Depois de colaborar na revista Você desde o primeiro número até o número 22, na condição de cronista, com o pseudônimo de Roberto Mazzini, e...

Reinaldo Santos Neves: “Roberto Mazzini não mora mais aqui”

Depois de colaborar na revista Você desde o primeiro número até o número 22, na condição de cronista, com o pseudônimo de Roberto Mazzini, em 1994 Ivan Borgo resolveu se conceder um descanso. Em decorrência, Reinaldo Santos Neves, então um dos editores de Você, publicou no número 23 da revista um texto sobre o cronista e a importância de seu trabalho. Ivan Borgo rebateu com uma carta-resposta, publicada em duas partes nas edições subsequentes da revista. Abaixo se encontram transcritos esses três textos.

Reinaldo Santos Neves

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Já viu, não é, você que lê Você: não adianta revistar a revista, virar pelo avesso, sacudir. Pela primeira vez, desde que Você se entende por revista, Roberto Mazzini não está aqui — não se encontra, como dizem as telefonistas. Pediu licença para tratar de outros interesses (literários inclusive) e nós — que jeito? — demos. Devíamos saber que Roberto Mazzini, como Mary Poppins, não ficaria muito tempo no mesmo lugar.

Mas reclamar não temos do quê. Primeiro, porque Mazzini colaborou conosco, ali, na batata, mês a mês, desde o primeiríssimo número. É um dos sócios fundadores da revista. Nunca falhou. Nunca negou fogo. Tornou-se, aliás, nosso cronista cativo. Uma de nossas pedras angulares, de nossas marcas registradas de qualidade. Um bônus, um brinde, um prato especial, especial para os leitores de Você. E naqueles verdes meses de noviciado, em que tentávamos levantar um crédito de confiança para a revista, Roberto Mazzini era nosso aval, nosso fiador. E mais que isso: a postos no vestíbulo da revista, Mazzini, anfitrião, se encarregava de receber os leitores e logo de os pôr bem à vontade. Tudo naquele estilo meio solene, meio irônico, com que sempre tratou seus leitores cativos.

Não temos do que reclamar, segundo, porque Mazzini ficou mais tempo conosco do que Mary Poppins com a família Banks. Afinal, foram vinte e dois meses, vinte e duas crônicas, o que não é nada, não é nada, mas é tempo bastante e texto bastante para se bem cultivar uma lavoura de idéias. Diferente de outros cronistas, que — na expressão de Enyldo, o Jovem — não pensam um palmo adiante do nariz, Roberto Mazzini outra coisa não fez senão semear idéias em seu horto de 34 x 23 cm. E isso sem — importante frisar — posturas de dono de verdade alguma. Apenas exercendo o seu direito — e dever — de pensar, como quem acredita piamente no velho axioma: Existo, logo penso. E foi assim, despretensioso, que criou um vínculo, uma empatia, um parentesco mesmo, intelectual, com seus leitores.

Não podemos é nos dar ao luxo e ao orgulho de dizer que Roberto Mazzini estreou nesta revista. Não estreou. Sócio efetivo da geração que floresceu durante a guerra, Mazzini passou pelas páginas do boletim Comandos, do Colégio Estadual, e perfilou, com muita honra, entre os jovens autores publicados, por especial colher de chá, na lendária Vida Capichaba, de Vitória. Acabou, porém, indo mais longe do que muitos de seus consócios: foi publicado em A Cigarra, do Rio, aí já na condição de autor premiado em concurso, com direito a resenha crítica elogiosa e a declaração, com fumos de oráculo, de que ali estava um autor promissor.

Se o prognóstico de A Cigarra mascou, não foi porque Mazzini deixasse de cumprir a promessa feita em seu nome, mas por uma razão muito simples, a mesma razão muito simples que está por trás de tantos desvios de carreira literária no Brasil: Mazzini tinha mais, e primeiro, que ganhar a vida. Isso: a vida, a vida de verdade, feita de sangue-sangue, de suor-suor, de lágrimas-lágrimas. Lá se foi Roberto Mazzini ser tesoureiro em tempo integral e toda uma obra literária de qualidade deixou de ser escrita nas plagas do Espírito Santo.

Mas a febre da literatura é recorrente como a febre do feno. Volta e meia lá se manifestam, nos portadores do vírus, aqueles sintomas típicos, como a interferência de pensamentos esdrúxulos na corrente ortodoxa do raciocínio, como a comichão nos dedos da mão que maneja a pena, como a ansiedade à vista de uma folha de papel em branco. Pois Mazzini, nesses momentos febris, voltava a ser o autor promissor de A Cigarra e, digamos, no silêncio da casa adormecida ou na solidão de quartos de hotel em diversos nichos do mundo, o autor promissor de A Cigarra botava no papel a expressão de sua perplexidade diante de algum fato da vida. Depois, voltando a si, revestido do traje a rigor da personalidade oficial, no gozo de função remunerada, não sabia o que fazer com aquelas garatujas senão largá-las em alguma gaveta de escrivaninha, no permeio de fotos de família, contas antigas, canhotos de cheque, cartas de amigos.

Até que chega o belo dia em que, aposentado, Roberto Mazzini pôde ser, para usar o termo de Gilbert Chaudanne, que tão bem lhe soube aos ouvidos, imperador de si mesmo. Estava livre do terno-e-gravata e, com isso, das aporrinhações de executivo e das responsabilidades assumidas pelos e para os outros. E, dentre as primeiras medidas da nova ordem, Mazzini decretou, imperativo, a si próprio: Volte a escrever. E nós, que ficamos sabendo da boa nova antes de outros aventureiros, trouxemos Mazzini para nossa canoa. Assim, isto Você fez: revelou ao Espírito Santo o cronista incógnito que brotava entre nós, temporão.

Mas como é o escritor Roberto Mazzini? Trata-se de um cronista, arrisco dizer, contrapontístico. Mas sim, porque sendo Mazzini da digna estirpe dos capixabas de sangue azzurro, temos aí um ser bifocal, um ser de duas memórias, de duas culturas. E o que são, em grande parte, as crônicas de Roberto Mazzini senão a tentativa de conciliar as contradições oriundas dessa alma bifurcada? Aliás, para agravar ainda mais as coisas — o que, em arte, é sempre agravar para melhor —, Mazzini é um ítalo-capixaba que volta às origens. Imaginem um rio que de repente passe a fluir às avessas, de volta às nascentes, rumo às cabeceiras. Seria uma metáfora aplicável ao caso. Em muitas de suas crônicas, Mazzini retorna à terra antepassada para tentar encontrar — ou mesmo vislumbrar, num relance que seja — o seu duplo, o outro ele-mesmo que ficou lá, ultramarino, e que lá viveu experiências como o fascismo, a guerra e seu pós, a disenteria política, as brigadas vermelhas. Não só se encontrou, em muitas situações, como também foi encontrado: seus amigos conhecem a história — que ele não quis converter em crônica — do velho italiano que, num lance de escada e de muita emoção, se abraçou a Mazzini, gritando: Giovanni! Giovanni! Um velho italiano que Mazzini nunca tinha visto – e que no entanto lhe era tão próximo, tão familiar, como um tio.

Mas isso — esse contraponto cultural e sentimental — é só um canteiro da lavoura literária de Roberto Mazzini. Porque, mais do que um capixaba com saudades de uma bota, Mazzini é um homo catholicus, ou seja, um homem universal. Irmão de todos os seus irmãos, os como ele degredados filhos de Eva, Mazzini é daqueles para quem nihil humanum alienum est. E tanto faz uma briga em Veneza como um grito na noite de Tóquio, um sebo em Vitória como um beijo nas ruas de Londres, uma pousada em Itaúnas como um velho casebre em Araguaia, tudo é motivo para Mazzini dar seu parecer sobre a grande tragicomédia humana.

Nosso consolo é que ele prometeu voltar, de vez em quando, na qualidade de colaborador eventual. E, pensando bem, tem mais é de voltar mesmo. Pensando bem, Roberto Mazzini está em dívida com todos nós. Deve-nos, por exemplo, uma crônica sobre o prazer de ler Júlio Verne em dia de chuva. Outra sobre a sagrada salada de pepino obrigatória no almoço de todo santo dia. Ainda outra que é uma lição de cidadania: não coma e não pague essa isca de peixe aterrada em arroz que em restaurante chique pretendam impingir como linguado na grelha. Roberto Mazzini não comeu, não pagou e ainda deu esporro.

Deve também a história de como a releitura de A nau decapitada impele o cronista a uma viagem até Piúma para rever as locações da novela e, de passagem, cumprimentar o monte Agá.

Deve sim, e não negue, Roberto Mazzini. Quanto a pagar, pague quando puder e quiser. E se quiser.


[Transcrito da revista Você n°. 23, junho de 1994.]

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Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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