Uma caneta-tinteiro acorda. Não sabemos se de “sonhos intranquilos”, como Gregor Samsa, mas tarde, simplesmente. Despertando ganha uma ...
Safira: um retrato em branco e azul
Uma caneta-tinteiro acorda. Não sabemos se de “sonhos intranquilos”, como Gregor Samsa, mas tarde, simplesmente. Despertando ganha uma vida, uma personalidade e uma história.
Ora, não seria mesmo animismo a forma mais atávica de se conceber a criação? Quantos de nós, quando crianças em processo de construção de uma consciência psíquica do mundo, como pequenos demiurgos sem muito barro a dispor, não brincamos de faz-de-conta com nossos lápis, borrachas, tesouras e afins? Pois são de processos criativos que se trata o livro “Safira”, publicado originalmente em 1992, do poeta Sérgio Blank, a história girando em torno dos percalços existenciais da personagem-título.
Blank empresta à sua caneta egocêntrica um pouco de seu olhar descobridor sobre o banal para comunicar ao público infantil sua poesia, tomando-a como epicentro da construção de metáforas singelas sobre vaidade, humildade e amizade. As linhas precisas que compõe a história denunciam mais uma vez a vocação do autor para o ofício de poeta. Ainda que voltadas, no caso, para a prosa, suas palavras ganham sonoridade, sabor e, certamente, cor. Autor de cinco livros de poesia para “gente grande”, “Safira” é sua primeira incursão pelo gênero infantil. E aqui o “poeta de alma grande”, como disse Reinaldo Santos Neves, demonstra mais uma vez saber o que faz. Não por acaso, o livro chega este ano à sua sexta edição, com previsão de lançamento neste mês de outubro pela editora Formar.
Com escolhas sintáticas que se aproximam do universo frasal de uma criança em tenra idade, o texto mostra sua força. O uso consciente de orações coordenadas jocosamente objetivas, de uma adjetivação pueril como em “era uma caneta muito magra e bonita”, “ficou toda cheia” e “olhar grande” são alguns dos recursos que Sérgio utiliza como contrapartida estética de uma subjetividade infantil em formação. Já reparou como criança sempre sabe o que quer? É isto, é aquilo, ponto. E cada frase de Sérgio também. “E ficou noite.” E ponto.
As metáforas são táteis. É na consciência sensível das manchas, traços e tonalidades que Safira estende o sentido de sua existência até descobrir a palavra. Num tempo em que hegemonia é a da imagem fácil no que tange ao mercado de livros destinados à criança, onde se amontoam galinhas e florzinhas em alto-relevo, botõezinhos que fazem som e outras sandices que deixariam André Breton de cabelo pé, Blank consegue concentrar a potência da expressão no texto. Esqueçam o freak show, estamos falando de literatura aqui. E isso é brinquedo só nas mãos de quem sabe brincar.
Nesse sentido, as ilustrações de Mara Perpétua acertam justamente pelo comedimento ao não reterem a atenção do objeto-livro para si. Emulam com competência o traço deformado de quem de fato começa a descobrir as formas no papel. As figuras humanas parecem ter vindo do mesmo país que o Abaporu. Quase sempre tímidas nos cantos das páginas, têm como “cenário” constante a imensidão do branco que tanto fascina a protagonista. Blank is Blank. E azul. E um tantinho de vermelho ao final.
A própria narrativa, em respeito à sua proposta primordial, recusa a ambientação linear. Safira defronta-se com diversas personagens à medida que os concebe. Seu único movimento, em verdade, é o da descoberta.
[Por Eduardo Madeira, in Caderno Pensar - A Gazeta, 14/10/2017]
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Reler Safira , livro infantil de Sérgio Blank - com ilustrações de Mara Perpétua -, tem o gosto e o gesto de uma redescoberta: da liter...
50 tons de azul em Safira
Reler Safira, livro infantil de Sérgio Blank - com ilustrações de Mara Perpétua -, tem o gosto e o gesto de uma redescoberta: da literatura infantil feita no Espírito Santo, do lavor imprescindível de seu autor.
Na tese de doutorado defendida por Ivana Esteves, em 2015, junto à Universidade Federal do Espírito Santo, há um delineamento do modus operandi da literatura para crianças em terras capixabas. A autora demonstra que, independentemente da natureza do financiamento destinado à publicação de seus livros (seja público, por meio de editais; misto, por meio de leis de incentivo; ou privado, por negociação direta dos detentores de direitos em escolas e empresas), os escritores de obras infantis, no contexto estudado, são aqueles que preponderantemente atuam na divulgação e distribuição dessa produção, muitas vezes desdobrando-se como contadores de histórias, oficineiros e gestores culturais e, na ausência de um sistema literário plenamente constituído, transmutando-se em agentes comerciais. Outro modo de funcionamento da dinâmica literária infantil detectado por Esteves (2015) em seu estudo é a relação interessada entre escola e literatura, com a produção sob encomenda de obras que atendam à demanda pedagógica por textos ficcionais com propósitos educativos, nem sempre estão a serviço da complexificação da visão de mundo dos sujeitos e da problematização dos valores sociais instituídos. Mas, na contramão da dinâmica mais recorrente no Estado, não é por nenhuma dessas vias que Safira chegou à 5ª edição.
Blank atuou, historicamente, em oficinas literárias com internos de hospitais psiquiátricos e unidades profissionais, no entanto, não foi por essa via – o trabalho como oficineiro – que chegou às mãos dos leitores pequenos e às escolas. Também atuou como gestor cultural, por exemplo, quando foi editor das obras literárias contempladas por aquela que talvez seja a mais importante política cultural no Espírito Santo (os editais da Secretaria de Cultura do Estado) – e nunca se locupletou desse lugar em favor de Safira. Tem sido um formador de leitores por meio de rodas de leitura, junto à Biblioteca Pública do Estado, mas também aí não se explica o sucesso de seu livro; já que, de Blank, podemos dizer mais ou menos o que Mário de Andrade disse do amigo Carlos Drummond de Andrade, nas primeiras décadas do século passado: contrariam-se, ali, com ferocidade, uma inteligência aguda, uma sensibilidade afiada e uma timidez inaferrável. E eu acrescentaria ao insólito mosaico um quase ceticismo em relação à própria obra.
Isso porque, desde a publicação de Vírgula em 1996, tivemos de esperar mais de quinze anos para ver o nome de Blank em nova capa. A reedição de sua obra completa - até o momento – está sendo realizada, em dois volumes, pela editora Cousa: Os dias ímpares, lançado em 2011, que reúne seus cinco livros anteriores; e a novela infantil sob lupa. Sobre o volume de poemas, o poeta declarou algumas reservas críticas, mas, aparentemente desprendido da vaidade narcísica, optou por manter integralmente o originalmente publicado, como um gesto de respeito à própria história à história das obras. Já a novela infantil, em fase de acabamento, será lançada no próximo dia 15.
Um dos mais importantes poetas de sua geração no contexto literário do Espírito Santo, Blank sempre desafiou os leitores. Se nos intrigam em Estilo de Ser Assim, Tampouco, Pus, Um,, A Tabela Periódica e Vírgula a ironia, os cortes inesperados, as aproximações insólitas, as imagens originais, o ritmo irregular e contundentemente marcado - também não encontraremos na obra infantil um autor ameno e edulcorado. Não mesmo. Safira não é só um bom livro para crianças: talvez esteja entre os melhores já escritos e publicados no Espírito Santo – e aí a chave, quem sabe, para sua boa acolhida de público e crítica, desde a primeira edição, em 1991.
A obra não nega a inerente natureza formativa presente em toda obra para crianças – conforme já pontuado por estudiosos como Peter Hunt, na Inglaterra, ou Regina Zilberman, no Brasil –, contudo, não dá aos leitores, nem mesmo os pequenos, o trabalho pronto e acabado. Ensina, porque não moraliza – e saímos encantados com Safira porque ela pode ser tão ruim e tão boa quanto qualquer um de nós. É preciso que quem se disponha a ler disponha-se, igualmente, a participar da produção de sentidos que cooperem no processo formativo característico da literatura para crianças.
O narrador em terceira pessoa, em movimento complementar com as imagens produzidas por Mara Perpétua, já na primeira página, nos apresenta a Caneta Safira, como "magra e bonita"; na situação inicial, ficamos sabendo que ela, um dia, rompeu com sua praxe e acordou tarde, restando pensativa e cheia de perguntas. Está dada ao leitor a pista para aquilo que talvez encontre paralelo em toda grande narrativa: quando se faz uma fissura – mesmo que mínima – no ordinário, no habitual, no cotidiano é que se apresenta uma situação que nos obriga à problematização de tudo quanto restava assente, apaziguado, tranquilo.
Nas páginas seguintes, a narrativa vai espargindo elementos que permitam a identificação do leitor infantil com a protagonista: ela também não sabe escrever, era nova e estava aprendendo e, tal como qualquer criança, ao tentar produzir seus primeiros traços, só encontra a si mesma refletida no espelho. Outro elemento que propicia a provável identificação do leitor infantil com Safira é seu egocentrismo, já que ela se julga superior aos demais e rechaça aqueles que não lhe dão a importância que ela supõe ter. O leitor infantil, se capturar algo das ações da caneta Safira algo daquilo queé próprio do processo de reinvenção de si mesmo (ou seja, a detecção de uma visão ingênua e sua superação, a partir do embate com o Outro), pode ir realizando, no processo de apropriação do texto literário, a dupla natureza da literatura. De um lado, um mergulho na dimensão eminentemente subjetiva, pessoal, individual da existência; de outro, uma opção pela compreensão ampliada do mundo e pela inserção na vida social, via reflexão crítica e via ações de transformação da realidade.
Quando Safira se dispõe a considerar aqueles que atravessam seu caminho (como fez com o papel, seu amigo), a ser generosa (como foi com a almofada, a quem doa a coroa), a aprender com o outro (como ocorre quando a formiga foge sem explicação) é aí que pode, enfim, crescer. E esse processo de crescimento permite que ela aprenda que pode escolher aqueles a quem quer perto de si – não porque é arrogante e não julga aos demais bons o suficiente, mas porque tem o direito de se preservar (como o faz quando o mosquito sinaliza que quer "sugar" o seu "sangue azul").
No entanto, como qualquer possível leitor, Safira tem seus altos e baixos - o que torna o livro e a personagem ainda mais "humanos". Pouco adiante, na narrativa, resolve afastar-se de uma flor muito perfumada, porque, numa recaída de arrogância, continua supondo que seu sangue azul é melhor que a qualidade dos demais seres com os quais partilha a existência. E – por pura insegurança – desenha uma borracha, para apagar um gesto terno do lápis. No entanto, mais uma vez, o Outro (no caso, a borracha, que se recusa a participar do plano da caneta azul) ensina à Safira que, às vezes, a única atitude sensata é ficar "pálida de arrependimento", e mudar de atitude.
Pouco a pouco, a caneta Safira vai aprendendo que as pessoas têm suas fraquezas e diferenças o sangue não é só azul, é também vermelho...), e que precisamos, sempre, do Outro, que nos signifique, que nos ajude a produzir sentidona existência - um tinteiro que reponha nossa carga, quando nos sentimos vazios por dentro. Vai aprendendo, também, quando o tinteiro tropeça e mancha tudo de azul, que não adianta a gente cruzar os braços diante do inesperado: o negócio é compreender que o acaso pode ser o pontapé de um céu estrelado.
Por fim, Safira aprende a lição mais bonita: a única coisa boa de ter sangue azul é poder grafar, em si mesmo, em tudo o que nos embala, enfim, no mundo, as palavras que dão sentido à nossa vida. No caso de Safira, em gesto de rebeldia, o que ela escreve escondido de sua mãe no lençol, para ter sempre consigo, foi a palavra "amigo".
Todas essas ilações, da parte de quem lê, são um trabalho de mergulho no texto em busca daquilo que, para o leitor, é o sentido possível, já que a construção do texto reitera a marca do insólito, do inesperado e do alegórico que atravessa todo o restante da produção literária do autor. E é desse modo que o livro de Sérgio Blank nos emociona e nos convida ao pensamento – enfim, fazendo aquilo que de melhor um livro para crianças pode fazer: nos tornar mais humanos, no sentidomais azul (e agora sim: mais nobre) que a palavra pode ter.
[Por Maria Amélia Dalvi in Caderno Pensar - A Gazeta, 12/12/15]
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DIA DAS MÃES. DIA DA CRIAÇÃO Quando eu era pequeno via seu imenso rosto terno debruçado sobre o meu aberto como uma laranja. Era o ...
Dois textos de Gilbert Chaudanne
DIA DAS MÃES. DIA DA CRIAÇÃOQuando eu era pequeno
via seu imenso rosto terno
debruçado sobre o meu
aberto como uma laranja.
Era o firmamento de que universo?
O de um aconchego metafísico
onde as estrelas cantavam
como na cosmogonia de Pitágoras.
Eu não era nada, apenas
um pedacinho de carne que queria leite
e era todo para minha mãe
e não sabia que era um pequeno rei.
Quando me lembro da senhora, mãe,
vejo assim como uma imensa Nossa Senhora,
o doce e protetor porto dos meus medos
e que continua me dando aconchego.
Há mais mistério na mãe que em todo o universo
porque a mãe é o próprio universo e mais que isso
ela é o leite do universo
e é por isso que existe a Via Láctea.
Mas disso a Senhora tira nenhum orgulho
sua humildade transcendental pode se comparar
à humildade da vaca diante do Bezerro
e não é por acaso se no Presépio
havia um boi e um burro.
A mãe não é a inteligência do Doutor.
A mãe é a inteligência do coração e da carne
e como um porvir aberto como uma Rosa aberta
e com o perfume evanescente dessa Rosa.
Mãe, estou aqui numa casa especializada
onde somos bem tratados, com amor,
mas o amor que você me deu
mas o amor que você me dá
tem um cheiro de eternidade
que, como tal, não acaba nunca.
O CAPS PARA VOCÊ REPRESENTA
Primeiro, o CAPS não tem o aspecto de um Hospital — de um espaço fechado sobre a nossa própria loucura. Porque a loucura é talvez um fechamento do espírito sobre si.
A única coisa que lembra o fechamento são as grades, lá embaixo.
Senão se trata de uma casa igual a muitas e não uma caserna de órgãos — como o hospital.
O espaço mais aconchegante é o quintal,
com as árvores
e sua força de vida
sua vontade de viver
junto a presença ontológica dos rochedos um contato como se o homem fosse mais forte que ele
o homem do quintal
o outro inteiro com a forma de um falo
antigas pedras de que sacrifício?
O sacrifício da razão
nos altares dos Deuses Naturais?
Faltam alguns Bichos
nossos velhos companheiros da Arca de Noé
já que estamos numa outra Barca,
companheiros — querendo ou não.
Irmãos querendo ou não
uma tripulação de Navelouca
cercada por oficiais (médico, psiquiatra,
psicólogo, psicanalista) que não mandam
na gente mas tentam amenizar a nossa
travessia
no mar das trevas
para encontrar, depois dessa odisséia,
a feliz Cidade, a cidade da Vitória,
o reencontro com a clarividência
com um pouco de razão
(o excesso de razão também é loucura)
e sobretudo reencontrar a faculdade
de poder se abrir
como uma flor para o Espírito Santo do Mundo,
se abrir para a alma do mundo
como a orquídea capixaba se abre
para o beija-flor.
Nós estamos aqui para aprender
a beijar as flores
[Textos escritos por Gilbert Chaudanne durante sua permanência no Centro de Ajuda Psicossocial da Secretaria de Saúde da Prefeitura Municipal de Vitória, como participante “honorário” da oficina dirigida por Sérgio Blank, no ano de 2001. Reproduzidos com permissão do autor.]
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Gilbert Chaudanne é artista plástico e escritor. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Por que ler os clássicos, nos indaga Calvino com a genialidade e a simplicidade dos que sabem, dentre outras coisas, que toda releitura é u...
Vírgula, de Sérgio Blank
Por que ler os clássicos, nos indaga Calvino com a genialidade e a simplicidade dos que sabem, dentre outras coisas, que toda releitura é uma leitura de descoberta como a primeira e que essa descoberta pelo leitor pressupõe amor. Pergunto-me, então, num tempo de adversidades e contrariedades, por que ler poesia e, mais particularmente, por que reler o livro de poemas intitulado Vírgula, de Sérgio Blank. Porque a sua poesia tem a graça e a força particularíssima de fazer-se renovar sempre como experiência de fruição e de reflexão sobre a condição humana.
Logo de início o poeta se apresenta. Desenhada em silêncio e sangue, sua letra indicia a consciência e a pose inalienável de seus versos, e, como marca, inscreve neles o seu canto e a sua alma.
A persona lírica se materializa como "redundância escrita a lápis" e vagueia sombriamente pelas ruas e morros e telhados da cidade, enquanto perscruta o coração. Solidão e melancolia sempre à espreita, grita com a voz do silêncio a sensibilidade do poeta e suas circunstâncias, enquanto segue mapeando a sua, a nossa condição.
Brincando com um universo aparentemente banal e trivial, o poeta tematiza e realça a singularidade da solidão. Mas o leitor, que faz coro às muitas vozes sob a égide de Saturno, compartilha, na polifonia de seus versos, a universalidade desta que é uma das mais humanas das manifestações da condição humana: a solidão. Define-a como palavra-sentença, cuja força comporta afirmativamente a multiplicidade de sentidos e a consciência lúdica do poeta de que a vida, como armadilha, é feita de "penas e perdões".
Por entre rimas, aliterações e assonâncias, o leitor de rende à profusão e ao inusitado das imagens que, plenas de cor e movimento, metaforizam quão fugaz é a felicidade. O leitor se descobre cúmplice na paixão pela palavra. A pesquisa em dicionário, pretexto para a criação, mostra um poeta-arqueólogo da linguagem. E nessa arqueologia, marcada por fina ironia, o poeta sublinha a dor para expurgá-la, como nos versos em que, aproximando o humano do divino, transcende a dor ao identificar-nos "— com sagrado-coração-de-jesus sangrando flechado e escarlate".
O resultado, então, é um estado de poesia. Nesse estado, melancolia e contemplação aguçam a nossa perplexidade diante da inexorabilidade da existência. Os "sonhos datados", os "anos colecionados", o "calendário fixo no prego" denotam a passagem do tempo, a vigência impiedosa de Cronos.
A despeito de tudo, inclusive da sutil ironia dos versos de Sérgio Blank, percebe-se, num jogo, entre presença e ausência, uma alternância dos temas: amor e solidão se entrelaçam "em qualquer dobra da vida" e guardam o inesperado feito "dobradura em canto de página". A analogia entre a vida e literatura enreda o leitor pela opacidade dos limites entre realidade e ficção. Imerso nesse mundo fantasmático, aparece um poeta-leitor — "nevermore boulevard com casuarinas que choram ao vento à sobreposse contra a minha vontade a ventania põe cisco nos olhos que fitam os umbrais de edgar allan poe" — que ilude o sentido de realidade, logra a dor e finge fingir "que é dor a dor que deveras sente". Com isso torna-se imprecisa e tênue a fronteira entre o real e o imaginário.
O poeta vagueia e perscruta. A cidade lhe responde, indiferente, com os ecos de sua própria voz. Nunca se sabe quem ou o que está à espreita. As sombras e as esquinas desta cidade solitária as vemos pelos olhos do poeta, ziguezagueando por suas vielas em horas noturnas a espreitar pensamentos e sonhos. Como o sonho no poema "nebeneinander — a palavra alemã em pronúncia fria", que lança para perto mas ainda assim um pouco mais além o objeto do desejo, colocando na vida e no poema "ao lado um do outro [...] o município em que reside o amor".
Ao se alternarem amor e solidão, prevalece ao final de alguns poemas, e como fim de toda a poesia, a imagem da busca, ou do plantio do "amor — perfeito". Como a de quem, por seu olhar soberanamente humano, "espreita estrelas atrás das nuvens pesadas". Porque, no movimento ininterrupto das ondas do mar que vêm e vão, o desejo "estala às escondidas" e revela a presença de Eros.
Vida e escritura se misturam e uma retira da outra a sua matéria. Papel e prantos são a própria matéria do poema e de sua fusão e metamorfose nasce sempre o traço delicado da vida. Do imaginário do poeta ao "risco exato" do poema ganhamos nós, leitores, a própria poesia, porque o que conta mesmo, a despeito da dor e da falta inerentes à condição humana, é que "a traça no ofício do osso faz a festa".
[In A Gazeta, Caderno Dois, 21 e 28 de setembro de 1997.]
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Sérgio Luiz Blank, jovem autor de vinte e quatro anos, edita seu terceiro livro de poemas, Um , após o promissor Estilo de ser assim, tampo...
A poesia dark de Sérgio Blank
Sérgio Luiz Blank, jovem autor de vinte e quatro anos, edita seu terceiro livro de poemas, Um, após o promissor Estilo de ser assim, tampouco, de 1986, e o contundente Pus, de 1987. Penso que ele seja, ao lado de Valdo Motta (cuja hibernação burocrática no DEC impediu-lhe a criação), os melhores nomes da jovem poesia capixaba. Por quê? Talvez porque retratem com precisão o clima "dark", estilhaçado e niilista do fim deste século, mais próximo de um pesadelo orwelliano que de um sonho de poeta pescador. É claro que não foram feitos para agradar à classe média, conservadora, consumista, dona de Monza e televiseira dos nossos dias globais, e muito menos à burguesia Odete Reytman, que passa as férias em Búzios ou, bem menos chique, Guarapari.
Hoje, atividade marginal, a poesia não é mais feita para as récitas de saraus, os chás acadêmicos ou festas de formatura do Colégio do Carmo. A poesia contemporânea realiza o que Manuel Bandeira propusera em sua "Poética": "o lirismo dos loucos, dos bêbados, dos clowns de Shakespeare, um lirismo libertação".
Mas quais são as marcas que constituem a lírica moderna de Sérgio Blank? Se os seus poemas falam dos chaplineanos tempos modernos, como o fazem? Que relações apresentam com a lírica tradicional? Em primeiro lugar, o subjetivismo sentimental e a musicalidade dos versos, características da arte lírica tradicional, são retomados numa postura pós-moderna. Os poemas de Sérgio refletem o homem atual: esquizoide, permeável a tudo, demasiadamente próximo da destruição, promíscuo a todas as experiências, transformando-se numa pura máquina desejante, num revolucionário esquizofrênico: "o meu estado é este / o interior do meu estado é este / [...] o meu estado não será o seu / o seu estado é o interior do seu espírito / e o seu santo é o século que não creio" ("O Estado", p. 53).
Literatura fragmentária, repleta de citações, descontínua, polissêmica, a poesia de Sérgio Blank é alegórica, em contraste com a estética clássica, que é simbólica. Ela é muito mais metonímica e hiper-real que metafórica ou surreal: "me sinto / fora de foco / in loco / foto pose finale / no hotel del leito louco / outra lacraia sem apoio" ("Epitáfio Dark n° 1", p. 19) ou: "tem por lucro & calamidade o leviatã primo no caos / aquático e réptil aquele das febres quartã e octã / que se desdobram de dor qual camaleão de cor acre" ("Listras rosas no branco", p. 23).
"Desde que sei o inferno em los outros todos / o belo e o sublime não fazem jus ao maniqueísmo tratado por moléstia" são versos de "A bela e a fera", p. 27, talvez o seu melhor poema e que melhor retrate a condição pós-moderna. Citando Dante, Lobão e Cazuza, a Bíblia, Sartre, O. Wilde, Castro Alves, Gil Vicente, Foucault e inúmeros outros signos-estilhaços da realidade, Sérgio Blank reconstrói a nebulosa sociedade pós-moderna, os "jogos de linguagem", citados por Lyotard, heteromórficos, sem regras que os disciplinem. "A bela e a fera" é um poema que faz uma alegoria ao ser social pós-moderno, um fervilhar incontrolável de multiplicidades e particularismos, "pouco importando se alguns vêem nisso um fenômeno negativo, produto de uma tecnociência que programa os homens para serem átomos, ou outros um fenômeno positivo, sintoma de uma sociedade rebelde a todas as totalizações — ou o terrorismo do conceito, ou o da polícia", segundo Rouanet.
Se os versos de Sérgio Blank incomodam ao leitor, também o fizeram todos os que ousaram antecipar o seu tempo, com sua arte transgressora. Whitman, Baudelaire, Poe, Kafka, Oswald e Drummond são exemplos não muito distantes. Há vários outros, escritores de cabeceira de Sérgio Blank. Resta aos incomodados ler a ironia de "O condenado e o nada", com epígrafe de Valdo Motta e tudo: "Há de enfrentar a nado o nada por enfim dar a lugar nenhum". "Os incomodados que se mudem / que se meçam se matem / os condenados que se danem / danifiquem uns aos outros / que se dêem ao luxo de se lixarem / os condenados se destruam uns e outros / ao cubo ao quadrado de cabo a rabo / pois eu (meu bem, meus queridos, meus amores) / eu pois desisto do custo desta festa / o curso deste rio raso / discurso dorsal de dor e sombra / onde me jogo descalço com pedras no percurso / corsário ou cárcere? indaga a festa" (p. 43).
Ironia, deboche, desdém, agressividade são marcas da juventude. Feitas com arte, dão um novo conceito à poesia: "As melhores palavras em sua melhor ordem." Nem sempre, Coleridge. As piores também. "A arte de excitar a alma." Por que excluir o corpo, Novalis? "Toda verdadeira poesia é uma visão de mundo", Eliot. Que mundo? O seu? O do poeta? O do leitor? Nenhum deles? Apenas Um, o da poesia, afirma Sérgio Blank.
[In Estudos críticos de literatura capixaba, Vitória, 1990.]
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Francisco Aurelio Ribeiro, natural de Ibitirama, ES, nasceu em 1955. Possui longa experiência na área de Ensino e Pesquisa, professor em diversas Instituições de Ensino, públicas e privadas, em níveis fundamental, médio e superior (Graduação e Pós-Graduação). Autor de grande número de publicações de pesquisa na área de literatura, e nos gêneros infantil, crônica e conto. Foi Secretário de Cultura da UFES no período de 1992 a 1995 e responsável pela coordenação de cursos em nível de Especialização e Pós-Graduação. Pertence ao Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e à Academia Espírito-santense de Letras, da qual foi presidente em três mandatos.
ANTES PORÉM Reinaldo Santos Neves Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo/Ufes A princípio, cidadão romano era...
Antes porém
ANTES PORÉM
Reinaldo Santos Neves
Núcleo de Estudos e Pesquisas da
Literatura do Espírito Santo/Ufes
A princípio, cidadão romano era aquele que nascia em Roma e fim de papo. Lá uma vez que outra, algum corpo estranho era contemplado com o título e equiparado à tribo de eleitos. Foi o caso, sei lá por quê, de um certo Paulo de Tarso, que passaria depois à História como São Paulo. Graças a isso, quando condenado à morte por escandalosas práticas subversivas, teve o privilégio de ser decentemente executado por decapitação, enquanto um tal de Simão Pedro (conhecido, mais tarde, como São Pedro) foi, pelo crime mesmíssimo, pregado numa cruz como mero judeu que era e nada mais.
Mas como o mundo dá muitas voltas, dia chegou em que, por motivos políticos ou quaisquer que fossem, estenderam-se título e direitos a todos os cidadãos do império vasto império. O que se viu então foi cidadão romano de tudo que é tipo, cultura, e cabelo, grande parte sem saber de latim uma só palavra basta.
Mutatis mais ou menos mutandis, é o que ocorre nos dias de hoje em dia no império romano da literatura — mais especialmente no da poesia. Qualquer gato pingado por aí pode ser cidadão desse império. Basta querer. Basta achar que é. Afinal, cada vate capenga (como diria o outro) hoje é seu próprio e principal crítico. Seu próprio e principal avalista.
Restrições, requisitos, peias — nada disso há mais. Rima e métrica, por exemplo, que só serviam para atrapalhar a vida dos poetas por natureza, há muito que foram para o vinagre. Não foi o bastante. Avançou-se mais nas conquistas. Já não é preciso nem, como até pouco tempo atrás, mesmo conhecer com profundidade a língua materna para subvertê-la. Pra que perder tempo? Língua é moeda corrente — todo mundo usa. Vamos logo ao que interessa, que poesia tem pressa — que nem diarréia.
E o conceito de qualidade literária? Já foi também pelo ralo, e já foi tarde. Quantos milhares de poetas inspirados, engajados, verdadeiros mártires da poesia-sem-grilhões, padeceram horrores, nas penas sádicas de críticos pervertidos, por conta dessa abstração, dessa falácia que é o conceito de qualidade literária? Que que é isso, afinal? Puro casuísmo literário engendrado pela classe dominante para condenar à vala comum verdadeiros gênios da poesia.
E agora? "Agora tudo é novo e ao longe nos conduz", pra citar Fernão Ferreiro. Com a derrocada da qualidade literária, estamos em outra. Nada é bom, nada é ruim: tudo é poesia. Instaurou-se uma nova ordem, que veio para ficar, como a cocaína e o terrorismo: a valetudização da poesia.
Ocorre, no entanto, que até mesmo o que poderia ser visto como a negação da arte poética e o início do seu processo de extinção abre um largo horizonte para uma poesia vital e vitalícia. Mesmo abolidos rima, métrica, discurso articulado, forma fixa e até ritmo, mesmo mantendo-se como única norma o massacre das normas, mesmo levando-se a esculhambação do texto até às penúltimas conseqüências, tal é a capacidade de criação poética do ser humano que, ainda assim, a um passo ou dois do alerta vermelho, há quem produza poemas de se tirar o chapéu por sua evidente elaboração de linguagem (ou antilinguagem) e pela capacidade de renovação, por exemplo, imagética. O vale-tudo vale a pena, se a alma não é pequena.
É o que me parece ser o caso de Sérgio Blank: um caso de alma grande.
Pra começar, a relação de Blank com a poesia é umbilical. Ou, se essa metáfora é chinfrim, tentemos outra: Blank se agarrou à poesia como tábua de salvação do quotidiano naufrágio que é a vida humana. Blank fez e faz poesia como alternativa contra ir a pique.
A rigor, pelos padrões acadêmico-letristas tradicionais, nem estaria ele devidamente credenciado ao exercício da profissão. Não teria direito à carteirinha de sócio-proprietário do Clube da Poesia. O ninho em que nasceu e se criou não lhe legou o interesse pela poesia. Para sua família — toda ela, com muita honra, descendente de imigrantes —, poesia não é coisa que se plante, que se colha, que encha barriga de ninguém. No ambiente doméstico, Blank equivale a um mutante cultural. É um dissidente, como o filhote de Buddenbrook que ignora a tradição burguesa dos ancestrais hanseáticos para se dedicar de corpo e alma a algo tão sem importância como a música.
Seus (de Blank) estudos formais foram, como sóem ser os estudos oferecidos de uns tempos para cá pela escola brasileira, precários — do tipo pegar ou largar. Não teve, tampouco, um puto que lhe orientasse as leituras, que foram aquelas que ele próprio se prescreveu, quase a esmo, dentre os livros em que foi possível deitar olho e mão, sobretudo na condição de rato — rato de bibliotecas.
Em contraposição a essas aparentes desvantagens, porém, Blank tinha os olhos sempre abertos para o mundo em algaravia à sua volta — algaravia que é o tema central de sua poesia —, a comichão do poema em suas mãos e uma sensibilidade que vale por um sétimo sentido.
De onde lhe terá vindo isso? Sabe Deus. Dons como esse caem do céu e batem no coco de um cristão e — plonk! — vai ser gauche na vida, Sérgio.
Fez-se poeta sozinho; por seu próprio esforço; quebrando a cabeça e a cara. Contra todas as probabilidades, inventou-se orfeu. Está aí, poeta feito: self-feito.
A leitura de um poema de Sérgio Blank sempre me deixa uma impressão específica acima de tudo: a de que se trata de um poeta obcecado pela palavra. Ora, direis, não o são todos os poetas de boa vontade? Não nesse nível de furor, de preocupação, de mania: Sérgio Blank é um logomaníaco.
Qualquer poema de Sérgio Blank é um thesaurus léxico. Salta aos olhos a sua opulência vocabular, em contraposição a uma indigência sintática que chega, às vezes, via indiferença do autor, às raias do telegráfico, e até do inarticulado.
O poeta vota à sintaxe, talvez, mais do que uma indiferença: vota-lhe um preconceito. Trata a sintaxe, na melhor das hipóteses, como um mal necessário, um líquido amniótico em que as palavras respiram e vivem. Por isso reduz a sintaxe à expressão mais simples — um fiozinho condutor. A pontuação — esse feijão-com-arroz de qualquer texto — é quase totalmente abolida. Sobra uma vírgula aqui, outra ali — pudera não, num livro com o nome que tem — e travessões pra diabo, num emprego quase desvairado, o que contribui não exatamente pra prejudicar mas pra multiplicar as possibilidades de leitura do texto. Ponto — como também esse hibridismo que é o ponto-e-vírgula — é sinal que sofre uma segregação tenaz: aqui não entra. Os versos de Sérgio Blank, assim, não começam onde começam nem terminam onde terminam.
É tudo flutuante. Tudo sargaço. E nesse mar de sargaços o leitor que navegue como puder. Se vire. Pois se pra bom entendedor meia palavra basta, o que se pode pretender mais? Palavra é o que não falta nos textos de Sérgio Blank.
Sim # 1. Ouso dizer que um poema de Sérgio Blank é uma colcha de retalhos, em que cada retalho — cada palavra — vale tanto, ou mais, que a colcha como um todo; o que autoriza imediatamente, é claro, a chamar essa poesia de gestáltica.
Sim # 2. Com relação ao vasto corpus vocabular da obra de Sérgio Blank, a impressão que me dá é que este poeta se avocou a missão de reescrever o dicionário à guisa de poesia. Repare bem que as palavras-chave dificilmente se repetem de um poema pra outro: só servem, como chaves que se prezam, pra abrir — ou fechar — a porta daquele poema.
Sim # 3. É quase como se só pudessem ser usadas ali e então, e em nenhum outro lugar ou tempo. Seu destino — está escrito — é aquele. Daí o cuidado na escolha da palavra e do contexto. É ali ou nunca.
E por falar em contexto, não há, nos poemas de Sérgio Blank, nada aleatório nem inconseqüente. Esse poeta não faz poema pelo processo de shuffle. Há sempre uma irmandade entre as palavras, revelada pela livre-mas-nem-tanto associação, pela etimologia, pela aliteração.
Este é um livro pequeno. A rigor, pela convenção da Unesco, nem teria Sérgio direito a chamar este livro de livro porque não atende à exigência numerológica das famosas favas contadas: 49 páginas. Mas, pra quem não dá a mínima pra esse tipo de regra, até um só zinho poema de Sérgio Blank, desde que devidamente impresso em separado, pode ser visualizado e recebido como livro, assim como — segundo autoridades mais antigas e abalizadas que a Unesco — pingo também pode ser letra.
Importa é a importância do trabalho. A seriedade com que Sérgio Blank o desenvolve — seriedade que o leva exatamente a publicar um livro com apenas 48 páginas e não 49 nem 1.049, como fazem outros poetas menos talentosos e menos respeitadores do saco alheio. Importa, ainda, a opulência vocabular de cada texto. O inimitável sérgioblankismo do verso. Isso. Esteja certa, leitora, certo, leitor, que poema de Sérgio Blank é coisa tão inconfundível quanto — se me permitem a símile jazzística — o piano de Thelonious Monk ou o clarinete de Pee Wee Russell. Tem a impressão indelével de sua digitália. Tem o selo de suas idéias em ziguezague (pra usar a expressão de Mendes Fradique). Tem o cheiro e a mancha de seu suor. É uma espécie de sudário em que transparece, em marca d'água, o rosto do poeta com seus louros de solidão e azia.
Que são, aliás, seus temas de estimação. A solidão humana e o aziago desespero por ela gerado, o vazio, a falta de valores, ideais, perspectivas — e de fraternidade. Somos todos filhos de Eva — levamos conosco a marca de Caim. Matamos o outro e, matando o outro, matamo-nos persistentemente a nós mesmos.
A obra de Sérgio Blank, portanto, é uma visão koyaanisqátsica do mundo, um tratado de desesperança em que a poesia é a última que morre.
Curiosamente, a expressão dessa desesperança se faz mais contundente pelo vasto manancial analógico dos poemas. Estes poemas formam um diretório de referências extraídas do imenso legado espiritual do homem — cultural e artístico — desde as cavernas de Altamira até as cavernas de hoje.
Uma pergunta subliminar parece pulsar nas entrelinhas dos poemas: como pode o homem, criador de tanta riqueza espiritual, ser a bosta que é e que tende a ser cada vez mais a cada passo que dê pra amanhã?
Esse é o problema. Sua solução se desdobra numa infinita múltipla escolha, em que nenhuma das respostas está certa, e nenhuma está errada.
Não é à toa que uma das palavras-chave destes poemas seja ponto de interrogação.
Sim # 4. Eliot que me perdoe, mas é assim que há de terminar o mundo: nem num sussurro, nem numa explosão; mas simplesmente num — ? —.
Post Scriptum
Mas é uma poesia difícil, esta de Sérgio Blank — alguns direis. Difícil? Como não e por que não? Todo discurso é, por natureza, enigma. Toda comunicação, fadada ao desconcerto. Eu digo alô, você entende adeus. Ele escreve te amo, ela lê me dá. Clamamos inocência; somos condenados.
E a poesia então — a poesia, cuja missão é fazer-se difícil or die, fazer-se charada ou nada — e a poesia então? A poesia existe pra ser decifrada. E decifrada, sim, não pela cartilha do autor, que, mero criador que é, nem conta muito, mas pela cartilha do leitor, que é recriador, e é legião. Que, porque lê, porque se dá o trabalho e o prazer de ler o poema, tem legitimada a sua leitura, a sua interpretação, que, por mais imbecil, nunca será imbecil, mas uma visão a mais, uma versão a mais, dentre tantas ad infinitum possíveis.
E digo mais: nem creio, aliás, que a poesia deva necessariamente ser decifrada pelo modus faciendi acadêmico, lógico, formal, na base do isto é, do ergo, do como dizia Paracelso. Pode-se ler um poema como quem bebe absinto; como quem ouve Pee Wee Russell supramencionado; como quem dedilha os amados cabelos da Outra Pessoa; como quem aspira, lá em cima daquele morro, o aroma de um pé de manacá. Sensoriamente, enfim; e não censoriamente, não.
Taí. Simples. Poesia é comestível, digerível e biodegradável. Elevemos o nível. Poesia é hóstia. Tomai e comei, tomai e bebei, este é o corpo e o sangue — e outras coisas mais — do poeta Sérgio Blank. Lede com fé. Estareis salvos, ainda que por um segundo diminuto, da mesmice que assola Europa, França e Vitória.
[In Vírgula, Cultural-ES, Vitória, 1996.]
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Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
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