Pedro parou na banca de jornal, a três quadras da delegacia para comprar um maço de cigarros, quando a RP 015 encostou ao seu lado. Ao volan...

O caso do velho pardieiro ou uma batida infeliz

Pedro parou na banca de jornal, a três quadras da delegacia para comprar um maço de cigarros, quando a RP 015 encostou ao seu lado. Ao volante, Anastácio ofereceu carona.

Pedro podia ter recusado já que estava quase chegando ao trabalho, mas aceitou.

Anastácio, vez por outra, enriquecia o repertório de anedotas de Pedro que tinha apenas o trabalho de aprimorá-las com mise-en-scène para repassá-las aos amigos. Só que não deu tempo para Anastácio contar a última. O percurso era pequeno e logo chegaram à Chapot Presvot, 272, sendo atropelados pelo delegado Digital.

O delegado aguardava a RP indócil. Foi o tempo de abrir uma das portas laterais e entrar como um bólido, ordenando: “Toca para o centro da cidade. Dois pivetes assaltaram uma financeira e adentraram num prédio na Duque de Caxias. Rapidinho.”

“E eu, delegado!?” perguntou Pedro que não pode sair da viatura.

“Você vem junto!” decretou Digital.

“Mas eu sou escrivão de polícia!” reclamou Pedro, embora tardiamente porque a RP já havia partido rangendo as borrachas no asfalto.

“É bom que você aprenda como a polícia age,” disse Digital como se Pedro, escrivão calejado, ignorasse o modo de agir da polícia e, em particular, de Digital.

Na Duque de Caxias não faltam prédios velhos e desocupados. Se Pedro soubesse de cor as palavras com que o cronista José Carlos de Oliveira descreveu o local, era o caso de repeti-las: “estamos na tortuosa, ondulante, magnífica rua Duque de Caxias, onde o que restou do Brasil-Colônia se esfarela, se enferruja, se carcome, estala e de vez em quando desaba num fragor de tijolos bolorentos e telhados podres”.

Foi diante de um desses mulundus em frangalhos que a RP 015 parou de sirene aberta, as lanternas psicodélicas piscando como boate ambulante, atraindo gente de todos os lados. Os dois pivetes, depois de assaltarem a financeira Quadrângulo, na praça Costa Pereira, teriam sido vistos entrando, não se sabe como, num dos pardieiros “da tortuosa, ondulante e magnífica rua”.

Saltando da viatura com a fúria de um buldogue, Digital gritou para dois policiais que o precederam no encalço aos assaltantes: “Limpem a área! Afastem os pentelhos! A polícia é que é incumbente de pegar bandido!”

Pedro, que saiu da RP atrás do delegado, caiu na burrice de dizer: “Pela porta da frente não entrou ninguém. Está fechada com tapume.”

“Não meta o nariz onde não é chamado,” esbravejou Digital. “Você veio aqui para ver a polícia agir e não para dar pitaco!”

O escrivão se recolheu então à condição de aprendiz da ação comandada pelo delegado, e já que estava em frente de outro edifício ainda em funcionamento, no qual trabalhava seu amigo, autor da tira de textos da Chapot Presvot, 272, decidiu subir para rever o escritor e, lá de cima, assistir à investida de Digital na captura dos assaltantes da Quadrângulo.

Pedro sabia que a sala do amigo dava estrategicamente para o prédio em despedaços diante do qual a RP 015 havia estacionado, sendo possível devassar o interior do soturno pardieiro através dos velhos janelões escancarados.

Mas curiosamente, quando Pedro entrou na sala, o amigo não dava a mínima atenção para a balbúrdia que reinava na rua, concentrado sobre o teclado de um computador.

Constrangido por não ter sido percebido, Pedro se anunciou raspando o pigarro da garganta.

“Com todos os demônios, eu não vi você chegar,” disse o amigo de Pedro.

“Cheguei, mas sem os demônios,” respondeu ele, procurando ajustar sua magreza na cadeira de encosto flexível que lhe foi oferecida. Nisso que falou, nisso pensou, com os seus pigarros dos cigarros que o único demônio que o acompanhara tinha ficado na rua de arma no coldre e focinho arreganhado, dando ordens aos policiais que forçavam, com um pé de cabra saído não se sabe de onde, o tapume de madeira do prédio onde os dois pivetes teriam se infiltrado.

“Como você consegue ficar alheio ao rebuliço lá de fora?” indagou Pedro. “Não me diga que está em plena atividade literária.”

“É por aí... Se não me interesso pelo rebuliço lá de fora é porque dou preferência ao que está se passando aqui, nesta telinha iluminada,” e o amigo de Pedro indicou o monitor onde se alinhava o texto que estava escrevendo.

“Posso saber que texto é este?” perguntou Pedro desligando-se, como intelectual que era, do bafafá que reinava no rés da rua.

O amigo respondeu com bonomia:

“O texto é sobre o que está se passando lá fora. Em outras palavras: o que está se passando lá fora está se passando aqui dentro da telinha. Ou para ser mais explícito: só estão se passando coisas lá fora porque elas se passam diante dos meus olhos. Percebeu a dimensão em que se trava o nosso encontro?

Como Pedro ainda não tivesse captado o espírito da “coisa”, o amigo convidou: “Dê uma olhada no que escrevi linhas atrás,” e apontou o trecho com o dedo: “Cheguei, mas sem os demônios,” respondeu Pedro, procurando ajustar sua magreza na cadeira de encosto flexível que lhe foi oferecida.”

“Então estou diante do escritor atuando no espaço virtual da sua criação literária?” indagou Pedro animando-se com a própria indagação.

“Tu o disseste. É por isso que não preciso ir à janela para ver Digital em polvorosa, nem o que está se passando no entorno dele. Porque o que se passa lá fora se passa no ‘quadrângulodo computador, onde estamos eu, você, Digital, a RP de luzes espalhafatosas, o povo aglomerado na expectativa da prisão dos dois larápios que se ocultaram num prédio em pandarecos.

“Uma criação em se fazendo,” definiu Pedro para se manter no espírito literário da conversa.

“Tão em se fazendo que você pode dar uma mãozinha. Quer tentar?”

“Por onde começamos? Ou de onde continuamos,” arvorou-se Pedro, esfregando as mãos momentaneamente vazias de cigarro.

“Pegue do ponto onde o texto parou e mande bala. Mas lembre-se de que a questão principal a ser resolvida é como o delegado vai conseguir ou não prender os dois bandidos,” disse o escritor a Pedro.

“Ou como queremos que ele os prenda, se é que queiramos”, completou o escrivão.

Queiramos, não, porque estou passando a você a pilotagem do texto. Assuma o comando e continue a perseguição. Eu fico só de co-piloto para eventuais emergências. Proposta aprovada?”

Nem foi preciso dizer mais nada. Assumindo o lugar do amigo diante do computador, Pedro se pôs a digitar, e digitar rapidamente como bom escrivão que era. Cinco minutos depois, tinha terminado.

“Leia a sua contribuição,” pediu o amigo de Pedro.

E Pedro leu: Digital entra no velho prédio pelo tapume que foi posto abaixo e faz uma investigação completa, à procura dos sumidos assaltantes. Não encontra vivalma. No último andar, tropeça num restolho de parede demolida, bate com a cara no assoalho e quebra o nariz que sangra. O herói, que iniciara a busca aos bandidos num arrojo de mastim, deixa o prédio pela porta arrombada com a carranca envolta num lenço ensanguentado, a caminho do pronto-socorro. Vive a triste humilhação do anti-herói.

“O que você achou?” perguntou, concluída a leitura.

“Perfeito, inclusive pela sua desforra contra Digital,” elogiou o amigo.

“Que desforra?”

“O nariz quebrado do delegado, meu caro! No começo da batida, Digital disse para você não meter o nariz onde não era chamado. Inconscientemente você foi à forra, esmigalhando o nariz do seu chefe num assoalho desgastado. Solução primorosa, anticlímax perfeito que tem ainda a originalidade de partir de um dos protagonistas da história, um dos passageiros da RP 015, o escrivão da Chapot Presvot, 272. E quer saber de uma coisa? Está na hora de você ir ao encontro do delegado. Pela sua proposta de enredo, ele está precisando de ajuda. A missão é sua, meu caro. Não foi à toa que a Providência Divina o pôs na RP da batida na Duque de Caxias.”

“Providência Divina?” indagou Pedro que se preparava para sair. “Como você explica a intervenção dessa providência no contexto de um texto que é nosso?”

“Desde que você encare a expressão em tom de blague, ela vem a calhar. Não se esqueça de que estamos na tortuosa, ondulante e eu diria também soturna Duque de Caxias, onde tudo é possível!”

“Será que estamos mesmo?” perguntou Pedro retirando-se da sala.


[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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