Se poesia, como o jazz, pode ser definida como o som da surpresa, então temos boa poesia neste mais um livro da Flor e Cultura: porque sur...

“Caixa de surpresas”


Se poesia, como o jazz, pode ser definida como o som da surpresa, então temos boa poesia neste mais um livro da Flor e Cultura: porque surpresa é o que não falta nestes textos de Fernando Achiamé.

A primeira surpresa, lato sensu, fica por conta do mero fato de que também Fernando Achiamé cedeu à tentação do verso. Não que ele não tenha direito à poesia, como qualquer filho de Deus. Mas muito poucos conheciam a veia poética — até agora entremostrada apenas num poeminha aqui, outro ali, publicados no varejo — desse historiador atento e arguto, que durante muito tempo andou lecionando História da Arquitetura na Universidade Federal do Espírito Santo, e que deixou, entre os pesquisadores dos alhos e bugalhos desta província, boas saudades do tempo em que dirigiu o vetusto Arquivo Público Estadual.

A segunda surpresa, stricto sensu, está pulverizada nos próprios poemas do seu livro. Porque Fernando surpreende pelos temas muitas vezes audaciosos, pelas imagens em roldão, pelo verso feito, quase sempre, ao correr do risco. Aliás, outra característica que o remete ao jazz: é próprio do jazzman justamente isso, arriscar-se, aventurar-se, cometer erros na tentativa do difícil improviso, e, no átimo de um triz, corrigir esse erro e torná-lo acerto. É o que me parece que Fernando faz: ele não quer saber se o poema vai dar certo ou não, mas simplesmente enche os pulmões de ar, mergulha, e seja o que Deus quiser. Seus poemas parecem, portanto, feitos de improviso num saxofone. E, qualquer que seja o resultado em termos acadêmico-literários, têm bom som de poesia, e cheiro.

Quanto à temática desses poemas, direi que, embora mais que trivialmente variada, vincula-se quase toda à terra e à cidade do poeta. É no mapa histórico e sentimental do Espírito Santo e, em especial, de Vitória, que Fernando foi pinçar os assuntos que se propôs converter em poesia. Natural de Colatina, mas criado e crescido na capital, Fernando fez de Vitória a capital de seu livro. Vitória está presentíssima aqui, tanto a dos dias de ontem como a dos dias de hoje: ao mesmo tempo que retrabalha, à sua maneira, material comum à grande maioria dos poetas da ilha, como os navios no porto e o vento nordeste, Fernando faz uso de outro tanto material até agora inédito, como o lendário Cais do Avião, que ali estava, nas franjas de Santo Antônio, com todo o seu potencial poético, à espera de um poeta que lembrasse dele. Detalhista, Fernando coleciona também, em seus poemas, minúcias da cidade, entre as quais posso citar, com narinas infladas, o cheiro histórico do café torrado impregnando a avenida Vitória próximo a Jucutuquara. Também não sei se alguém já tratou em verso do relógio da Praça Oito, mas tenho certeza de que, se tratou, não o fez com o somatório de imagens, analogias e abstrações de que Fernando pontilhou o poema “Um sinal na praça Oito”, por sinal dedicado a este pobre marquês.

Assim, é sobre Vitória que Fernando Achiamé assesta, com carinho, mas sem pieguice, o foco central de seu olhar de poeta. É sobre Vitória, mas não apenas sobre a Vitória física, sensual — aquela das escadarias, dos navios, da brisa, do relógio, do perfume arábico do café —, mas também sobre a Vitória humana e, especificamente, a humilde e pequena Vitória dos tipos populares, dos mendigos, dos deserdados da sociedade, que, mais que a elite endinheirada, são esses que povoam o imaginário de gente como os poetas. Porque, de fato, no fim das contas, a cidade é sempre mais daqueles que menos recebem da cidade: quem fará poemas — a não ser de circunstância ou, melhor dizendo, bajulatórios — sobre empresários e vereadores?

Se tiver de dizer apenas mais uma coisa sobre Fernando como poeta, direi: assim como a biblioteca influenciou Borges, o arquivo influenciou Fernando. Dois poemas em particular revelam no poeta uma pessoa acostumada a descobrir o passado no espelho dos velhos documentos, das velhas fotografias, dos velhos processos empoeirados dos arquivos. Um desses poemas — “Vida no Arquivo Público” —, na minha opinião um dos melhores do livro, consegue reproduzir imagens seletas e acuradas do nosso passado provincial e também sugerir que é ali, na velha papelada guardada nos arquivos, que se mantêm vivos e à mão os tempos e os costumes de antigamente.

Enfim, este livro a meu ver qualifica Fernando Achiamé a figurar entre os poetas de verdade desta terra. Se, por um lado, Fernando não quer abafar ninguém, mas sim mostrar que faz verso também, por outro mostra uma poesia de grande densidade e substância, em que cada poema é uma caixa de surpresas. O que nos remete de volta ao início: em poesia, como no jazz, a surpresa já é meio caminho andado para a salva de palmas.

[Introdução ao livro A obra incerta, de Fernando Achiamé, Vitória: Flor&Cultura, 2000.]

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Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor, clique aqui)

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