Ana Cristina Siqueira não é só a mais discreta figura daquela geração que no conturbado início da década de 80, no afã de escrever, escr...
Orelha do livro Poema deitado no seu peito: um jogo de amarelinha
Ana Cristina Siqueira não é só a mais discreta figura daquela geração que no conturbado início da década de 80, no afã de escrever, escrever, tornou-se já objeto de estudos acadêmicos (apud Francisco Aurélio Ribeiro, Reinaldo Santos Neves, Anaximandro Amorim). Era uma das que mais pensava o texto como um tecido previamente elucubrado, num ofício artesanal, numa conjugação entre significado e significante.
Havia a efervescência literária, talvez eclodida pela luta reivindicatória em prol da plena liberdade de expressão. Tímida, mas logo identificada como produtora de um bem urdido texto poético, Ana Cristina não se deixou inebriar por arroubos juvenis. Antes, poemas guardara, ou os vinha burilando sigilosamente, invertendo sintaxes, substituindo aqui e ali palavras, buscando a sonoridade compatível com o seu propósito expressional. Temas por ela enfocados cedo revelavam uma visão de mundo muito além da dos jardins universitários de então: enquanto maioria bradava contra uma agonizante ditadura, luta de Cristina era toda voltada para as classes gramaticais, para as articulações sintáticas, no sigiloso conluio com subversivas palavras.
Nesse tempo, na UFES ministrava oficina literária a Prof. Deny Gomes, e de uma delas participara Ana Cristina. No Caderno Dois (in jornal A Gazeta) o irrequieto jornalista Amylton de Almeida fazia-se guru ou ácido crítico, assim odiado ou amado pelos artistas. Aliado a esses fatores, o recente parque gráfico ufesiano vazão dava a livros avalizados pela então ativa Editoria da Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Dessa valorosa safra (Coleção Letras Capixabas), privilégio tive de anunciar, em orelha, dois daqueles oficinandos de Deny: assim o foi com Paulo Roberto Sodré (“Interiores”, poemas,1984) e com Ivan Castilho (“O Deus do Trovão”, contos,1988).
Agora Ana Cristina Siqueira, sob o título Poema Deitado ao Seu Peito, a lume boa mostra de sua arte verbal põe. Subintitula (“um jogo de amarelinha”) com aquele divertimento já folclórico, mais para meninas, que consiste em pular sobre um desenho (a giz ou a carvão) riscado no solo. Nesse aspecto, remete-nos àquele famoso livro do peruano Júlio Cortázar, pois lá tudo misturado, possibilitando alternada leitura de capítulos, saltadamente, podendo ir e vir, qual na aludida brincadeira em que alcança um céu o saltitante vencedor. Tudo ao sabor do fluxo de consciência introspectiva, no qual oscilam e brincam com a mente subjetiva do leitor. Assim o é o corpo do livro: poemas, crônicas, epístolas, narrativas ficcionais, outros indefinidos gêneros. Os poemas, em sua maioria, são os que, desde idos tempos, compunham o inédito livro A outra genuina tez, dos quais 3 já publicados na revista Letra (nº 7, FCAA-Ufes,1987).
Poetisa essencialmente lírica, se pela extensão, pela longura, possam os seus versos lembrar os caudalosos de Withman, derramados página afora, no entanto, não encontram, nesse tocante, similar em nossas Letras: cinéfila que o é, original e intrigante é a sua imagética. Lugar-comum não se o acha cá. Escritura laboriosa, de tantas reescrituras quantas pudessem conferir aquela rebuscada musicalidade bem aprazível a ouvinte apreciador dos clássicos. Não é à toa que ambas as artes(cinema e música) sejam, para ela, referências.
Estivesse no epicentro cultural(Rio-São Paulo) essa autora, por certo renderia assunto a atentos especialistas que, com olhar treinado, logo identificariam em sua tessitura o ludismo, tal o da amarelinha, capaz de , do reles chão de comuns mortais, fazer-nos saltar para um céu estético.
(Marcos Tavares, autor de Gemagem e de No escuro, armados)
[In Poema deitado no seu peito: um jogo de amarelinha. São Paulo: Scortecci, 2012.]
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No escuro, armados , apesar de ser o primeiro livro publicado por Marcos Tavares, revela uma escritura extremamente cerebral, em que a tôni...
Francisco Aurelio Ribeiro: No escuro, armados
No escuro, armados, apesar de ser o primeiro livro publicado por Marcos Tavares, revela uma escritura extremamente cerebral, em que a tônica é a auto-referencialidade, uma reflexão sobre o fazer literário e um questionamento da instância produtora da ficção. A obra está dividida em duas partes. A primeira, intitulada "Babel revisitada", com onze pequenos contos, e a segunda, "Os outros", com quinze. A epígrafe, de Roland Barthes, "Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere e me seduz", centraliza a escritura de Marcos Tavares numa reflexão sobre a linguagem como processo de criação, o leit-motiv de sua obra. Seu pressuposto é o da Semiótica (ou Semiologia) em que o mundo aparece e se traduz em linguagens.
A epígrafe da primeira parte, "Babel revisitada", é retirada do livro bíblico do Gênesis e remete ao mito judaico-cristão da confusão das línguas, castigo imposto por Deus durante a construção da torre de Babel, para que os homens não se entendessem e assim não pudessem realizar seu intento: construir uma torre que os levasse ao Céu. A linguagem, que deveria ser o instrumento de comunicação entre os homens, e seu código de união, torna-se fonte de discórdia e desarmonia. Esse é o tema recorrente nos onze primeiros contos de No escuro, armados: a desunião entre os homens pela incapacidade de se comunicarem numa linguagem comum. Paradoxalmente, ao sugerir uma nova linguagem, a artística, o texto literário aproxima os homens, fazendo com que a literatura tente realizar aquele sonho antigo: ser um instrumento de elevação espiritual e de união entre os homens através da recriação da palavra.
Borges, em algumas de suas ficções, desenvolveu esse tema. Segundo ele, após o estágio da palavra oral para a escrita e a descoberta da leitura silenciosa por Santo Agostinho, no século IV d. C., o homem encontraria o caminho para chegar a Deus, a leitura. A Bíblia dos judeus e o Alcorão dos islâmicos passam a ser vistos como um próprio atributo de Deus. Os cristãos, mais tarde, acreditariam, segundo ele, que Deus escrevera dois livros: o primeiro, as Escrituras, que revela a vontade divina; o segundo, as Criaturas, que revela o poderio de Deus e a chave para se chegar à Sua palavra. No século XIX, afirma ainda, o poeta inglês Carlyle iria dizer que a história universal é uma Escritura Sagrada que deciframos e escrevemos incertamente e que também nos escreve. Borges encerra seu texto citando Mallarmé que afirma: "O mundo existe como um livro; somos versículos, palavras ou letras de um livro mágico, e esse livro incessante é a única coisa que há no mundo: ou melhor, é o mundo."[ 1 ]
[...]
Uma das facetas da modernidade e que tem produzido excelentes obras de arte, desde o final do século passado [século XIX], é a reflexão sobre o próprio processo de criação. Marcos Tavares é um desses artistas. Conhece a teoria linguística e a técnica literária e isso fica evidenciado em seus contos, tanto na temática quanto na elaboração da linguagem. Trabalha o texto literário como um signo-símbolo, pois se refere ao objeto que denota em virtude de uma lei, conforme teoria e terminologia adotadas por Peirce.[ 2 ]
Outro estudioso da linguagem, Saussure, afirma que o texto literário, enquanto signo, é o resultado da tensão entre a parte sensível materializada do signo, o Significante, e a parte ausente, não sensível, o Significado, devendo-se considerar dois aspectos complementares a toda significação: um primeiro, vertical, na sua relação com o significante, e um segundo, horizontal, existente na relação desse significado com todos os outros na cadeia semiótica.[ 3 ]
Indo além da dicotomia proposta por Saussure, Peirce nos diz que todo o texto literário, enquanto símbolo, é uma terceiridade, que "corresponde à camada de interligibilidade, ou pensamentos em signos, através da qual representamos e interpretamos o mundo". Em conseqüência, traria em si um primeiro e um segundo, sendo a primeiridade "a categoria que dá à experiência sua qualidade distintiva" e secundidade "o que dá à experiência seu caráter factual, de luta e confronto".[ 4 ] É nessa dialética entre um segundo e um primeiro sentidos da linguagem e a possibilidade de um terceiro — o Interpretante Final — que podemos ler a escritura de Marcos Tavares, sua reflexão sobre o fazer literário e as temáticas que desenvolve. Quase todos os contos de No escuro, armados apresentam um enfoque sobre a linguagem, o processo de criação e tematizam a sua (im)possibilidade. O próprio conto que dá título à obra pode ser analisado como metáfora do escritor e sua luta com a palavra na tentativa de obter a criação. O desfecho do conto apresenta a morte dos contendores, com as cabeças separadas do corpo, enquanto permanece a escuridão. A luta do escritor com a palavra é uma guerra sem testemunhas, diria Osman Lins.
A intenção metalinguística de Marcos Tavares pode ser vista a partir do primeiro conto da obra, "A sete chaves", que, além de fazer uma simbologia com a angústia, medo e insegurança, gerados pela violência do cotidiano, deve ser analisado como uma figurativização do próprio processo de criação literária e do medo de torná-lo(a) público(a). Calipso, a personagem do conto, que se tranca, guardando consigo as chaves, é, na mitologia grega, a ninfa que acolheu Ulisses, cuidou dele e o amou. Solicitada por Zeus, ela o liberta, ajuda-o a fazer um barco e indica-lhe os astros que o guiariam em seu caminho.[ 5 ] Ulisses, arquétipo do herói, é, por extensão, símbolo do escritor, e sua viagem, do fazer ficcional. Calipso, a ninfa que o auxilia, apesar de querê-lo só para si, é a própria inspiração. O conto lido traz, assim, o simbolismo do processo de criação, os sofrimentos gerados pela angústia do criador, a eterna busca do ideal da perfeição estética. As citações do apocalipse, em diálogo com o texto ficcional, fazem alegorias à ilogicidade do discurso literário, seu desvio e absurdo em relação à língua-comum.
Os outros contos podem ser analisados sob a ótica da teoria semiótica de Peirce. Há um primeiro percurso, a discursivização, um segundo, a tematização, e um terceiro, a possibilidade de interpretação. Por exemplo, em "O detento S S O ou Vox Populi", o autor utiliza o processo parodístico de inverter os ditos populares, instaurando novos significados. O personagem é um preso, cujo nome invertido é o "Save Our Souls", do código de salvamento internacional, e que reconstrói, em sua cela, novos significados para os ditos populares. Como o escritor, ele parte do sentido primeiro do signo, o consagrado pelo uso comum, para criar um segundo e propor um terceiro, o Interpretante Final, sempre uma possibilidade, uma hipótese, segundo Peirce. Há uma quebra do estereótipo, "palavra repetida, fora de toda magia, de todo entusiasmo", conforme Barthes,[ 6 ] e instaura-se a novidade, uma fuga da alienação, possível ao personagem, encarcerado com suas palavras — símbolo do escritor e do leitor — presos num sentido único para as palavras e a vida. A possibilidade que lhes resta de fuga para a liberdade, para frente, é possível através da busca de um novo sentido a ser dado às palavras e à vida pela criação.
O conto "Excertos" apresenta um interessante trabalho de metalinguagem, em que dialogam um personagem-narrador-escritor e um personagem-suicida, criação e alter-ego daquele. Em trabalho anterior, procurei mostrar que o processo de discursivização do personagem equivale ao "sentido"; o discurso do personagem-suicida ao "significado" e a soma dos dois discursos à "significação", terminologias de Lady Welby referendadas por Peirce.[ 7 ] Enquanto símbolo, o conto "Excertos" traz em seu título um índice para sua significação. É um excerto, extrato de um livro maior, ao lado de outros. Num segundo aspecto, é também fragmento de um diário de um personagem, inventado pelo narrador diegético, também figura ficcional. No terceiro aspecto, realidade e intenção dialogam com a possibilidade, criando as possíveis significações do texto literário. Enquanto dono da escritura, o narrador-autor é pai do personagem, e também seu assassino. Portanto, todos os argumentos que utiliza para justificar-se perante o leitor pelo suicídio de seu personagem serão inúteis para retirar-lhe a culpa pela morte do outro. A escrita é a arma do crime, a corda que ele nega ter dado ao outro para que se matasse.
Portanto, o valor estético do conto destacado está muito mais no plano da expressão, a discursivização, do que na tematização. Enquanto o discurso do personagem-narrador é homodiegético, autodiegético, o de um escritor que procura justificar-se para o leitor pelo suicídio de seu personagem, constrói-se pelo uso da primeira pessoa do singular, dos pronomes pessoais e possessivos (eu, meu, minha). É um discurso psicótico, mentalidade narcísica, com o predomínio do eu, cortes do pensamento através da explicação do próprio código, o medo do outro e fixação no objeto de sua linguagem: a tentativa de desculpar-se por um crime que afirma não ter cometido. Em conseqüência, todas as palavras que constituem seu discurso são empregadas em sentido dicionarizado, um significado comum a todos que são capazes de utilizá-las para comunicar seu conhecimento do real. Por outro lado, os signos verbais reproduzidos no delírio monologal do personagem-suicida instauram, em sua maioria, um segundo nível do próprio discurso, visto que, aglutinando-se ou justapondo-se, criam uma nova ordem de significação, uma carga lírica das palavras e a capacidade que elas têm de lembrar e sugerir idéias, associações, visões e imagens. Nesse aspecto, os signos verbais que constituem o discurso do personagem-suicida estão em evidente oposição ao do personagem-narrador, em que, mais que um duelo, um confronto, formam um duplo: Denotação ou Sentido, no caso do primeiro, e Conotação ou Significado, no segundo, para forma a Significação — ou o Terceiro — o próprio texto.
É interessante observar o efeito de significado obtido com o jogo de palavras no discurso do personagem-suicida, em que as retificações dizem menos que os paradoxos ("Andando dois subires, digo, subindo dois andares, cego noturno", p. 20); as metáforas corriqueiras jogam com a dura realidade do cotidiano ("chego em meu apartamento d'alma, quarto de casa mal arrumada em suburburinho", p. 20); as ironias fazem uma leitura crítica do próprio eu e do sem-sentido do mundo ("Se perdido na multidão, não entendio bem o mundo. Mas quando vago para o inferno, digo, interno, melhor, interior de mim, é que me vem de onde nem si um trem blem-blem-blem", p. 20); a ambiguidade ferina, mordaz, escatológica das palavras denuncia um mundo cada vez mais violento, onde a repressão sexual se esconde por trás das palavras e das coisas ("falando por debaixo dos ambíguos, digo, umbigos, ventrilouco, a fala avara crescendo volumoso por ventre, digo, dentre as calças, a nudez falando, o falo crescendo crescido, maiúsculo, dando-se o fim fim o se à mudez de minha região pública, digo, púbica", p. 20-1).
Concluiria minha leitura do conto afirmando que, através de um discurso metalinguístico, em que o personagem-narrador dialoga com seus possíveis juízes, narratários, leitores em potencial, e reproduz "excertos" do diário acre-poético-delírico de seu personagem-suicida, instaura-se a dramática reflexão sobre a incomunicabilidade da linguagem enquanto criação. Assim, paradoxal e dialeticamente, a literatura comunica que é incapaz de comunicar. A linguagem, enquanto criação, é um jogo absurdamente solitário e intransitivo, um objeto que se consome e se anula numa hermética relação narcísica com o seu criador. Criador e criatura são mortos com e pela linguagem. A corda que os enforca, "num desfecho sem maior impacto", contra a vontade do próprio criador (?), é a palavra, a linguagem poética, instrumento do criador, vida e morte da criatura.
Todos os outros contos evidenciam um idêntico processo de criação metalinguística. "Conversão do anjo", "O último trago" exploram temas comuns, mas a sua qualidade está nos recursos linguísticos, no jogo de palavras, aliterações, jogo de significados. Importa também destacar a questão do erotismo provocado pela repetição e criação de palavras, um jogo analisado por Roland Barthes que nos afirma: "... a palavra pode ser erótica sob duas condições opostas, ambas excessivas: se for repetida, a todo transe, ou ao contrário se for inesperada, suculenta por sua novidade".[ 8 ] Vida e morte são ludicamente brincados no jogo (sinuca) e no sexo através da palavra. O mesmo processo pode ser verificado nos outros contos: "Empregos da língua", "Tragi(c)rônica", "D de dente" e "De codificações". Este, ao colocar em cena um diálogo telefônico entre um aluno e seu professor de Lingüística, põe em questão o próprio processo de comunicação. O questionamento do código utilizado pelo interlocutor é a tônica do discurso do professor, em que se perde o objetivo do diálogo pela preocupação com a teoria. O texto do professor reproduz a epígrafe de Barthes, escolhida pelo autor para sua obra, assim como cita a Bíblia, outro referencial da mesma. Ironicamente, o autor sugere o mau uso que a análise do seu texto poderá ter.
Outro processo utilizado por Marcos Tavares é o parodístico, em que a linguagem é o elemento questionador por ser uma encenação do real. Em "Fábula real" parodia os contos populares, com a confirmação do lugar comum: o rei dominador continua no poder e o bobo perde a vida por sua inocência e franqueza. A linguagem apenas reafirma o sentido primeiro da palavra: "cair do trono", para o rei, é cair ao chão, e não ser destronado. Invertendo o final feliz das estórias populares, o desfecho é verdadeiro e "real": o poder continua na mão dos poderosos. Em "De Florações" e "Fadações", também sob o mesmo processo, recria mágica e parodisticamente as estórias dos contos de fadas, atribuindo novos papéis aos personagens de sempre. Ironicamente, o texto parodístico investe contra o destino, apostando na diferença, no espelhamento e na inversão. Recriando a linguagem, utilizando o duplo e o triplo sentido do signo, Marcos Tavares faz do processo de criação o seu principal personagem. Outro conto que utiliza o processo parodístico, agora do célebre "If", de Rudyard Kipling, é o conto "Ao amigo Alfred", em que se ironizam as desventuras do ser humano no mundo, até mesmo a de ter um amigo como o narrador.
Outros contos da segunda parte do livro, intitulada "Os outros", e que tem como epígrafe a frase de Sartre, "Os outros são o inferno", de Huis Clos, partem de temas e situações comuns, do cotidiano. Volto a afirmar que o maior valor estético-literário dos mesmos está na exploração das possibilidades significativas do signo linguístico e no resultado obtido: o lirismo da prosa poética. É o que se pode perceber nos contos "O salto mortal", "Fabulosa", "Tal pai", e "Num domingo, dia de feira" que, ao mesmo tempo que recria um ambiente típico de feira, seus personagens e situações costumeiras, elabora um novo significado para os nomes de legumes e frutas — à disposição dos fregueses e dos leitores.
O antepenúltimo e o último conto são auto-referenciais e, como todos os outros, metalinguísticos. Neles, o narrador em primeira pessoa, um escritor, escreve sobre sua vida, concepções éticas e estéticas e seu trabalho de escritor. Ele despe-se diante de seu interlocutor imaginário, o leitor, e expõe sua vida e sua literatura. Em "Revisão, elabora sua poética, segundo Oscar Gama Filho: "... sua luta penosa com a palavra, a lapidação lenta do texto, a luta contínua com o dito e o mal dito, a revisão contínua dos originais, o acréscimo de palavras novas e de frases de efeito a trabalhos que todos já davam como prontos, a inspiração que o assalta no meio da noite como jorros de ideias que o escritor não tem tempo de registrar: um 'jugo de palavras', ele diz."[ 9 ]
Em "From Dores do Rio Preto, with love", o último texto da obra, o autor é retratado pelo narrador, ele mesmo, em sua solidão, longe da cultura acadêmica que tanto o seduz, despojado dos outros, envolvido no seu eu-criador e processo solitário de criação. Resta à crônica, mais que conto, um tom melancólico e angustiante de um "De profundis" oscarwildeano.
Terminada a leitura dos contos de Marcos Tavares fica a certeza de seu valor literário e de sua modernidade, tanto pelo trabalho formal que realiza quanto pelo conteúdo ou temática que enfocam o processo de criação. Mas, como "A beleza é o acordo entre conteúdo e forma", segundo Ibsen, resta, também, uma dúvida sobre a qualidade estética de todos os contos. Parece-me que em alguns deles se pode observar uma pressa na confecção, uma urgência de concluir, talvez, o que não deixa de ser um detalhe na tessitura que não compromete todo o tecido. É inquestionável, porém, o trabalho com a duplicidade da língua, as duas margens da modernidade apontadas por Roland Barthes, uma, em que se passa todo o dia e a outra, "a margem subversiva, o lugar da perda, fenda, corte", ou "a terceira margem do rio", segundo Guimarães Rosa. A escritura de Marcos Tavares é trabalhada com as mãos e os olhos nas duas margens, e essa é sua grande realização. Como nenhum dos outros contistas capixabas, e daí o motivo de tê-lo escolhido dentre vários, ele exerce sobre a língua o trabalho de deslocamento, uma revolução permanente da linguagem, essa trapaça da língua a que Barthes dá o nome de Literatura. Textualmente, é o que diz: "Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: Literatura."[ 10 ]
Para obter essa "trapaça da língua", Marcos Tavares utiliza todos os recursos próprios da poesia em seus textos em prosa — repetições, aliterações, "palavras-valise", assonâncias, paronomásias, sínquises etc., — buscando fazer um texto misto de prosa e poesia, melopédico e logopédico, diria Pound, na busca incessante dessa "revolução permanente da linguagem", objeto e fim da escritura. Nesse aspecto, equivale aos grandes inventores da linguagem do Modernismo, que permitiram um deslocamento da referencialidade, do outro ou do eu, para a linguagem em si, processo utilizado também por Amylton de Almeida, na literatura capixaba, fato que me permitiu aproximá-los neste capítulo.
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NOTAS
[In A modernidade das letras capixabas, de Francisco Aurelio Ribeiro, Secretaria de Produção e Difusão Cultural da Ufes/FCAA, 1993, p. 112-25.]
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Francisco Aurelio Ribeiro, natural de Ibitirama, ES, nasceu em 1955. Possui longa experiência na área de Ensino e Pesquisa, professor em diversas Instituições de Ensino, públicas e privadas, em níveis fundamental, médio e superior (Graduação e Pós-Graduação). Autor de grande número de publicações de pesquisa na área de literatura, e nos gêneros infantil, crônica e conto. Foi Secretário de Cultura da UFES no período de 1992 a 1995 e responsável pela coordenação de cursos em nível de Especialização e Pós-Graduação. Pertence ao Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e à Academia Espírito-santense de Letras, da qual foi presidente em três mandatos.
Bem melhor do que nesta orelha, o brilhante trabalho de Marcos Tavares está exposto ao sol nu dos olhares no conto "Revisão". Nel...
Oscar Gama Filho: No escuro armados
Bem melhor do que nesta orelha, o brilhante trabalho de Marcos Tavares está exposto ao sol nu dos olhares no conto "Revisão". Nele, este capixaba modelo 1957 descreve seu processo criativo, narra nosso primeiro encontro e — melhor do que isso — elabora quase que a sua poética. Está tudo ali: sua luta penosa com a palavra, a lapidação lenta do texto, a luta contínua com o dito e com o mal dito, a revisão contínua dos originais, o acréscimo de palavras novas e de frases de efeito a trabalhos que todos já davam como prontos, a inspiração que o assalta no meio da noite com jorros de idéias que o escritor não tem tempo de registrar: "um jugo de palavras", ele diz. E eu confirmo. Para Marcos, escrever é um jugo de palavras. De fato, sua ficção poderia ser chamada até mesmo de neobarroca, já que se caracteriza pelo jogo de idéias (conceptismo) e pelo jogo de palavras (cultismo). Preocupação central de Marcos Tavares, a sua trabalhada e retrabalhada linguagem tem de ser lida, não só nas entrelinhas, mas também nas entreletras, nas entrepalavras e nas entrefrases, pois é do seu choque e da sua troca amorosa que nasce seu (troca) filho amado: o sentido, no duplo. Entretanto, dotado de ambigüidades e de sutilezas, em seus textos o significado não se apresenta como uma ordem a ser acatada, mas sim como uma sugestão, um convite a uma viagem em que só acharemos aquilo que nos dispusermos a colocar. Pois a voz do bom e do mau, do simples e do complexo, reside muito mais em nós do que em mudas folhas de papel.
Pelo estilo mágico de No escuro, armados navegam muitas embarcações e sempre no duplo sentido — da palavra, da frase, da situação e do sexo: tmeses, exploração visual do espaço gráfico, neologismos de função, intertextos, humor, mais humor, sempre humor, nonsense, neologismos, etc. Ecos concretistas estão presentes na utilização das palavras-valise (palavras-portmanteau) de Joyce e de Lewis Carroll, em que duas palavras se fundem para formar uma nova, sob o domínio de apenas uma sílaba tônica, como é o caso, por exemplo, de "chuventar" e "prostiputa". Ecos praxistas podem ser achados no trabalho de levantamento de palavras pertencentes à área que será abordada.
Enfim, deve-se assinalar, também, a presença de recursos melopaicos, tais como aliterações, coliterações, assonâncias, paronomásias, que, a meu ver, não são apenas elementos puramente musicais, dispensáveis e até prejudiciais ao sentido da frase. A forma, acredito, também comunica conteúdos por meio da transmissão recíproca de parte de uma palavra a outra, pela qual ambas trocam sentidos ou fragmentos de sentidos, numa permuta de significados em nível de significantes. Assim, quando Marcos, em "Fabulosa", escreve "era uma vez uma voz que, desde o tempo dos avós, nunca obtivera uma vez", parte do significado da palavra voz está presente em avós, e parte de avós está presente em voz. A prova é que o sentido se altera se modificarmos o texto para "era uma vez um som que, desde o tempo dos seus ancestrais, nunca obtivera uma chance".
O livro está dividido em duas partes: Babel revisitada e Os outros. Babel revisitada se detém sobre a língua, deglutindo-a desde o momento da sua criação (não só da criação literária, mas também da do mundo) e das duplas utilidades ("Empregos da língua") e sentidos ("O último trago") até o momento em que o olhar "científico" produz teorias lingüísticas ("De codificações") e classificações tais como "provérbios populares" ("O detento S S O ou Vox Populi"). Em Os outros, Marcos, sempre com ironia, trata da aprendizagem do próximo, do saber do outro, passando pelo absurdo das lutas do homem contra o homem ("No escuro, armados"), pelo homoamor ("Praça da espera", "Meus meninos"), pelo moralismo repressor ("Caso moral"), pelas neuroses humanas ("Auto-retrato"), pelo homicídio ("Ao amigo Alfred"), pelo resgate da fantasia via contos-de-fada ("Fabulosa", "Fadações"), pelo nascimento e sua angústia ("Tal pai"), pelos sonhos literários ("Revisão") e pela solidão ("From Dores do Rio Preto, with love").
[Orelha do livro No escuro, armados, de Marcos Tavares, Anima/Fundação Ceciliano Abel de Almeida-Ufes, Rio de Janeiro/Vitória, 1987. Reprodução autorizada pelo autor.]
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
NUM DOMINGO, DIA DE FEIRA À minha irmã Martha Tavares Num domingo, dia de feira. Multidão em tumulto, indo e vindo, como onda. Entr...
Crônicas do livro No escuro, armados
NUM DOMINGO, DIA DE FEIRA
À minha irmã Martha Tavares
Num domingo, dia de feira.
Multidão em tumulto, indo e vindo, como onda.
Entre a multidão, que se vai propagando e propagando, vaga misteriosa mulher, vadia.
Procura-se, em vão, espaço para se instalar negócio.
Mãos e olhos, olhos e mãos, em troca de compra e venda.
Alguém vende algo doce: algodão doce.
Aipim, batata doce e mandioca, lê-se a propaganda.
— Olha o limão! Olha o limão! — a voz pouca e rouca de um velho de olhar amargo e aspecto abatido; fora, outrora, elogiável gritador de "jiló".
Ávidos em comerciar, os mais vívidos gritam mais alto os preços dos produtos.
Dá-se a cada freguês laranja lima a navalha descascada, com esmero.
Uma menina mendiga furta uma fruta-pão. Por policial detida, prova — ou simula bem — estar farta de fome: como faminta, come-a loucamente, diante da pequena multidão já em volta aglomerada. É tida e reconhecida como louca. E logo posta em liberdade. Alguns lhe dão umas moedas: desfruta do auxílio de muitos poucos, afora os que a vêem alvo de gracejos. Mais adiante, porém, furta uma outra fruta, menor, e sai, furtivamente. Evita, no entanto, o juiz de menores.
Jovem anêmico, e raquítico, hesita na escolha de vitamina de tal ou qual fruta. Mas logo desanima.
— Vendo feijão preto! — um mulatinho, esperto, a mandar às favas os que por soja perguntam ou apenas observam, enquanto seu irmão maior recolhe, sujas as mãos, os pequenos grãos pelo chão espalhados.
— Castanha-do-pará para acabar! — um sotaque nortista, acanhado.
Um cão, ferido, raivosamente briga com outro, são. Este foge, rosnando, a exibir os dentes. Motivo da briga: um osso enorme, lançado fora, com o propósito de incitá-los.
Senhoras maduras, mal remuneradas, admiram somente a verdura das hortaliças. Uma aguarda, esperançosa, cesta à mão, que, ao final da feira, se reduza o preço das bananas verdes, então vendidas a valores inacessíveis à sua bolsa. De vez em quando observa as tabelas. "Belas bananas", fala consigo. Outra comenta o aumento dos legumes e, por questão de classe, protesta a média voz.
Em gritos de pregão, dois vendedores concorrem:
— Rapadura de gengibre!
— Jaca mole madura é aqui!
A recolher restos para os porcos, os rastos da multidão um menino mal arrumado segue.
— Corre que lá vem o rapa! — com a vinda dos fiscais da Prefeitura, a dura venda dos sem licença ou sem documento, que se dispersam feito vento, apesar de feira livre, num domingo.
Agricultura farta, fruta barata, anuncia um vendedor de maçãs importadas. Caras, segundo opinião pública. A ninguém importa, mas ele anuncia.
Seis senhoras de cesta criticam o custo da dúzia de laranjas — e mexericas — e brigam até à redução: para o lar vão satisfeitas, a misturar com o gosto da vitória o amargo das cítricas.
Dois sotaques nordestinos, secos:
— Mamão macho da Paraíba, maxixe e cana caiana.
— Coco da Bahia, vatapá e cocada baiana.
Magros meninos, nanicos, oferecem-se a carregar pesadas bolsas, cheias de mercadorias. Outros, igualmente menores, carentes e/ou parentes, agem em sacolas e/ou vagem em pedidos de esmola.
Um feirante confere a féria do dia, maior do que aos feriados, enquanto o ajudante, em tarefa de mudar os preços, dobra as mangas da suada camisa.
Galinhas, à venda, cacarejam apenas, ante a hora da morte às mãos de estranho algoz. Uma dona-de-casa, abastada e penosa, penalizada delas, compra cinco carijós para soltá-las no quintal. Compara-as aos humanos. É contra a pena de morte. Além de vegetariana. Acha horrível a morte dos animais, sem ao menos uma venda aos olhos.
Ao redor da improvisada peixaria esvoaçam moscas. Expulsa-as o vendedor, a brandir, histérico, longo e fino peixe espada. Outro grita "sargo fresco e bonito" e em sua direção movem olhares as mulheres.
"Macarrão com camarão", um novo prato propõe-se entre compradoras de um e outro, ambas comadres.
Rara espécie em feiras, um senhor de aspecto nobre interroga, com voz doce, onde encontrar fruta-do-conde. Mal lhe responde o vendedor de pimentas, o rosto a arder de ira, por haver vendido pouco, e o estômago a reclamar alimento. Quase azul, com seus haveres vai-se embora por via mais próxima, estreita. Esbarra, no caminho, com mercador de pimentão. Resmunga.
Longe, não muito, ouve-se "olha o couve, couve-flor, couve-brócolo e couve-manteiga". É o coveiro da região, que, em folga do cemitério, comercia hortaliças de seu próprio plantio: além dos óbituais sete palmos, terras de cultivo conhece a fundo como se a própria palma da mão, segundo seu mesmo cultivado modo de falar.
Procuram-se, entre a multidão, abricós. É a costureira de nome e renome nas redondezas.
A um canto acha-se, agachado, o menino de olhar choroso, que, com alhos verdes, vende também cebolinhas e cebolas, quando não flores em botão.
Com faca de dois gumes — e certa arte — corta um mexicano melancias em duas partes semelhantes. E as põe à mostra a fim de se ver melhor o vermelho delas. Uma senhora gorda e avermelhada pergunta-lhe por cenoura, mas, logo, seu olho direito fita um repolho à esquerda. Ansiosa, apalpa-o por certo tempo. Balança-o. Logo o repõe no lugar. Acaba por comprar abacate, abacaxi, abricó e tomate.
Vindo do interior, louro hortelão expõe, timidamente, seus produtos: salsa, coentro e hortelã. Não faz propaganda. Embora silencioso comercia, porém, brotos de boa safra.
Policiais detêm um bêbado trôpego e dão batidas em supostos vadios. Estes, desorientados, mostram os bolsos, vazios, como de praxe, assim como é de praxe detenções e batidas, num domingo, dia de feira. Em carteira furtada: a féria e documentos. É a lei.
A multidão em constante movimento como se pelo vento movida, faz inventosos vaivéns, como ondas, ou ora em girares qual catavento ou redemoinho. Ou então qual tentáculos de gigantesco polvo.
Pleno o sol, já a pino, a requeimar as faces.
Da festa da feira, resta enorme estoque de pepino e alface. Sério, pensa o negociante: "Fácil seria a venda a preço de primeira mão. Mas não compensa. Melhor aguardá-los para segunda, o dia seguinte. É a lei da oferta e procura."
Alguém procura por alguém perdido.
Em meio a conversa de nenhum assunto, dois homens, meio ébrios, bebem batidas. Enquanto isso, o sóbrio feirante conserva os jenipapos num saco já cheio deles.
Alguém oferta algo a alguém. É a lei.
Laranja aqui é uma uva. Jaca por preço de cajá. Banana a preço de banana, para ir embora. Abóbora aberta e fechada. Chuchu com X ou CH. Abacaxi a baixo preço. Aqui quem manda é o freguês. Picolé e sorvete. É chegar e levar. Caqui é aqui mesmo. Suco de morango para matar a sede. É hora de ir embora. Beterrabanete. Maracujambola. Milho verde para quem quiser ver e comprar. Batida de pêssego. Bananica a preço pequeno. Morena cor de jambo não paga o produto. Passas e ameixas estrangeiras. Pêra argentina a preço nacional. Manzanas brasilianas. Bananas aqui da terra mesmo. É comprar, levar e lavar. Alface crespa e francesa. Uvas brancas, pretas e rosadas. É comprar e comprovar. Pega ladrão, pega. Uva italiana. Olha o preço do cação. Uma esmola pelo amor ao próximo. Um auxílio para o cego. Três quilos para a madame. Tomate aqui é de graça. Cuidado com o fiscal. É para acabar. Jaca dura é moleza. Galinha já abatida com abatimento. O preço, o preço é do povo. Coma ovo de codorna. Mamão aqui na minha mão. Hoje é mole. Para se ver e vender. Olha a jabuticaba já acabando. Acabando. Acabando. Olha a banda da melancia. Acabando. Acabando. Olha que tudo se acaba: abacate, abacaxi e abricó. Acabando. Acabando.
Os fregueses fim-de-feira se acabando. Restam alguns: bandos esparsos, rostos à procura do que restou do acabado. Depois, cada qual para sua banda, melhor, seu lado. A feira se acabando. Acabando. Acabando. É como um campo de batalha, após acabada a batalha. As barracas quais barricadas, algumas já desarmadas, soado o alarme de trégua. Troços e destroços, os traços da fúria comercial. Mas sem feridos.
Enfim, num domingo, fim de feira.
[p. 104-9.]
* * * * *
FROM DORES DO RIO PRETO, WITH LOVE
Porque eu poderia estar em frente ao Big Bem e não estou, estou diante do relógio da matriz católica a ver o tempo passar e não posso me afogar nas águas do Tâmisa porque o rio que corre nesta cidade, limitando-a, é o rio Preto, e porque é meio-dia e estou a ver o tempo no relógio, não esqueço que não estou no coração de Nova York, e estas pessoas que passam, poucas, me acenam porque não estou sobre a ponte sobre o Hudson nem estou pronto para o mergulho com uma pedra amarrada ao pescoço. Porque não posso me lançar do último andar do Empire State estou na praça ao meio-dia nesta cidade de poucos habitantes, e não posso me lançar de andar algum porque nenhum edifício está situado nesta latitude, e meu coração me atrapalha as pernas. Porque não empunho um revólver apontado ao meu próprio ouvido, estou nesta cidade, sendo alvo de olhares, todos muito discretos, porque estou na praça da matriz católica e não estou na catedral de Notre Dame nem estou no Louvre a ver minha própria imagem de cera. E como não posso ver a baía de Vitória nem a baía dos Porcos, estou com um míssil apontado para o meu miocárdio, enquanto a moça dos Correios me anuncia a chegada de uma carta que poderia vir de Londres, Berlim ou Paris, mas não. Porque estou com um pé aqui e outro ali, um num Estado, outro no outro, um rio corre entre minhas pernas, e corta-me o coração banhado, um rio doce corre. E como não estou com os olhos banhados de lágrimas, um rio corre em meu rosto e prossegue sua história neste mapa de lembranças, porque Hong Kong está muito longe de mim, está longe e não devo me apressar para a hora da morte porque sei que um franco atirador me tem por alvo e não entrincheirado estou neste lugar assim como estive em Dallas, quando sobre mim caiu pesado sono, e o sonho veio. E estive perto da solidão, em Arizona, aqui. E pesada solidão desaba sobre meu chapéu, e tenho meu lugar à sombra, longe do sol, longe assim, agora.
[p. 110-1.]
[In No escuro, armados, de Marcos Tavares, Anima/Fundação Ceciliano Abel de Almeida-Ufes, Rio de Janeiro/Vitória, 1987. Reprodução autorizada pelo autor.]
© 2001 Marcos Tavares - Todos os direitos reservados ao autor. A reprodução sem prévia consulta e autorização configura violação à lei de direitos autorais, desrespeito à propriedade dos acervos e aos serviços de preparação para publicação.
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Marcos Tavares, poeta, contista e cronista, nasceu em Vitória, 1957, radicou-se em Dores do Rio Preto. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
CONVERSÃO DO ANJO No ar, aroma de De Luxe, como de quem recém-saído do banho. À meia-luz, exigência: — Primeiro as meias, devagarinho...
Contos do livro No escuro, armados
CONVERSÃO DO ANJO
No ar, aroma de De Luxe, como de quem recém-saído do banho.
À meia-luz, exigência:
— Primeiro as meias, devagarinho. Não há pressa.
Antes, jurando inocência, que "não era disso"; depois, despiu os pudores e, pouco a pouco, as partes mais ínfimas.
Carinhos mil no pescoço.
— Coço mais, meu anjo?
Descendo, meticuloso, aos pés.
— Coço mais, meu anjo?
De novo, no pescoço. E ao pé do ouvido:
— Coço mais, meu anjo?
Olhou, tímida, e fez "não" com a cabeça.
— De quem é isso, hem?
Mão apalpando o seio esquerdo.
— Seu coração bate.
Corridinha à porta do quarto. Preocupação rápida em vedar orifício da fechadura.
— Ninguém mais. Pronto.
Risinho meio cúmplice, a mão aliciante, posta no fogo. Em teia de aranha, bem na mosca.
— Olha que isto não é público... — reclame em falso tom pudico. E a fuga, para o meio dos lençóis.
Testa reluzente de suor.
— Dá cá o pé, minha lourinha.
O animal ainda não doméstico.
— Lúcia, vem, Lúcia.
Voz em tom mais ameno.
— Dá um beijinho no papai aqui.
O olhar estudantil e desatento.
— Dá, meu bichinho de pelúcia.
Alucinado quase, ao pé da cama. Arfando, o salto em preparo.
Armadilhando a presa. Ao alcance agora.
Lance único, Lúcia imposta em pêlo, sob domínio. Carnudo o corpo, despido.
— Eta, Lúcia boa!
Trêmulas, em luvas de pelica, mãos descrevendo a anatomia. Perito no assunto. Cioso de tudo.
Punha Lúcia quadrúpede. Selvagina nunca vista.
— Minha nossa!
A ladainha de sempre.
— Santa Virgem!
— Quê???
— Nada, nada. Olha o tubarão.
Rindo, às gargalhadas, semilouca.
— Sua barba...
Lucinha já de pé, soluçando, já ré arrependida.
— Ora, ora!
Luciferino brilho nos olhos, lúcido então.
— Vem, bonequinha de louça.
Promessa de nada fazer e outras juras.
— Prometo.
Deitado, citando trechos poéticos. De memória, ou inventados.
— Ó menina dos meus olhos, nina-me, nina-me...
Lúcia bebendo do vinho. "In vino veritas".
As ondas indo e vindo.
— E teu perfil é de estátua grega.
Lucinha embriagada com o álcool das palavras.
— Diz mais.
A cabeça nas nuvens, navegando.
Ele singrando as enseadas dela.
Salva do afagamento, respiração boca a boca.
Línguas funcionando, a traduzir anseios.
— Bela Babel... — exclame entre confusão de línguas.
Subindo, ambos, o alto da torre. Subindo, aos céus.
Ela toda mordidinha. Espora em potra selvagem, pondo ele.
— Malvado.
Só, domava-a, corcel fogoso.
Logo morria de regozijo.
— Ai, minha gostosa — em fogo, ressuscitando do inferno.
— Meu paraíso.
— Meu demônio.
Ela, toda gozosa, ainda.
— Lucinha do coração.
— Lucinha de minha vida.
Ai, sempre acesa a chama.
Lucinha disto. Lucinha daquilo.
Lucinha cá.
[p. 26-8]
* * * * *
DE CODIFICAÇÕES
"Deixai simplesmente que a vossa palavra Sim signifique sim, e o vosso Não, não, pois tudo o que for além disso é do iníquo." Mateus, V, 37.
— Alô?... É da residência do lingüista? Alô?...
— Sim! O senhor reparou quando disse alô? Um alô é não mais do que o meu sim inicial. Ele jamais constata alguma coisa; ele responde, chama, compromete. Preocupa-se em testar contato, ou interessa-se no prolongamento da comunicação, ou impede que seja interrompida. Não há nele objetivos informativos. Ele tem uma função centrada no canal, que, neste caso, são os fios telefônicos. Em lingüística, diz-se que ele tem uma função fática. Vide Jakobson.
— Obrigado, professor. O senhor é mesmo um gênio. Mas nós gostaríamos...
— Outra coisa. Esse nós, que o senhor disse, ou é plural majestático ou o senhor incluirá na frase, evidentemente, um aposto, que me esclarecerá esse nós.
— É que nós, jornalistas, enquanto...
— Eu não disse? Disse.
— Exato. Eu queria saber do senhor...
— Você queria, e não quer mais? Queria é imperfeito. O senhor queria. E continua querendo, no presente? Ou não quer mais? Percebeu a alteração do sentido temporal?
— Percebi, professor...
— Mas eu, idem, percebi o espírito de sua frase. O seu queria, na verdade, é o imperfeito de cortesia, de que assim nos fala Spitzer: a transformação de uma ação presente em uma ação passada retira o que ela pode ter de brusco. O senhor, o falante, por respeito a minha pessoa, o interlocutor, quis amenizar o tom impositivo que há no verbo querer, quando no presente do indicativo. Correto?
— Muito correto, professor. O senhor é mesmo um grande. Mas o senhor poderia escrever um artigo sobre linguagem para a nossa revista?
— Você me indaga se sou capaz, coisa duvidosa, ou seu eu aceitaria escrever um ensaio? Nesta segunda hipótese, seria um pedido ou um convite. Uma eficiente interpretação vai depender da entonação, da nossa relação nas duas extremidades da linha, de muitos outros dados, de um contexto, situacional, que não é imediatamente lingüístico. O senhor mesmo, que já foi meu aluno em faculdade, estudou comigo sobre esse assunto. Ficou claro?
— Sim, professor, Claro.
— Dito isso, na primeira hipótese (você é capaz de...), a indagação remete-nos a uma resposta que alguns estudiosos diriam confirmativa. Meu sim equivaleria a: sou capaz. Assim, eu pretenderia dizer o que é, definir, descrever, constatar. Entendido?
— Entendido, professor. É muito interessante. Mas...
— Mas se a pergunta equivalesse ou tivesse o efeito de um convite, meu sim não constataria nada, ele faria alguma coisa, ele me comprometeria. Minha promessa provocaria um acontecimento que não tinha nenhuma chance de aparecer, assim como não teria nenhum sentido, antes de meu sim. Este, sim, não tem mais valor confirmativo; é, essencialmente, performativo, no sentido de: eu afirmo, eu digo que, eu acredito que, eu penso que sou...
— Como o senhor mesmo disse, um sim em si mesmo equivale a um alô, porque jamais constata coisa alguma. É vazio de significado, embora contenha significante. Um sim confirmativo.
— Alô! Muito cuidado com a terminologia. A distinção entre o confirmativo e o performativo continua sendo resumida, desobrando-se em refinamentos que não cessam de agudizar sua dificuldade. Quando o senhor afirma que o sim é vazio de significado, embora contendo significante, pode (sic) estar afirmando uma falácia. Essa assertiva, lato sensu, é enganosa. Ora, sabe-se que é arbitrário o laço unificador do significado ao significante. E entende-se por signo ao total resultante da associação desses dois elementos. Então, concluo, apud Lévy-Strauss, que o signo lingüístico é arbitrário a priori, mas que deixa de sê-lo a posteriori. O senhor sabia?
— Confesso que não sabia, professor.
— Então fique sabendo que no meu próximo livro esse será um assunto exaustivamente questionado, verbum ad verbum. Apenas uma parte dos signos é absolutamente arbitrária. O signo, enquanto unidade constitutiva da língua, une, não uma coisa ao nome, e sim um conceito a uma imagem acústica. — Alô? O senhor poderia exemplificar no caso do sim que comentávamos?
— Pois não. O senhor repare que, quando digo pois não, eu, na verdade, pretendo e quero e digo sim, eu posso.
— Alô, professor, mas o senhor não disse sim, eu posso. O senhor disse pois não. Há, pelo menos, uma sensível diferença de significante, embora o significado...
— Pois sim. Eu já explico. O senhor observe que quando eu enuncio pois sim, eu pretendo exprimir algo que manifeste minha indisposição, uma negação, um não.
— Sim, professor, sim. Eu admiro sua agilidade intelectual. Mas naquele caso do sim o senhor ainda não me esclareceu.
— A fim de melhor compreensão didática, convém remontar aos tópicos básicos, rever conceitos fundamentais, citar considerações de outros igualmente estudiosos. Um leigo jamais deveria entrar, ex-abrupto, neste assunto. Mas o senhor já tem um bom embasamento teórico, de tal forma que começo aqui mesmo.
— Alô, mestre? Na verdade, eu prefiro Ter o prazer de ler no seu próximo livro sobre este importante tema. Eu sei que o senhor é muito aprofundado. Agora, eu queria e continuo querendo e quero saber, também para a nossa revista: por que o seu extremo interesse para com a linguagem?
— Se o senhor me pergunta linguagem no sentido estrito de "faculdade que têm os homens de se intercomunicarem através de signos orais", como quer Saussure, eu respondo: "Je.....................................................", como escreveu Barthes, in Le plaisir du texte, Éditions du Seuil. Mas já traduzo: "Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz". Aliás, a linguagem é algo mítico e místico. Os livros sagrados têm muitos exemplos. A Bíblia revela isso. Vide Evangelho de João: "No princípio era o Verbo." Vide torre de Babel. Vide o "sim, sim" e o "não, não".
— O senhor me faz lembrar Brecht e suas duas óperas para a escola: "Aquele que diz sim e aquele que diz não..."
— Sim, porém não. Quero dizer: faço lembrar porém não quero. Eu não suportaria e não suporto alguém que faça arte com fins didáticos. Há na comunicação, lato sensu, profundas implicações ideológicas. A linguagem é instrumento sine qua non de manipulação do poder. Daí eu não admitir alguém didatizar (sic) através da arte. A arte é terreno do lúdico.
— Professor, a alienação através da linguagem é um assunto que o senhor deveria, exempli gratia, explorar em seus estudos, e...
— Não, porém, sim. Que dever tenho eu para com esse assunto? Ninguém, nenhuma autoridade, nenhum poder, ex lege, me obrigará a fazê-lo. Não devo, porém, posso. Sim, eu posso. Eu tenho poder para tal. Eu tenho todo o direito. Meu curriculum vitae é dos maiores. Possuo em várias universidades o título de doutor honoris causa. Alô? O senhor sabia? Alô? O senhor não me ouve bem?
— Alô, não, doutor. Quero dizer: sim, eu sabia. Eu quis dizer: não o ouço mal; eu o ouço bem, sim. A propósito, a sua pronúncia de latim continua sui-generis. Mas o senhor seria capaz de escrever mesmo o ensaio para a nossa revista?
— Já que o senhor entrou no jogo, eu poderia responder: sim, porém não (sim, sou capaz, porém não aceito escrever o ensaio). Ou ainda sim, sim (sim, eu sou capaz e aceito, sim, escrever o ensaio). Ou então não, não (não, não sou capaz, e não aceito escrever o ensaio). Ou por outra: não, porém sim (não, não sou capaz, porém aceito, sim, escrever o ensaio).
— Alô? Enfim, o senhor poderá, ou não, escrever o ensaio para a revista?
— Meu caro ex-aluno, você me força a parecer pedante. Repare que você me pergunta: o senhor poderá, ou não? Se eu puder, a resposta será um sim; caso constrário, um não. Então, basta dizer: O senhor poderá? E qualquer resposta minha, afirmativa ou negativa, eliminará a necessidade da outra opção, tornando-a redundante, portanto alógica. Ainda assim, o problema, in totum, não está concluído. Observe, verbi gratia, na pergunta: o senhor não poderá? Se eu responder não, estaria dizendo não poderei. Porém, se eu responder sim, posso estar dizendo sim, eu não poderei. Repare que, hic et nunc, sim e não se equivalem.
— Brilhante, professor. Mas esse não equivale a um sim, como no exemplo citado?
— Não equivale. Estarei muito ocupado com outro ensaio, sobre o sim e o não. Não creio que possa.
— Compreendo. Permita-me dizer boa noite, sim, professor.
— Pois não, data venia.
[p. 32-7.]
* * * * *
D DE DENTE
Entra mudo e aguarda calado.
Entre dois dedos, um cigarro de ruim marca, aceso, mal disfarça o nervosismo das mãos. Colocá-las sobre as pernas? Deixá-las livres? Ou cruzar os braços?
E as pernas? Cruzá-las? Ou deixá-las à vontade? E se não parecer elegante? Pernas, pra que vos quero?
Minutos de espera e de dúvida, não se resolve.
Um cigarro após o outro é a solução. Ou um pigarro.
A atendente é toda só riso postiço e crava nele os olhos de vampira d'óculos.
— Agora é sua vez.
Desorientado, exibe, em agradecimento, sorriso amarelo de nicotina.
— Entre.
Entra mudo. Rês dócil caminhando ao abatedouro.
O odontólogo, de entre os dentes d'ouro, também diz:
— Entre.
E ainda:
— Sente-se.
E ainda:
— Sente-se bem?
Quer estabelecer uma ponte.
O outro faz duvidoso meneio com a cabeça.
— O senhor não fala?
— Sim.
— Fala ou não fala?
— Sim.
— Hum...
Há uma pausa, longa, de silêncio.
— Abre a boca.
Fecha os olhos. Mas o odontólogo, logo, douto:
— Veremos o que o senhor tem na boca.
Quase diz. Mas não diz. Considera imprudente.
— Qual é o dente?
Aponta com o dedo médio. Poupa o indicador.
— Hum...
O profissional observa, minucioso.
— Hum... O molar superior esquerdo.
E toca o local.
— Dói?
Faz sim com a cabeça.
O odontólogo, incisivo:
— Sinto muito, mas é necessário extração.
A raiva canina, o desejo de triturar os dedos dele.
Rápido, o auxiliar passa-lhe à mão os instrumentos. É a eficiência em pessoa.
— Abre mais a boca.
Abre bem os olhos. Quer engolir o mundo. Engole em seco.
— Hum, hum...
Os dentes em situação precária, a boca quase oca deles. A anestesia, a anestesia...
— Agora cospe.
Boquiaberto, pratica masoquismo na cadeira odontológica. Ai, em tuas mãos entrego a minha boca.
— Não está doendo nada.
— Hum...
Uma dor ardente. A extração, a extração...
— Não dói nada.
— Hum...
O auxiliar faz ar de riso. O profissional, de siso.
— Agora cospe.
Então, o secular diálogo, desde a invenção da tortura e do sexo, segundo os entendidos de um e de outro.
— Dói?
— Ai.
A sempre retórica pergunta.
Agora cospe.
— Dói?
— Ui.
A milenar resposta.
Agora cospe.
— Dói?
— Ói.
Sobre o armário, irônica dentadura sorri dentes alvos e perfeitos.
— Hum... Pronto. Extraí o mal pela raiz.
Mostra, vitorioso, o troféu.
— O senhor escove os dentes pelo menos três vezes ao dia. Pela manhã, após o almoço e após o jantar. Assim, evita a cárie e...
Mas ele já sai, calado, como quando entrou. Porém, com a humilhação de um dente a menos.
— Hum...
[p. 50-3.]
* * * * *
ÉDEN IDEM
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—..........................................................................
—..........................................................................
— Homem, tenho aqui no ventre um filho seu.
— Ora, mulher, então é seu.
— Não, homem, é seu mesmo.
— E de quem é o seu ventre, mulher?
— É meu o ventre, homem.
— Então seu é o filho, mulher.
— Homem, você não crê que este seja seu filho?
— Você disse, mulher.
— Homem, então, é você que é o pai.
— Você diz, mulher. Mas você mesma não sabe quem.
— É você, homem. Juro por Deus.
— Você mente, mulher. Sua língua é serpente.
— Não falo entre dentes, homem: ou digo a verdade ou seu filho será mendigo.
— Há um engano aqui, mulher.
— Você não me engana, homem.
— Não é possível, mulher. Há um engano.
— O médico está certo, homem: há sete meses um filho é possível.
— Mulher, há sete meses eu estava fora.
— Fora de mim, homem. Fora de mim.
— Mulher, eu estava no interior do país.
— E no meu interior uma parte sua, homem.
— Eu não tenho culpa, mulher.
— Seu filho, sim, homem, não tem culpa do pai que tem.
— Nós somos inocentes. Ele é um inocente. Eu, mulher, sou inocente.
— Homem, você se nega a ser o pai de seu filho.
— Mas, mulher, eu não posso ser pai de qualquer um. Há muitos querendo pai. Há muitas mães.
— Homem, seu filho, quando crescer, será um filho sem pai.
— Mulher, você é a mãe. O filho é seu.
— Homem, vocês são todos iguais.
— Mulher, deve ter sido alguém igual a mim.
— Homem, eu estou certa do que digo.
— Eu não estou certo disso, mulher.
— Homem, naquela noite, jantamos juntos num restaurante.
— E depois, mulher?
— Depois, homem, dormimos juntos num dormitório.
— E depois, mulher?
— E, depois, eu fui sua mulher.
— Vocês, mulheres, são todas iguais. Aqui e na China.
— Homem, ser mulher-mãe é um inferno. E você nunca foi à China.
— Mulher, nunca estive lá. Nem aqui, antes.
— E você, naquela noite, disse que eu era diferente de todas as outras. Você disse, homem.
— Mulher, você jura que não mente? Que não perdeu o juízo?
— Homem, juro pela vida de seu filho que há de nascer.
— Isso não é possível, mulher. Deve ser fruto de sua mente.
— De sua semente, homem. De sua semente em mim.
— Oh, minha mulherzinha, você é um demônio de anjo.
— E você é o meu homem. O meu homem.
— E você minha mulherzinha.
— E você o meu homem. O meu homem.
— E você minha mulherzinha. Minha.
— Terminamos, querido. (Desvia do texto o olhar.) Está cansado? Olha para ele.
— Um pouco, querida. (Suspira, e guarda os papéis.) Amanhã ensaiaremos de novo.
[p. 54-6.]
* * * * *
REVISÃO
Sou um homem noturno, de vigília. Não sou vigia: não durmo por insônia. Sempre — ou quase sempre — estou de plantão permanente, isto é, acordado, quando está a dormir todo um hemisfério. Quase não — ou só não — durmo à noite. Troco-a pelo dia, hábito desde há muito adquirido. Nessas horas mortas — não vejo nisso mistério — ou vago pelas ruas, geralmente desertas, ou aproveito e arrisco a escrever rabiscos — ou arabescos — talvez estranhos mesmo a árabes e gregos e troianos. E ao dia — quando durmo — o sono é lento. Talvez enquanto adormeço ainda me atormente o temor da morte: com medo dela convivo, por amor à vida. Teve isso começo na infância: isso, por reserva, sempre o omito, ao psicanalista, quando o consulto. A ânsia do eterno, o mito da imortalidade, explicar-me-ia ele, sintético; e certamente, formularia algumas perguntas, a analisar — impassível — as respostas. Cultivo, porém o ocultismo de mim mesmo, fingida esfinge: decifrar-me ou não — eis a questão.
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Não conto a ninguém — mas estou a escrever uma obra, hermeticamente fechado em meu quarto de solteiro. Nele, solitário, pelo menos há liberdade e silêncio, sem contar das pulgas. Não me preocupo com os possíveis leitores, leigos, em sua maioria; por enquanto, livro-me deles o quanto posso.
Na pensão, onde estou hospedado, já até houve comentários acerca de meus hábitos noturnos: alguém, sempre à escuta, já deve ter ouvido o ruído de minha máquina de escrever. Pensam eles que sou um desses poetas sentimentais, que dedicam a vida a poemas à amada ausente, ou um fracassado escritor que sobrevive às custas de mísero prêmio ganho em concurso literário de júri medíocre, ou ainda sobrevivente de direito autoral num país onde pouco se lê. A fim de evitar dedução desses maníacos especulativos, decidi manuscrever os meus fragmentos.
A dona da pensão, uma senhora gorda e prestativa, aos curiosos vive a explicar que sou um senhor sujeito muito inteligente e culto, apesar de meu jeito estranho, oculto. Também nunca lhe atrasei o pagamento do aluguel. E não sou um homem de senhas. Não sei, porém, o que os outros pensam de mim, pois apesar da pouca distância, inquilinos que somos, nunca nos cumprimentamos: limitamo-nos a nos medir, com olhares desconfiados, de soslaio.
Por falar em leitores, suspeito dos tais que dizem ter livro de cabeceira — acredito mesmo que, à falta de travesseiro, durmam com o crânio sobre o livro, no leito, sem nunca sequer ter lido ou folheado uma página dele. Há muitas histórias de leitores assim. Conheço-as através de relato dos próprios.
Suspeito — também — dos que dizem estar a escrever um livro. Tais assuntos causam-me mal estar: no máximo, é pura ficção ou o livro não é bom — em termos conteudísticos — ou está o autor acima de quaisquer suspeitas. E se é ele realmente um escrevedor, cabe-lhe, na sociedade, o papel de escrever, claro. Sem imposições. Há a liberdade da pena e — censurável — a pena da liberdade.
Mas escrever é um trabalho penoso — admito-o — e os escrevedores homens plenos de pretextos, e, por isso, não faço — em minha obra — um prefácio fácil, a pretexto de ser lido. Lido com palavras como o faz o lavrador com sua lavra: em intensa lida. E se meu texto é sólido ou se liquido com a tradicional escritura, isto é outro tema — ou tira-teima — a ser estudado pelos que dispõem de tempo de sobra.
E minha temática é outra, boa ou má.
Ora, a literatura é o ardil de alguns eleitos para o deleite de uma elite leitora, e a poesia uma arte minoritária: de minoria para minoria.
E se minha obra prima pela rima, poeta não o sou: não ouso o pó das bibliotecas — obra de doidos e doídos.
Talvez o seja, sim, um poemador; mas um igual: nem maior nem menor, mas médio, crê — de mediana estatura.
Possuo olheiras bem visíveis e as retinas cansadas da rotina de revisar o que escrevo, quando, de instante em instante, em qualquer lugar, comum ou não, me assaltam à mente palavras novas ou frases de efeito, amante que sou das letras, a despeito de alguns lapsos lingüísticos. A mim me falta uma estante e, nela, um atualizado dicionário. Os erros, corrijo-os a lápis. E, quando me deito, assaltam-me logo o leito e iniciamos o diálogo. Com elas converso boa prosa. E elas, às vezes belas, me atacam — boa presa — e novamente e novamente e novamente. Um turbilhão de palavras, frases, idéias. Excitado, levanto num salto, rápido, a fim de papel e tinta. Conseguidos, enfim, às vezes sem tempo sequer para registro. Na memória uma turbação. Um jugo de palavras. Falo-as desconexas. E logo o dia.
Cedo, menino ainda, via, com meus olhos então míopes, a profissão de jornalista, entre enumerável lista. A idéia ia penetrando-me. Meu pai, repórter policial que fora, nunca concordara. "Só nessa sua cabeça cabe essa idiota idéia." Policiava-me os atos. Um dia, melhor, uma noite, alta madrugada, acordara, e, entrando em meu quarto, flagrara-me rabiscando uns papéis. A pena do delito fora um sermão realista e cru, como só meu pai sabia fazê-lo — melhor que vigário —, embora nunca tivesse lido nem conhecido os autores clássicos. Quase rasguei, desiludido, todas as românticas meninices. Preferiria três surras àquelas palavras cortantes quais lâminas.
Em seus planos de pai, homem reto, calculava-me engenheiro de construção civil. Aos amigos descrevia a minha vocação para o desenho — equívoco logo desculpável quando, em queda no andar térreo do prédio da vizinhança, fraturara eu o braço direito, então meu melhor amigo aos momentos solitários, porque, com ele, múltiplas alternativas de prazer obtinha, principalmente a masturbação.
A essa época, ainda éramos fartos e poucos.
Depois, falto de recursos, não pude, no entanto, cursar faculdade, tal a nossa dificuldade financeira, família pobre e de numerosa prole.
Abandonados os estudos e tudo mais, inclusive os escritos primários, fui ser aprendiz de tipógrafo, em gráfica de subúrbio; onde, por detrás de uma infinidade de letras e números, descobriu-me um poeta, com livro a ser ali impresso. À primeira impressão, em simples troca d'olhos, simpatizamo-nos mutuamente. Tinha ele certa dificuldade respiratória, mas, mesmo assim, recitou-me, ritmadamente, diversos poemas seus: achei-os perfeitos, com espontaneidade — não o disse no momento — mas cheios de vazio existencial. Elogiei — com efusão — apenas uma elegia, lindamente triste, intitulada "Sofrimento". Ele próprio pareceu-me vazio de corpo: era um jovem alto e muito e muito magro. Usava óculos de grossos aros, que, sobressaindo-se mais que o rosto, lhe emprestavam ares de profundo intelectual. Vi nisso um bom artifício para ocultar olheiras. Mas nunca havia conhecido um poeta em carne e osso. De resto, só nas antologias e compêndios escolares. Talvez ele o fosse a fim de dar vazão a um certo desejo reprimido, pensei comigo.
Já versado no ofício de imprimir, encarregaram-me da composição do livro do poeta, a pedido do autor. Feita a obra, nenhum erro tipográfico! Emocionado, chegando mesmo às lágrimas, agradecera-me muitíssimo. O primeiro exemplar, ganhei-o, com dedicatória, tremida a letra.
Dedicado no serviço, firmava-me dia a dia. Ao dono da gráfica já imprimia confiança, e o convite para ascensão de posto viera em seguida. Mas o salário não sofrera o esperado reajuste. Então, fui vitimado duas vezes, injustamente: por discutir firmemente com o patrão um aumento salarial, fora demitido por justa causa, conforme reiterara seu advogado, citando-me — seguro — alguns artigos da lei trabalhista. Não recebi indenização alguma: era a lei. E eu leigamente ilegal.
Meu pai — em talvez castelos de sonhos — tinha ainda o vão desejo de me ver engenheiro de edificações. A essa altura, eu ainda não sofria da coluna. O seu sonho era-me um pesadelo, por eu lhe causar desilusão.
O referido poeta tornara-se famoso e nunca mais nos vimos. Às páginas e revistas literárias, cúmplice de seu sucesso, acompanhava sua carreira. Travara com um crítico uma tão acirrada polêmica que levou este à morte, de ataque cardíaco, em plena sessão da Academia de Letras, repleta de Imortais.
Depois conheci um contista; mau contista — sim — mas muito bondoso, com ajuda de quem contei para ingressar no Jornalismo, como revisor, em jornal de grande tiragem. A princípio, visava a Redação, porém, excluído por não possuir diploma do Curso.
&
Evito escrever, mas, para mim é vital; talvez eu me tenha tornado escravo do que escrevo, por estar em fase de desemprego ou assim me atenha por não Ter uma outra lacuna onde empregar minhas parcas frases, ou ambas, simultaneamente; assim, creio, extravaso minha criatividade, após ser também despedido — por problema de coluna — do jornal onde atuava como revisor.
Sinto ainda muitas dores — e mais acentuadamente quando me sento.
Era um funcionário exemplar. Cumpria a rigor o meu papel. Revisava letra por letra, palavra por palavra, não descuidava de um acento sequer. Causava boa impressão a todos os jornalistas. Havia um que me cumprimentava com um só leve sorriso, social. Era, enfim, bem visado até pelo crítico de cinema — tido por todos como intratável, fazedor de cenas histéricas ao constatar um mínimo lapso, ou corte, em seu artigo semanal. Nunca recebera deles, às horas de folga, frase alguma de queixa. Disso me orgulho. Eu é que me queixava de dores na coluna. Houve um que, com maestria e humor, registrara, em crônica, o meu mal, que se agravava dia a dia.
&
Um dia, o diretor do diário, de sobrenome Farias, um sujeito de voz e gestos escandalosos, tipo manchete policial, intimou-me, em bilhete mal escrito, a comparecer à sua sala.
— Sente-se, por favor — a voz ativa, ditatorial.
E, entre um argumento e outro, sempre direto, por detr5ás de sua cadeira giratória, alegou ser ilegal a minha permanência no quadro de funcionários, devido a meu estado doentio.
E, devidamente ou não, decretou demissão imediata.
— Sinto muito — quis ele dar um tom de afeto; saiu, melhor, soou falso, afeito que estava às palavras fatais.
Senti muito mais. A partir daí, vi dividida minha vida em duas partes: em dívidas e dúvidas. Aceitei o fato com o meu jeito orgulhoso e calado de ser, dócil, rês posta ao golpe fatal. Era isso em mim — a notícia circulou depois — que o fazia me detestar, censurando-me caluniosamente, apesar de nunca termos trocado palavra, em tempo algum. Nem mesmo em pêsames, quando, no hospital, doente, falecera minha querida mãe.
Pesa-me na consciência o não saber ser violento. Na verdade, àquela hora — confesso-o agora, tarde — tive contade de explodir qual uma bomba, e lançar para fora todas as inúmeras letras, palavras, frases e idéias, que tenho acumulado ao longo de uma vida de covarde. Tão intensa era minha fúria interna que tive medo de mim. Tivesse um punhal à mão, faria, sem pena, bons furos no corpo gordo daquele porco podre e miserável até que se lhe esvaísse, entre as vísceras expostas, todo o sangue tipo A de arrogante.
Grande náusea sentiria em rever o cadáver. Boa matéria para a página policial, apenas.
&
Ultimamente, muito tenho refletido sobre mim mesmo, principalmente quando me olho direito, diante do espelho, e começo a descobrir rugas, precoces, em meu rosto de ainda jovem de idade. Do que era eu fisicamente, há pouco tempo atrás, resta — entre minhas poucas posses — apenas esta fotografia, posado de frente, para fins de documento.
Também constato calvície precoce — falhas de cabelos na cabeça. Depois daquelas horríveis coceiras, careço deles. Quanto às rugas, uso um creme facial para disfarçá-las. Sei que isso é fácil, superfácil, superficial, num mundo de aparências e rotulações. "Não fique a ver rugas: use SUPERFICIAL", diz irritante anúncio, na televisão.
Reviso uma outra fotografia minha, aos dez anos, já amarelada, um tímido sorriso ao canto dos lábios, um menino de trato e retrato, sem marcas de espécie alguma. A infância revista, qual em filme colorido, em reprise.
Sofro, também — sem remédio —, a dor dos outros seres, que sofrem anônima ou publicamente. Mas, a minha, a ninguém revelo — a ninguém mesmo — nem no escuro.
Do mundo, a visão que tenho é a dos meus olhos, tristes e cansados.
Só comigo converso, meu melhor amigo, e, aos reveses, pior inimigo. Não consigo outros: a não ser palavras. Sinto até pena de mim — é como se estivesse condenado, em ilha deserta, por um crime nunca cometido. Sim. Sem fama nem família, no exílio. Infâmia!
Outras noites saio pelas ruas a andar a esmo — feito um louco à procura de si mesmo, ou em busca de um suposto alguém que ele próprio desconheça — ou entro em profundo estado depressivo e me refugio nos mais ermos lugares da cidade, a feliz cidade que a um bêbado poeta encantou, onde, em mesmas mesas de bares noturnos, pares de olhos, meses e meses, espreitam outros, na esperança de serem vistos.
Ora em dúvida, se sonho ou realidade, ponho-me a pensar em possível cura. Entretanto, de tanto pensar, beiro a loucura.
Dar uns dois tiros no ouvido — esta a minha vontade, se possuísse um revólver, mas temo ficar surdo antes e assim não ouvir o eco dos disparos, certeza de ato consumado, e — talvez o pior — nem o que seria o meu último grito, já há muito preso na garganta.
Revolver mágoas — eis o que resulta pensar profundo.
"Carregamos o peso de nossos corpos, e sua existência" — rápido, anoto em caderno próprio de frases e poemas, advindos aos instantes de meditação.
Gravei bem o que disse o doutor, após o exame ortopédico: "Grave! Escoliose. Espondilite. É necessário um bom tratamento para andar correto."
Ando torto. Ando morto. Desisti de viver. Dei prazo à vida. Evito tratamento médico, o horror das intermináveis filas, todos a se queixar e a gemer de dores, como se fosse o mundo enorme hospital e os médicos espécie de messias, prontos a realizar milagres de cura. Comovem-me a vozes doridas.
Dependesse de mim, decretaria agora o Apocalipse, e morreria em lugar incomum: em poltrona de teatro, a ouvir de preferência Beethoven, como o ouvem os eruditos: em profundo silêncio. Comovo-me com o barulho de sua música: a mim me soa suave quais finos dedos de pianista, a correr, ágeis, pelas teclas de marfim, em piano de cauda.
Deitado, a olhar para cima, entre as quatro paredes do quarto, arquiteto um suicídio sui-generis, que seria manchete em todos os jornais do país. E do mundo. Receio apenas erro de revisão.
Suicida, não o serei por causa anônima. Antes deixarei em carta explicativa, fechada e escondida, a chave do enigma.
A fim de não revolver pensamentos negativos, resolvo ligar o vídeo e ter a ilusão de ver — finalmente — algum final feliz de algo, na telenovela que hoje finda: em evidente alusão ao meu caso, um homem com idéias suicidas termina casado com mulher compreensiva e simpática. Um belo casal, opino mentalmente, a contragosto.
Amanhã uma nova novela.
Desligo.
[p. 94-103.]
* * * * *
AUTO-RETRATO
Ele se retrata alto como se o fosse. Além de si, fora do seu eu. Além desse cosmo. Alto como Deus Altíssimo, fora do céu. Alto como Deus de sapato de salto alto que não deu certo no pé. Grande à beça. Dos dois pés até à cabeça. Do tamanho da fé do fanático. Enfim, ele se pinta com a tinta que não existe. Triste: ainda acho que ele é ancho e baixo.
[p. 73.]
* * * * *
AO AMIGO ALFRED
Se o cobrador bate à tua porta, às primeiras horas da manhã, a cobrar a promissória já há seis meses vencida, com protesto no cartório (e com juros de mora, correção monetária, e despesas extras); se um ofício da justiça te intima (e igualmente intimida) a depoimento no processo acusatório de homicídio, cuja vítima foi teu avô; se tens de enfrentar olhares indiscretos de vizinhos suspeitosos (porém nunca suspeitos) só por seres único herdeiro da fortuna do finado, que só se foi aos oitenta e cinco devidamente apenas à ingestão de forte dose de cianureto habilmente colocada, por alguém da casa, em sua aguardente predileta (conforme atesta o legista, no seu laudo cadavérico); se tens ainda de enfrentar as indagações, maliciosamente manipuladas, do excelentíssimo senhor promotor público da Primeira Vara Criminal; e ainda as manchetes dos diários locais, com informações distorcidas; se tens de fazer longos e cansativos repetidos esclarecimentos que nada esclarecem às mentes ocas dos senhores jurados, todos igualmente loucos por te ver atrás das grades; se esses pequenos inconvenientes do dia-a-dia ocorrem a ti, meu caro Alfred, não fiques triste: eles só vêm encher de mais razão essa vida vazia que levas, aliás, que todos levamos. Se ainda puderes, sai à rua, e repara os bares noturnos: estão cada vez mais cheios de homens vadios e vazios. Quase todos — ou todos — têm uma esposa infiel, ou um caso de amor impossível, e afogam suas mágoas num bom trago de vinho. Noite a noite eles se consomem, em desesperadora angústia. Uns até desejam a morte. A conversa é sempre a mesma: a de sempre. Então, Alfred, temos sérias razões para concluir que és o último dos privilegiados, um sujeito mesmo de sorte; por acaso, amigo Alfred, quando recebes tua polpuda herança?
[p. 81-2.]
[In No escuro, armados, de Marcos Tavares, Anima/Fundação Ceciliano Abel de Almeida-Ufes, Rio de Janeiro/Vitória, 1987]
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© 2001 Marcos Tavares - Todos os direitos reservados ao autor. A reprodução sem prévia consulta e autorização configura violação à lei de direitos autorais, desrespeito à propriedade dos acervos e aos serviços de preparação para publicação.
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Marcos Tavares, poeta, contista e cronista, nasceu em Vitória, 1957, radicou-se em Dores do Rio Preto. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
GEMA GEMIDO dia a dia, adiado o tardio parto, perto. festa a floresta porque flore a manhã. alvorada, a ave vê alvo o céu e alto voa à...
Poemas selecionados
GEMA GEMIDO
dia a dia, adiado o tardio parto, perto.
festa a floresta porque flore a manhã.
alvorada, a ave vê alvo o céu e alto
voa à luz do sol. seu par de asas sobre-
voa a verde mata — matutino vôo,
sem meta. no ar, vão batendo vão
batendo vão, as asas — feixe de penas.
à hora nona, ora evola céu afora
ora parte da altura em raso vôo
em volta ao ninho, meteórica partida
a seu nicho ecológico — auriverde área.
em breve pausa, ao meio-dia, pousa brava.
via oral, via aérea, ousa sua selvagem
melodia — maviosa voz ao véu alvianil.
e logo após impõe às asas o movimento.
céu, vôo — seu ovo. clara metáfora.
seu vôo, arauto de uma nova eva, aérea.
finda o voar ao fim da parda tarde.
pôr-do-sol, a dor do pôr-o-ovo:
adorado ardor de ave ávida à vida.
após posto o ovo, o vôo suave.
de árvore em árvore, o ar de amar,
mãe solteira na tarde, solitária.
mas desalmado a dor da bela ave caça.
bélica, sua mão destra mune a arma
a ar comprimido e opressora bala.
enquanto olho nu por fresta a vê,
de par a par, pára e mira. depara-a
em vôo. agora pouso. pára e mira.
a ave alça vôo fora da alça de mira.
respira o ar em volta. volta e meia,
cessa o respirar. aponta. a ponte,
entre alvo e mão, dura o tiro. demora.
tempo do rito embora breve gera ira.
duro dedo indicador, à vera, aguarda.
quarto de hora, envolto em ar, respira.
a mão, rota em rota, o fim espreita.
rota da ave quieta a mão. enfim o tiro.
reto trajeto de projétil rasga o vôo.
a bala abala a rara arara.
ex-alada, exala findo suspiro.
força da bala o grave repouso forja.
as asas apenas ar: onde há penas.
o corpo: o orpo o rpo o po o o.
agora só o ovo: gema e clara.
gemido imposto por própria arara.
[Poema, hoje com ligeiras alterações, escrito em 1979 e, à época, dedicado ao amigo escritor Oscar Gama Filho, primeiro a ver com olhos sabiamente críticos os parcos escritos do autor então residente além do fim da rua Dalmácio Sodré, no bairro de Santa Teresa (Vitória-ES), onde Reinaldo Santos Neves e Miguel Marvilla, em pluviosa noite de 1983, quase perderam as botas e o rumo do automóvel. MT.]
RÊS MORTA, RÊS POSTA
Cada rês posta
à escolha
para o abate
não berra: olha
nos olhos de quem talvez
as livre, ou mate,
de uma vez.
Mas a vida ou morte
de cada ser
em meio ao pasto
está não só nos olhos
cegos de ódio
de seu carrasco,
como lâminas de aço.
E cada qual aguarda
a hora temida
mas sempre esperada
de certeiro lance
da lâmina amolada,
quando, sem ter chance
de (res) guardar a vida,
rolará em sangue,
toda esvaída,
uma pobre cabra...
— rês posta exangue.
Agora que a rês mais gorda
foi escolhida
dentre muitas reses
de vários meses
de engorda,
que mais lhe importa
senão a resposta
à sua pergunta
de rês exposta
a ser só postas
que não mais se junta
sobre quatro patas?
Lúcida e só,
solucionando,
à hora extrema,
seus enigmas caprinos,
a rês se indaga,
indagadamente,
se o corte de morte
da lâmina é mais brando,
se é menos cortante
que o olhar cego, sem dó,
cego de ódio, de asco,
inflado de sangue,
de seu futuro carrasco.
E a rês exposta
busca e espera
talvez última resposta,
ante ao primeiro olhar
do homem.
PARTILHA
Perto ao porto, não
sei se parto ou não:
beiro o caos.
Perto ao porto, não
sei se rapto ou não
parte da ilha.
Partilho a antes-dor
do ex-ilhado:
meu ser é cacos.
Em si, não me importo
se parto ou não:
a nau é o acaso.
Se parto, levo a bordo
parte da ilha
qual clandestina.
Se me abordarem em
alto mar o contrabando,
grito mais alto
que as ondas.
E, rápido, o embrulho
desfaço, e o passaporte,
e, oco, mergulho
na morte.
DESENLACE
Eis o que se dá
aos que se amam:
das mãos, então atadas — laço de seda,
frágil arame —, a mera forma
amorfa do amor, já ausente.
Como, antes, nós, amantes:
o nó é de quem sente.
ÁS DE ESPADAS
1
Sem mente, sem arma
e sem amar abertamente,
sacarei da conta
milionária, do colar
que não tenho
em nenhuma agência bancária,
e apontarei no teu coração,
e te matarei — de amor.
2
E com engenho tamanho,
destreza de tal monta,
às meninas
dos olhos alheios —
qual surpreendidas à hora do banho,
a ocultar os seios —
deixarei pasmas,
ante o teu corpo
nesse modo estranho
de morrer, caindo em copo
de água benta —
simpatia pr'asma
em noite chuventa.
3
E blasfemarei contra a lei,
contra o céu
de boca escancarada
qual velha porta
sem taramela, ou trinco,
a cuspir navalhas
sobre meu teto, não de palha
ou telha — de zinco.
4
E blasfemarei,
ainda, contra o rei,
contra o ás de espadas
— signo da morte
que se bem adivinha
e se não se engana
no tirar de cartas
na mesa dispostas
pela mão cigana.
5
Não em jogos de pôquer,
de azar, ou sorte,
nos lances de apostas,
ou nos quais se jogue,
mas nos nossos olhares,
quando nos lançamos
cada qual o seu
— de vida ou de morte.
EM FAMÍLIA
O filho dizia dá-me mama a mãe dizia
mame-me o pai dizia ame-me o filho
dizia mama mia a mãe dizia mamãe
o pai dizia dá-me mama o filho
dizia ame-me
o pai dizia mame-me mia-
va o gato lá fora em Mi-
lão.
CONTUDO
A casa me recebeu de braços abertos.
E meu relógio batia — coração no pulso.
Os livros na estante ditavam minha presença.
Ó quanto amor, no retrato dos avós!
Há uma pedra em meu sapato,
e estou descalço, as mãos nuas.
Homens e mulheres atravessaram-me a vida
e estou dividido entre mim e outro.
Soube, por telefone, do ataque cardíaco
de que foi vítima a ex-amada, a esposada.
Já agora é o relógio na parede,
e o calendário anuncia o amanhã.
O sono, solto, foge a galope
de cavalos, mil cavalos, à toda força.
A gravata no cabide evoca a forca
mas ponho a cedilha e não cedo.
A casa, a minha casa, ao acaso,
num lugar eqüidistante a um e outro.
Não amo minhas flores, nem as molho
de lágrimas. Meu canteiro é outro.
A vida prossegue, contudo. Amanhã.
TRABALHO
alho por alho: trabalho.
batalha de s(ais); sal de
rosto (suor), sal de olho
(lágrima) e sal de saldo
(salário). salina luta
salutar (sal de saúde)
que quer a mão, a cabeça,
o pé e o tronco, a troco
de.
sal por sal: salário.
sal de suor do rosto
por sal do árido saldo
em mesma porção (conta hábil).
o pão que, diário, vai à boca
(vira de reto) não se ganha
à toa nem se o dá à mão
mas no calor da barganha
de.
DO ÚLTIMO ANDAR
"Na areia da praia
Oscar risca o projeto.
Salta o edifício
da areia da praia."
(C.D.A.)
Os edifícios, Oscar,
nunca terminam
no último andar
nem no último andaime
nem no último operário
ultimado.
Porém eles crescem
sempre e sempre crescem
infinitamente
sobre sua própria estrutura.
(Um dia São Pedro
desconfiou que um edifício
de São Paulo
arranhava o céu
e imediatamente emitiu
através do anjo Miguel
a denúncia vazia
com a conta do aluguel.)
Aprender a difícil
engenharia dos edifícios
que nunca terminam:
eis os sonhos — vãos — dos arquitetos.
Enquanto isso, Oscar,
os edifícios crescem
num crescer de degraus,
infinitamente,
ante os teus olhos
teus óculos
de infinitos graus.
Nenhum arquiteto é maior
que arquiteto nenhum
que arquiteto nenhum
é maior
que arquiteto nenhum
é maior
que um edifício
sem teto certo
concreto.
Oscar,
o último andar
reside no ar.
É lá que Cecília
queria morar.
Sem limites de céu,
o ar circula
nos 360o dos mundos
de teus aros binoculares.
Impossível
é andares acima
ou abaixo
das nuvens.
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