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Cabotagem poética Todo poeta possui uma paisagem. Paisagens também se consolidam como nutrientes temáticos dos poemas, seres de pal...




Cabotagem poética


Todo poeta possui uma paisagem. Paisagens também se consolidam como nutrientes temáticos dos poemas, seres de palavras e de sentimentos que intentam expressar a realidade em toda sua poliédrica manifestação.

Baudelaire cultiva sua paisagem poética vagando pelas ruas dispersas de Paris; Fernando Pessoa se abeira no cais do rio Tejo para observar Lisboa pelo foco das metáforas; Jorge Luís Borges cadencia o fervor de Buenos Aires nas praças e avenidas de seus versos inimitáveis; Carlos Drummond de Andrade, no iluminado relâmpago de um poema, emoldura para sempre as férreas calçadas de Itabira, e Augusto dos Anjos, na solidão de seus passos taciturnos, caminha, ao ritmo sombrio e macabro, pelas pontes históricas de Recife ou pelos canaviais noctâmbulos do velho engenho Pau d`Arco.

Cada poeta, com a sua voz. Cada voz, com o seu canto. Cada canto, com o timbre particular da verdade e da beleza de uma poesia germinal que convoca a paisagem geográfica de suas experiências vividas para o mágico retábulo do poema.

É dentro desse viés de compreensão que começo a assimilar os versos livres de um poeta como Jorge Elias Neto (1964), capixaba, na coletânea intitulada “Cabotagem”, em edição da Mondrongo, Ilhéus-Itabuna, 2016, sob regência do também poeta Gustavo Felicíssimo.

Digo “coletânea”, se penso cada poema no território isolado de sua autonomia semântica, lido um a um, assim por partes, com direito às paradas táticas para o exercício da reflexão e para a fruição individual do prazer estético.

Considerando, não obstante, o diálogo interno que se opera de texto a texto, e, aqui, tomados pelo critério simbólico da paisagem, nada me impede de afirmar que estou diante um poema único. Um “macrotexto”, para me valer da expressão de Maria Corti, centrado na captura do lugar, o lugar físico, topográfico, mas também o lugar memorável das “imagens amadas”, como diria Gaston Bachelard, disposto em mosaicos especiais que se inscrevem no plano real da recordação, portanto, na substância lírica, mas, sobretudo, na armação configurativa das virtualidades verbais do poema.

Este “Cabotagem” é uma viagem por dentro da paisagem da ilha de Vitória, movida pela corrente emocional e evocativa do eu lírico que, firmado na cadência de seus versos, percorre, texto a texto, os locais da cidade enquanto motivos poéticos, e desse reencontro, que se materializa, a princípio, no terreno concreto e objetivo, brota, na limpidez da linguagem, as imagens estéticas que fazem da paisagem uma experiência subjetiva, particular, única, intransferível, que é exatamente a experiência do poeta, daquele olhar só seu, a criar e recriar, já nos arcabouços da sensibilidade e da imaginação, uma Vitória toda sua, enfim, uma cidade que existe a partir da observação, mas que é mapeada sobretudo por aquela “fantasia ditatorial”, ou seja, fantasia criadora, a que se refere Rimbaud.
Ponta Formosa, ladeira do Sacre Coeuer, a Terceira Ponte, o Convento da Penha, o Manguezal, o Penedo de 136 metros de altura, o Cais do Hidroavião, a Capela do Carmo, o Britz Bar, o Horto, a Catedral, o Iate Clube, o Triângulo das Bermudas, o Status Motel, o Cine São Luís e o Aterro são, entre outros locais, acidentes e monumentos, os elementos que compõem a tessitura dos poemas, numa espécie de roteiro sentimental que, pela natureza mesma de sua força poética, transcende os limites convencionais dos roteiros históricos e turísticos, restritos, não raro, ao mero apelo pragmático.

Na poesia de Jorge Elias Neto, o que poderia ser apenas patrimônio artístico ou valor cultural para visitação, converte-se em sutileza reflexiva, em percepção surpreendente, em qualquer coisa de inaugural e de idiossincrático que tende a desmobilizar o olhar do leitor, redimensionando-o para outras possibilidades de sentido. Observe-se, por exemplo, o pequeno poema “Capela do Carmo”:

“Primeira hóstia
entre tantas roubadas
 e um brilhante que não furtei
por temer a Deus”.

Nesta mesma direção, dentro, no entanto, de uma clave mais discursiva, no poema “70 metros”, vejamos alguns versos:

“Bom sentar aqui...
Gera um desvio do olhar;
um torcicolo súbito
diante da emanação do absurdo.
....................................................................................................
Minha mãe guardou meus cachos de anjo,
cortados,
abençoados...
Mas os anjos são lívidos
demais para serem humanos...
......................................................................................................
(A eternidade é uma metáfora que já não me ilude.)
......................................................................................................
Sacia-se a fome de ossos
dos Oceanos.
......................................................................................................
Mas, por ora,
contenha as lágrimas, leitor.
Não se trata da vida do poeta.
Por mais que insista,
a vida é mais irônica
que as palavras”.

Na verdade, nesta dicção poética, conta mais pensar acerca da paisagem, tentando captar seus meandros ocultos e suas regiões inomináveis, mais que o descrevê-la sob parâmetros de uma linearidade fotográfica. À paisagem se vincula, portanto, a certa temperatura emocional, aderindo, por sua vez, aos comandos invisíveis da memória e da imaginação, evidentemente para que o que preexiste enquanto matéria dispersa, no âmbito do estado poético, possa se transmutar em operação expressiva, em organização especial da linguagem, isto é, no poema.
Com “Cabotagem”, Jorge Elias Neto continua maturando seu ofício poético e acrescenta mais um título a sua obra, depois de “Verdes versos (2007), “Rascunhos do absurdo” (2010), “Os ossos da baleia” (2013) e “Glacial” (2014).




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Hildeberto Barbosa Filho, autor, nasceu em 9/10/1954, na cidade de Aroeiras, Estado da Paraíba. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba licenciando-se também em Letras Clássicas e Vernáculas (UFPB), sendo também mestre em Literatura Brasileira, pela UFPB. Atualmente é professor de  Literatura Brasileira na Universidade Federal da Paraíba. Crítico literário, escritor, poeta e jornalista.

O contorno só interessa aos apressados Afinal, é chegado o tempo em que o silêncio e a contemplação passaram a fazer parte do comportam...


O contorno só interessa aos apressados


Afinal, é chegado o tempo em que o silêncio e a contemplação passaram a fazer parte do comportamento de um transgressor. É o que conclama a balburdia multimidiática de nossos dias.

Na verdade, nada mais efêmero que o conceito numérico dos dias, um ou dois dígitos não preenchem o vazio do homem pós-moderno.

E os “vencedores” propõem: Falemos do caos binário, já que se tornou “feio” falar do Sol e da Lua.

O choque. O homem e o tempo, com seus instantes vendidos em módulos. Uma overdose de estímulos de duração efêmera. Eis a droga que carece ser discutida, esta que alimenta o corpo fluido e seus receptores cerebrais carentes de imagens.

Mas deveríamos contestar a sutileza do instante e a beleza do efêmero? Faz-se necessário então conceitualizar o que costumamos chamar de instante e de efêmero.

O adjetivo efêmero é derivado do grego ephêmeros, - os, - on, que dura um dia. Em sua origem, a palavra efêmero nos diz da poesia das águas perenes dos riachos que só existem durante o degelo ou a estação das chuvas; da flor da noite que desabrocha e fenece ao longo da madrugada. Efêmero é a imensa amplidão da transitoriedade fugidia.

Daí, se dizemos: Está suspensa a transitoriedade das insignificâncias, não é uma imposição, é muito mais, é uma exposição. Nos expomos ao deixar transparecer o desespero por resgatar o sentimento do homem pelo efêmero; dizer do que repica no peito, da percepção da urgência de que o homem reaprenda a aquaplanar o momento, ocupando com silêncio e reflexão o espaço que sucede à transitoriedade do instante.

É isso - buscar no instante o paradoxo da pausa.

Mas é outra a definição de instante que nos coloca à deriva. E os dicionários são precisos, diria premonitórios, quando nos apresentam o adjetivo instante (derivado do latim instans, - antis, - are) como aquele que insta, que insiste com obstinação, que vai logo, iminente, URGENTE – que diz uma necessidade premente. O sufixo – are diz da soberba humana, da vontade de poder, estar de pé, erguer-se (o deus bípede, que se aproxima – ameaçador). Quando utilizado como substantivo masculino, a palavra instante traduz-se no “menor espaço apreciável de tempo, momento, ocasião”.

E eis o homem colocado à deriva no mar da pós-modernidade, sujeito às intempéries dos instantes impostos e desejados. E esse ser fluido, partícula em suspensão nesse mar batido de uma sociedade de consumo, torna turvas as águas do

Planeta.

Onde encontrar tempo para o espasmo diante de uma imagem fulgurante, não a imagem digitalizada, pixelada no écran da mídia de bolso, mas a imagem efêmera, construída pacientemente, pela evolução do deus Darwin?

Quando jovens, aprendemos com nossos ídolos a valorizar o momento, o agora. Vivificar o instante se mostrou a melhor forma de ter uma vida saudável e feliz. E o homem “sábio” incorporou, em graus variáveis, essa máxima.

Acontece que o mercado e as grandes corporações sempre estiveram atentas a esse fato e se desdobraram, e continuam se desdobrando, para ampliar e diversificar as “ofertas de instantes”.

Mas o que acontece quando o instante se fluidifica demasiadamente, se torna cada vez mais instantâneo, insatisfatório? Quando o instante passa veloz; quando um piscar de olhos nos impõe uma limitação fisiológica para vivenciá-lo? Ocorre a desertificação da vida, pois uma frustação insustentável passa a dominar o indivíduo.

E é com essa noção insalubre do instante e esperançosa do efêmero que devemos observar o homem que se adentra no século XXI.

Jorge Elias Neto (1964) é capixaba, cardiologista e poeta residente em Vitória – ES. Tem vários livros publicados é colaborador em vários blogs e revistas literárias.
(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Resumo: O ensaio destaca a poética de Jorge Elias Neto a partir de poemas selecionados de quatro livros – Verdes Versos, Rascunhos do Absu...


Resumo:
O ensaio destaca a poética de Jorge Elias Neto a partir de poemas selecionados de quatro livros – Verdes Versos, Rascunhos do Absurdo, Os Ossos da Baleia e Glacial. A discussão se desenvolve com o entrelaçamento de dois eixos: literário e filosófico. Para o eixo literário, toma-se como referência alguns poetas críticos como T. S. Eliot e Ezra Pound, este último autor da famosa frase “os artistas são a antena da raça”. Para o eixo filosófico, com ênfase na condição humana, busca-se aporte em Hannah Arendt. O ensaio destaca a poética intimista de Jorge Elias Neto, também marcada por temas existenciais e pela linguagem potente e sensível aos dilemas humanos.


Epitáfio desejado
Deixarei para as ondas decidirem
sobre a imortalidade
do meu nome na areia.

Todo tempo é tempo de dor e de inflexões sociais e existenciais imprecisas. Na vida cotidiana, para onde convergem inexoravelmente as barbáries das atividades da política e da economia, a ordem que rege o movimento e o comportamento das pessoas parece impor uma indiferença insana tão profunda que impede o desenvolvimento de sensibilidades. Assim, entorpecidos pelo volume de afazeres e informações e impulsionados pela pressa que caracteriza a contemporaneidade, os indivíduos perdem a capacidade de se indignar com as mazelas que atravessam todos os dias seus ouvidos, seus olhos, seus corpos; eles prosseguem indiferentes a injustiças, misérias, dores, mortes, hecatombes.
Como uma moeda, barbárie e civilização andam coladas: a barbárie é uma face, a civilização é a outra. Enquanto a civilização se desenvolve, a barbárie segue incansável em seu encalço. A civilização é a face notável, visível e apresentável das sociedades; mal escondida, a barbárie se manifesta em tempos de guerra, de miséria ou de anomalias sociais. Agora, neste tempo, quando, pelas lentes das tecnologias digitais, os homens enxergam mais longe, a barbárie se faz notar com toda a sua força, reafirmando que a violência é nata à própria espécie humana: violência contra o próximo, contra o distante, contra a natureza, contra si mesmo. A destruição faz parte da natureza moral do homem; a violência é um dos indicativos dessa realidade.

Capitaneadas pelas tecnologias digitais, as acirradas mudanças do contemporâneo e as condições adversas em que elas se apresentam colocam em contato culturas muito diferentes entre si, mas essas conexões não são pacíficas, já que as diferenças culturais constituem forças que, muito frequentemente, concorrem entre si ou se opõem. Estranhamentos e desconfianças acompanham aquele que vem de fora, o qual traz consigo hábitos e costumes que podem ser assimilados ou fortemente rejeitados. Dessa forma, as contradições culturais representam um grande desafio para a compreensão deste tempo: as bandeiras ideológicas – políticas, religiosas, étnicas, de gênero – são fragmentadas, em oposição à globalização das economias e da mundialização das mídias.

A poesia, com sua linguagem particular – centrada na força das palavras e não no envolvimento das narrativas –, é um lugar onde as contradições são realçadas. Neste contexto de paradoxos, os poetas encontram farto material para sua lírica: ao mesmo tempo em que tratam de temas iluminados, falam também de dias sombrios e ruídos sinistros. Nas palavras de T. S. Eliot (1989, p. 44): “A mente do poeta é de fato um receptáculo destinado a capturar e armazenar um sem-número de sentimentos, frases, imagens, que ali permanecem até que todas as partículas capazes de se unir para formar um novo composto estejam presentes juntas”.

Entre as vozes da poesia que se erguem neste tempo de tantas novidades e inquietações, este texto trata especificamente da lírica de Jorge Elias Neto, cuja poética se funda em uma linguagem que alterna, em certa medida, violência e ternura, ou potência e fragilidade, e que revela, de uma forma ou outra, uma convicção niilista: os versos com frequência mergulham em abismos que separam a fé e a esperança da certeza do nada. A realidade está sempre mergulhada em uma confusão armada pelo próprio homem, não por obra de um deus.

O ceticismo do poeta, contudo, não o paralisa frente aos dilemas humanos: a poesia é a sua ação que nasce de combinações de diferentes perspectivas, tais como impressões do seu entorno (“Nada menos humano, menos carnal que o verde” ), observações da vida em cena (“A vida não é um jogo de baralho. Não poderei simplesmente dizer “passo ”.”), personagens (“Vó Bela! / O homem é assim ”) e de imagens surreais (“Não me importo / com numerar as penas do cisne” ). Este ensaio trata das relações que se estabelecem entre literatura e filosofia na poética de Jorge Elias, cuja linguagem está plasmada em testemunhos do cotidiano e em convicções filosóficas.

1. Poesia e Literatura: o tempo e os temas na poética de Jorge Elias Neto

No texto “Os estudos literários hoje”, Bakhtin (1992, p. 364) faz uma advertência que não se deve ignorar: “Não é muito desejável estudar a literatura independentemente da totalidade cultural de uma época, mas é ainda mais perigoso encerrar a literatura apenas na época em que foi criada, no que se poderia chamar sua contemporaneidade”. Para Bakhtin, não é possível dissociar literatura e cultura, pois a primeira integra a segunda. As fronteiras temporais da arte são difusas; passado e presente se imbricam em uma rede de tradições, inovações e influências. E a literatura, diretamente ligada ao seu tempo, não se desvincula de forma alguma da cultura há séculos constituída e na qual o poeta está inserido, em uma pequena fração de tempo.

Nesse sentido, é importante frisar que a poesia de Jorge Elias Neto comunica passado em presente, por meio de memórias e lembranças que se manifestam em versos. Temas leves e rápidos, como deseja Calvino (1995), não caracterizam sua linguagem, muito ao contrário, seus temas são pesados e marcados por um ritmo compassado, sem pressa, reflexivo.

Para Pound (1995, p. 67), na literatura, a “poesia é que tem maior carga de energia”. Também para Pound (1997, p. 40), a poesia “é a mais concentrada forma de expressão verbal”. Daí que, pela energia e pela força concentrada, a linguagem poética torna-se uma expressão intensa das contradições que recaem sobre os homens, as sociedades e as culturas.

Os temas, na poética de Jorge Elias, podem ser, em uma determinada perspectiva, colocados em duas esferas de interesses e situações: fatos extraordinários e cenas e ocorrências do cotidiano. Os fatos extraordinários, pela sua condição de eventualidade, ocorrem com menos frequência, mas são profundamente marcantes na escrita do poeta. Destaque para “Caligrafia do Bruto” – poema que compõe o livro Os Ossos da Baleia (2012) –, o qual faz referência a uma notícia amplamente divulgada nos meios de comunicação. As cenas e ocorrências do cotidiano reúnem a maior coleção de poemas, com grande variação de interesses: os encontros fortuitos, as lembranças, a saudade, o amor, a paisagem, a brincadeira.

Todos esses temas, extraordinários ou cotidianos, alimentam versos carregados da visão de um poeta atravessado por um espírito niilista; para ele, a humanidade está fundada em dogmas imprecisos e em verdades duvidosas. A liberdade está na palavra, que escapa a essas prisões invisíveis, mas poderosas.

Fatos extraordinários: Sakineh e morte

Em sua condição de ser humano sensível, racional e de vida breve, o poeta busca seus temas, dos quais se alimenta e alimenta seus versos. Os poemas captam as brutalidades e os afetos deste tempo, deste mundo. Nas ocorrências do cotidiano alguns fatos podem se projetar acima de todos os outros, pela condição extraordinária, como a história de Sakineh, uma mulher condenada à pena de morte por lapidação, no Irã:

Caligrafia do Bruto
Para SakinehMohammadi-Ashtia

Quem  não tiver pecados que atire a primeira pedra.


Pedra atirada.
No ar,
uma réstia
da caligrafia do bruto.

Apedreja-se com força.
Quem sabe assim
desencarnam as frustrações!...

Reconheço o homem na pedra.
Cada pedra trás seu nome.
A figura de um deus incompleto,
incoerentemente arremessada,
invalida a palavra: Humanidade.

Mas aqui,
neste instante,
em conformidade com os dogmas,
corrompe-se a alma,
deforma-se o molde.

A estranheza de lapidar o corpo.
A ironia de deformar o nome
do delicado gesto do artesão.

Garganta seca de súplicas.
Olhos vazados por lascas.
O ventre fendido
Já não tem fome de amor.

Despedaçado,
jaz o corpo da criatura humana,
jaz a beleza.
Sob o lençol branco maculado
pelo sangue dos opressores,
desfeito,
o arco dos lábios.

A mais terna face desfigurada.
Deixaram-na de lado;
é impura.
Já não se presta mais a prazeres
a carne macerada .

Sob as referências das matrizes greco-latinas e judaico-cristãs, o mundo ocidental ficou assombrado com a notícia de que uma mulher seria apedrejada até a morte, acusada de adultério e de ter conspirado a morte de seu marido; o assombro provinha das inconsistências da acusação e da truculência do veredito dos juízes. A história de Sakineh, uma narrativa real deste tempo, revelava ao mundo práticas consideradas bárbaras e cruéis, mas que insistem há centenas de anos, em uma cultura que se mantém sob as leis de uma forte ordem religiosa, sectarista e intolerante, principalmente em relação à mulher, considerada uma representação do mal e dos desejos da carne.

A jovem senhora comoveu o mundo quando a mídia deu visibilidade à sua história. Graças à estrondosa repercussão do caso, houve uma reação em cadeia mundial em seu favor: vários organismos internacionais emitiram pedidos de clemência, apelando para os Direitos Humanos e pedindo sua absolvição. Por fim, a pena de morte de Sakineh foi revertida em anos reclusão . Mas o que, de fato, aconteceu a essa mulher? Qual seu verdadeiro destino? Quantas sakinehs sucumbiram no anonimato sombrio das tradições religiosas, no oriente e no ocidente? Apesar de real, Sakineh é mais um fantasma na grande mídia, mais uma personagem que nasce e morre em poucos dias. Sakineh, afinal, não saiu da mídia: a mídia saiu dela, em busca de fatos novos; Sakineh, na mídia, não era uma mulher à beira da condenação capital: era um produto de consumo e, como tal, um produto para ser consumido e trocado por outro.

Se o corpo de Sakineh não foi apedrejado – sua pena foi revertida em chibatadas e reclusão – sua alma de mulher foi despedaçada, irreversivelmente ferida e machucada. Essa é a imagem capturada pelo poeta: a lapidação moral de uma mulher. Corrompida e maculada pelas leis dos homens, Sakineh, a mulher proscrita, nunca passou de mais uma das centenas de milhares de histórias que se encontram em mídias e redes sociais, fadadas ao esquecimento. Mas a violência da narrativa tornou-se perene na poesia de J. Elias, para quem essa história representa mais uma escrita da barbárie nas letras dos homens, na caligrafia dos brutos. E toda barbárie, aparentemente, contraria o conceito e a ideia de civilização dos homens, mas não contraria: a barbárie não é o contrário da civilização, é apenas sua outra face, sua irmã siamesa.

Em contraposição à brutalidade da história de Sakineh, que circulava nas redes de internet, os versos do poeta também circularam nas redes sociais, constituindo assim uma resistência em rede contra a violência, de uma curiosidade perversa, da mídia: a poesia fez medrar a ternura de alguém que, como uma multidão de outros anônimos, não se conforma com brutalidade que se exerce sobre as pessoas em nome de uma religião, em nome do poder.

O afeto e a poesia não são capazes de salvar Sakineh de sua condenação e de sua penúria moral, mas o poeta, ao colocar o poema “Caligrafia do bruto” em circulação, de alguma forma lança luz sobre um problema universal: a condição feminina nas culturas do mundo cristão, islão ou pagão; a condição da mulher no Brasil ou em países da África, da Ásia, de todas as cidades, de todas as vilas, de todo o mundo. As mulheres são vítimas potenciais de uma intolerância social que impõe um jugo pesado sobre sua alma, seu corpo e seu destino. Silenciadas por um código moral violento, às mulheres cabe um lugar de desvantagem nas culturas do oriente e do ocidente. Ao falar das damas do Século XII, Duby (2013, p. 110) parece se referir à realidade de muitas sociedades contemporâneas: “Existe assim um espaço fechado reservado às mulheres, estritamente controlado pelo poder masculino”. E não se trata de exceções: tacitamente, não se aceita a presença da mulher em posição de comando, e isso ocorre em todas as sociedades, ainda que em algumas as conquistas e o reconhecimento da mulher sejam mais evidentes. A vida pública é reservada a poucas personalidades femininas, pois insidiosamente grupos de forças tradicionais tramam contra a emancipação da mulher, contra seu sucesso e ascensão, sob o entendimento de que o lugar das mulheres é o recato do mundo privado, onde podem ser vigiadas e punidas, se ousarem tentar romper essa barreira.

Neste sentido, as conquistas femininas, com notável força a partir do Século XX, são evidentes e importantes, mas ainda pequenas, frágeis e restritas. A pena capital é uma realidade no mundo inteiro, seja pelas leis religiosas, seja pelos códigos masculinos: mulheres são humilhadas, violentadas, espancadas e assassinadas a todo instante. A poesia é impotente frente ao drama das mulheres, impotente frente aos males do mundo, mas ela não se cala e não se esconde frente ao que é extraordinariamente humano: a poesia revela os paradoxos e as dores desses tempos. O poema sublima histórias de horror. A poesia é o afeto do poeta.

Os eventos extraordinários que pressionam a escrita e a manifestação do poeta podem surgir de notícias de jornais, mas também podem surgir do próprio cotidiano, que surpreende os indivíduos com fatos que escapam à ordem do dia, como a morte. O nascer e o morrer fazem parte do cotidiano social. No mais geral das ideias, o nascimento vem acompanhamento de alegria, de esperanças e de expectativas em relação ao futuro; o morrer, ao contrário, é o fim do presente, que é enterrado na mesma cova com o passado. E não é fácil aceitar a morte. Para Persch (2012, p. 11), se “há problemas existenciais, então a finitude humana talvez seja o mais emblemático. (...). Nenhuma verdade é tão indiscutível como essa, mas também nenhuma verdade é tão difícil de ser aceita, mesmo em situações em que não há mais esperança de vida”. De fato, a morte é uma verdade com a qual não se conforma os homens. E ela, a morte, mesmo que esperada, sempre é surpreendente.

Ainda que a morte seja um fato corriqueiro do cotidiano, afinal todos os dias morrem pessoas, ela torna-se um evento extraordinário na privacidade dos homens, na intimidade de uma família, na organização de um grupo. A morte arranca as pessoas de sua rotina, fazendo-as pensar, cada uma delas, na própria morte. Assim, a morte constitui um fato extraordinário, sobre o qual o poeta tem muitas coisas a dizer. Mas dizer para quem? O poeta dirige-se ao cadáver.

Discurso para o cadáver

Teus olhos
não mentem
essa simplicidade
em dizer:
tão breve, a vida,
enquanto saturamos
o ar
com subterfúgios
e preces.

Do ponto
em que se parte
― se esquece ―
o espectro
da carne
                ― do irremediável.

Da carne
à cinza,
do torrão de
terra
ao desprezível
mármore
― questão alheia ―
(prevalecerá a vontade
                 do Universo).
Que os vivos
tratem da espessura
das trevas.
A você, o privilégio
da dimensão
onde se plantam flores.

Agradeço
a sinceridade
azul
em teus dedos,
ao lançares os dados
que julgarão
os versos
impossíveis.

E o que disse
da memória ...
A memória sem lar,
desnecessária,
posta a ausência
cúmplice.

Se pudesse
te acenderia um cigarro...
Deixaria a guimba
                 pendurada
em teus lábios.
(Como é bela e
                inútil
a  última centelha...)

Logo
chegarão.
(A boca aberta da cidade
                despeja
                       suas crias.)
Vestirei a máscara
e restarei
um momento ― breve ―
(o tempo de observar a indecisão
das chamas  perante o choro
                humano) .

O poema, pois, é um pequeno monólogo dirigido a um cadáver. E apenas no título J. Elias usa a palavra “cadáver” que, por sua natureza semântica ligada à morte, soa como matéria, puro objeto. A escolha dessa palavra reforça o posicionamento do poeta ante a morte: tudo está acabado. Segundo Houaiss , a etimologia da palavra “cadáver” é de origem latina, significando “corpo morto”; mas a intervenção popular vai além e associa a “cadáver” a uma expressão latina: CArne DAta VERmem  (Carne Dada aos Vermes). Seria a palavra cadáver, assim, uma sigla. A pessoa reduzida à carne. Na cultura popular, outra palavra contempla o significado de “cadáver”: a palavra “corpo”. Essas palavras traduzem com exatidão semântica aquilo que a morte representa: ausência de alma, ausência de espírito. Falta a vida.

Nos versos do poeta: “Do ponto / em que se parte / ― se esquece ― / o espectro / da carne / ― do irremediável”, outra escolha emblemática: “espectro”. Esta palavra, popularmente, é associada a fantasmas. Contudo, a existência de fantasmas pressupõe uma continuidade da vida após a morte, em uma dimensão misteriosa e inexplicável. Ora, uma convicção niilista não permite tal interpretação, restando à palavra um sentido semântico muito diferente: “espectro” como “coisa”: “coisa vazia, falsa; ilusão” . A vida é uma ilusão. A morte é o fim da ilusão.

Em alguns versos o poeta reforça seu ceticismo categórico, carregado de lirismo telúrico: “A você, o privilégio / da dimensão / onde se plantam flores”. A terra, o fim de tudo, onde o “cadáver” encontra seu destino final, o sossego da extinção da alma. Ou talvez não: na dimensão da vida, alimentando os vermes, o cadáver inicia um novo ciclo de vida, adubando raízes de flores de todas as cores. Nas palavras de Arendt (2001, p. 57): “É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico”. Mas, enquanto o corpo está presente, acima da terra, o profundo respeito do poeta pelo cadáver, o qual faz lembrar que a vida breve: “Teus olhos / não mentem / essa simplicidade / em dizer: / tão breve, a vida, enquanto saturamos / o ar”.

Os fatos extraordinários eventuais – uma notícia, uma morte ou acontecimento marcante – projetam-se em meio aos acontecimentos do dia de rotina; chamam a atenção por algum motivo, por algum aspecto. A eventualidade é uma força esporádica que atrai o poeta, mas é, certamente, do cotidiano que J. Elias pinça seus temas: nas cenas e ocorrências do dia-a-dia.

Cenas e ocorrências do cotidiano

As cenas e as ocorrências do cotidiano fornecem os temas mais frequentes à poética de Jorge Elias. O cotidiano, como substantivo, corresponde às ações que se realizam todos os dias, continuamente, ações que se repetem todos os dias, na vida de todos os indivíduos. Hannah Arendt (2001, p. 221) lembra que: “O único atributo do mundo que nos permite avaliar sua realidade é o fato de ser comum a todos nós”. Apesar de o mundo social ser comum a todos, pois, em sua rotina diária, todos o compartilham, as percepções são estritamente pessoais: o mesmo acontecimento pode ser aplaudido por uns e rejeitado por outros. Qualquer ruptura da rotina torna-se um fato extraordinário. Assim, todos os dias, as pessoas se movem em um mundo comum, ainda que, pelos seus sentidos particulares, esse mundo seja compreendido singularmente, por cada indivíduo. Hannah Arendt (2001, p. 221) desenvolve essa ideia e infere:

...se o senso comum tem posição tão alta na hierarquia das qualidades políticas, é que é o único fator que ajusta à realidade global os nossos cinco sentidos estritamente individuais e os dados rigorosamente particulares que eles registram. Graças ao senso comum, é possível saber que as outras percepções sensoriais mostram a realidade, e não meras irritações de nossos nervos nem sensações de reação de nosso corpo.

Pelo cotidiano, o poeta, em sua singularidade, depara-se com ocorrências percebidas por todas as pessoas, mas sentidas singularmente por ele mesmo. Pelo caminho da singularidade, o poeta questiona certezas e verdades: as convicções estão instaladas em um ponto de vista, o qual apresenta uma versão possível, nunca uma versão absoluta. A poesia é sempre um outro ponto de vista possível. No cotidiano, a rotina se constitui de ternura, violência, dor, risos, expectativas e, no cotidiano do poeta, mesclam-se muitos elementos da vida sensível: saudade, lembranças, amor, família, morte, dor, frango com farofa, passeios, olhares perdidos no nada. Tudo isso, cenas e ocorrências do cotidiano, alimenta os temas da poesia de Jorge Elias. Tudo pode ser o início da poesia.

A poesia começa assim

Emprenhar-se de miudezas;
deixando as mãos rendidas aos gestos costumeiros.
E quando a luz se aperceber, desmembrada
pelo estalo da palavra,
jogar-se nos trilhos
para salvar a flor .

O primeiro verso, “A poesia começa assim”, já demonstra que o poeta está mergulhado no cotidiano: “deixando as mãos rendidas aos gestos costumeiros”. Todavia, a palavra é a força capaz de desmembrar ou de desprender alguma ação, algum gesto ou algum objeto da realidade cotidiana, mas contra a qual ele se rebela: “jogar-se nos trilhos / para salvar a flor”.

É também pela expressão poética que J. Elias demonstra sua profunda descrença em alguns grandes pilares da civilização, como a religião, há muito tempo tragada pela linguagem científica, pela lógica da economia e pela exatidão dos resultados apresentados por laboratórios renomados: “digitais humanas nos dedos de Deus”. É com tom lacônico que o poeta revela sua visão da cristandade:

Agora é tarde, pintei o muro
Para José Augusto Carvalho

O alento da cristandade
não sei se volta.
Depois que reparei
digitais humanas nos dedos de Deus,
essas trincheiras me pareceram obsoletas;
dissipou-se a taramela
no pórtico do inferno.

Comer todas as hóstias
na infância – de uma só vez –
só me serviu para matar a fome de Deus .

Contidos e serenos, esses versos confirmam a tese de T. S. Eliot (1989, p. 44): “o que conta não é a "grandeza", a intensidade das emoções, dos componentes, mas a intensidade do processo artístico, a pressão, por assim dizer, sob a qual ocorre a fusão”. Dessa maneira, o poeta expressa a condição solitária do homem, sem amparo divino.

Adorno e Horkheimer (1985) advertem que a perda do apoio da religião na reconfiguração moral dos homens contemporâneos não levou as sociedades aos caos cultural, mas ao contrário, não há caos, tudo se movimenta em trono de um ordenamento pragmático do mundo: o arrefecimento da fé integrou um conjunto de forças que redirecionaram o mundo para um novo modelo cultural, submetido a uma prática econômica perversa e imperturbável. Para Adorno e Horkheimer (1985, p. 113), esse novo modelo “confere a tudo um ar de semelhança”. Dominadas pela racionalidade calculista e destruidora, as religiões não se prestam mais ao consolo: “O alento da cristandade / não sei se volta”. Todavia, se obsoletas como campo sagrado, elas ressurgem como uma grande feira de milagres. O vínculo entre o homem e as religiões não se rompem, apenas se corrompem: as religiões sucumbiram às leis do mercado.

Entre as cenas e ocorrências do cotidiano, uma imagem chama a atenção do poeta: uma árvore morta, uma ingazeira. Na pressa, poucas pessoas reparam as árvores vivas ou agonizantes. Só reparam nelas quando são arrancadas por ventos e interrompem a passagem de carros e pessoas. Reparam e reclamam. O cotidiano exige pressa e emite imprecações. Mas o poeta faz uma reverência, afetuosa:

Poema à morte da ingazeira

Morre de pé o verde,
até que a inexorável gravidade
trace seu rumo definitivo:
partir para o esquecimento .

O traço de visão niilista da vida, “partir para o esquecimento”, reforça sua convicção sobre vida e morte. Existencial, o mundo sensível é o que se coloca sob o olhar do poeta. Importante ressaltar a relação do poeta com a cor verde, a qual aparece inclusive no título de seu primeiro livro, Verdes versos (2007). A cor matiza-se em tons que se relacionam ao verde brilhante de vida ao verde sinistro da carne apodrecida ou ao pus que escapa do corpo doente; faz ainda referência aos perigos que o verde natureza corre, com as ações humanas: “Morre de pé o verde”.

As cenas captadas do cotidiano pelo poeta são muitas, formando um vasto leque de interesses e revelando diferentes modos de olhar a rotina do mundo; há cenas que se projetam em planos mais fechados, como em “A logística das formigas”, cujos sentidos parecem forçar os olhos do leitor a se aproximarem de algo bem miúdo:

A logística das formigas

Reparem no descaso
das formigas
no espelho fosco
das placas de gelo.
Morrem,
ao montes,
em fila,
agarradas
à impossibilidade .

Mas também há cenas que apresentam perspectivas panorâmicas, com cenas mais abertas, convidando a uma leitura de paisagem ampla e mostrando situações que se deixam observar mais ao longe, como ocorre no poema “Da construção de cidades e sentenças”:

Da construção de cidades e sentenças

Gélidos desfiladeiros
ladeando avenidas...
Estruturas metálicas
        — andaimes —
espinha dorsal
de enormes geleiras
que sentenciam à morte
os que ignoram a cronologia
do desespero .

As cenas e as ocorrências do cotidiano constituem traços de uma poética que se consolida forte, coerente e vigorosa. Os versos de J. Elias, de uma maneira geral, expressam diferentes sentimentos, de forma alternada: revolta, rebeldia, ternura, saudade, nostalgia, indignação, contemplação. Alguns poemas são notavelmente especulares, tais como “Seu Jorge” e “Nomear poemas” . O uso do próprio nome indica um mergulho na própria alma, na própria atividade poética que realiza. O primeiro verso do poema “Nomear poemas” torna-se muito revelador e emblemático, considerando o conjunto de uma poética fortemente marcada pelas próprias experiências, lembranças e reminiscências: “No fundo, os poemas chamam-se Jorge”.

À sensibilidade do olhar do poeta para pessoas, objetos, cenas e acontecimentos de seu tempo, agrega-se ainda um importante diálogo com o sistema filosófico. Com uma linguagem intimista, serena, até mesmo melancólica, Jorge Elias dialoga com questões universais, com muitas referências à vida e à morte, à dor e à alegria. A condição humana e os paradoxos da existência estão em sua poesia.

2. Poesia e Filosofia: a condição humana na poética de Jorge Elias Neto

Os dramas da existência humana são regidos por duas forças irresistíveis e inelutáveis: nascer e morrer. O nascer é um acontecimento do qual o homem toma consciência quando não há mais possibilidade de qualquer tentativa de reação; mas o morrer é acontecimento do qual ele tem consciência e contra o qual ele tenta, em vão, resistir ou adiar. Norbert Elias (2001, p. 10) lembra que:

Entre as muitas criaturas que morrem na Terra, a morte constitui um problema só para os seres humanos. Embora compartilhem o nascimento, a doença, a juventude, a maturidade, a velhice e a morte com os animais, apenas eles, dentre todos os vivos, sabem que morrerão; apenas eles podem prever seu próprio fim, estando cientes de que pode ocorrer a qualquer momento e tomando precauções especiais – como indivíduos e como grupos – para proteger-se contra a ameaça da aniquilação.

“A morte é problema dos vivos. Os mortos não têm problemas”, em mais uma afirmação de Norbert Elias (2001, p. 10). Ela é o destino final do homem, mas não da espécie, que se prolonga nos gens; todos os homens estão sob a égide da condição humana: nascer, morrer, sentir dor e envelhecer. Nas palavras de Arendt (2001, p. 17): “o que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana”. Neste sentido, tanto a morte quanto a vida, tanto o mundo iluminado pela tecnologia ou quanto o mundo devastado pelas sombras do fascismo estão na ordem da existência e da condição humana. Revoltado, indignado ou contemplativo, a poesia de J. Elias expressa, muito sensivelmente, as dores, as esperanças e as expectativas engendradas pela condição humana.

No limiar dos dilemas humanos estão os medos e suas angústias mais íntimos dos indivíduos: a dor, o envelhecimento, a morte. O homem deseja não sentir dor, não quer envelhecer, também não quer morrer. Para tais dilemas, ele criou histórias, inventou remédios, converteu-se aos deuses imortais: “Na turva sacralidade de seu desamparo, de seu desespero, teria o homem criado os deuses para responder às suas angústias?” (FERREIRA FILHO, 2016, p. 236). Os deuses não ouvem suas súplicas, os remédios possuem efeitos limitados e as dores chegam muito rapidamente. Sem saídas, o riso torna-se um remédio contra seus males; assim faziam os medievais – que destronavam seus medos com piadas e inversões deliberadamente ridículas, caçoando do diabo, da morte e dos santos: “O rebaixamento do sofrimento e do medo é um elemento da maior importância no sistema geral dos rebaixamentos da seriedade medieval, impregnada de medo e de sofrimento”, afirma Bakhtin (1993, p. 150). Uma segunda alternativa para lidar com os dramas da existência é, como faz a filosofia, refletir sobre eles, investigá-los. Mas há ainda uma terceira possibilidade: a poesia. Como os medievais, a poesia consegue rir dos medos dos homens e, como a filosofia, consegue refletir sobre a condição humana. Sobre a condição humana, Hannah Arendt (2001, p. 60-61) destaca a dor como um acontecimento essencialmente solitário:

De fato, o sentimento mais intenso que conhecemos – intenso ao ponto de eclipsar todas as outras experiências, ou seja, a experiência de grande dor física – é, ao mesmo tempo, o mais privado e menos comunicável de todos. Não apenas por ser, talvez, a única experiência à qual somos incapazes de dar forma adequada á exposição pública; na verdade, ela nos priva de nossa percepção da realidade a tal ponto que podemos esquecer esta última mais rápida e facilmente que qualquer outra coisa.

A dor pode prenunciar o fim de uma vida, mas também pode ser superada com tratamentos e remédios. Mas, enquanto dor, ela mantém o homem em seu lugar de indivíduo, de ser um ser solitário. A sociedade se desfaz na dor e na morte. Para Hannah Arendt (2001, p. 124): “nada expele o indivíduo mais radicalmente para fora do mundo que a concentração exclusiva na vida corporal, concentração esta forçada ao homem na escravidão ou na condição extrema de dor insuportável”. Na dor, os homens estão sozinhos, seja a dor da carne, seja a dor da alma. Na dor do corpo, o choro do desamparo; na dor da alma, o choro para recomeçar:

Recomeçar do fim
Chora, disfarça e chora todo o pranto tem hora. [Cartola]
Chorar o difícil choro do reinício.

Roda, roda
roda dágua
com a força que a alma pede.

Beba o sal,
que a vida,
pede a vida.

Sem dó de ter dor:
tal prazer emperra a engrenagem dos punhos.

Chore o pranto do agora,
para que o depois não te turve o sossego.

Todo pranto tem hora.
e, se for preciso,
no começo,
disfarça,
mas chora...

Mas se a dor é capaz de colocar os homens em uma profunda solidão, o envelhecimento constitui, talvez, um drama ainda maior que a morte, visto que, por natureza defensiva, ninguém pensa na morte, mas todos pensam e se preocupam com o envelhecimento. Norbert Elias (2001) desenvolve uma reflexão sobre esses dramas no pequeno ensaio “Envelhecer e morrer”, no qual ele afirma:

Não é fácil imaginar nosso próprio corpo, tão cheio de frescor e muitas vezes de sensações agradáveis, pode ficar vagaroso, cansado e desajeitado. Não podemos imaginá-lo e, no fundo, não o queremos. Dito de outra maneira, a identificação com os velhos e com os moribundos compreensivelmente coloca dificuldades especiais para as pessoas de outras faixas etárias. Consciente ou inconscientemente, elas resistem à ideia de seu próprio envelhecimento e morte tanto quanto possível (ELIAS, N., 2001, p. 80)

Observar a velhice do auge da força e da juventude se faz com um modo de olhar, quase indiferente, mas olhar a velhice quando dela se aproxima, torna o olhar reflexivo, mais consciente das limitações do corpo. Em algumas sociedades passadas, os anciãos, pelo pressuposto acúmulo de experiências e pressuposto acúmulo de sabedoria, eram ouvidos e respeitados. Nas sociedades contemporâneas, em que a sabedoria não é mais importante que a economia, há grande insensibilidade para com os velhos, a ponto de alguns serem vistos como estorvos. Todavia, quando há sensibilidade e ternura, os velhos, cumprindo inevitável etapa de sua condição humana, são como rendas que revelam muitos desenhos e muitas histórias. O poeta, rendido ao amor pela avó, presta-lhe uma homenagem:

Vó Bela
Para minha avó, Isabel Teodomira Pereira.

Ainda te vejo terminar os dias
cozendo a colcha de retalho de tua genealogia.
Sabias, sim, os segredos da vida,
única explicação para a transparência de teu olhar...
Entendias também os sortilégios da morte.
Muitos dos teus já tinhas visto partir
no nefasto trilho do fim absoluto.
Confesso não ter conhecido quem melhor divagasse
entre magos e dragões,
conhecesse os cordéis do seu povo,
que, vestida de santa, ensaiasse noites inteiras
os martírios do ser divino.

Usou o apoio imprevisto das estrelas e se fez poetisa.
Recitando os versos de seus heróis sertanejos,
embalaste o sono do pequeno ávido,
e plantaste o sonho que agora luto
para não se esvair.

Em “Verdes versos II”, Jorge Elias apresenta um quadro verde de morte ou quase morte: o verde da carne que apodrece, o verde da morte, o verde daquilo se expele do corpo doente: catarro, pus, vômito.

Verdes Versos II

Nada menos humano, menos carnal que o verde.
Pútrida carne verde dos abandonados em valas.
O que é verde o corpo despreza.
Catarro, pus, vômica
Sinônimos de morte.
A pele que ainda respira quando verde agoniza.
De verde apenas os seres de nosso planeta imaginário.

Nada mais vida, mais sentimento que o verde .

O encanto do verde da vida e da natureza exuberante parece opor-se ao verde da carne que apodrece; para o poeta, “nada menos humano, menos carnal que o verde”. Mas, talvez, não haja contradição nessas manifestações de verde, pois a morte é onde avida se extingue ou onde a vida se guarda: “vida e morte são o continuar dos passos” . As contradições tornam-se denominadores comuns, os quais encontram expressão nos versos do poeta que ora ergue o olhar para as questões mundanas e mais gerais, ora se inclina para lembranças, angústias e desejos.

Em tempos cinzentos, em que a questão ambiental torna-se premente, enquanto as autoridades discutem o destino do Planeta, fecham acordos (improváveis) e estabelecem metas que visam limitar as agressões à natureza, as vozes inquietas dos poetas se lançam, mesmo sem convite, neste grande debate que inclui o destino do homem. O debate na esfera da poesia é menos prático, mais prosaico, mas não menos intenso, nem menos pulsante. E o poeta indaga à sua Vó Bela: “Será que chegará o dia / em que tomaremos em nossas bocas/ uma folha verde como hóstia?”.

Hóstia verde

Vó Bela!
O homem é assim:
cultiva a ausência do verde,
e quando este finalmente falta,
vende o que resta aos idólatras.

Benditos os iconoclastas
derrubadores do ídolo verde!

Vó Bela!
Será que chegará o dia
em que tomaremos em nossas bocas
uma folha verde como hóstia?

“O homem é assim:” é um verso emblemático, pois sintetiza o eixo temático da poesia de Jorge Elias: o homem e a condição humana. Sobre o tema central, o homem, Ferreira Filho (2016, p. 236) afirma: “Observado com atenção o ser humano, tudo nele é problema – identidade, subjetividade, convivência, política, sexualidade...”. Mas o poeta prefere os temas de difícil trato, temas que incomodam e inquietam a alma humana (“Máscara mortuária”, “Inércia” ).

A preferência pelos versos curtos e substanciais fazem tentativas de expressar um mundo absurdo. Todavia, o percurso do poeta se define pelo traçado de versos curtos e substanciais. Sendo a palavra – e a palavra é tema que também se oferece ao absurdo – a matéria da poesia, as tentativas de expressar o indizível tornam os versos enigmáticos. A poética de Jorge Elias revela influências da grande literatura universal: as lembranças de Borges, o realismo de Dostoiéviski, austeridade existencialista de Camus e o pensamento altivo e vigoroso de Nietzsche.

Nas letras dos versos de Jorge Elias – salvo, talvez, nas fendas em que se lê paixão e sensualidade, rasgos de uma vida que insiste –, nota-se espanto, ou apenas a constatação, de alguém que descobre que a existência humana não tem sentido; ou o espanto de alguém que descobre que a esperança esconde o desalento infinito da alma humana; a esperança é o sentimento dos paradoxos. Nietzsche (2000, p. 63-64) afirma que a esperança foi único mal que não conseguiu escapar da caixa de Pandora: “Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens”. A descrença presente nos versos pesados reforça esse diálogo com Nietzsche. O absurdo, talvez, seja o traço mais humano do homem, demasiadamente humano.

A poesia de J. Elias – racional em sua capacidade de ler o mundo e de expressá-lo por meio de ritmos intimistas, sensível em sua capacidade de perceber a fragilidade dos seres e das coisas – projeta um campo no qual se imbricam formas e temas que traduzem um mundo particular, em seu olhar, universal em suas questões. Como os anjos de Berlim , o olhar do poeta não altera a ordem das coisas, não salva Sakineh, não salva o mundo nem as pessoas, apenas, solidária e solitariamente, olha para os que estão à beira da morte, para os velhos, para os que sofrem, para os que brincam, para os que se ocupam em tarefas tolas ou muito importantes, para as paisagens, para os movimentos; o poeta se interessa por tudo, afinal.

A poesia mantém-se na linha da razão, assim pensa Merquior (1996, p. 189): “na própria linguagem [poética] reside uma vontade ordenadora, uma disciplina da emoção”. Por assim dizendo, a poesia não se coloca em uma disposição emocional, mas em uma esfera na qual a razão se concentra na dinâmica da própria palavra, com suas relações coordenadas e subordinadas, sem necessariamente se submeter a uma ordem sintática convencional.

Em busca de palavras que expressem os sentidos de que precisa, o poeta cria mecanismos diversos dão vigor à sua linguagem, tais como a intensificação dos vocábulos (o uso de “versos quebrados” tem essa capacidade) e das imagens, sem perder seu elo com a razão. Merquior (1996, p. 190) lembra que “a necessidade de recorrer a símbolos de inteligência comum é inarredável da lírica”. Ao poeta reserva-se um lugar na história dos homens (“O poeta / - atleta do abismo - / espreita o entardecer / por detrás / da história” ), mas sua forma de contar a história é pelas linhas irregulares e livres dos versos.

Como os anjos Damiel e Cassiel, os poetas observam e solidarizam-se com os sofrem, mas não podem fazer nada. Miram as condições terrenas em que vivem os homens, sem poder interferir no caos, na dor e na desordem existencial das pessoas. Mas enquanto os anjos não conseguem sentir as emoções humanas, os poetas não apenas sentem como sofrem com elas. Sensível ao mundo dos homens, ao qual pertence, o poeta busca uma expressão para esses sentimentos (o que produz a confusão que identifica a poesia com emoção). Ao registrar esses sentidos, o poeta introduz na perenidade das palavras os acontecimentos do cotidiano. Jorge Elias, como muitos poetas do passado e do presente, preserva a expressão de descrença e de espanto, frente aos dramas humanos. E como se respondesse à questão da limitação dos ternos anjos da cidade arrasada, o poeta escreve: “Anjos... / Dou-lhes de presente / minha sanidade ”.

O contemporâneo e seus dilemas sociais, políticos e existenciais exigem reflexões e análises para compreender as conexões que existem entre as mazelas e, assim, tornar o absurdo menos absurdo; o mundo absurdo parece uma construção desastrada, mas, ao contrário, ele está dentro de uma lógica deliberada, como advertem Adorno e Horkheimer (1985) que atordoa os indivíduos, tornando-os presas fáceis de um senso comum estereotipado, moldado por uma mídia que mira seus interesses do consumo. Os anjos e os poetas não podem corrigir ou remendar esse mundo de desacertos. Está na ordem natural da vida, está na ordem do mundo. A ternura do poeta não pretende esconder a brutalidade da vida. Nem provocar emoções com as próprias emoções: “O objetivo do poeta não é descobrir novas emoções, mas utilizar as corriqueiras e, trabalhando-as no elevado nível poético, exprimir sentimentos que não se encontram em absoluto nas emoções como tais”, lembra T. S. Eliot (1989, p. 47).

Paul Valéry (1991, p. 201), afirma que “se encontrarmos profundidade em um poeta, essa profundidade parece ter uma natureza completamente diferente da de um filósofo ou de um sábio”. De fato, as questões que insistem nas temáticas dos filósofos e poetas contemporâneos são múltiplas e multifacetadas, mas, paradoxalmente, é apenas uma questão: a condição humana. Mas há uma grande diferença entre a filosofia e a poesia: a filosofia procura a compreensão de seu tempo; a poesia não busca a compreensão, mas mergulha no seu tempo com mais perguntas e dúvidas.

Os poemas são, pois, os artefatos dos poetas, ou aquilo que ultrapassa a vida deles. Hannah Arendt (2001) considera os artefatos o resultado do trabalho humano: Isto quer dizer que o homem, mortal, imortaliza-se nas gerações e nas coisas que produz e constrói. Neste sentido, a poesia – a literatura de uma maneira geral – inclui-se naquilo que Hannah Arendt (2001, p. 27-28) considera “artefato imortal” dos homens:

A tarefa e a grandeza potencial dos mortais têm a ver com sua capacidade de produzir coisas – obras e feitos e palavras – que mereceram pertencer e pelo menos até certo ponto, pertencem à eternidade, de sorte que, através delas, os mortais possam encontrar o seu lugar num cosmo onde tudo é imortal exceto eles próprios. Por sua capacidade de feitos imortais, por poderem deixar atrás de si vestígios imorredouros, os homens, a despeito de sua mortalidade individual, atingem o seu próprio tipo de imortalidade e demonstram sua natureza “divina”.

Em seu tempo, o poeta muito provavelmente não pensa na imortalidade (“A minha imortalidade / se encerrará com a minha morte” ), contudo sua obra, despregada de si, ganha autonomia e, independentemente de sua alcançar êxito de público e reconhecimento da crítica, torna-se mais um artefato que demonstra a capacidade de o homem ser imortal, criando coisas que ficam; como os poetas criam versos que ficam.

3. A caligrafia do poeta

 “Os artistas são as antenas da raça”, afirma Pound (1997, p. 71). A afirmação do poeta-crítico-ensaísta é, com toda justiça, repetida em ensaios de crítica literária. Não seria tão frequente se não fosse verdade. A atividade do artista está relacionada a uma faculdade excepcional de ser sensível às ocorrências que a grande massa ignora ou não percebe. O artista se inclina para um detalhe, nuanças de um evento banal, mas indicativo de algo novo. Artista da palavra, o poeta se esgueira para um pequeno vão, de onde se lança com coragem ao mais profundo precipício, para um abismo onde se vê as raízes da humanidade; ou se lança ao voo mais alto, plainando sobre as paisagens gerais. O poeta capta o que é indizível e traduz seus sentidos em versos, revelando ao mundo seus significados. A poesia, por seus caminhos e linguagens tão próprios, dá-se a expressar emoções infinitas, mas, como diz Merquior (1996, p. 189-190), não se pode esquecer que ela “é razão”. No registro das paixões, Jorge Elias coloca o juízo da poesia no corpo frágil do verso. O poeta tem algo a dizer sobre as metamorfoses da vida e, no labirinto de palavras enigmáticas e enérgicas, sobre sua própria metamorfose: “(só sei transformar sapato em borboleta) ”. Na escrita potente e sensível de Jorge Elias, a caligrafia registra cenas do cotidiano e fala de vida. Mas não fala o poeta de si mesmo, para si mesmo: fala para outros. Escuta o poeta.

Referências bibliográficas

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Referência de filme

Asas do desejo (Der Himmelüber Berlin). Produção e Direção de Wim Wenders (inspirado em Rainer Maria Rilke). Elenco: Bruno Ganz, Otto Sander, Solveig Dommartin. Origem: Franco-alemão. Gênero Fantástico. Distribuidora: Europa Filmes. Idioma original: Alemão. Suporte CD. 127 minutos. 1987.

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© 2016 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Shirlene Rohr de Souza é professora da Universidade do Estado de Mato Grosso formada em letras pela Universidade Federal do Espírito Santo.


Jorge Elias Neto Fanarás poeticamente... Todas as tuas tosses serão líricas, Todas as tuas hemoptises serão românticas... [Jamil ...

Jorge Elias Neto


Fanarás poeticamente...
Todas as tuas tosses serão líricas,
Todas as tuas hemoptises serão românticas...
[Jamil Almansur Haddad]

A fim de imaginarmos, de forma aproximadamente precisa, determinada pessoa, temos antes de mais nada de estudar a sua época, fase em que podemos até mesmo ignorá-la, para depois, a ela retornando, encontrar o maior agrado na sua contemplação. [Carta de Goethe a Karl Friedrich Zelter (1758-1832)]



“Não há exagero na afirmação de que ‘a história da tuberculose é a história da civilização.’.”Com essa citação de John B. Haweso, o escritor capixaba Tulo Hostílio Montenegro (1916-96) começa o livro Tuberculose e literatura – Notas de pesquisa, publicado em 1949 (2ª ed. ampliada, 1971).

Aos mais jovens, pode ocasionar certo estranhamento que durante bastante tempo, não só em nosso país como em todo o Mundo, a tuberculose tenha sido a doença mais fatal que, por circunstâncias que discutiremos, tomando como pilar central a obra de Tulo Hostílio, tenha inspirado a produção de poetas e escritores. Apenas como exemplo, listamos alguns dos principais autores da literatura universal que foram acometidas por essa doença: Milton, Pope, Walt Whitman, Goethe, Descartes, Locke, Kant, Spinoza, Jane Austen, Balzac, Rousseau, Emerson, Novalis, Tchekov, Gorki, Dostoievsky, Schiller, Shelley, Cícero, Poe, Leopardi, Becquer, Musset e Camus.

Nascido em Vitória, Tulo Hostílio foi estatístico, primeiro no IBGE, depois na Organização dos Estados Americanos, em Washington, onde se radicou com a família. Foi membro de várias instituições científicas americanas (como a American Academy of Political and Social Science) e mereceu obituário no jornal Washington Post. Seu livro dedicado à Dama Branca (a tuberculose) foi acolhido com entusiasmo pela crítica brasileira. Dela disse Sérgio Milliet em O Estado de São Paulo: “Nossa literatura crítica carece de obras do gênero da que escreveu Montenegro. Elas ajudam a compreender melhor a criação artística.” E Érico Veríssimo, em carta ao autor: “Li com grande prazer o seu livro. [...]. Muito obrigado em nome dos tuberculosos dos meus romances!” A reedição de 1971 inclui dez páginas de “Apreciações críticas”.

À parte o esmero técnico e o significado literário e artístico da obra, Tulo parte de uma assombrosa revisão bibliográfica (522 referências) e da coleta de um número impressionante de artistas, 713 deles portadores de tuberculose. Mas o que chama  a atenção é o conteúdo humano que aflora de suas páginas. A dedicatória do livro – “À memória de minha mãe, meu pai e Nilo –, também tuberculosos”, Carlos Burlamaqui considera “a mais honesta, franciscana e bela dedicatória de que a literatura brasileira pode orgulhar-se”.

O livro está dividido em três partes: a trajetória da tuberculose desde a pré-história; a “Tuberculose na primeira pessoa do singular”, examinando poetas (por escolas literárias) e prosadores; e a “Tuberculose transferida”, abordando “a representação literária e artística da enfermidade”, ou seja, os personagens tísicos na poesia e na prosa de ficção.

“Todas as doenças têm história”, disse Jacques Le Goff. A tuberculose acompanha a raça humana desde a pré-história e dela se acharam vestígios em múmias egípcias 5.000 anos a.C. Assírios e persas já se referiam a ela. Quanto aos hebreus, as opiniões se dividem. Alguns acham que a doença era desconhecida na Judeia e outros alegam que os hebreus a adquiriram dos egípcios, tendo-lhes o contato prolongado garantido imunidade superior à de qualquer outro povo. Neste caso, teriam significado especial várias passagens do Antigo Testamento, entre as quais as do Deuteronômio e do Levítico: “Porei sobre vós o terror, a tísica e a febre, que consomem os olhos e esgotam a vida.”

Hipócrates acreditava, erroneamente, em seu caráter hereditário: “um tísico nasce de outro tísico”. Já Areteu da Capadócia dá um passo à frente, descrevendo acuradamente a enfermidade sob o aspecto clínico.

Na Idade Média, “os séculos das trevas”, nada se acrescentou de substancial ao conhecimento da enfermidade. Entra-se em “um deserto de quinze séculos, durante os quais não se avança um passo no estudo da tuberculose. [...] A opinião volta a contentar-se com a primitiva explicação do castigo divino e as preces que devemos levantar ao céu para libertar-nos da enfermidade contraída. [...] É como se a Medicina tivesse retrocedido, no rumo dos espíritos malignos e dos encantamentos”.

Chega-se então ao Renascimento, e a investigação não mais se interrompe. Morton (que morreu de tuberculose) em seu tratado sobre Phtisiologia, cunha a expressão “tuberculose pulmonar”; Laennec, também vitimado pela tuberculose, descobre a auscultação pulmonar; Villemin demonstra tratar-se de doença contagiosa; Pasteur desenvolve a doutrina bacteriana; e Robert Koch isola o bacilo transmissor da doença.

No século XIX, a tuberculose se firmou como grave problema social, ocasionando a morte de 1,5 milhão de pessoas por ano, além de deixar em inúmeros sobreviventes um rastro de sequelas físicas, psicológicas e sociais de difícil solução. Em seu estudo, Tulo priorizou a literatura produzida nessa época, que é a da escola romântica. Chamava-se a tísica então de doença da escrita. Theniers-Puget descreve-a como “causadora de vida mental mais intensa, elevando a iluminação interior ou mesmo determinando-a”. Como diz Tulo, “é como se as belas-artes atraíssem o bacilo, ou o bacilo, junto com a febre e as pontadas, desencadeasse o amor das artes, mormente o das letras”. E, como exemplo,  ouçamos o conselho dado pela mãe ao poeta Rodrigues de Abreu e transformado em verso: “Meu filho, deixa de fazer versos;/ Ouvi dizer que todo poeta morre tísico...”

Com base no culto do eu, os poetas expressavam, segundo o Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés, extremo pessimismo, sensação de perda de suporte, apatia moral, melancolia difusa, tristeza, culto do mistério, do sonho, da inquietude mórbida, tédio irremissível, sem causa, sofrimento cósmico, ausência da alegria de viver, fantasia desmesurada, atração pelo infinito, desencanto em face do cotidiano, desilusão amorosa, nostalgia, falta de sentimento vital, depressão profunda, abulia, resultando em males físicos, mentais ou imaginários que levam à morte precoce ou ao suicídio.

Como veremos quando tratarmos da poesia romântica, “época houve em que, por desconcertante sortilégio, a tuberculose chegou a fazer-se querida, veículo de morte nobre e desejada para homens que encontraram, no lento aniquilamento que ela proporcionava, sua libertação de um mundo que não os satisfazia”. De raízes na Idade Média, esta cresça de ser a tuberculose “tema de amor e de inspiração poética” fomentadora da lenda “poética e sexual” dos bardos e musas atingidos pelo “extremado amor” veiculado pela doença. Essa idealização, através de um processo gradual, determinou não só sua aceitação, mas também o “embelezamento do triste e até do repugnante” – golfadas de sangue equivaliam à “espuma de color de rosa”.

Uma apaixonada romântica, “saltando de alegria”, oferece ao amado o lenço manchado de sangue golfado do peito, dizendo-lhe, feliz:

... Ven
Y mira! Gracias al cielo,
Estoy tísica también!


Diante de tantas posturas e raciocínios extremados da intelectualidade, não é de causar maior espanto que Frederic Chopin, tuberculoso famoso, tenha ditado moda de vestimenta e de postura com suas maneiras delicadas, sorriso triste e notória palidez cutânea. O mesmo ocorrendo com o violinista Paganini que viu todas as vestimentas da época serem usadas “à Paganini”. Este período, nos conta Tulo, foi denominado da “poitrinaire” (tuberculoso, em português), que “invadiu” a arte, o sentimento, o amor e a vida. Uma verdadeira “neurose coletiva”. Mais uma vez o ontem, nos dizendo de hoje ...

Essa motivação rendeu frutos, embora viesse a se tornar um anacronismo após as primeiras décadas do século XX. A tuberculose como estilo só se justificava, quantitativamente, no século XIX, o “século de ouro da tísica”, e no começo do século XX.

Mas foi Afonso Arinos, no ensaio de crítica psicológica sobre Bandeira, quem estabeleceu uma diferenciação definitiva entre esses dois períodos quando afirmou que “a diferença entre os poetas antigos e os poetas modernos está em que os primeiros morriam e os segundos se curam de tuberculose”.

Não foi possível a Tulo Hostílio uma análise sociológica dessa disparidade entre o comportamento dos literatos no final do século XIX, particularmente dos românticos, em contraposição ao tísico-modelo do modernismo, Manuel Bandeira. Isso certamente se deve ao fato de que, quando da leitura e busca de fontes bibliográficas pelo autor, ainda existisse uma carência de textos que abordassem a sociologia da saúde e a psicologia social, textos estes que só vieram a ser apresentados no início da década de 50, em particular as publicações do sociólogo norte-americano Talcott Parsons.

Um traço característico da tuberculose foi que os indivíduos que a adquiriam se associavam como numa verdadeira “sociedade secreta”, com estatutos e hierarquia próprias. Basta uma leitura do clássico de Thomas Mann, A montanha mágica, para nos certificarmos dessa particularidade. Esse aspecto era tão claro que, já na década de 50, Koestler, estudioso das minorias, incluiu os sanatórios tísicos entre os “guetos que não são judeus”, junto com os cárceres, os campos de concentração, os mosteiros, as colônias de artistas, as minorias étnicas, os grupos homossexuais, as seitas religiosas e as agremiações políticas.

Outra questão preponderante no final do século XIX é que se acreditava que a tuberculose estava intrinsecamente ligada à hereditariedade (conceito hipocrático) e às condições de vida, como habitação e trabalho. A noção da doença implicava a noção de herança de morte. A moléstia era herdada enquanto constituição e, na época, a morte sobrevinha porque a cura inexistia. Embora abrandado na Europa a partir da segunda metade do século XIX, esse traço se manteve forte no Brasil, sendo defendido por muitos médicos, mesmo no início do Estado Novo.

Quatro dos mais significativos poetas românticos brasileiros pagaram tributo à tuberculose: Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Castro Alves.

Vejamos o que nos diz Álvares de Azevedo, autor de Lira dos vinte anos, sobre a musa branca: “Coração, por que tremes? Vejo a morte, / Ali vem lazarenta e desdentada... / Que noiva!... E devo então dormir com ela? / Se ela ao menos dormisse mascarada!”

Casimiro de Abreu foi o poeta do “Amor e medo”, que chegou a dizer que “queria a tísica com todas as suas peripécias, queria ir definhando liricamente, soltando sempre os últimos cantos da vida e depois expirar no meio de perfumes debaixo do céu azulado da Itália, ou no meio dessa natureza sublime que rodeia o Queimado”. E assim foi... A tuberculose arrebatou-lhe a vida aos 23 anos de idade. E em seu poema “No leito”, Casimiro nos diz novamente da Musa: “A febre me queima a fronte / E dos túmulos a aragem / Roçou-me a pálida face; / Mas no delírio e na febre / Sempre teu rosto contemplo...”

Castro Alves, autor de poemas que se eternizaram por sua potência e beleza, em seu poema “Adeus”, desabafa: “Quis te odiar, não pude. – Quis na terra / Encontrar outro amor – foi-me impossível. / Então bendisse a Deus que no meu peito / Pôs o germe cruel de um mal terrível”. E é no poema “O tísico” – que teve o título alterado para “Mocidade e morte” – que colhemos esta estrofe definitiva: “Morrer – é ver extinto dentre as névoas / O fanal que nos guia na tormenta; / Condenado – escutar dobres de sino / – Voz da morte, que a morte lhe lamenta – / Ah! Morrer – é trocar astros por círios, / Leito macio por esquife imundo; / Trocar os beijos da mulher – no visco / Da larva errante do sepulcro fundo. / Ver tudo findo... Só na lousa um nome, / Que o viandante a perpassar consome. [...] Adeus!... Arrasta-me uma voz sombria, / Já me foge a razão na noite fria!...”

Os parnasianos foram mais longevos. Vários trataram o tema (às vezes em tom de escárnio), mas poucos sucumbiram à doença. A tuberculose era um traço anacrônico e descabido, findo o romantismo. Como deixou claro Carvalho Filho : “Odeio as virgens pálidas, cloróticas, / Beleza de missal que o romantismo / Hidrófobo apregoa em peças góticas, / Escritas nuns acessos de histerismo.”

Mas a tuberculose, “pulando” a escola da impassibilidade, “foi tornar-se íntima dos simbolistas”. A inclusão de Augusto dos Anjos entre os simbolistas já se fazia motivo de debate quando da publicação do livro de Tulo Hostílio. Afinal, como situar o insituável autor de Eu? Poeta mórbido-pessimista, Augusto dos Anjos, embora erroneamente tenha sua morte atribuída à tuberculose (morreu em decorrência de uma pneumonia), em duas quadras de longa poesia externou sua percepção sobre esse mal: “Falar somente uma linguagem rouca, / Um português cansado e incompreensível, / Vomitar o pulmão na noite horrível / Em que se deita sangue pela boca! / Expulsar, aos bocados, a existência / Numa bacia autômata de barro /Alucinado, vendo em cada escarro / O retrato da própria consciência…”

Ainda dentro do movimento simbolista, Tulo Hostílio destacou a poetisa Auta de Souza, “a mais espiritual das poetisas brasileiras”, que, mesmo morta, continuou sendo invocada pelos espíritas, que lhe psicografaram versos. Dela selecionamos os versos retirados do poema “Dolores”: “Dentro de minh'alma doída, chorosa, / De pobre moça tuberculosa, /  Cheio de medo, tremulo, incerto/ Bate com força meu coração. // E assim morrendo, coitada, aos poucos, / Convulsa e fria, louca de espanto, / Solto suspiros, gemidos roucos, / Olhando as cruzes do Campo Santo, // Porque me lembro que muito breve / Leva-me a ele tanta dor física, / E dentro em pouco, branco de neve, / Verão o esquife da pobre tísica”.

Outro simbolista tuberculoso foi Cruz e Souza. Poeta discreto, que pouco tratou da tuberculose como tema, em seu poema “Assim seja!” nos passou a ideia que a indesejada teria sido recebida com serenidade e coragem: “Fecha os olhos e morre calmamente! / Morre sereno do Dever cumprido! / Nem o mais leve, nem um só gemido / Traia, sequer, o teu Sentir latente. // Morre com a alma leal, clarividente, / Da Crença errando no Vergel florido / E o pensamento pelos céus brandido / Como um gládio soberbo e refulgente. // Vai abrindo sacrário por sacrário / Do teu Sonho no templo imaginário, / Na hora glacial da negra Morte imensa... // Morre com teu Dever! Na alta confiança / De quem triunfou e sabe que descansa, / Desdenhando de toda a Recompensa!

Simbolista pouco conhecido nos nossos dias, Max Vasconcelos resumiu com os seguintes versos o impacto dos poetas coetâneos: “Dos que ficaram como eu: tossindo... / Monjas brancas e poetas simbolistas. / Curtindo o mesmo mal que eu vou curtindo... // Dos que morreram desejando, ver / O Pôr do Sol com as derradeiras vistas / Dos que morreram como eu vou morrer...”

Já no século XX começa a declinar a associação entre tuberculose e criação artística, passando a identificar-se a doença como grave problema de saúde por sua persistência e propagação. De mal romântico passa a mal social, o que contribuiu para a estigmatização social do enfermo.

No Brasil, a falta de interferência efetiva do poder público levou ao surgimento de Ligas (sendo a principal encabeçada pelo médico carioca, radicado em São Paulo, Clemente Ferreira) que propagaram os métodos de profilaxia vigente e criaram sanatórios. Osvaldo Cruz implementou a assistência pública à doença. Nos anos 1920 ocorreram a Reforma Carlos Chagas e a vacinação dos recém-nascidos com BCG. Em 1936 Manoel Dias de Abreu desenvolveu a abreugrafia, otimizando o acesso à investigação radiológica da população. Por fim, em 1943, dá-se a descoberta da estreptomicina pelo americano Selman Waksman (Prêmio Nobel de Medicina), possibilitando o tratamento e o controle efetivos da tuberculose. Enumerando-se assim, passam despercebidos uma série de atropelos, retrocessos e embates existentes dentro da classe médica e entre esta e os órgãos oficiais (seja da Velha República ou do governo Vargas), mas não foi esse o objetivo principal do ensaio elaborado por Tulo Hostílio.

Manuel Bandeira, ressalta Tulo, é o personagem “mais importante da literatura brasileira, se se considera a influência da tísica sobre a gênese e o desenvolvimento de uma vocação literária. Em nenhum outro intelectual patrício teve a identificação com a doença tão permanente caráter”.

Destaque-se um comentário de Ribeiro Couto dirigido a Bandeira ao recebê-lo na Academia Brasileira de Letras: “Não fora o acidente da enfermidade, não teríeis talvez escrito a vossa obra, isto é, a mesma obra, com os seus motivos fundamentais, vividos por experiência direta. Faltaria o tormento de olhar a vida pela janela sem poder tomar parte no voluptuoso tumulto; dessarte, não viríeis a descobrir depois dos quarenta anos o reino de Pasárgada – país dos recalques em liberdade, dos antigos desejos compensados, das alegrias enfim permitidas.”

“Eu faço verso como quem morre”, nos sussurra Bandeira. E a Ribeiro Couto responde: “Se não for isso, não farei mais nada, porque em mim o poeta é a tuberculose. Eu sou Manuel Bandeira, o poeta tísico”. E disse mais: “A moléstia não chegou sorrateiramente, como costuma fazer, com emagrecimento, febrinha, um pouco de tosse, não: caiu [...] de supetão e com toda a violência, como uma machadada de Brucutu”.

A morte anunciada, numa época sem penicilina, assombrou o imaginário do poeta condenado, tecendo o tempo que se esvai na tediosa espera do fim. Bandeira passou a vida esperando a morte e morreu aos 82 anos. “A vida inteira que podia ter sido e que não foi”.

Em um dos poemas de Carnaval,“A Dama Branca”, a morte e a tuberculose se mostram inteiras:


A Dama Branca que eu encontrei,
Faz tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.

Era sorriso de compaixão?
Era sorriso de zombaria?
Não era mofa nem dó. Senão,
Só nas tristezas me sorriria.

E a Dama Branca sorriu também
A cada júbilo interior.
Sorria como querendo bem.
E todavia não era amor.

Era desejo? – Credo! de tísicos?
Por histeria... quem sabe lá?
A Dama tinha caprichos físicos:
Era uma estranha vulgívaga.

Era... era o gênio da corrupção.
Tábua de vícios adulterinos.
Tivera amantes: uma porção.
Até mulheres. Até meninos.

Ao pobre amante que lhe queria,
Se lhe furtava sarcástica.
Com uns perjura, com outros fria,
Com outros má.


- A Dama Branca que eu encontrei,
Há tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.

Essa constância de anos a fio,
Sutil, captara-me. E imaginai!
Por uma noite de muito frio,
A Dama Branca levou meu pai.


Quem seria a Dama Branca: a tuberculose – Musa Branca – ou a morte? Diz-nos Emanuel de Moraes tratar-se de “uma transposição de conceitos, mas não de sentimentos em relação à morte”, sendo então a Dama Branca “a mulher representativa do seu erotismo exacerbado. [...] a união de temas num só corpo – numa só Musa – sem aquele horror do poeta romântico”. A Dama Branca seria, “criatura luminosa e ao mesmo tempo corrupta”, sendo simplesmente “a personificação da tísica na sua concepção poética”.

A tuberculose entre os prosadores, nos diz Tulo, teve seu recenseamento comprometido ao longo dos tempos devido à carência de dados. O que aconteceu de notório é que o preconceito contra os prosadores tísicos foi muito maior que com os poetas. Como se a tísica fosse, como já sinalizamos anteriormente, lugar-comum e desejável para os jovens lívidos bardos veneradores da Musa Branca. Estes se situavam “confortavelmente”, aos olhos da sociedade novecentista e do início do século XX, em sua relação com Thánatos. Mas não podemos nos furtar da relembrar o romancista Graciliano Ramos, que contraiu tuberculose nas prisões do governo, durante o Estado Novo. Em Memórias do cárcere Graciliano retratou, de forma clara e irretocável, se mantendo como documento histórico, o “lado sinistro de uma ditadura frequentemente considerada suave”. Outro notório tuberculoso foi nosso dramaturgo maior Nelson Rodrigues, que teve sua primeira peça ensaiada durante sua internação no sanatório de Campos de Jordão, quando se encontrava internado para tratamento da tisica.

Tuberculose e literatura é um marco na literatura brasileira. Foram poucos os autores que se dispuseram a realizar um trabalho profundo e definitivo, capaz de demonstrar que a tuberculose, em todas as suas fases clínicas, em diversos momentos históricos e circunstâncias evolutivas da sociedade humana, é uma doença capaz de influenciar criador e criatura, “dessemelhante nas características individuais, mas homogênea nas reações perante o bacilo de Koch. Porque, como dizia Stênio sobre João Alphonsus: “Um tuberculoso é um elemento sem pátria, nem fronteiras [...] Um ladrão chinês é um ladrão chinês, diferentíssimo do ladrão turco, brasileiro, norte-americano, a começar pelas coisas que furta, como furta, etc. Um sujeito honesto é também diferente em cada país, como o gigolô, o político, o funcionário público, o vendedor ambulante. Mas um tuberculoso é o mesmo em qualquer parte do mundo, internacionalizado pelo mesmíssimo bacilo...”

Ouçamos, por fim, o que nos diz o poeta Barbosa de Freitas, de muitos desconhecido e, pelo autor capixaba, resgatado em seu leito de morte na Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza:


Sombras da noite eterna, horríveis sombras,
O que buscais em torno do meu leito?!
Vireis trazer-me o bálsamo da vida,
...................................................

Ou alertar a esperança no meu peito?
Sombras da noite eterna, horríveis sombras!

Deixai, deixai-me em plácido sossego!
Inda lobrigo, à tênue luz dos sonhos,
Nos meus vergéis as gramas viridentes,
Meus perfumosos lírios tão risonhos!
Deixai-me, deixai-me em plácido sossego.

Sinto saudades das manhãs de moço,
De ti. Maria – inocentinha hebreia,
Mas... qual da noite a luz do fogo errante,
De minha vida a lâmpada bruxuleia,
Sinto saudades das manhãs de moço,
..................................................

Sombras da noite eterna, horríveis sombras!
Não me oculteis da vida a claridade...
Não me lanceis tão cedo, oh! Impiedosas!
Na enxovia fatal da eternidade!
 Sombras da noite eterna, horríveis sombras!
................................................

É cedo ainda, oh! pálidos coveiros!
Ainda quero beber venturas, enganos...
Quero cantar a minha doce aurora,
Que me sorri aos meus vinte e dois anos!
É cedo ainda, oh! pálidos coveiros!
...............................................

Tenho nojo do esquife, odeio as nênias!
Causa-me tédio o sino que retumba.
Maldigo o seco crepitar dos círios,
Prostra-me a ideia da sombra tumba.
Tenho nojo do esquife, odeio as nênias!

Sabei agora, oh! lívidos fantasmas!
Quando meu ser cair na dura estrada
Como a lua que se apaga à ventania
Voltarei ao temor, ao grande nada!
Sabei agora, oh! lívidos fantasmas!


Bibliografia consultada:

MONTENEGRO Tulo Hostílio. Tuberbulose e Literatura - Notas de pesquisa – Segunda edição revista e aumentada, 1971. Rio: A Casa do Livro.
CASTELLANOS Marcelo E. P. e NUNES Verardo Duarte. A Sociologia da Saúde: Análise de um Manual. PHYSIS: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):353-371, 2005.
ADAM, Philippe & HERZLICH, Claudine. Sociologia da doença e da medicina. Tradução de Laureano Pelegrin. Bauru: Edusc, 2001.
MACIEL M. S., MENDES, P. D., GOMES, A. P. e SIQUEIRA-BATISTA, R. A história da tuberculose no Brasil: os muitos tons (de cinza) da miséria. Revista Brasileira de Clínica Médica. São Paulo,10(3):226-30,2012.
OLIVEIRA Rafael Soares. O último tísico: A imagem tuberculosa na poesia de Manuel Bandeira. Caligrama. Belo Horizonte, 11:93-100,2006.
ANTUNES J. L. F., WALDMAN, E. A., MORAES, M. A tuberculose através do século: ícones canônicos e signos do combate à enfermidade.Ciência & Saúde Coletiva, 5(2):367-379, 2000.
GONÇALVES, Helen. Peste branca; um estudo antropológico sobre a tuberculose. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
BERTOLLI FILHO, Claudio. História social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.


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Jorge Elias Neto (1964) é capixaba, cardiologista e poeta residente em Vitória – ES. Tem vários livros publicados é colaborador em vários blogs e revistas literárias. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Não basta ao homem a informação.  Ele - o conhecimento - não se instala como “verdade” na vida de quem o procura. Na maioria dos casos, ele...


Não basta ao homem a informação.  Ele - o conhecimento - não se instala como “verdade” na vida de quem o procura. Na maioria dos casos, ele remenda o que a vida e as circunstâncias históricas trataram de esgaçar e ferir.

Há de se ter esta visão em perspectiva quando se analisa a obra do poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914), certamente um dos mais controversos e polêmicos poetas da literatura brasileira.

Nascido no Engenho Pau d´Arco, no sertão da Paraíba, Augusto dos Anjos deixou gravado na memória de nossa língua  um livro único denominado Eu e outras poesias. Em uma literatura de tantos autores profícuos, o poeta paraibano perfila entre os autores de uma obra única e definitiva, a exemplo do grande poeta Dante Milano e de Álvares de Azevedo,  autor da Lira dos vinte anos.

Embora não afeito à análise de um autor partindo de uma escola em que ele se insira, talvez por um viés atribuível à minha não origem na Academia ou a uma ausência de sentido do termo “escola”, em um tempo de poesia vária, onde inexiste uma unidade estrutural ou temática, seria impossível falar de Augusto dos Anjos sem dizer dos inúmeros textos que abordam sua obra sobre esse prisma.

Sejam quais forem os estudos e em que época foram produzidos, a concordância é de que Augusto dos Anjos  é um “poeta de confluência”, não podendo ser estudado em apenas uma direção, nem localizado em um só período. Não só esse trânsito é pacífico entre os que se aventuraram pela sua crítica, mas também o reconhecimento de que ele comunga com características que se opõem com radicalidade, muitas vezes num mesmo texto poético.

Assim resumiu a estudiosa Lucia Helena a obra de Augusto dos Anjos: “um soneticista da poesia cientificista do realismo-naturalismo com ecos de simbolismo”. E ela ainda foi incompleta, como veremos...

A grande crítica feita ao olhar impressionista dos primeiros críticos de Augusto dos Anjos foi a acentuada exaltação do eu augustino, sua trajetória de vida e seu sofrimento pessoal – homem sensível, fragilizado pelas circunstâncias familiares e de saúde (atribuíram sua morte, erroneamente, a uma tuberculose) – como fator quase que único de análise da obra do poeta. Nada mais divergente quando se trata de um poeta com evidente caráter expressionista, de vanguarda, que, com uma estética diversa de sua época, buscou situar o homem de seu tempo. Obviamente o “eu lírico” se nutre das circunstâncias, mas, como as transpõe para o poema, os recursos estilísticos e a mescla do clássico com o porvir modernista é que merecem um maior detalhamento, quando diante da obra desse grande poeta. Como consequência dessa abordagem, por muito tempo a crítica literária e os livros didáticos reservaram a Augusto dos Anjos epítetos reducionistas como “poeta da morte” e “poeta do horroroso”.

Com o surgimento da “nova crítica”, a partir dos anos 50, tendo à frente o crítico Afrânio Coutinho, uma critica agora menos amadora, realizada em nível da “Academia”, com um olhar menos impressionista e priorizando a estética, a obra de Augusto dos Anjos passou a despertar maior interesse dos pesquisadores.

Sigamos, então, os breves passos desse “filho do carbono e do amoníaco” e suas “negras sombras” pela terra “dos lázaros”, até ser colhido pela morte “ a costureira funerária” que lhe costurou “a última camisa” em 1914 e o lançou “na frialdade inorgânica da terra”.

Os primeiros poemas de AJ apresentam acentuado traço simbolista como nos mostra o soneto “Vandalismo”:

Meu coração tem catedrais imensas,
templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

Mas a grande e definitiva transformação ― aquela que tornou a poesia de Augusto dos Anjos única ― ocorreu com sua ida para Recife, para cursar direito.

Com o fim do Romantismo previa-se um futuro sombrio para a poesia. A poesia havia se tornado incompatível com o espírito de uma época onde o avanço da ciência e a predominância da razão impediriam a sobrevivência das ilusões, dos sentimentos e da imaginação – então matéria-prima do “eu lírico”. Mas o que fazer, se a poesia é algo fundamental para a humanidade?

Como alternativa à crise por que passava a poesia brasileira, surgiu a poética científica, que teve na Faculdade de Direito de Recife, nas figuras de Silvio Romero, Rocha Filho e Martins Junior, alguns de seus principais teorizadores.

Em Recife, Augusto dos Anjos entrou em contato com o Racionalismo religioso de Spencer e o Monismo de Haeckel . Ouviu e, sobretudo, leu sobre a morte do Deus antropomórfico e pessoal e o surgimento de uma nova trindade, a trindade monista constituída pelo “Verdadeiro, o Bem e o Belo”.

É nesse momento que Augusto dos Anjos se apropria de termos biológicos e médicos para expressar seu espanto diante da expansão que ocorre do entendimento humano.

Foi a partir dessa marcante influência do cientificismo nos poemas de Augusto dos Anjos que muitos críticos o taxaram de poeta científico. Críticos da grandeza do poeta Lêdo Ivo e de Antônio Cândido, que definiram Augusto como “um rastilho da explosão” cientificista.  Mas, conforme nos mostra o poeta na estrofe abaixo, colhida do poema Monólogo de uma Sombra, os críticos novamente incorreram em uma simplificação:

Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na ideia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!

Ou ainda do poema As Cismas do Destino:

Homem! por mais que a Ideia desintegres,
Nessas perquisições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!

Outra corrente crítica é a que insere a obra do nosso poeta maior no período denominado Pré-modernismo ou Belle Époque. Período de transição, que não alcançou o status de escola literária, caracterizado pelo ecletismo que surgiu em 1902 com a publicação do Canaã, de Graça Aranha, e Os Sertões, de Euclides da Cunha. Período que, em tese, durou cerca de vinte anos, de 1902 a 1922.

Augustos dos Anjos “viria a se inserir perfeitamente” nesse período de obnubilamento e estranhamento, em um final de século (XIX) que, segundo Alexei Bueno, “se caracterizou pela excelência do ufanismo científico, da euforia do conhecimento da ilusão do progresso ilimitado, criador de uma relativa onipotência do homem sobre a matéria”. Mas é um paradoxo dizer que toda perplexidade e negativismo de Augusto dos Anjos possa se inserir em um tempo no qual, conforme nos diz Afrânio Peixoto, a literatura fora concebida como “o sorriso da sociedade”.

Ora, acrescenta a estudiosa Maria Olívia Arruda, denominar Augusto dos Anjos de poeta pré-moderno seria como que “colocá-lo numa espécie de limbo da criação” pois, segue a autora, “ser pré-moderno era o mesmo que ficar em suspensão, permanecer no vácuo entre o romantismo e o modernismo”. Isso atenderia o mesmo objetivo dos que tentaram ocultar a obra do poeta paraibano por considerá-lo antagônico aos poderes vigentes ou um demiurgo deslocado do eixo mantenedor do poder cultural no país.

Creio ser esse o ponto crucial na análise da obra de Augusto dos Anjos. Ponto de inflexão de onde partimos para o que de mais atual e significativo foi dito sobre sua obra.

Passou-se quase um século até que viessem à baila estudos focados em três fundamentos da obra do poeta: a aproximação com o expressionismo alemão, a modernidade dos textos e a culpa como pilar de sua poética.

Talvez o texto crítico que melhor defina as influências filosóficas de Augusto dos Anjos seja o de Anatol Rosenfeld que enumerou os pontos em comum entre o Eu augustino e a poesia dos poetas do movimento expressionista alemão.  Obras escritas por autores que nasceram, viveram, produziram seus poemas e morreram na mesma época de Augusto dos Anjos e que, mesmo desconhecidos entre si, apresentaram uma convergência incontestável de ideias.

Se traçarmos uma linha imaginária entre a obra desses autores, teremos como ponto de encontro a obra do filósofo alemão Schopenhauer.  Daí Anatole considerar que a principal  influência de Augusto dos Anjos não tenha sido Haeckel ou Spencer, mas sim o autor do Mundo como vontade e representação.  Diz-nos Schopenhauer:

Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o açougueiro já está a escolher um ou outro com os olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade justamente o destino nos prepara – doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte, etc.

São inúmeros os momentos da obra de Augusto dos Anjos que lembram a obra do filósofo alemão. A evocação de imagens lúgubres com no soneto Solilóquio de um visionário:

Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A utilização de metáforas encarrilhadas nos moldes de uma alegoria, utilizando uma de suas imagens preferidas – a do verme:

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Mas é no celebre poema Versos íntimos que o poeta despeja sobre nós toda sua angústia existencial e prova ter bebido do pessimismo schopenhauriano:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera,
Somente a Ingratidão - esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Poderíamos dizer que, em suas reflexões, Augusto dos Anjos encontrou a verdade dos corpos putrefeitos e assim eles deveriam ser apresentados. Lavá-los destruiria sua pureza e demonstraria a falsidade dos gestos cotidianos.

Falemos agora um pouco do lugar de Augusto dos Anjos na modernidade.

Conforme o grande poeta e ensaísta mexicano Octávio Paz, autor de O arco e a lira, o que distingue a modernidade é a crítica: "o novo se opõe ao antigo, e essa oposição é a continuidade da tradição".

Ou seja, conforme nos diz Hildeberto Barbosa Filho, “a tradição moderna se cristaliza na ruptura”, e, continua o pesquisador, “é exatamente esta ruptura com a tradição parnasiana, já estéril em tratar do novo momento do homem (...), o primeiro traço de modernidade” em Augusto dos Anjos.

Na mesma linha, Abrahão Costa Andrade vai mais longe, ao afirmar que, ao contrário do que se convencionou pensar― sempre baseado nas convenções advindas da ideia de hegemonia da região sudeste como o eixo central da cultura brasileira ―, “não foi o maravilhoso poeta Manuel Bandeira e sim Augusto dos Anjos o primeiro poeta moderno brasileiro”.  Segundo esse autor, a poesia do poeta paraibano não seria uma posição de transição e sim de “ruptura originária: sua poesia seria a origem da moderna poesia brasileira”. Faz-se necessária então, mais uma vez, distinguir moderno (o autor que realizou a ruptura estilística) com modernismo (o movimento propriamente dito com data marcada na agenda história de nossa literatura).

Mas dentro de todo absurdo existe um reino de impiedosas perdas. E qual foi a grande perda – a sombra – que Chico Viana encontrou na obra trágica de Augustos dos Anjos?

A sombra do pecado original.

Em seu O evangelho da podridão, o estudioso, também paraibano, tenta responder: onde encontrar o “elo perdido” do poeta Augusto? Com quantos fragmentos do eu se construiu o Eu caleidoscópico de Augusto dos Anjos? Como, conforme nos diz Secchin, “o poeta busca construir sua precária utopia do uno...?”

E ele nos surpreende ao enxergar um “eu lírico” barroco em Augusto dos Anjos.  Um eu despido do humanismo greco-latino que se caracteriza pela graça e pela beleza. Um eu-proteico, chafurdando na lama, por força do pecado original; um eu que aspira ao excessivo e melancólico por saber-se culpado.

E como reage o eu lírico destituído de identidade com o ser supremo, desconstruído e fragmentado? Através da sublimação e da utilização da alegoria para realizar um escambo com o sem-sentido. Daí dizer o autor da impossibilidade da “língua paralítica”, pois a língua não mais diz o ser.

De onde ela vem?! De que matéria bruto
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!

Conforme o linguista José Augusto Carvalho, a “língua paralítica” diz da “dificuldade que a linearidade do signo linguístico (encadeamento de palavras) impõe na expressão de uma ideia. Quando pensamos ou quando vemos um quadro, temos a visão global, una, total do que pensamos ou vemos”. Por isso, nos diz o linguística, Drummond diz que "lutar com palavras é a luta mais vã"; por isso Bilac fala nas "confissões de amor que morrem na garganta". Em outras palavras, “nós pensamos paradigmaticamente, mas falamos e escrevemos sintagmaticamente.”

Augusto dos Anjos trabalha com o conceito da insignificância humana. Daí ser recorrente o antropofagismo em sua obra. Parte-se do esquecimento e chega-se ao esquecimento...

O antropofagismo em Augusto dos Anjos suplanta a obviedade sinalizada por seus primeiros críticos; atravessa o século XX como precursor oculto do modernismo; expande-se ao homem do seu tempo e chega ao século XXI  encontrando ainda ressonância, fato em nada surpreendente, porque é a negação da morte,  tão bem sinalizada pelo discípulo e dissidente freudiano Otto Rank o grande impulsionador do artista, seja rumo ao salto transcendente camusiano, seja através da sublimação ou da atitude neurótica. Augusto dos Anjos foi este poeta de olhar insubornável, perdido na ausência. Poeta com um olhar entardecido de uma ilusão.

Talvez seja essa a vertente que mais me agrada neste verdadeiro emaranhado critico em torno da obra desse poeta tido como inclassificável.  Idiossincrasias e heterogeneidade de conteúdo à parte, talvez o que apenas agora, com o distanciamento histórico necessário, fica claro é que Augusto dos Anjos foi o poeta precursor do modernismo brasileiro. Não como movimento organizado, mas como fruto da revolução cultural e filosófica que impulsionou todos poetas pioneiros do modernismo ―  como o caso de Baudelaire ―  no mundo ocidental.

Jorge Elias Neto (1964) é capixaba, cardiologista e poeta residente em Vitória – ES. Tem vários livros publicados é colaborador em vários blogs e revistas literárias.
(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)