Quando tinha 10 anos (era o ano de 1974), meu pai me deu dinheiro para que comprasse meu presente de Natal. Desci correndo e fui ao Jairo M...

À propos d’un dieu – Chico Buarque


Quando tinha 10 anos (era o ano de 1974), meu pai me deu dinheiro para que comprasse meu presente de Natal. Desci correndo e fui ao Jairo Maia Discos comprar o novo LP de Chico Buarque.

Por que digo isso? Pela necessidade de deixar claro que entendo a indignação demonstrada por Gregório Duvivier, em sua crônica recente publicada na Folha, ao dizer que, para ele, os eventos recentes em torno do compositor e escritor Chico Buarque de Hollanda causaram uma indignação “como se chutassem uma santa ou rasgassem a Torá”.

Afinal, trata-se do filho de Sérgio Buarque, que, com Caio Prado Jr e Gilberto Freire, fincou os alicerces da socioantropologia brasileira; do rapaz de belos olhos verdes que, com seus octassílabos e decassílabos, sabia dizer das mulheres; do porta-voz de toda uma geração “engessada” pela ditadura militar; do jovem compositor a quem assistimos em preto e branco, nos primeiros festivais, dizer-nos de nossa brasilidade; do dono dos versos que estudávamos nas aulas de literatura e de português. Por isso tudo fica óbvio que as críticas ao homem Chico Buarque nos atingiram em cheio.

Embora possa parecer uma simples digressão, considero esse evento e a feliz frase de Duvivier uma boa oportunidade para discutir a importância dos ídolos na atualidade.

Sempre defendi que o escritor não pode se permitir ser transformado em imagem que suplante em importância sua produção artística. E a forma mais eficaz para isso é se propor a desconstrução como homem. Considerar que o mais relevante é sua obra e não ele. Advogo a passagem por um processo de “limpeza” e relativização da relevância.

Mas a grande questão é que muito dessa idolatria pode independer do próprio indivíduo. Ela é uma necessidade conhecida ― e muito frequentemente contabilizada ― do homem de nosso tempo.

Há um tempo para os vivos e há o tempo dos mortos.

Enquanto tentamos dilatar ao máximo o ínfimo tempo da consciência, o outro – o nada – já se apresenta distendido a infinita e desesperadora potência. E talvez seja por isso que, ao longo de toda a existência humana ― basta recordarmos a Grécia antiga ―, o homem elaborou seus mitos, criou e descobriu seus deuses e semideuses.

Mas como poderíamos aproximar-nos dos artifícios lançados por nossos contemporâneos para lidar com a finitude? Como negar a morte?

Poderíamos partir da ideia de uma nova e talvez transitória trindade. Não a Santíssima Trindade e suas implicações doutrinárias e cosmogônicas, com seu lastro histórico de batalhas que, em contrapartida, foi uma grande fomentadora da arte e da cultura ocidental ao longo dos séculos. Proponho uma trindade pós-moderna, desfigurada e demasiadamente terrena e um homem mal-estruturado para suportá-la.

A primeira figura dessa trindade também seria um deus. Agora não mais o Deus onipotente, onisciente e onipresente dos cristãos, o criador do Universo, o senhor do Ocidente, a maior criação ou verdade humana em busca da transcendência do que viemos chamar de alma. Esse relojoeiro divino que hoje se vê, quando não desprezado, renegado à coadjuvante na vida do homem.

E a ideia do poder divino de Deus foi desconstruída progressivamente. O fascínio com a ciência, o desmascaramento do GÊNESIS, os espasmos intestinais de Darwin em função das incontestáveis conclusões pacientemente colhidas, o turbilhão em que se encerrou o século XIX com as considerações de Hegel e Feuerbach, as revelações de Schopenhauer e Nietszche, as ervilhas de Mendel, o materialismo dialético da dupla Karl Marx & Engels e o inicio das publicações de Freud corroboram essa afirmação.

Já nos meados do século XIX, em seu livro A essência do cristianismo, Feuerbach partiu de uma citação de Petrônio: Primus in orbe deos fecit timor, isto é, o medo foi que primeiro criou deuses no mundo, para demonstrar que o medo surgiu no homem por causa do sentimento de dependência. Daí a afirmação de que a religião seria a fase infantil da humanidade.

Mas o homem do final do século XIX e do inicio do século XX, o homem racionalista e positivista, o homem que criou a nova religião ‒ o comunismo ‒ ainda se mantinha ingênuo.

Hoje, com o devido distanciamento, vemos com clareza o que o homem ávido pelo poder é capaz de realizar em frente a uma circunstância apropriada e de uma sociedade míope e carente.

Vimos o surgimento do fascismo, vimos o darwinismo social ralo e asqueroso de Hitler.

Em paralelo, assistimos à incapacidade de os dirigentes do divino acompanharem as evoluções da máquina do mundo, gerando um esvaziamento progressivo da Igreja católica iniciado no Velho Mundo.

Ocorreu que, após a Segunda Grande Guerra, muitos dos artistas e intelectuais que já desprezaram deus e o diabo, mantiveram a visão maniqueísta do bem e do mal. Só que agora eram outros os deuses, eram outras as religiões – sendo a maior de todas o socialismo.

Mas, fazendo isso, os homens plantaram na terra seus ídolos, agora palpáveis e contraditórios. E vieram as guerras e a divisão da Europa. E, quando mais tarde caiu o muro, desmascarou-se o mito.

Visionário, o poeta mexicano Octávio Paz em seu livro Itinerário, já declarava suas suspeitas, daí as consequentes inimizades contra ele fomentadas no meio intelectual da época. E tanto Otávio Paz quanto o poeta polonês Czeslaw Milosz, em seu livro Mente Cativa, diziam do “sequestro” ideológico de várias mentes brilhantes – e ambos citaram o poeta chileno Pablo Neruda – que foram seduzidas pelo comunismo.

Segundo Paz, tratou-se de uma “aberração da classe intelectual moderna”. E essa “ferida secreta na consciência”, resultado do afastamento, talvez uma extração a fórceps da totalidade dos antigos absolutos religiosos, fez crescer nos intelectuais um sentimento de “nostalgia da totalidade e do absoluto”. Dessa forma Octávio Paz tentou explicar a adoção do comunismo por uma imensa parcela da classe intelectual ao longo do século XX. E a essa nova fé o poeta mexicano chamou de “uma paródia perversa da comunhão religiosa”.

Retorno agora ao nosso Chico, tomando como ponto de partida a polêmica frase de Millôr Fernandes: Eu desconfio de todo idealista que lucra com o seu ideal.

Já defendia Tolstoi ser inaceitável todo espirito de partidarismo, como “segredos” e “senhas”, a divisão rígida em “nossos” e “ estranhos”, o desejo desenfreado de fazer propaganda.

Mas será apenas essa a questão?

No meu entendimento, o que acontece é que existe um sentimento dúbio em relação aos ídolos. Uma relação de amor e ódio. Talvez uma transferência de nossas imperfeições. O que abominamos em nós, como nossos desejos mais sórdidos, é transferido, com toda sutileza inerente à plasticidade de nossa consciência, para o outro. Ao contrário da desconstrução, muitas vezes dolorosa, da relevância de Deus em nossas vidas, criticar nossos deuses terrenos é algo que pode e nos dá prazer. Nos dá gozo.

Chico Buarque é um dos maiores ícones nacionais e, se observamos com atenção, o culto de sua imagem se inicia no momento em que o registro sonoro se soma à imagem dos festivais. Indiscutivelmente, na década de sessenta, a imagem, com o maior acesso à televisão, iniciava sua triunfal ascensão de sucesso que culminou no efêmero dos dias atuais.

Sem perceber, já introduzi em nossa discussão o segundo componente da nova trindade – o homem.

A metafísica do homem comum sempre foi um prato de comida; e a transcendência, algo deixado para a última hora, algo sempre presente, mas guardado no inconsciente.

Eis aí esse homem, agora “liberto”, mas despreparado. Sem a sustentação de uma Igreja que perdeu o poder e de um Estado que perdeu o território.

E disso soube aproveitar um novo poder invisível. O maestro dos desejos e frustrações. Pois esse foi o segredo do sucesso desse novo poderoso e descompromissado déspota: ter a consciência de que o homem é um insatisfeito diante de sua transitoriedade. A esse deus incógnito, disperso na virtualidade, sem endereço fixo, liquefeito, onisciente e onipresente, coube reger esse novo homem a seu bel-prazer.

Esse deus ‒ o mercado ‒, oportunista, soube ver que o homem se tornou sombra e usou do terceiro componente dessa nova trindade ora proposta – a imagem, ou seria melhor espelho? Sim, o espelho onde se mira o outro – o nosso deus particular ou coletivo.

As mudanças de valores, já sinalizadas por Debort com sua “sociedade do espetáculo”, Alain Torraine, Baumann e tantos outros trazem a reboque uma mídia poderosa, que, a serviço do mercado, cria ou maximiza os ídolos visando, pura e simplesmente, à manutenção do consumo.

O ídolo então passa a ser parte de nossa identidade coletiva, nossa identidade como país. E, como disse Ana Maria Tepedino, eles são gestados, paridos, relacionados às circunstâncias “e nos fazem perceber que o mundo social é o resultado de nossas representações, de nosso imaginário, de nossos desejos e sonhos, que são manipulados pela Mídia.”

“No entanto, ao contrário da história, que tinha um sentido e uma verdade, a mitologia é uma sequência de episódios efêmeros. Pode-se dizer que há um claro-escuro onde não se pode ver claramente. Aqueles que chegam ao topo têm a responsabilidade de ser exemplos para os outros que se projetam neles.”

Neste universo de ídolos que surgem, brilham e se desintegram, conforme a demanda e o interesse do mercado, o caso de um ídolo da grandeza de Chico Buarque ganha uma dimensão ainda mais transcendente que imanente.

Seu surgimento antecede a “profissionalização” da mídia, mas não impede por parte dela, muito pelo contrário, o entendimento de sua relevância e, como poucos, sua não transitoriedade. Parte daí, no meu entendimento, a observação de Millor.

Criado o ídolo, estaríamos diante então de uma questão ética?

Retorno ao trabalho da socióloga Ana Maria Tepedino que descreveu, de forma didática, as etapas pelas quais passariam os ídolos na pós-modernidade: cosmética, estética e ética. A autora define como ética a fase de questionamento do ídolo, sua derrocada, também usada pela mídia, em torno de situações ou aspectos pessoais do autor, de forma sensacionalista, buscando causar indignação.

No caso específico de Chico Buarque, existe um aspecto bem recente e ainda muito pouco compreendido: a utilização de comunidades virtuais, como no caso o Facebook, como forma de perpetuação, discussão e tribuna onde se debruçam seus idólatras e seus críticos. Aliado a isso acrescento um outro aspecto que me parece fundamental: toda a discussão em torno do ídolo serve de pano de fundo para uma discussão ainda maior: o momento político pelo qual passa o Brasil.

Não creio que devamos julgar o fato de o homem Chico Buarque, um socialista, manter-se fiel a um partido político que tanto descontentamento tem trazido aos adeptos da esquerda. Devemos respeitar a opinião de cada um e não ser proselitistas. É inaceitável que qualquer indivíduo seja abordado e ofendido por suas convicções e posições políticas. Estas atitudes têm uma conotação de radicalidade, que, no caso em questão, carreia um traço fascista.

Apenas não podemos deixar de considerar que o idealismo pode macular a capacidade crítica do indivíduo ou do grupo. E, no caso de Chico, prefiro pensar nessa possibilidade a numa simples adaptação oportuna de sua consciência. Não gostaria de usar uma de suas mais consagradas letras:

Quem te viu, quem te vê,
Quem não a conhece
Não pode mais ver pra crer
Quem jamais a esquece
Não pode reconhecer...

No meu caso, penso que a escolha e o debate devam sempre persistir como essência da política. Daí acreditar na atitude inconformista do homem.

Para isso recorro à peça de Jean Genet, Le paravents. Nela, após a vitória dos oprimidos sobre os opressores, os primeiros estabelecem a ideia de que não há mais espaço para o inconformismo. É quando Saïd, o herói inconformado, considerado por Goldmann o primeiro personagem positivo da literatura contemporânea, recusa ofertas de poder e também não aceita fazer parte da “ordem dos mortos”. Ele permaneceu de pé do início até o final do jogo. Acabou fuzilado pelos vitoriosos, mas levou consigo um olhar para o amanhã.

O local do horizonte o seu próprio nome diz. Ele é o interminável aos olhos. Não vemos tudo, nunca veremos. Mas temos que justificar nossa existência.

Não vejo o homem, de uma maneira geral, sem um ídolo, sem um deus. Admiro muito o aforisma do escritor italiano, naturalizado argentino, Antônio Porchia: “Creio em Deus não por mim, muito menos por ele. Creio em Deus, pelos homens que creem em Deus.”

O que cabe saber, e isso é uma questão de reflexão e lucidez, é que vivemos em um mundo com extremos, e estes também fazem parte da estatística ― e da história. E o extremo é o ponto aonde não devemos chegar.

Jorge Elias Neto (1964) é capixaba, cardiologista e poeta residente em Vitória – ES. Tem vários livros publicados é colaborador em vários blogs e revistas literárias. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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