Safira: um retrato em branco e azul
Uma caneta-tinteiro acorda. Não sabemos se de “sonhos intranquilos”, como Gregor Samsa, mas tarde, simplesmente. Despertando ganha uma vida, uma personalidade e uma história.
Ora, não seria mesmo animismo a forma mais atávica de se conceber a criação? Quantos de nós, quando crianças em processo de construção de uma consciência psíquica do mundo, como pequenos demiurgos sem muito barro a dispor, não brincamos de faz-de-conta com nossos lápis, borrachas, tesouras e afins? Pois são de processos criativos que se trata o livro “Safira”, publicado originalmente em 1992, do poeta Sérgio Blank, a história girando em torno dos percalços existenciais da personagem-título.
Blank empresta à sua caneta egocêntrica um pouco de seu olhar descobridor sobre o banal para comunicar ao público infantil sua poesia, tomando-a como epicentro da construção de metáforas singelas sobre vaidade, humildade e amizade. As linhas precisas que compõe a história denunciam mais uma vez a vocação do autor para o ofício de poeta. Ainda que voltadas, no caso, para a prosa, suas palavras ganham sonoridade, sabor e, certamente, cor. Autor de cinco livros de poesia para “gente grande”, “Safira” é sua primeira incursão pelo gênero infantil. E aqui o “poeta de alma grande”, como disse Reinaldo Santos Neves, demonstra mais uma vez saber o que faz. Não por acaso, o livro chega este ano à sua sexta edição, com previsão de lançamento neste mês de outubro pela editora Formar.
Com escolhas sintáticas que se aproximam do universo frasal de uma criança em tenra idade, o texto mostra sua força. O uso consciente de orações coordenadas jocosamente objetivas, de uma adjetivação pueril como em “era uma caneta muito magra e bonita”, “ficou toda cheia” e “olhar grande” são alguns dos recursos que Sérgio utiliza como contrapartida estética de uma subjetividade infantil em formação. Já reparou como criança sempre sabe o que quer? É isto, é aquilo, ponto. E cada frase de Sérgio também. “E ficou noite.” E ponto.
As metáforas são táteis. É na consciência sensível das manchas, traços e tonalidades que Safira estende o sentido de sua existência até descobrir a palavra. Num tempo em que hegemonia é a da imagem fácil no que tange ao mercado de livros destinados à criança, onde se amontoam galinhas e florzinhas em alto-relevo, botõezinhos que fazem som e outras sandices que deixariam André Breton de cabelo pé, Blank consegue concentrar a potência da expressão no texto. Esqueçam o freak show, estamos falando de literatura aqui. E isso é brinquedo só nas mãos de quem sabe brincar.
Nesse sentido, as ilustrações de Mara Perpétua acertam justamente pelo comedimento ao não reterem a atenção do objeto-livro para si. Emulam com competência o traço deformado de quem de fato começa a descobrir as formas no papel. As figuras humanas parecem ter vindo do mesmo país que o Abaporu. Quase sempre tímidas nos cantos das páginas, têm como “cenário” constante a imensidão do branco que tanto fascina a protagonista. Blank is Blank. E azul. E um tantinho de vermelho ao final.
A própria narrativa, em respeito à sua proposta primordial, recusa a ambientação linear. Safira defronta-se com diversas personagens à medida que os concebe. Seu único movimento, em verdade, é o da descoberta.
[Por Eduardo Madeira, in Caderno Pensar - A Gazeta, 14/10/2017]
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