Devia haver uma expressão especial para definir a perplexidade de Pedro quando chegou à delegacia e viu o que viu: sentado no banco imundo d...

Amigos, amigos ou um flagrante delito

Devia haver uma expressão especial para definir a perplexidade de Pedro quando chegou à delegacia e viu o que viu: sentado no banco imundo da sala de espera, indignamente algemado e em posição de acabrunhamento, estava o seu amigo LG.

“O que aconteceu com você, meu amigo?” exclamou Pedro diante de um LG cabisbaixo.

“É o que você está vendo, amigo Pedro,” disse o amigo LG de Pedro. “Fui preso e vergonhosamente algemado. Minha auto-estima foi a zero.”

“Mas por quê, amigo LG?!”

“Porque eu tive a infeliz ideia, amigo Pedro, de parar aí em frente e tirar uma fotografia da delegacia. Só isso. Quando tirei o olho da máquina (eu ainda uso máquina para tirar fotos), fui abordado por dois policiais que saltaram de uma viatura, que freou quase em cima das minhas sandálias literárias, e fui devidamente encanado. Sem direito nem sequer de puxar minha carteira de identidade e perguntar, segundo a melhor tradição brasileira, sabem com quem estão falando?”

“Eu não acredito!” disse Pedro, constrangidíssimo com o acontecido.

“Pois acredite, amigo Pedro.” E, para dirimir qualquer dúvida de Pedro, o amigo LG ergueu os pulsos onde duas algemas se enroscavam como garras de aço. “Veja a prova do que estou falando...”

“É uma indignidade o que fizeram com você, amigo LG.”

“Eu também acho,” concordou LG.

“Não deu nem para explicar a esses esbirros que você estava apenas tirando uma foto da delegacia?” perguntou Pedro.

“Deu, amigo Pedro. Eu disse aos esbirros, como você os chamou, que a casa onde fica a delegacia é um exemplar clássico da arquitetura residencial da década 50, o que já é razão de sobra para ser fotografada. Disse também que a fotografia era para eu lhe dar de presente, por você trabalhar na casa fotografada. Mas nem citando seu nome adiantou muita coisa, amigo Pedro. Parece até que piorou. Os dois verdugos acharam que eu estava querendo embromá-los, ou sei lá o quê. Não acreditaram que eu fosse capaz de tirar uma foto de uma casa só porque ela é antiga, para dar de presente a um amigo que é o escrivão da delegacia que funciona nessa mesma casa. ‘Essa história está mal contada’, disse um dos pitbulls e o outro concordou: ‘É, broder, está mal contada, vamos ter que tirar tudo a limpo...’ E manietaram-me com as algemas que um deles tirou do bolso, trazendo-me aqui para esperar a sua chegada e esclarecer se de fato nós somos amigos ou não.”

“Você disse que foram dois policiais que o prenderam, amigo LG?”

“Foram, amigo Pedro...”

“E onde eles estão?”

Pedro fez a pergunta virando a cabeça de um lado para o outro, procurando os algozes do amigo.

“Simplesmente saíram,” explicou o algemado.

“Saíram?”

“É que logo depois que eu fui encanado chegou o delegado Digital, de celular grudado na orelha, e convocou os dois policiais para uma diligência urgente. Pelo que pude entender, eles foram socorrer o deputado Ribeirinho, cuja mansão de verão foi assaltada numa das praias de Guarapari. ‘E o elemento que nós algemamos?’ perguntou um dos policiais me indicando com o beiço. ‘Um algemado a mais ou a menos não faz diferença. Deixa mofar em rebanho-maria até a gente voltar..’ respondeu o delegado, sem nem sequer me dirigir o olhar.

“É bem a cara de Digital, com rebanho-maria e tudo,” disse Pedro, balançando a cabeça em sinal de reprovação. “Mas vamos dar um jeito nisso, amigo LG. Vou tirar suas algemas – suas é um modo de dizer, me desculpe – para você sair daqui o mais depressa possível. Depois eu acerto tudo com Digital.”

“Olha, amigo Pedro, eu não quero criar complicação para você,” disse LG preocupado. “Somos amigos de longa data, parceiros de encontros na livraria Logos, temos uma queda em comum pela literatura, você aprecia os meus rabiscos literários, eu aprecio os seus, você é senhor e dono do site Tertúlia Capixaba, eu sou freguês e colaborador do mesmo site, tudo isso é muito importante para que a gente ponha a perder se você tiver problemas com o delegado por causa da minha soltura. Gostou do soltura? Mesmo algemado, posso ficar aqui na sua companhia até o delegado voltar para esclarecermos o mal-entendido.”

“Nada de ficar aqui, amigo LG. Esta delegacia não é lugar para você. Vou soltá-lo agora mesmo,” rebateu Pedro.

E enfronhou-se numa busca frenética, mexe de um lado, mexe do outro, entra numa sala, vai para outra, fala daqui, fala dali, procura e anda, anda e procura. De vez em quando olhava para o amigo LG, dava um risinho amarelo para animá-lo, e voltava à sua busca-rebusca, onde é que está, onde não está, “cadê a porra da chave das algemas,” gritou apoplético.

“O policial deve ter levado com ele, amigo Pedro,” disse LG com o queixo apoiado nas mãos engatadas, trazendo o escrivão de polícia à realidade que ele se negava a aceitar.

“Então vamos resolver o caso de outra forma,” disse Pedro, irritadíssimo. E gritou para a cozinha da delegacia: “Lenilda, ô Lenilda!”

Lá de dentro veio uma mulher magra e baixinha, toda agitada, de cabelo preso atrás da nuca com uma borrachinha de amarrar dinheiro. “O senhor me chamou, seu Pedrinho?”

“Chamei sim. Este aqui é um dos meus melhores amigos,” disse Pedro apresentando o amigo LG, que se levantou educadamente do sórdido banco em que purgava sua detenção e estendeu as mãos algemadas para Lenilda, dizendo “muito prazer”.

“O prazer é meu,” disse ela, apertando as duas mãos que lhe foram estendidas quase num pedido mudo de socorro, sem que Lenilda estranhasse que um amigo tão amigo de Pedro estivesse algemado diante dela, numa demonstração evidente de que naquela delegacia nada era de estranhar e a lei ali se aplicava rigorosamente a todos, sem exceção.

“Lenilda, me traga, por favor, aquela gazua que você guarda na cozinha, para eu soltar o meu amigo,” pediu Pedro.

Um pé lá, outro cá, Lenilda vai, Lenilda vem de gazua enferrujada na mão de unhas pintadas de roxo para entregá-la ao escrivão que depressa enfiou a ponta do instrumento no fecho das algemas que se abriram com um plec que deixou LG de pulsos soltos, a liberdade recuperada, a dignidade restabelecida, o coração reconfortado, que amigo é para essas coisas, amigo Pedro!

“Pronto, amigo LG, o caso está resolvido!” disse Pedro.

LG podia ter dado um abraço no seu libertador, apertado sua mão com veemência antes de se escafeder para todo o sempre da Chapot Presvot, 272, esquecendo para o resto da vida que um dia tinha caído naquela arapuca sórdida. Mas num descuido de inteligência que lhe é peculiar, LG resolveu fazer a pergunta que teimosamente bailava em sua cabeça:

“Cadê minha máquina fotográfica?”

Pedro tomou um susto com a indagação do amigo, já havia se esquecido completamente da máquina fotográfica que fora a causa de todo aquele desagradável contratempo, até porque, para falar a verdade, nem chegara a pensar nela. E entregou-se novamente a um jogo de barata tonta, sem norte nem sul, mexendo de um lado, remexendo do outro, abrindo gavetas, fechando-as com raiva, procura daqui, procura dali, “onde será que estes putos enfiaram a máquina fotográfica?” terminou por esbravejar.

“Deixa pra lá, amigo Pedro,” disse o amigo LG arrependido de ter feito a pergunta que fez. “Depois você vai achar, se não achar não há de ser nada, não era uma máquina cara, nem sequer era uma digital” – e o trocadilho saiu sem querer.

“Não posso nem ouvir falar neste palavrão,” disse um Pedro revoltadíssimo com o desaparecimento da máquina do amigo, pressentindo que o desaparecimento era definitivo, sumira a máquina e sumiram com a máquina as fotos em que a delegacia tinha sido perenizada numa gentileza fotográfica que LG queria lhe prestar, por pura amizade.

“Esquece, amigo Pedro,” voltou a pedir LG.

“Esquecer jamais! Não vou descansar enquanto não lhe devolver a máquina. Fique certo disso, amigo LG!”

“Ficarei certo, amigo Pedro.”

E certo certíssimo de que o amigo Pedro não estava nem um pouco certo em sua apregoada certeza de que iria cumprir a promessa, LG deixou a delegacia da Chapot Presvot, 272. Deixou-a em passadas largas, quase correndo, antes que Digital retornasse de Guarapari com os pitbulls que o escoltaram.


[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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