização de um debate público, o que aconteceu, sob a forma de mesa-redonda, no auditório do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, em Vitória, no dia 22 de fevereiro de 2017, tendo, além do autor, participado da mesa Gilbert Chaudanne, Sérgio Blank e o editor Alfredo Andrade; e (b) publicação online, para leitura gratuita, de quatro dos nove contos do livro, aqui cumprida. Os quatro contos foram selecionados pelo próprio autor.


Orelhas

Introdução

Sumário

Contos

Nascido em 4 de julho
Homens de letras
Inverno em Volna
A corveta em chamas

Páginas finais


[In SANTOS NEVES, Reinaldo. Mina Rakastan Sinua - contos. Vitória: Cândida / Estação Capixaba, 2016.]



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© 2016 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui

CONVERSÃO DO ANJO No ar, aroma de De Luxe, como de quem recém-saído do banho. À meia-luz, exigência: — Primeiro as meias, devagarinho...


CONVERSÃO DO ANJO

No ar, aroma de De Luxe, como de quem recém-saído do banho.

À meia-luz, exigência:

— Primeiro as meias, devagarinho. Não há pressa.

Antes, jurando inocência, que "não era disso"; depois, despiu os pudores e, pouco a pouco, as partes mais ínfimas.

Carinhos mil no pescoço.

— Coço mais, meu anjo?

Descendo, meticuloso, aos pés.

— Coço mais, meu anjo?

De novo, no pescoço. E ao pé do ouvido:

— Coço mais, meu anjo?

Olhou, tímida, e fez "não" com a cabeça.

— De quem é isso, hem?

Mão apalpando o seio esquerdo.

— Seu coração bate.

Corridinha à porta do quarto. Preocupação rápida em vedar orifício da fechadura.

— Ninguém mais. Pronto.

Risinho meio cúmplice, a mão aliciante, posta no fogo. Em teia de aranha, bem na mosca.

— Olha que isto não é público... — reclame em falso tom pudico. E a fuga, para o meio dos lençóis.

Testa reluzente de suor.

— Dá cá o pé, minha lourinha.

O animal ainda não doméstico.

— Lúcia, vem, Lúcia.

Voz em tom mais ameno.

— Dá um beijinho no papai aqui.

O olhar estudantil e desatento.

— Dá, meu bichinho de pelúcia.

Alucinado quase, ao pé da cama. Arfando, o salto em preparo.

Armadilhando a presa. Ao alcance agora.

Lance único, Lúcia imposta em pêlo, sob domínio. Carnudo o corpo, despido.

— Eta, Lúcia boa!

Trêmulas, em luvas de pelica, mãos descrevendo a anatomia. Perito no assunto. Cioso de tudo.

Punha Lúcia quadrúpede. Selvagina nunca vista.

— Minha nossa!

A ladainha de sempre.

— Santa Virgem!

— Quê???

— Nada, nada. Olha o tubarão.

Rindo, às gargalhadas, semilouca.

— Sua barba...

Lucinha já de pé, soluçando, já ré arrependida.

— Ora, ora!

Luciferino brilho nos olhos, lúcido então.

— Vem, bonequinha de louça.

Promessa de nada fazer e outras juras.

— Prometo.

Deitado, citando trechos poéticos. De memória, ou inventados.

— Ó menina dos meus olhos, nina-me, nina-me...

Lúcia bebendo do vinho. "In vino veritas".

As ondas indo e vindo.

— E teu perfil é de estátua grega.

Lucinha embriagada com o álcool das palavras.

— Diz mais.

A cabeça nas nuvens, navegando.

Ele singrando as enseadas dela.

Salva do afagamento, respiração boca a boca.

Línguas funcionando, a traduzir anseios.

— Bela Babel... — exclame entre confusão de línguas.

Subindo, ambos, o alto da torre. Subindo, aos céus.

Ela toda mordidinha. Espora em potra selvagem, pondo ele.

— Malvado.

Só, domava-a, corcel fogoso.

Logo morria de regozijo.

— Ai, minha gostosa — em fogo, ressuscitando do inferno.

— Meu paraíso.

— Meu demônio.

Ela, toda gozosa, ainda.

— Lucinha do coração.

— Lucinha de minha vida.

Ai, sempre acesa a chama.

Lucinha disto. Lucinha daquilo.

Lucinha cá.

[p. 26-8]

* * * * *

DE CODIFICAÇÕES

"Deixai simplesmente que a vossa palavra Sim signifique sim, e o vosso Não, não, pois tudo o que for além disso é do iníquo." Mateus, V, 37.

— Alô?... É da residência do lingüista? Alô?...

— Sim! O senhor reparou quando disse alô? Um alô é não mais do que o meu sim inicial. Ele jamais constata alguma coisa; ele responde, chama, compromete. Preocupa-se em testar contato, ou interessa-se no prolongamento da comunicação, ou impede que seja interrompida. Não há nele objetivos informativos. Ele tem uma função centrada no canal, que, neste caso, são os fios telefônicos. Em lingüística, diz-se que ele tem uma função fática. Vide Jakobson.

— Obrigado, professor. O senhor é mesmo um gênio. Mas nós gostaríamos...

— Outra coisa. Esse nós, que o senhor disse, ou é plural majestático ou o senhor incluirá na frase, evidentemente, um aposto, que me esclarecerá esse nós.

— É que nós, jornalistas, enquanto...

— Eu não disse? Disse.

— Exato. Eu queria saber do senhor...

— Você queria, e não quer mais? Queria é imperfeito. O senhor queria. E continua querendo, no presente? Ou não quer mais? Percebeu a alteração do sentido temporal?

— Percebi, professor...

— Mas eu, idem, percebi o espírito de sua frase. O seu queria, na verdade, é o imperfeito de cortesia, de que assim nos fala Spitzer: a transformação de uma ação presente em uma ação passada retira o que ela pode ter de brusco. O senhor, o falante, por respeito a minha pessoa, o interlocutor, quis amenizar o tom impositivo que há no verbo querer, quando no presente do indicativo. Correto?

— Muito correto, professor. O senhor é mesmo um grande. Mas o senhor poderia escrever um artigo sobre linguagem para a nossa revista?

— Você me indaga se sou capaz, coisa duvidosa, ou seu eu aceitaria escrever um ensaio? Nesta segunda hipótese, seria um pedido ou um convite. Uma eficiente interpretação vai depender da entonação, da nossa relação nas duas extremidades da linha, de muitos outros dados, de um contexto, situacional, que não é imediatamente lingüístico. O senhor mesmo, que já foi meu aluno em faculdade, estudou comigo sobre esse assunto. Ficou claro?

— Sim, professor, Claro.

— Dito isso, na primeira hipótese (você é capaz de...), a indagação remete-nos a uma resposta que alguns estudiosos diriam confirmativa. Meu sim equivaleria a: sou capaz. Assim, eu pretenderia dizer o que é, definir, descrever, constatar. Entendido?

— Entendido, professor. É muito interessante. Mas...

— Mas se a pergunta equivalesse ou tivesse o efeito de um convite, meu sim não constataria nada, ele faria alguma coisa, ele me comprometeria. Minha promessa provocaria um acontecimento que não tinha nenhuma chance de aparecer, assim como não teria nenhum sentido, antes de meu sim. Este, sim, não tem mais valor confirmativo; é, essencialmente, performativo, no sentido de: eu afirmo, eu digo que, eu acredito que, eu penso que sou...

— Como o senhor mesmo disse, um sim em si mesmo equivale a um alô, porque jamais constata coisa alguma. É vazio de significado, embora contenha significante. Um sim confirmativo.

— Alô! Muito cuidado com a terminologia. A distinção entre o confirmativo e o performativo continua sendo resumida, desobrando-se em refinamentos que não cessam de agudizar sua dificuldade. Quando o senhor afirma que o sim é vazio de significado, embora contendo significante, pode (sic) estar afirmando uma falácia. Essa assertiva, lato sensu, é enganosa. Ora, sabe-se que é arbitrário o laço unificador do significado ao significante. E entende-se por signo ao total resultante da associação desses dois elementos. Então, concluo, apud Lévy-Strauss, que o signo lingüístico é arbitrário a priori, mas que deixa de sê-lo a posteriori. O senhor sabia?

— Confesso que não sabia, professor.

— Então fique sabendo que no meu próximo livro esse será um assunto exaustivamente questionado, verbum ad verbum. Apenas uma parte dos signos é absolutamente arbitrária. O signo, enquanto unidade constitutiva da língua, une, não uma coisa ao nome, e sim um conceito a uma imagem acústica. — Alô? O senhor poderia exemplificar no caso do sim que comentávamos?

— Pois não. O senhor repare que, quando digo pois não, eu, na verdade, pretendo e quero e digo sim, eu posso.

— Alô, professor, mas o senhor não disse sim, eu posso. O senhor disse pois não. Há, pelo menos, uma sensível diferença de significante, embora o significado...

— Pois sim. Eu já explico. O senhor observe que quando eu enuncio pois sim, eu pretendo exprimir algo que manifeste minha indisposição, uma negação, um não.

— Sim, professor, sim. Eu admiro sua agilidade intelectual. Mas naquele caso do sim o senhor ainda não me esclareceu.

— A fim de melhor compreensão didática, convém remontar aos tópicos básicos, rever conceitos fundamentais, citar considerações de outros igualmente estudiosos. Um leigo jamais deveria entrar, ex-abrupto, neste assunto. Mas o senhor já tem um bom embasamento teórico, de tal forma que começo aqui mesmo.

— Alô, mestre? Na verdade, eu prefiro Ter o prazer de ler no seu próximo livro sobre este importante tema. Eu sei que o senhor é muito aprofundado. Agora, eu queria e continuo querendo e quero saber, também para a nossa revista: por que o seu extremo interesse para com a linguagem?

— Se o senhor me pergunta linguagem no sentido estrito de "faculdade que têm os homens de se intercomunicarem através de signos orais", como quer Saussure, eu respondo: "Je.....................................................", como escreveu Barthes, in Le plaisir du texte, Éditions du Seuil. Mas já traduzo: "Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz". Aliás, a linguagem é algo mítico e místico. Os livros sagrados têm muitos exemplos. A Bíblia revela isso. Vide Evangelho de João: "No princípio era o Verbo." Vide torre de Babel. Vide o "sim, sim" e o "não, não".

— O senhor me faz lembrar Brecht e suas duas óperas para a escola: "Aquele que diz sim e aquele que diz não..."

— Sim, porém não. Quero dizer: faço lembrar porém não quero. Eu não suportaria e não suporto alguém que faça arte com fins didáticos. Há na comunicação, lato sensu, profundas implicações ideológicas. A linguagem é instrumento sine qua non de manipulação do poder. Daí eu não admitir alguém didatizar (sic) através da arte. A arte é terreno do lúdico.

— Professor, a alienação através da linguagem é um assunto que o senhor deveria, exempli gratia, explorar em seus estudos, e...

— Não, porém, sim. Que dever tenho eu para com esse assunto? Ninguém, nenhuma autoridade, nenhum poder, ex lege, me obrigará a fazê-lo. Não devo, porém, posso. Sim, eu posso. Eu tenho poder para tal. Eu tenho todo o direito. Meu curriculum vitae é dos maiores. Possuo em várias universidades o título de doutor honoris causa. Alô? O senhor sabia? Alô? O senhor não me ouve bem?

— Alô, não, doutor. Quero dizer: sim, eu sabia. Eu quis dizer: não o ouço mal; eu o ouço bem, sim. A propósito, a sua pronúncia de latim continua sui-generis. Mas o senhor seria capaz de escrever mesmo o ensaio para a nossa revista?

— Já que o senhor entrou no jogo, eu poderia responder: sim, porém não (sim, sou capaz, porém não aceito escrever o ensaio). Ou ainda sim, sim (sim, eu sou capaz e aceito, sim, escrever o ensaio). Ou então não, não (não, não sou capaz, e não aceito escrever o ensaio). Ou por outra: não, porém sim (não, não sou capaz, porém aceito, sim, escrever o ensaio).

— Alô? Enfim, o senhor poderá, ou não, escrever o ensaio para a revista?

— Meu caro ex-aluno, você me força a parecer pedante. Repare que você me pergunta: o senhor poderá, ou não? Se eu puder, a resposta será um sim; caso constrário, um não. Então, basta dizer: O senhor poderá? E qualquer resposta minha, afirmativa ou negativa, eliminará a necessidade da outra opção, tornando-a redundante, portanto alógica. Ainda assim, o problema, in totum, não está concluído. Observe, verbi gratia, na pergunta: o senhor não poderá? Se eu responder não, estaria dizendo não poderei. Porém, se eu responder sim, posso estar dizendo sim, eu não poderei. Repare que, hic et nunc, sim e não se equivalem.

— Brilhante, professor. Mas esse não equivale a um sim, como no exemplo citado?

— Não equivale. Estarei muito ocupado com outro ensaio, sobre o sim e o não. Não creio que possa.

— Compreendo. Permita-me dizer boa noite, sim, professor.

— Pois não, data venia.

[p. 32-7.]

* * * * *

D DE DENTE

Entra mudo e aguarda calado.

Entre dois dedos, um cigarro de ruim marca, aceso, mal disfarça o nervosismo das mãos. Colocá-las sobre as pernas? Deixá-las livres? Ou cruzar os braços?

E as pernas? Cruzá-las? Ou deixá-las à vontade? E se não parecer elegante? Pernas, pra que vos quero?

Minutos de espera e de dúvida, não se resolve.

Um cigarro após o outro é a solução. Ou um pigarro.

A atendente é toda só riso postiço e crava nele os olhos de vampira d'óculos.

— Agora é sua vez.

Desorientado, exibe, em agradecimento, sorriso amarelo de nicotina.

— Entre.

Entra mudo. Rês dócil caminhando ao abatedouro.

O odontólogo, de entre os dentes d'ouro, também diz:

— Entre.

E ainda:

— Sente-se.

E ainda:

— Sente-se bem?

Quer estabelecer uma ponte.

O outro faz duvidoso meneio com a cabeça.

— O senhor não fala?

— Sim.

— Fala ou não fala?

— Sim.

— Hum...

Há uma pausa, longa, de silêncio.

— Abre a boca.

Fecha os olhos. Mas o odontólogo, logo, douto:

— Veremos o que o senhor tem na boca.

Quase diz. Mas não diz. Considera imprudente.

— Qual é o dente?

Aponta com o dedo médio. Poupa o indicador.

— Hum...

O profissional observa, minucioso.

— Hum... O molar superior esquerdo.

E toca o local.

— Dói?

Faz sim com a cabeça.

O odontólogo, incisivo:

— Sinto muito, mas é necessário extração.

A raiva canina, o desejo de triturar os dedos dele.

Rápido, o auxiliar passa-lhe à mão os instrumentos. É a eficiência em pessoa.

— Abre mais a boca.

Abre bem os olhos. Quer engolir o mundo. Engole em seco.

— Hum, hum...

Os dentes em situação precária, a boca quase oca deles. A anestesia, a anestesia...

— Agora cospe.

Boquiaberto, pratica masoquismo na cadeira odontológica. Ai, em tuas mãos entrego a minha boca.

— Não está doendo nada.

— Hum...

Uma dor ardente. A extração, a extração...

— Não dói nada.

— Hum...

O auxiliar faz ar de riso. O profissional, de siso.

— Agora cospe.

Então, o secular diálogo, desde a invenção da tortura e do sexo, segundo os entendidos de um e de outro.

— Dói?

— Ai.

A sempre retórica pergunta.

Agora cospe.

— Dói?

— Ui.

A milenar resposta.

Agora cospe.

— Dói?

— Ói.

Sobre o armário, irônica dentadura sorri dentes alvos e perfeitos.

— Hum... Pronto. Extraí o mal pela raiz.

Mostra, vitorioso, o troféu.

— O senhor escove os dentes pelo menos três vezes ao dia. Pela manhã, após o almoço e após o jantar. Assim, evita a cárie e...

Mas ele já sai, calado, como quando entrou. Porém, com a humilhação de um dente a menos.

— Hum...

[p. 50-3.]

* * * * *

ÉDEN IDEM

..............................................................................

—..........................................................................

—..........................................................................

— Homem, tenho aqui no ventre um filho seu.

— Ora, mulher, então é seu.

— Não, homem, é seu mesmo.

— E de quem é o seu ventre, mulher?

— É meu o ventre, homem.

— Então seu é o filho, mulher.

— Homem, você não crê que este seja seu filho?

— Você disse, mulher.

— Homem, então, é você que é o pai.

— Você diz, mulher. Mas você mesma não sabe quem.

— É você, homem. Juro por Deus.

— Você mente, mulher. Sua língua é serpente.

— Não falo entre dentes, homem: ou digo a verdade ou seu filho será mendigo.

— Há um engano aqui, mulher.

— Você não me engana, homem.

— Não é possível, mulher. Há um engano.

— O médico está certo, homem: há sete meses um filho é possível.

— Mulher, há sete meses eu estava fora.

— Fora de mim, homem. Fora de mim.

— Mulher, eu estava no interior do país.

— E no meu interior uma parte sua, homem.

— Eu não tenho culpa, mulher.

— Seu filho, sim, homem, não tem culpa do pai que tem.

— Nós somos inocentes. Ele é um inocente. Eu, mulher, sou inocente.

— Homem, você se nega a ser o pai de seu filho.

— Mas, mulher, eu não posso ser pai de qualquer um. Há muitos querendo pai. Há muitas mães.

— Homem, seu filho, quando crescer, será um filho sem pai.

— Mulher, você é a mãe. O filho é seu.

— Homem, vocês são todos iguais.

— Mulher, deve ter sido alguém igual a mim.

— Homem, eu estou certa do que digo.

— Eu não estou certo disso, mulher.

— Homem, naquela noite, jantamos juntos num restaurante.

— E depois, mulher?

— Depois, homem, dormimos juntos num dormitório.

— E depois, mulher?

— E, depois, eu fui sua mulher.

— Vocês, mulheres, são todas iguais. Aqui e na China.

— Homem, ser mulher-mãe é um inferno. E você nunca foi à China.

— Mulher, nunca estive lá. Nem aqui, antes.
— E você, naquela noite, disse que eu era diferente de todas as outras. Você disse, homem.

— Mulher, você jura que não mente? Que não perdeu o juízo?

— Homem, juro pela vida de seu filho que há de nascer.

— Isso não é possível, mulher. Deve ser fruto de sua mente.

— De sua semente, homem. De sua semente em mim.

— Oh, minha mulherzinha, você é um demônio de anjo.

— E você é o meu homem. O meu homem.

— E você minha mulherzinha.

— E você o meu homem. O meu homem.

— E você minha mulherzinha. Minha.

— Terminamos, querido. (Desvia do texto o olhar.) Está cansado? Olha para ele.

— Um pouco, querida. (Suspira, e guarda os papéis.) Amanhã ensaiaremos de novo.

[p. 54-6.]

* * * * *

REVISÃO

Sou um homem noturno, de vigília. Não sou vigia: não durmo por insônia. Sempre — ou quase sempre — estou de plantão permanente, isto é, acordado, quando está a dormir todo um hemisfério. Quase não — ou só não — durmo à noite. Troco-a pelo dia, hábito desde há muito adquirido. Nessas horas mortas — não vejo nisso mistério — ou vago pelas ruas, geralmente desertas, ou aproveito e arrisco a escrever rabiscos — ou arabescos — talvez estranhos mesmo a árabes e gregos e troianos. E ao dia — quando durmo — o sono é lento. Talvez enquanto adormeço ainda me atormente o temor da morte: com medo dela convivo, por amor à vida. Teve isso começo na infância: isso, por reserva, sempre o omito, ao psicanalista, quando o consulto. A ânsia do eterno, o mito da imortalidade, explicar-me-ia ele, sintético; e certamente, formularia algumas perguntas, a analisar — impassível — as respostas. Cultivo, porém o ocultismo de mim mesmo, fingida esfinge: decifrar-me ou não — eis a questão.

&

Não conto a ninguém — mas estou a escrever uma obra, hermeticamente fechado em meu quarto de solteiro. Nele, solitário, pelo menos há liberdade e silêncio, sem contar das pulgas. Não me preocupo com os possíveis leitores, leigos, em sua maioria; por enquanto, livro-me deles o quanto posso.

Na pensão, onde estou hospedado, já até houve comentários acerca de meus hábitos noturnos: alguém, sempre à escuta, já deve ter ouvido o ruído de minha máquina de escrever. Pensam eles que sou um desses poetas sentimentais, que dedicam a vida a poemas à amada ausente, ou um fracassado escritor que sobrevive às custas de mísero prêmio ganho em concurso literário de júri medíocre, ou ainda sobrevivente de direito autoral num país onde pouco se lê. A fim de evitar dedução desses maníacos especulativos, decidi manuscrever os meus fragmentos.

A dona da pensão, uma senhora gorda e prestativa, aos curiosos vive a explicar que sou um senhor sujeito muito inteligente e culto, apesar de meu jeito estranho, oculto. Também nunca lhe atrasei o pagamento do aluguel. E não sou um homem de senhas. Não sei, porém, o que os outros pensam de mim, pois apesar da pouca distância, inquilinos que somos, nunca nos cumprimentamos: limitamo-nos a nos medir, com olhares desconfiados, de soslaio.

Por falar em leitores, suspeito dos tais que dizem ter livro de cabeceira — acredito mesmo que, à falta de travesseiro, durmam com o crânio sobre o livro, no leito, sem nunca sequer ter lido ou folheado uma página dele. Há muitas histórias de leitores assim. Conheço-as através de relato dos próprios.

Suspeito — também — dos que dizem estar a escrever um livro. Tais assuntos causam-me mal estar: no máximo, é pura ficção ou o livro não é bom — em termos conteudísticos — ou está o autor acima de quaisquer suspeitas. E se é ele realmente um escrevedor, cabe-lhe, na sociedade, o papel de escrever, claro. Sem imposições. Há a liberdade da pena e — censurável — a pena da liberdade.

Mas escrever é um trabalho penoso — admito-o — e os escrevedores homens plenos de pretextos, e, por isso, não faço — em minha obra — um prefácio fácil, a pretexto de ser lido. Lido com palavras como o faz o lavrador com sua lavra: em intensa lida. E se meu texto é sólido ou se liquido com a tradicional escritura, isto é outro tema — ou tira-teima — a ser estudado pelos que dispõem de tempo de sobra.

E minha temática é outra, boa ou má.

Ora, a literatura é o ardil de alguns eleitos para o deleite de uma elite leitora, e a poesia uma arte minoritária: de minoria para minoria.

E se minha obra prima pela rima, poeta não o sou: não ouso o pó das bibliotecas — obra de doidos e doídos.

Talvez o seja, sim, um poemador; mas um igual: nem maior nem menor, mas médio, crê — de mediana estatura.

Possuo olheiras bem visíveis e as retinas cansadas da rotina de revisar o que escrevo, quando, de instante em instante, em qualquer lugar, comum ou não, me assaltam à mente palavras novas ou frases de efeito, amante que sou das letras, a despeito de alguns lapsos lingüísticos. A mim me falta uma estante e, nela, um atualizado dicionário. Os erros, corrijo-os a lápis. E, quando me deito, assaltam-me logo o leito e iniciamos o diálogo. Com elas converso boa prosa. E elas, às vezes belas, me atacam — boa presa — e novamente e novamente e novamente. Um turbilhão de palavras, frases, idéias. Excitado, levanto num salto, rápido, a fim de papel e tinta. Conseguidos, enfim, às vezes sem tempo sequer para registro. Na memória uma turbação. Um jugo de palavras. Falo-as desconexas. E logo o dia.

Cedo, menino ainda, via, com meus olhos então míopes, a profissão de jornalista, entre enumerável lista. A idéia ia penetrando-me. Meu pai, repórter policial que fora, nunca concordara. "Só nessa sua cabeça cabe essa idiota idéia." Policiava-me os atos. Um dia, melhor, uma noite, alta madrugada, acordara, e, entrando em meu quarto, flagrara-me rabiscando uns papéis. A pena do delito fora um sermão realista e cru, como só meu pai sabia fazê-lo — melhor que vigário —, embora nunca tivesse lido nem conhecido os autores clássicos. Quase rasguei, desiludido, todas as românticas meninices. Preferiria três surras àquelas palavras cortantes quais lâminas.

Em seus planos de pai, homem reto, calculava-me engenheiro de construção civil. Aos amigos descrevia a minha vocação para o desenho — equívoco logo desculpável quando, em queda no andar térreo do prédio da vizinhança, fraturara eu o braço direito, então meu melhor amigo aos momentos solitários, porque, com ele, múltiplas alternativas de prazer obtinha, principalmente a masturbação.

A essa época, ainda éramos fartos e poucos.

Depois, falto de recursos, não pude, no entanto, cursar faculdade, tal a nossa dificuldade financeira, família pobre e de numerosa prole.

Abandonados os estudos e tudo mais, inclusive os escritos primários, fui ser aprendiz de tipógrafo, em gráfica de subúrbio; onde, por detrás de uma infinidade de letras e números, descobriu-me um poeta, com livro a ser ali impresso. À primeira impressão, em simples troca d'olhos, simpatizamo-nos mutuamente. Tinha ele certa dificuldade respiratória, mas, mesmo assim, recitou-me, ritmadamente, diversos poemas seus: achei-os perfeitos, com espontaneidade — não o disse no momento — mas cheios de vazio existencial. Elogiei — com efusão — apenas uma elegia, lindamente triste, intitulada "Sofrimento". Ele próprio pareceu-me vazio de corpo: era um jovem alto e muito e muito magro. Usava óculos de grossos aros, que, sobressaindo-se mais que o rosto, lhe emprestavam ares de profundo intelectual. Vi nisso um bom artifício para ocultar olheiras. Mas nunca havia conhecido um poeta em carne e osso. De resto, só nas antologias e compêndios escolares. Talvez ele o fosse a fim de dar vazão a um certo desejo reprimido, pensei comigo.

Já versado no ofício de imprimir, encarregaram-me da composição do livro do poeta, a pedido do autor. Feita a obra, nenhum erro tipográfico! Emocionado, chegando mesmo às lágrimas, agradecera-me muitíssimo. O primeiro exemplar, ganhei-o, com dedicatória, tremida a letra.

Dedicado no serviço, firmava-me dia a dia. Ao dono da gráfica já imprimia confiança, e o convite para ascensão de posto viera em seguida. Mas o salário não sofrera o esperado reajuste. Então, fui vitimado duas vezes, injustamente: por discutir firmemente com o patrão um aumento salarial, fora demitido por justa causa, conforme reiterara seu advogado, citando-me — seguro — alguns artigos da lei trabalhista. Não recebi indenização alguma: era a lei. E eu leigamente ilegal.

Meu pai — em talvez castelos de sonhos — tinha ainda o vão desejo de me ver engenheiro de edificações. A essa altura, eu ainda não sofria da coluna. O seu sonho era-me um pesadelo, por eu lhe causar desilusão.

O referido poeta tornara-se famoso e nunca mais nos vimos. Às páginas e revistas literárias, cúmplice de seu sucesso, acompanhava sua carreira. Travara com um crítico uma tão acirrada polêmica que levou este à morte, de ataque cardíaco, em plena sessão da Academia de Letras, repleta de Imortais.

Depois conheci um contista; mau contista — sim — mas muito bondoso, com ajuda de quem contei para ingressar no Jornalismo, como revisor, em jornal de grande tiragem. A princípio, visava a Redação, porém, excluído por não possuir diploma do Curso.

&

Evito escrever, mas, para mim é vital; talvez eu me tenha tornado escravo do que escrevo, por estar em fase de desemprego ou assim me atenha por não Ter uma outra lacuna onde empregar minhas parcas frases, ou ambas, simultaneamente; assim, creio, extravaso minha criatividade, após ser também despedido — por problema de coluna — do jornal onde atuava como revisor.

Sinto ainda muitas dores — e mais acentuadamente quando me sento.

Era um funcionário exemplar. Cumpria a rigor o meu papel. Revisava letra por letra, palavra por palavra, não descuidava de um acento sequer. Causava boa impressão a todos os jornalistas. Havia um que me cumprimentava com um só leve sorriso, social. Era, enfim, bem visado até pelo crítico de cinema — tido por todos como intratável, fazedor de cenas histéricas ao constatar um mínimo lapso, ou corte, em seu artigo semanal. Nunca recebera deles, às horas de folga, frase alguma de queixa. Disso me orgulho. Eu é que me queixava de dores na coluna. Houve um que, com maestria e humor, registrara, em crônica, o meu mal, que se agravava dia a dia.

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Um dia, o diretor do diário, de sobrenome Farias, um sujeito de voz e gestos escandalosos, tipo manchete policial, intimou-me, em bilhete mal escrito, a comparecer à sua sala.

— Sente-se, por favor — a voz ativa, ditatorial.

E, entre um argumento e outro, sempre direto, por detr5ás de sua cadeira giratória, alegou ser ilegal a minha permanência no quadro de funcionários, devido a meu estado doentio.

E, devidamente ou não, decretou demissão imediata.

— Sinto muito — quis ele dar um tom de afeto; saiu, melhor, soou falso, afeito que estava às palavras fatais.

Senti muito mais. A partir daí, vi dividida minha vida em duas partes: em dívidas e dúvidas. Aceitei o fato com o meu jeito orgulhoso e calado de ser, dócil, rês posta ao golpe fatal. Era isso em mim — a notícia circulou depois — que o fazia me detestar, censurando-me caluniosamente, apesar de nunca termos trocado palavra, em tempo algum. Nem mesmo em pêsames, quando, no hospital, doente, falecera minha querida mãe.

Pesa-me na consciência o não saber ser violento. Na verdade, àquela hora — confesso-o agora, tarde — tive contade de explodir qual uma bomba, e lançar para fora todas as inúmeras letras, palavras, frases e idéias, que tenho acumulado ao longo de uma vida de covarde. Tão intensa era minha fúria interna que tive medo de mim. Tivesse um punhal à mão, faria, sem pena, bons furos no corpo gordo daquele porco podre e miserável até que se lhe esvaísse, entre as vísceras expostas, todo o sangue tipo A de arrogante.

Grande náusea sentiria em rever o cadáver. Boa matéria para a página policial, apenas.

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Ultimamente, muito tenho refletido sobre mim mesmo, principalmente quando me olho direito, diante do espelho, e começo a descobrir rugas, precoces, em meu rosto de ainda jovem de idade. Do que era eu fisicamente, há pouco tempo atrás, resta — entre minhas poucas posses — apenas esta fotografia, posado de frente, para fins de documento.

Também constato calvície precoce — falhas de cabelos na cabeça. Depois daquelas horríveis coceiras, careço deles. Quanto às rugas, uso um creme facial para disfarçá-las. Sei que isso é fácil, superfácil, superficial, num mundo de aparências e rotulações. "Não fique a ver rugas: use SUPERFICIAL", diz irritante anúncio, na televisão.

Reviso uma outra fotografia minha, aos dez anos, já amarelada, um tímido sorriso ao canto dos lábios, um menino de trato e retrato, sem marcas de espécie alguma. A infância revista, qual em filme colorido, em reprise.

Sofro, também — sem remédio —, a dor dos outros seres, que sofrem anônima ou publicamente. Mas, a minha, a ninguém revelo — a ninguém mesmo — nem no escuro.

Do mundo, a visão que tenho é a dos meus olhos, tristes e cansados.

Só comigo converso, meu melhor amigo, e, aos reveses, pior inimigo. Não consigo outros: a não ser palavras. Sinto até pena de mim — é como se estivesse condenado, em ilha deserta, por um crime nunca cometido. Sim. Sem fama nem família, no exílio. Infâmia!

Outras noites saio pelas ruas a andar a esmo — feito um louco à procura de si mesmo, ou em busca de um suposto alguém que ele próprio desconheça — ou entro em profundo estado depressivo e me refugio nos mais ermos lugares da cidade, a feliz cidade que a um bêbado poeta encantou, onde, em mesmas mesas de bares noturnos, pares de olhos, meses e meses, espreitam outros, na esperança de serem vistos.

Ora em dúvida, se sonho ou realidade, ponho-me a pensar em possível cura. Entretanto, de tanto pensar, beiro a loucura.

Dar uns dois tiros no ouvido — esta a minha vontade, se possuísse um revólver, mas temo ficar surdo antes e assim não ouvir o eco dos disparos, certeza de ato consumado, e — talvez o pior — nem o que seria o meu último grito, já há muito preso na garganta.

Revolver mágoas — eis o que resulta pensar profundo.

"Carregamos o peso de nossos corpos, e sua existência" — rápido, anoto em caderno próprio de frases e poemas, advindos aos instantes de meditação.

Gravei bem o que disse o doutor, após o exame ortopédico: "Grave! Escoliose. Espondilite. É necessário um bom tratamento para andar correto."

Ando torto. Ando morto. Desisti de viver. Dei prazo à vida. Evito tratamento médico, o horror das intermináveis filas, todos a se queixar e a gemer de dores, como se fosse o mundo enorme hospital e os médicos espécie de messias, prontos a realizar milagres de cura. Comovem-me a vozes doridas.

Dependesse de mim, decretaria agora o Apocalipse, e morreria em lugar incomum: em poltrona de teatro, a ouvir de preferência Beethoven, como o ouvem os eruditos: em profundo silêncio. Comovo-me com o barulho de sua música: a mim me soa suave quais finos dedos de pianista, a correr, ágeis, pelas teclas de marfim, em piano de cauda.

Deitado, a olhar para cima, entre as quatro paredes do quarto, arquiteto um suicídio sui-generis, que seria manchete em todos os jornais do país. E do mundo. Receio apenas erro de revisão.

Suicida, não o serei por causa anônima. Antes deixarei em carta explicativa, fechada e escondida, a chave do enigma.

A fim de não revolver pensamentos negativos, resolvo ligar o vídeo e ter a ilusão de ver — finalmente — algum final feliz de algo, na telenovela que hoje finda: em evidente alusão ao meu caso, um homem com idéias suicidas termina casado com mulher compreensiva e simpática. Um belo casal, opino mentalmente, a contragosto.

Amanhã uma nova novela.

Desligo.

[p. 94-103.]

* * * * *

AUTO-RETRATO

Ele se retrata alto como se o fosse. Além de si, fora do seu eu. Além desse cosmo. Alto como Deus Altíssimo, fora do céu. Alto como Deus de sapato de salto alto que não deu certo no pé. Grande à beça. Dos dois pés até à cabeça. Do tamanho da fé do fanático. Enfim, ele se pinta com a tinta que não existe. Triste: ainda acho que ele é ancho e baixo.

[p. 73.]

* * * * *

AO AMIGO ALFRED

Se o cobrador bate à tua porta, às primeiras horas da manhã, a cobrar a promissória já há seis meses vencida, com protesto no cartório (e com juros de mora, correção monetária, e despesas extras); se um ofício da justiça te intima (e igualmente intimida) a depoimento no processo acusatório de homicídio, cuja vítima foi teu avô; se tens de enfrentar olhares indiscretos de vizinhos suspeitosos (porém nunca suspeitos) só por seres único herdeiro da fortuna do finado, que só se foi aos oitenta e cinco devidamente apenas à ingestão de forte dose de cianureto habilmente colocada, por alguém da casa, em sua aguardente predileta (conforme atesta o legista, no seu laudo cadavérico); se tens ainda de enfrentar as indagações, maliciosamente manipuladas, do excelentíssimo senhor promotor público da Primeira Vara Criminal; e ainda as manchetes dos diários locais, com informações distorcidas; se tens de fazer longos e cansativos repetidos esclarecimentos que nada esclarecem às mentes ocas dos senhores jurados, todos igualmente loucos por te ver atrás das grades; se esses pequenos inconvenientes do dia-a-dia ocorrem a ti, meu caro Alfred, não fiques triste: eles só vêm encher de mais razão essa vida vazia que levas, aliás, que todos levamos. Se ainda puderes, sai à rua, e repara os bares noturnos: estão cada vez mais cheios de homens vadios e vazios. Quase todos — ou todos — têm uma esposa infiel, ou um caso de amor impossível, e afogam suas mágoas num bom trago de vinho. Noite a noite eles se consomem, em desesperadora angústia. Uns até desejam a morte. A conversa é sempre a mesma: a de sempre. Então, Alfred, temos sérias razões para concluir que és o último dos privilegiados, um sujeito mesmo de sorte; por acaso, amigo Alfred, quando recebes tua polpuda herança?

[p. 81-2.]

[In No escuro, armados, de Marcos Tavares, Anima/Fundação Ceciliano Abel de Almeida-Ufes, Rio de Janeiro/Vitória, 1987]


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Marcos Tavares, poeta, contista e cronista, nasceu em Vitória, 1957, radicou-se em Dores do Rio Preto. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)