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Uma caneta-tinteiro acorda. Não sabemos se de “sonhos intranquilos”, como Gregor Samsa, mas tarde, simplesmente. Despertando ganha uma ...



Uma caneta-tinteiro acorda. Não sabemos se de “sonhos intranquilos”, como Gregor Samsa, mas tarde, simplesmente. Despertando ganha uma vida, uma personalidade e uma história.

Ora, não seria mesmo animismo a forma mais atávica de se conceber a criação? Quantos de nós, quando crianças em processo de construção de uma consciência psíquica do mundo, como pequenos demiurgos sem muito barro a dispor, não brincamos de faz-de-conta com nossos lápis, borrachas, tesouras e afins? Pois são de processos criativos que se trata o livro “Safira”, publicado originalmente em 1992, do poeta Sérgio Blank, a história girando em torno dos percalços existenciais da personagem-título.

Blank empresta à sua caneta egocêntrica um pouco de seu olhar descobridor sobre o banal para comunicar ao público infantil sua poesia, tomando-a como epicentro da construção de metáforas singelas sobre vaidade, humildade e amizade. As linhas precisas que compõe a história denunciam mais uma vez a vocação do autor para o ofício de poeta. Ainda que voltadas, no caso, para a prosa, suas palavras ganham sonoridade, sabor e, certamente, cor. Autor de cinco livros de poesia para “gente grande”, “Safira” é sua primeira incursão pelo gênero infantil. E aqui o “poeta de alma grande”, como disse Reinaldo Santos Neves, demonstra mais uma vez saber o que faz. Não por acaso, o livro chega este ano à sua sexta edição, com previsão de lançamento neste mês de outubro pela editora Formar.

Com escolhas sintáticas que se aproximam do universo frasal de uma criança em tenra idade, o texto mostra sua força. O uso consciente de orações coordenadas jocosamente objetivas, de uma adjetivação pueril como em “era uma caneta muito magra e bonita”, “ficou toda cheia” e “olhar grande” são alguns dos recursos que Sérgio utiliza como contrapartida estética de uma subjetividade infantil em formação. Já reparou como criança sempre sabe o que quer? É isto, é aquilo, ponto. E cada frase de Sérgio também. “E ficou noite.” E ponto.

As metáforas são táteis. É na consciência sensível das manchas, traços e tonalidades que Safira estende o sentido de sua existência até descobrir a palavra. Num tempo em que hegemonia é a da imagem fácil no que tange ao mercado de livros destinados à criança, onde se amontoam galinhas e florzinhas em alto-relevo, botõezinhos que fazem som e outras sandices que deixariam André Breton de cabelo pé, Blank consegue concentrar a potência da expressão no texto. Esqueçam o freak show, estamos falando de literatura aqui. E isso é brinquedo só nas mãos de quem sabe brincar.

Nesse sentido, as ilustrações de Mara Perpétua acertam justamente pelo comedimento ao não reterem a atenção do objeto-livro para si. Emulam com competência o traço deformado de quem de fato começa a descobrir as formas no papel. As figuras humanas parecem ter vindo do mesmo país que o Abaporu. Quase sempre tímidas nos cantos das páginas, têm como “cenário” constante a imensidão do branco que tanto fascina a protagonista. Blank is Blank. E azul. E um tantinho de vermelho ao final.

A própria narrativa, em respeito à sua proposta primordial, recusa a ambientação linear. Safira defronta-se com diversas personagens à medida que os concebe. Seu único movimento, em verdade, é o da descoberta.

[Por Eduardo Madeira, in Caderno Pensar - A Gazeta, 14/10/2017]

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Qual música ecoa de linhas sobre a superfície? Não de linhas complexas: — linhas simples, como as das letras. Que quadro compõem estas...



Qual música ecoa de linhas sobre a superfície? Não de linhas complexas: — linhas simples, como as das letras.

Que quadro compõem estas linhas desunidas, que apenas se tocam nos seus vértices? Pontos em que se interseccionam, mas não se penetram.

Toda escrita é formada de linhas sobre a superfície. As linhas podem ser cordas suspensas, como a língua inca. Ou gravadas na areia da praia.

Quem se dedica a descobrir o ritmo e a musicalidade dessas linhas sobre a superfície é. Música sem harmonia nem arranjos além da escansão greco-latina ocidental.

Quem se dedica a transformar letras em tintas espalhadas na tela branca da página e a compor cenas em quadros sem perspectiva, mas dotadas de plasticidade é.

É sobressimbolista.


Características do Sobressimbolismo


Carlos Nejar é o autor clássico, no sentido de ser estudado em classes de aula. O único 100% sobressimbolista.

Leitmotiv: Toda escrita envolve linhas sobre uma superfície.

Presente em artistas contemporâneos em que o hibridismo dos gêneros fez com que se tornassem posteriores a fronteiras.

Insatisfação com o cientificismo, com o neoliberalismo e com a destruição dos valores humanos e culturais pela globalização.

Emprego do Método do Raciocínio Obsessivo, que leva a técnica a explorar os mínimos detalhes dos caminhos estéticos que se bifurcam até o exagero inumerável de cada possibilidade. Melhor dizendo: leva tudo ao exagero dos mínimos detalhes de cada caminho estético possível.

Interesse pelo aspecto plástico, visual e musical da literatura. Sem abandonar a letra e a palavra.

Criação da literatura abstrata, não figurativa, sem compromisso com a mensagem, em que o ritmo e as imagens falam por si sós, com uma musicalidade que não chega à música e uma plasticidade que não chega às artes plásticas.

Psicologismo: foco na visão do indivíduo, no mundo interior do artista ou no dos seus personagens.

Interesse por símbolos, em que o sentido deve ser descoberto, não revelado de pronto.

Metáforas, aliterações, assonâncias, paronomásias, comparações, rimas internas, coliterações, antíteses — não barrocas, mas sobressimbolistas. Culto da forma, chegando ao hermetismo.

Hibridismo dos gêneros e das artes. As fronteiras entre gêneros e artes são anuladas: qualquer coisa é a mesma coisa. Romance = poema = conto = novela = teatro = música = artes plásticas.

Paixão pelo mistério, pela noite, pela morte e por entretons como o pôr do sol.

A liberdade só é possível no sonho, na imaginação e na fantasia.

Temperamento pessimista e crítico.

Misticismo agnóstico: volta ao espiritualismo cristão medieval.

Preocupação com o cultural, não com o natural.

Subjetividade contra a sociedade objetiva.

Preocupação com o inconsciente e com o psicológico.

Nefelibatas reclusos, andam nas nuvens e vivem em torres de cristal.

Na narrativa, o enredo e ação ficam em segundo plano. Contar uma história é importante, mas a forma é muito mais: formalismo.

Afastamento e crítica da sociedade burguesa.

Idealismo — arte pura — crença nos espíritos da razão e da narrativa — platonismo.

Tom literário, mesmo na prosa, não o coloquial.

Temas elevados ou elevação de temas vulgares até a altura em que se acha o estético.

Arte pela arte, sem interesse comercial.

Técnica típica do sobressimbolismo: a obra desmontável.


Clique aqui para ler a matéria publicada no Caderno Pensar, de A Gazeta.


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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Ana Cristina Siqueira não é só a mais discreta figura daquela geração que no conturbado início da década de 80, no afã de escrever, escr...



Ana Cristina Siqueira não é só a mais discreta figura daquela geração que no conturbado início da década de 80, no afã de escrever, escrever, tornou-se já objeto de estudos acadêmicos (apud Francisco Aurélio Ribeiro, Reinaldo Santos Neves, Anaximandro Amorim). Era uma das que mais pensava o texto como um tecido previamente elucubrado, num ofício artesanal, numa conjugação entre significado e significante.

Havia a efervescência literária, talvez eclodida pela luta reivindicatória em prol da plena liberdade de expressão. Tímida, mas logo identificada como produtora de um bem urdido texto poético, Ana Cristina não se deixou inebriar por arroubos juvenis. Antes, poemas guardara, ou os vinha burilando sigilosamente, invertendo sintaxes, substituindo aqui e ali palavras, buscando a sonoridade compatível com o seu propósito expressional. Temas por ela enfocados cedo revelavam uma visão de mundo muito além da dos jardins universitários de então: enquanto maioria bradava contra uma agonizante ditadura, luta de Cristina era toda voltada para as classes gramaticais, para as articulações sintáticas, no sigiloso conluio com subversivas palavras.

Nesse tempo, na UFES ministrava oficina literária a Prof. Deny Gomes, e de uma delas participara Ana Cristina. No Caderno Dois (in jornal A Gazeta) o irrequieto jornalista Amylton de Almeida fazia-se guru ou ácido crítico, assim odiado ou amado pelos artistas. Aliado a esses fatores, o recente parque gráfico ufesiano vazão dava a livros avalizados pela então ativa Editoria da Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Dessa valorosa safra (Coleção Letras Capixabas), privilégio tive de anunciar, em orelha, dois daqueles oficinandos de Deny: assim o foi com Paulo Roberto Sodré (“Interiores”, poemas,1984) e com Ivan Castilho (“O Deus do Trovão”, contos,1988).

Agora Ana Cristina Siqueira, sob o título Poema Deitado ao Seu Peito, a lume boa mostra de sua arte verbal põe. Subintitula (“um jogo de amarelinha”) com aquele divertimento já folclórico, mais para meninas, que consiste em pular sobre um desenho (a giz ou a carvão) riscado no solo. Nesse aspecto, remete-nos àquele famoso livro do peruano Júlio Cortázar, pois lá tudo misturado, possibilitando alternada leitura de capítulos, saltadamente, podendo ir e vir, qual na aludida brincadeira em que alcança um céu o saltitante vencedor. Tudo ao sabor do fluxo de consciência introspectiva, no qual oscilam e brincam com a mente subjetiva do leitor. Assim o é o corpo do livro: poemas, crônicas, epístolas, narrativas ficcionais, outros indefinidos gêneros. Os poemas, em sua maioria, são os que, desde idos tempos, compunham o inédito livro A outra genuina tez, dos quais 3 já publicados na revista Letra (nº 7, FCAA-Ufes,1987).

Poetisa essencialmente lírica, se pela extensão, pela longura, possam os seus versos lembrar os caudalosos de Withman, derramados página afora, no entanto, não encontram, nesse tocante, similar em nossas Letras: cinéfila que o é, original e intrigante é a sua imagética. Lugar-comum não se o acha cá. Escritura laboriosa, de tantas reescrituras quantas pudessem conferir aquela rebuscada musicalidade bem aprazível a ouvinte apreciador dos clássicos. Não é à toa que ambas as artes(cinema e música) sejam, para ela, referências.

Estivesse no epicentro cultural(Rio-São Paulo) essa autora, por certo renderia assunto a atentos especialistas que, com olhar treinado, logo identificariam em sua tessitura o ludismo, tal o da amarelinha, capaz de , do reles chão de comuns mortais, fazer-nos saltar para um céu estético.

(Marcos Tavares, autor de Gemagem e de No escuro, armados)


[In Poema deitado no seu peito: um jogo de amarelinha. São Paulo: Scortecci, 2012.]

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Cabotagem poética Todo poeta possui uma paisagem. Paisagens também se consolidam como nutrientes temáticos dos poemas, seres de pal...




Cabotagem poética


Todo poeta possui uma paisagem. Paisagens também se consolidam como nutrientes temáticos dos poemas, seres de palavras e de sentimentos que intentam expressar a realidade em toda sua poliédrica manifestação.

Baudelaire cultiva sua paisagem poética vagando pelas ruas dispersas de Paris; Fernando Pessoa se abeira no cais do rio Tejo para observar Lisboa pelo foco das metáforas; Jorge Luís Borges cadencia o fervor de Buenos Aires nas praças e avenidas de seus versos inimitáveis; Carlos Drummond de Andrade, no iluminado relâmpago de um poema, emoldura para sempre as férreas calçadas de Itabira, e Augusto dos Anjos, na solidão de seus passos taciturnos, caminha, ao ritmo sombrio e macabro, pelas pontes históricas de Recife ou pelos canaviais noctâmbulos do velho engenho Pau d`Arco.

Cada poeta, com a sua voz. Cada voz, com o seu canto. Cada canto, com o timbre particular da verdade e da beleza de uma poesia germinal que convoca a paisagem geográfica de suas experiências vividas para o mágico retábulo do poema.

É dentro desse viés de compreensão que começo a assimilar os versos livres de um poeta como Jorge Elias Neto (1964), capixaba, na coletânea intitulada “Cabotagem”, em edição da Mondrongo, Ilhéus-Itabuna, 2016, sob regência do também poeta Gustavo Felicíssimo.

Digo “coletânea”, se penso cada poema no território isolado de sua autonomia semântica, lido um a um, assim por partes, com direito às paradas táticas para o exercício da reflexão e para a fruição individual do prazer estético.

Considerando, não obstante, o diálogo interno que se opera de texto a texto, e, aqui, tomados pelo critério simbólico da paisagem, nada me impede de afirmar que estou diante um poema único. Um “macrotexto”, para me valer da expressão de Maria Corti, centrado na captura do lugar, o lugar físico, topográfico, mas também o lugar memorável das “imagens amadas”, como diria Gaston Bachelard, disposto em mosaicos especiais que se inscrevem no plano real da recordação, portanto, na substância lírica, mas, sobretudo, na armação configurativa das virtualidades verbais do poema.

Este “Cabotagem” é uma viagem por dentro da paisagem da ilha de Vitória, movida pela corrente emocional e evocativa do eu lírico que, firmado na cadência de seus versos, percorre, texto a texto, os locais da cidade enquanto motivos poéticos, e desse reencontro, que se materializa, a princípio, no terreno concreto e objetivo, brota, na limpidez da linguagem, as imagens estéticas que fazem da paisagem uma experiência subjetiva, particular, única, intransferível, que é exatamente a experiência do poeta, daquele olhar só seu, a criar e recriar, já nos arcabouços da sensibilidade e da imaginação, uma Vitória toda sua, enfim, uma cidade que existe a partir da observação, mas que é mapeada sobretudo por aquela “fantasia ditatorial”, ou seja, fantasia criadora, a que se refere Rimbaud.
Ponta Formosa, ladeira do Sacre Coeuer, a Terceira Ponte, o Convento da Penha, o Manguezal, o Penedo de 136 metros de altura, o Cais do Hidroavião, a Capela do Carmo, o Britz Bar, o Horto, a Catedral, o Iate Clube, o Triângulo das Bermudas, o Status Motel, o Cine São Luís e o Aterro são, entre outros locais, acidentes e monumentos, os elementos que compõem a tessitura dos poemas, numa espécie de roteiro sentimental que, pela natureza mesma de sua força poética, transcende os limites convencionais dos roteiros históricos e turísticos, restritos, não raro, ao mero apelo pragmático.

Na poesia de Jorge Elias Neto, o que poderia ser apenas patrimônio artístico ou valor cultural para visitação, converte-se em sutileza reflexiva, em percepção surpreendente, em qualquer coisa de inaugural e de idiossincrático que tende a desmobilizar o olhar do leitor, redimensionando-o para outras possibilidades de sentido. Observe-se, por exemplo, o pequeno poema “Capela do Carmo”:

“Primeira hóstia
entre tantas roubadas
 e um brilhante que não furtei
por temer a Deus”.

Nesta mesma direção, dentro, no entanto, de uma clave mais discursiva, no poema “70 metros”, vejamos alguns versos:

“Bom sentar aqui...
Gera um desvio do olhar;
um torcicolo súbito
diante da emanação do absurdo.
....................................................................................................
Minha mãe guardou meus cachos de anjo,
cortados,
abençoados...
Mas os anjos são lívidos
demais para serem humanos...
......................................................................................................
(A eternidade é uma metáfora que já não me ilude.)
......................................................................................................
Sacia-se a fome de ossos
dos Oceanos.
......................................................................................................
Mas, por ora,
contenha as lágrimas, leitor.
Não se trata da vida do poeta.
Por mais que insista,
a vida é mais irônica
que as palavras”.

Na verdade, nesta dicção poética, conta mais pensar acerca da paisagem, tentando captar seus meandros ocultos e suas regiões inomináveis, mais que o descrevê-la sob parâmetros de uma linearidade fotográfica. À paisagem se vincula, portanto, a certa temperatura emocional, aderindo, por sua vez, aos comandos invisíveis da memória e da imaginação, evidentemente para que o que preexiste enquanto matéria dispersa, no âmbito do estado poético, possa se transmutar em operação expressiva, em organização especial da linguagem, isto é, no poema.
Com “Cabotagem”, Jorge Elias Neto continua maturando seu ofício poético e acrescenta mais um título a sua obra, depois de “Verdes versos (2007), “Rascunhos do absurdo” (2010), “Os ossos da baleia” (2013) e “Glacial” (2014).




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Hildeberto Barbosa Filho, autor, nasceu em 9/10/1954, na cidade de Aroeiras, Estado da Paraíba. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba licenciando-se também em Letras Clássicas e Vernáculas (UFPB), sendo também mestre em Literatura Brasileira, pela UFPB. Atualmente é professor de  Literatura Brasileira na Universidade Federal da Paraíba. Crítico literário, escritor, poeta e jornalista.

Anotações de Oscar Gama Filho. Reinaldo Santos Neves não abriria mão de viver esteticamente nem para ser autor de um best-sell...


Anotações de Oscar Gama Filho.
Anotações de Oscar Gama Filho.

Reinaldo Santos Neves não abriria mão de viver esteticamente nem para ser autor de um best-seller. Mas Kitty aos 22: divertimento (Flor&Cultura, Vitória, 2006) tem todos os seus ingredientes. Os vivos diálogos e a ação trepidante dos estranhos personagens desta novela de costumes, que critica a banalidade de suas vidas, parecem dignos de um filme de Woody Allen. Evitando tropeçar no caricato e no grotesco, misturou sua formação clássica ao pop e à novela policial para transformar o amálgama em pura energia estética.

A visão de Reinaldo sobre Mictória é  mais europeia,  americana  e noir, que brasileira. Daí a mordacidade, a aversão à mediocridade, a ausência da complacência que seria de esperar num nativo. Seu olhar britânico é que o torna capaz de capturar o genuíno. Para ele, o único noir verdadeiro é o espírito-santense, com suas nuances de romantismo neorrealista. O contraste entre seus claros solares, que empapuçam a cor, desfazendo-a, e tons escuros, primitivos e bárbaros, compõe um filme preto e branco ultrapassado pela realidade: cápsula do tempo a ser apreciada no museu raro desta obra.

Reinaldo trata de pessoas que, abandonadas por deus (e, agora, por demônios que não as suportam), metamorfoseiam-se em mitos pela mão que bate o egoísmo, a violência, a crueldade e a indiferença pelo próximo — como massa de pão — até que se convertam em arte.

O processo de escrever, para um clássico, passa necessariamente por barreiras que dificultem a facilidade criativa. Daí seu processo de pesquisa ter-lhe granjeado dois momentos em mundos que jamais conheceu: A Crônica de Malemort e Kitty aos 22. Desta vez, lança mão de fragmentos de um sonho real para compor um alegado divertissement, gênero musical que vai do ligeiro à sinfonia, passando por tons noturnos de uma atmosfera com toques policiais.

É uma tradução intersemiótica. O eidos, que constitui a essência da obra desmontável, transforma-se em qualquer forma de arte e lê-se em qualquer linguagem ou língua. Ao inventar a cor das vogais, Rimbaud executou uma tradução intersemiótica da pintura para a literatura. Se a passagem da linguagem de uma forma de arte para outra é tão impossível quanto escrever um divertissement, sua missão de artista foi realizada. O eidos está centrado no sonho parcialmente esquecido, a que se lança para recuperar o tempo perdido. Proust mostrou que é pela memória involuntária que se recupera esse tempo perdido, momento miraculoso que possibilita escutar o tão caro silêncio. E há descrições minuciosamente proustianas, como a da alvorada (p. 71-73) e (sem ter assistido a nenhum) do desfile de moda (p. 183-86). Mas é um mundo a que só teve acesso pela pesquisa na internet. Sonhar é crime em 2017, e Reinaldo é réu confesso: culpado. O futuro o absolverá. O sonho retornará apenas no epílogo do livro (p. 232-33), com o avesso do som fazendo ouvir o silêncio.

Retrata, com total verossimilhança, fixando suas características, a Geração Y: seu modo de falar (o dialeto internetês), de sentir friamente e de se expressar. O rico vocabulário inclui neologismos como ‘putamerdalmente’ (p.112) e ‘adolescentozoides’ (p.183), gírias como ‘mó sexy’ (p. 120) e ‘ficou rox’ (p.121), e construções sintáticas que reproduzem o dialeto contemporâneo. Citações cinematográficas e intertextos refletem a formação do escritor: Camões, Orwell, ‘King Kong’, ‘Cabaré’, ‘De Olhos Bem Fechados’, ‘Cinderela’...

Em Reinaldo, as metáforas tomam vida. O pedido de Lu, melhor amiga de Kitty, é literalmente atendido: “Kitty: dá ponto pra ele, e aí, quando ele achar que te ganhou, fura o olho do gato, pelamor de Deus” (p. 163). Se, na gíria, “furar o olho” é trair, Kitty o faz: na oportunidade da primeira transa, ela o deixa na mão, sem comê-la, e ainda o mata, furando seu olho com o salto alto agulha do sapato, depois de usá-lo, anteriormente, para sair nas manchetes dos jornais de Mictória, que é exatamente a união da cidade de Vitória com o mictório poluído em que a contemporaneidade a transformou.

Bruno e Kitty são personagens complexos, dinâmicos, contraditórios, dotados de primorosa construção psicológica, digna de Dostoiévski. A partir do encontro com o Relinchador (p.110), Kitty se humaniza, retira-se de um estado primitivo de amoralidade e egocentrismo para uma semi-humanidade circunstancial. Já Phil é plano, linear, paráfrase de Philip Marlowe, detetive durão criado por Raymond Chandler. Estamos diante de um virtuose: esta novela pode ser usada, por um aprendiz de prosador, como compêndio de fórmulas de realização de narrativas e falas, escalas literomusicais, ou seja, exercícios de improviso em inúmeras variações.

Se a morte é um evento constrangedor, mas imprescindível à sua proposta, a solução é embrulhá-la no mais belo papel de presente: a literatura. A questão básica da humanidade, aqui abordada, é o quanto vamos aguentar, como vamos aguentar e por que vamos aguentar.

A equação proposta por ‘Kitty’, criada a partir do sonho, tem suas consequências. Mostra, pelo princípio clássico da intemporabilidade do belo, por autoevidência, que a arte é o eidos, a essência em torno de que a realidade variante muda. O belo, a arte, é o invariante, o eixo da realidade, núcleo imutável ao redor do qual ela se fragmenta, centrifugadora existencial. A arte forma o mundo real como dom que dela vaza. O que há de belo e atemporal em Kitty é o eixo-eidos da incompreensível consciência.

E para quem deseje posições sociais ou políticas engajadas, é bom lembrar que o autor viveu num tempo de ditadura militar, terrorismo e censura federal. Descrever e ridicularizar foi a saída. Rindo, ele castigou os costumes: ridendo castigat mores. O que nossas escassas forças podem alterar? Quando os políticos agem como se a corrupção fosse um direito adquirido, a mudança é a única guerrilha ao nosso alcance. Mas a solução apenas homologa a situação. Resta saber para qual revolução micropolítica possível conformaremos nossos gestos, que não podem ser estancados nem paralisados, mesmo que aleatórios e perdidos no mundo fútil e superficial de Kitty.

Em seu romance Sueli, Reinaldo Santos Neves afirmou que a função maior do homem no mundo “é transformar-se em literatura.”

Aprendemos, então, que a maior missão de um escritor é fazer-se literatura, tornar-se literatura. Escrever bem qualquer um consegue. O diferencial é conseguir metamorfosear-se em O Escritor, transformar-se em matéria-prima de lendas, em homem santo da religião sem deus dedicada à adoração do hegeliano espírito da literatura, entronizar-se como Filho do Absoluto.

Este é o caso de Reinaldo, que saiu da vida e abandonou seu lar para dormir em bibliotecas, livrarias e estantes, tornando-se pedra fundamental da literatura brasileira.


EPÍLOGO

Kitty, a Bela Adormecida.


O Mago-mor, vândalo infiltrado entre os Reis Magos, amaldiçoou Kitty, e todos os que na obra viviam, a um sono de cem anos, porque não foi convidado à festa da beleza e do destino. Preferiu a festa do sucesso e da riqueza, e lá chapou o coco e dormiu. Perdeu o melhor batizado do mundo e acordou puto por isso. E, afinal de contas, por não  estar na lista dos convidados. Mas sabia, como Mago, que seu talento na magia encantava a todos e, por si só, o admitiria em qualquer recinto. Todos gostam de show de mágicas.

O Mago-padrinho, contudo, figura mais esperada no evento, chegou atrasado, como sempre, e não tinha dado seu presente. Nem levado. Esqueceu. A única saída residia em cumprir seu destino na linha do tempo, a que nada escapa.

Aí o Mago-padrinho concedeu sua bênção a Kitty, transformando seu sono de esquecimento. O encanto seria quebrado quando um poeta recluso, solitário e verdadeiro e sincero beijasse a beleza que do livro emana. Seria tarde demais, porque o vestibular da UFES, em que foi adotado, em 2008, já se foi, mas Kitty acordaria e viveria para sempre nas estantes de livrarias.

Kitty dormiu por mais de uma década: este ensaio foi escrito entre 2006 e 2017, em marginália, nas páginas do próprio livro, ou em pedaços de papel avulsos, com garranchos incompreensíveis em que eu insistia em ver ideogramas autoexpressivos, não um texto com início, meio e fim. Em homenagem aos 70 anos de Reinaldo, concluí o caso. Tirem suas conclusões por si mesmos, pois nem sempre o mordomo é o culpado, mesmo sendo anglo-capixaba seu senso de humor.

Enfim ressuscitei e beijei a pátina de sua página de rosto, tencionando resolver esta longa história de amor, ou, ao menos, captar seu satori, a iluminação possível em um ambiente noir, e que por isso forneceria presença à alma de Kitty, que, sem ela, continuaria perdida no limbo onírico.


Casamar, 23 de abril de 2017


Clique aqui para ver imagens de páginas anotadas pelo autor.


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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Perdoai-me, leitores, falar sobre minha obra. Mas é o de que mais conheço. A Nuvem sorriu. E era um sorriso inexprimível como o da Mona Lis...


Perdoai-me, leitores, falar sobre minha obra. Mas é o de que mais conheço. A Nuvem sorriu. E era um sorriso inexprimível como o da Mona Lisa, de Da Vinci. Ainda que defenda tese de que o sorriso não se imita, imita-se o grito. Mas ao tratar de mim, trata de um Outro (dizem que seria a própria Nuvem – mas não aceito porque ela é uma pessoa, com vida independente, advinda das regiões sidéreas).

Mas falarei, sim, de livros de poesia e ficção, que escrevi, onde já aparece a metamorfose.

Afirma um excelente crítico, Oscar Gama Filho, que é um novo estilo, o sobressimbolismo. Mas não se escreve para inovar, escreve-se porque “ ninguém nos escuta”, ou porque as palavras se encantam em mim e não sei expressar diferente do que faço. E expresso às vezes o que não quero, mas se impõe. Em O Campeador e o Vento (1966), já existe a metamorfose. Da morte do lavrador, surge o campeador e vai executar o novo tempo (tese, antítese e síntese), nos Viventes (agora em 3ª edição), a poesia se transforma em ficção e essa, em poema.

Na criação de romances, desde Rio Pampa, O Moinho das Tribulações (2000), A Negra Labareda Alegria, o mais recente, A Vida Secreta dos Gabirus, editado pela Record e o volume no prelo, O feroz círculo do homem, até os dois inéditos, O cavalo humano e Os Degraus do Arco-Íris, há um aprofundamento do tema da metaforfose, essa mesma que vem de Ovídio e passa por Swift, Kafka, Bruno Schultz, Joyce, Guimarães Rosa (Riobaldo: rio cansado; Diadorim: dia-do-fim, homem guerreiro que esconde uma bela mulher revelada na morte). Diferente, porém de Kafka e Schultz que transformaram um ser humano em inseto e não há volta, eu criei a possível volta pela palavra, de uma natureza à outra e até o retorno.

Vou atrás, dentro de meus limites, das pegadas que se inventam – não do caos, mas do abismo. E vi que Letícia fitava longe, mais longe. Porque o humano é interminável. E a metamorfose é das palavras que se movem em outras e outras, até virarem seres vivos. E tão vivos, por mudarem para outras formas de existência. O que gera tal metamorfose é o corpo por dentro da alma. E apenas conto o que as palavras me contaram. E a Nuvem é um tudo indestrutível.


[De um livro de ensaios, inédito.]

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Carlos Nejar (Luís Carlos Verzoni Nejar), nasceu em Porto Alegre, RS, em 1939. Formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS. É poeta, ficcionista, tradutor e crítico literário brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filosofia. Estabeleceu residência em Vila Velha, ES, por vários anos, mudando-se depois para o Rio de Janeiro. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)