Digo ou não digo, pegou-me a dúvida. Autor do texto, eu poderia deixar para Lenilda o encargo de dar a má notícia a Pedro, o escrivão da d...

Digo ou não digo, digo

Digo ou não digo, pegou-me a dúvida.

Autor do texto, eu poderia deixar para Lenilda o encargo de dar a má notícia a Pedro, o escrivão da delegacia. Mas não seria justo com Lenilda.

Podia deixar então para Nanico, o outro amanuense da delegacia. Mas também não seria justo com Nanico.

Uma terceira alternativa era o próprio Digital, o delegado rei da boçalidade, dizer a Pedro o que a verdade pedia que a Pedro fosse dito. Mas neste caso eu estaria condenando Pedro a um sofrimento dobrado, o que me constrangia fazer.

Decidi então que seria eu, e mais ninguém, o portador da má notícia para o meu personagem predileto da Chapot Presvot, 272.

Só que não o fiz no seu território de trabalho, temendo uma reação que o abatesse mais ainda, como eu pressentia que o abateria se ele soubesse do que devia saber nas proximidades do delegado Digital, seu maior desafeto na vida. Elegi então um campo neutro.

E que campo mais suíço poderia haver senão o da Livraria Logos, onde aos sábados costumo juntar-me a Pedro numa távola de amigos em que o papo roda solto, na ronda de assuntos cirandinhas?

Que fosse na Logos, sem dúvida. Mas haveria de ser numa conversa à parte, em tertúlia reservada. Por isso, aproveitei o momento em que Pedro, como fazia sempre que ia pitar um cigarrinho, convidou-me para acompanhá-lo até a entrada da livraria, no pequeno hall escancarado ao vento onde, contra a minha vontade, ele es-tragava a saúde fumando seu maldito cigarrinho de fio a pavio, enquanto conversávamos à toa.

Foi nessas circunstâncias que lhe disse o que tinha a lhe dizer, num ataque sem rodeios:

“Sabe que Digital é fã de Paulinho da Viola?”

Pedro estava se esvaziando de uma tragada cinematográfica quando recebeu a paulada. Tragada cinematográfica é aquela em que, nos filmes noirs da década de 40, a fumaça expelida num jato longo se espirala branquinha para o alto como se não fosse acabar nunca.

Uma tragada estragada por mim ao provocar em Pedro um engasgo terrível em que o meu amigo desfraldou ao vento os nacos de fumo que restavam nos seus pobres brônquios, enquanto de seus olhos jorravam lágrimas que rolavam pela face.

Aquela não era a reação que eu esperava que Pedro tivesse - era muito pior do que a pior reação que dele eu esperava.

Pedro amava Paulinho da Viola e, violeiro que também era nas horas vagas, sabia o quanto Paulinho era um virtuose do instrumento, a ponto de ter cunhado uma frase que definia a máxima admiração que sentia pelo artista: “Paulinho da Viola, nunca ninguém fez o que ele faz com a viola!”.

Ao lhe dizer que Digital também era fã do artista, eu estava estabelecendo um elo comum entre o escrivão e o delegado boçal, um nervo de identificação entre ambos, o que para Pedro valia como um escárnio inaceitável.

“Não vou aceitar nunca esse tipo de igualdade com Digital”, disse ele, de feições ainda contorcidas, depois que conseguiu se recuperar parcialmente do engasgado engasgo que quase o engasgou para sempre de uma morte engasgada.

O pior é que eu ainda não lhe dissera tudo. Da mesma forma como Pedro cunhara a sua frase de elogio à arte de Paulinho da Viola, Digital também criara a dele, que eu não podia deixar de contar ao meu amigo, no transe de franqueza que me acometera. Mas foi preciso tomar coragem para dizer o que lhe disse:

“Sabe que Digital tem até uma frase parecida com a sua, para elogiar seu violeiro preferido? Ele costuma dizer que ‘ninguém perereca a viola como Paulinho da Viola’!”

“Você disse pe-re-re-ca?”, indagou um Pedro rubro de cólera.

“Eu não. Digital foi quem disse. Eu estou apenas repetindo para você, como seu amigo.”

“Perereca é o que Digital tem na cabeça!”, explodiu Pedro.

E visivelmente irritado exigiu de mim, do meu poder de autoria sobre o texto, que mudasse tudo que estava escrito sobre a admiração do delegado por Paulinho da Viola.

“Não posso”, respondi com a voz quase sumida.

“Não pode por quê?” estremeceu Pedro na minha frente.

“Porque a verdade é que Digital aprecia Paulinho da Viola. Aprecia desde criancinha, quando o pai dele tocava viola em Burarema.”

“O pai dele era tocador de viola?” bufou Pedro.

“Tocador obcecado”, confirmei. “Ele amava um dedilhado, só que não acredito que tocasse tão bem quanto você.”

“Pule suas lisonjas! O que eu exijo é que você delete do seu texto esta malsinada admiração que você atribuiu a Digital pelo grande Paulinho da Viola. Ou você faz isso ou...”

“ou?”

“...ou quem sai do texto sou eu! Saio aqui mesmo, na porta da Logos. Nem vou me despedir da turma que está lá dentro. Passo um email para cada um deles explicando a minha atitude e a minha revolta. Tenho certeza que hão de me dar razão e você é quem vai ficar mal na foto.”

Tentei convencer Pedro, por todos os meios a meu alcance, de que existem certas inevitabilidades que o destino ficcional impõe aos personagens de um texto literário e que escapam ao controle dos autores.

“Você sabe disso!” bradei peremptório, num compartilhamento de experiência autoral de um escritor para outro, sendo Pedro o outro. “Digital apreciar a arte de Paulinho da Viola é uma dessas inevitabilidades insanáveis, meu amigo. Conforme-se com este fato porque antes de você, eu próprio tive que me conformar a contragosto”, justifiquei-me.

“Se é assim que você pensa, então fique com Digital e a admiração dele por Paulinho da Viola. Eu estou pulando fora e saindo para sempre da delegacia da Chapot Presvot”, esbravejou um Pedro inconformado.

E sem que eu pudesse dizer espera aí, pensa melhor, foi-se em seu passo lento e silencioso, deixando-me no desamparo de quem perdia um amigo e um personagem insubstituível.

“O que vou fazer agora com a delegacia da Chapot Presvot, sem o seu principal escrivão?”, perguntei de mim para mim ao retornar para a mesa das cirandas onde se encontravam, em animados debate-papos, os seus circundantes tavoleiros.

Ao chegar lá, ainda tive de aguentar a pergunta de Achiamé:

“Cadê Pedro?”

“Foi-se...”, respondi secamente.

“Não me diga que vocês brigaram...”

“Brigamos”, respondi mais seco ainda.

“Brigaram para sempre?” insistiu o insistente.

“Faço votos que seja até o próximo texto da delegacia”, respondi não muito convencido do que dizia.

“Não se preocupe”, animou-me Achiamé. “Daqui a pouco ele telefona fazendo as pazes. Eu conheço Pedro.”

“Sei não...” resmunguei.

“Olha, se ele não telefonar, passe na delegacia na segunda-feira de manhã que ele deverá estar lá, agarrado no batente...”

“Embora eu deteste entrar naquele ambiente sórdido, em se tratando de Pedro vou fazer o sacrifício e seguir o seu conselho. Quem sabe se você está certo?”, respondi eu.

“Vai mesmo. Amigo é para essas considerações”, concluiu Achiamé, torcendo por mim e por Pedro.



[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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