O engenheiro geólogo Luiz Edmundo Appel não devia ser apaixonado pelo futebol. Se fosse, teria escutado toda a transmissão, pelo rádio, do j...

O viés sócio-historiográfico de um diário escrito no Espírito Santo em meados do século XX

1/01/2016 0 Comentários

O engenheiro geólogo Luiz Edmundo Appel não devia ser apaixonado pelo futebol. Se fosse, teria escutado toda a transmissão, pelo rádio, do jogo Brasil, 7, Suécia, 1, na Copa de 50. Mas, indiferente ao campeonato que empolgava o povo brasileiro, o engenheiro escutou apenas o fim daquela partida espetacular, isso mesmo por ter saído do hotel de Caravelas, no sul da Bahia, para ir à rua, no domingo, 9 de julho de 1950.

É o que se depreende do econômico, porém interessante Diário que o site Estação Capixaba divulga sob o título “1950: Diário de um engenheiro no Espírito Santo”, de autoria de Appel.

Havia nove dias que o engenheiro, com 26 anos, deixara o Espírito Santo, partindo de São Mateus para a Bahia, em prosseguimento ao trabalho de demarcação, levantamento e mapeamento de estradas que realizara em alguns municípios do norte do nosso Estado, onde atuou de 28 de abril a 30 de junho.

É dessa dura experiência – dura pelos percalços enfrentados e por ter sido provavelmente um dos seus trabalhos iniciais de campo como geólogo, fora do seu estado natal, o Rio Grande do Sul – que Appel fixa em seu relato diversas passagens que permitem visualizarem-se as condições sócio-econômicas do Espírito Santo, na época em que os registros foram feitos. E é sob este ângulo de visão que o Diário ganha expressividade historiográfica, escrito em português correto e com simplicidade informativa, embora sendo muitas vezes uma oportunidade de que o autor se valeu para extravasar os jorros de romantismo saudoso em relação à mulher amada, na distante Porto Alegre
e, obviamente, para preencher um pouco do vazio das horas em que não estava trabalhando.

Para quem conheceu o Espírito Santo desse tempo o manuscrito de Appel provoca nostálgicas ressonâncias. Para quem não conheceu, presta-se a que um sem número de referências possam se desdobrar em análises e pesquisas.

Tais possibilidades é que queremos realçar, com objetivo ilustrativo e sem pretensões de esgotar o assunto.

O Espírito Santo em 1950

Historicamente, pode-se considerar 1950 um marco na história do Espírito Santo. Neste momento, encerrava-se a primeira metade do século XX em que o Estado se mantivera fundamentado em uma economia tipicamente rural e cafeeira, com uma população de 860.000 habitantes, 94% dela vivendo no interior.

Encerrava-se também o último ano do primeiro governo de Carlos Lindenberg (1947-51) iniciado após a reconstitucionalização do país, quando teve fim o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-45).

A economia agroexportadora capixaba afinava-se então com o ideário programático-partidário do PSD – Partido Social Democrático, pelo qual Lindenberg se elegera e que, no fim de 1950, levou Jones dos Santos Neves a substituí-lo no governo.

O marco transitório dessa conjuntura histórica se acentuaria no quatriênio seguinte, a partir da política desenvolvimentista do Plano de Valorização Econômica do Estado, lançado por Jones, para dar ênfase à industrialização da economia capixaba. O Plano estendeu-se à pavimentação de rodovias pelo Departamento de Estradas de Rodagem do Espírito Santo – DER ES, quando, até então, apenas a Rodovia Carlos Lindenberg, em Vila Velha, inaugurada em 1951, no 4º Centenário de Vitória, constituía o primeiro trecho rodoviário efetivamente asfaltado no Estado. Merece lembrar que as estradas do norte do Espírito Santo, rumo a Linhares e São Mateus, cortavam áreas de mata ainda viva; que os serviços de energia elétrica no interior eram precários e irregulares; e que eram limitados os meios de comunicação à disposição dos capixabas.

Da sua parte, a cidade de Vitória, contida entre o mar, morros e mangues, mantinha seu perfil nitidamente provinciano com uma população de 50.000 habitantes em números redondos.

Toda a vasta área da atual Esplanada da Capixaba e do Bairro de Bento Ferreira estava por ser aterrada. O mar marolava perto dos antigos mercados da Capixaba e da Vila Rubim, onde ancoravam embarcações para abastecê-los de legumes e verduras.

O lado norte-noroeste da ilha-Capital, por onde décadas depois se expandiria a região da Grande São Pedro, não passava de uma área de características rurais, pela qual se transitava em estradinha de barro que, com dois ou três mata-burros, serpenteava por altos e baixos topográficos na ligação Santo Antônio-Maruípe. Essa área era pontuada pelo quase remoto núcleo da Ilha das Caieiras.

Na porção urbana de Vitória o serviço de transporte coletivo de ônibus estava em seus primórdios e mal competia com os bondes. De bonde se ia de Santo Antônio à Praia do Canto (ou Comprida), passando pela Praia do Suá, com uma variante que enveredava por Jucutuquara até o final da Avenida Paulino Müller. Além desses extremos, a reduzida população de Vitória se rarefazia completamente.

Em Maruípe, o Sanatório Getúlio Vargas, para tratamento da tuberculose, ali situado, dá a ideia do isolamento que o circundava. A praia de Camburi estava a uma inimaginável distância de vir a ser um dos futuros bairros nobres e populosos da capital. Esta tinha sua configuração imobiliária formada de casas e sobrados. O único edifício residencial, com seis pavimentos, era o Antenor Guimarães, localizado na praça Costa Pereira.

Os divertimentos e as distrações da população consistiam em passeios no Parque Moscoso; caminhadas (footings) na praça Costa Pereira, no começo da noite; idas aos cinemas, que eram poucos; comparecimento aos jogos de futebol no Estádio Governador Bley, em Jucutuquara e às esporádicas regatas na baía de Vitória em que competiam barcos do Saldanha da Gama, Álvares Cabral e Náutico Brasil, ou às festinhas e aos encontros dançantes dos clubes sociais. Um circo que chegasse a Vitória, acampando no areião no final da Avenida Capixaba, em frente ao antigo prédio da Capitania dos Portos, era uma festa, o que também acontecia com os parques de diversões quando ali se instalavam temporariamente.

Esses eram, grosso modo, o Estado do Espírito Santo e a sua Capital quando por aqui passou o engenheiro Luiz Appel, autor do diário sobre o qual serão feitos os comentários que se seguem, dando-se zoom a algumas de suas passagens.

Carências rodoviárias

Pode ser surpreendente, quando se lê o Diário, deparar-se com as carências do sistema viário do Espírito Santo, em pleno império da economia cafeeira, na metade do século XX.

No entanto, foi para acabar com essas deficiências que o engenheiro veio ao Estado para realizar, com uma reduzida equipe de acompanhantes, levantamentos geotopográficos em vários municípios do norte capixaba.

Existia então no Espírito Santo um sistema de estradas de terra batida, esburacadas, intransitáveis nos alagamentos provocados pelas chuvas, o que aumentava o tempo de demora para percorrê-las. Não são poucas as referências do Diário às lamentáveis condições dessas estradas mesmo para a mobilidade e resistência do jipe que serviu de veículo ao informante.

Neste particular, o jipe surge do Diário como símbolo da aventura profissional que seus usuários viveram em terras rudes, sujeito a consertos constantes que provocavam perdas de horas ou dias de trabalho não só pelos defeitos que a ele sobrevinham como até pela falta de gasolina para o seu abastecimento.

Pesavam ainda contra o andamento normal dos serviços situações que impunham o uso de cavalos, de embarcações ou de balsas, estas para a travessia de rios sem pontes. Riscos inesperados, como a enchente da maré ameaçando o jipe em plena praia, agravavam o quadro das dificuldades a serem vencidas (vide registro do dia 31 de maio).

Vida social e divertimentos

Muito há o que ser observado sobre os trechos do Diário relativos à vida social e aos divertimentos da população capixaba.

Quem viveu o Espírito Santo da década de 40 e 50 sabe o quanto o interior do Estado era pobre de distrações e vida social. As pracinhas e os clubes tornavam-se assim espaços públicos e privados em que as comunidades locais ambientavam seus passatempos e lazeres.

Sobretudo para quem estava de passagem pelas localidades interioranas, onde, muitas vezes, a energia elétrica, além de fraca, tinha hora marcada para ser desligada, a falta de opções de lazer constituía carência lamentável.

Esta experiência foi vivida na pele pelo engenheiro Appel que a ela se refere constantemente. Era nos bancos das pracinhas ou caminhando por elas, para onde geralmente ia depois do jantar quando saía do hotel para espairecer, que ele buscava contato com as pessoas do lugar, na tentativa de diminuir o tédio que o acometia.

Em Colatina, sentou-se em um banco da praça de tênis (registre-se a prática deste esporte na cidade), fronteiro ao hotel, e ali pouco se distraiu observando “os maus jogadores”. Antes, o autor do Diário já havia descrito Colatina como uma cidade em pleno crescimento, mas feia, “onde a poeira domina a atmosfera”, sob calor intenso.

Em São Mateus, escreveu que se assentou “ao ‘clássico’ banco da praça” e que palestrou “com algumas garotas da cidade.” Pode ter sido o mesmo banco em que se sentara no dia 4 de maio, sendo atormentado pela mosquitada da beira do Cricaré.

Ao longo do Diário, repetem-se as menções às suas idas às praças públicas, em busca do que fazer nas horas de folga. São fotografias textuais das pracinhas do interior, centro de distração e encontro de pessoas.

Na capital do Estado, onde o engenheiro ficou 21 dias, não foi diferente, exceto pelo fato de ter se intensificado o tédio que o sufocava, em grande parte devido à saudade da amada que deixara em Porto Alegre.

No dia 11 de junho, um domingo, anota no Diário: “Após a janta, para variar de programa, fui até a praça Costa Pereira.” (grifamos na transcrição).

Três dias depois, outro registro segue na toada do anterior: “À noite, com Paulo e Cláudio Cavalcanti, fui… até a praça Costa Pereira, pois não há outro lugar para se ir, aqui.” (tornamos a grifar).

Os grifos visam a acentuar que, ao mesmo tempo em que o engenheiro Appel mostra a praça das cidades como lugar de convivência coletiva, revela a monótona mesmice percebida pelo observador vindo de fora em relação a essa opção de distração pessoal.

Também as suas visitas aos clubes sociais competem com as malogradas tentativas de passatempo nas praças ocasionais.

Em São Mateus, chegou a ir ao “clube da UDN” (“bom clubezinho”), levado “por uma garotinha do hotel”. Em Vitória, conheceu o Clube Vitória, o Saldanha da Gama e o Álvares Cabral, os principais da cidade, que reuniam a sociedade da época, sem que o visitante se tivesse encantado pelas recreações que pôde ver.

Completando o conjunto de suas parcas distrações em Vitória, Appel assistiu a filmes no Carlos Gomes e no Cine Trianon (únicos cinemas mencionados nominalmente no Diário); passeou de manhã pela Praia do Canto, no “feriado estadual capixaba” de Domingos Martins, 12 de junho; fez caminhadas à toa pelo centro da cidade; repetiu o costume de quem vinha de fora e sentou-se em cadeira na calçada do principal hotel de Vitória, o Tabajara, onde se hospedou; bebeu, no Sagres, “o clássico guaraná” antes de ir dormir; visitou, no dia 27 de junho, a “famigerada exposição” pecuária de Itacibá, da qual havia escrito, em 25 de junho, domingo seguinte à sua inauguração, que “toda Vitória parecia para lá se dirigir” (obviamente por falta do que fazer em outro lugar).

Curiosamente, não fez menção ao bonde, principal transporte público da cidade, embora seja possível que nele tivesse ido ao passeio na Praia do Canto e à matinê do Trianon, no mortiço feriado de Domingos Martins. Nem informou sobre qualquer interesse de sua parte em colar o ouvido ao rádio para ouvir os programas da época, sob o predomínio da Rádio Nacional. Também nenhum outro comentário foi feito, exceto o de Viçosa, sobre a Copa de 50, que já havia começado desde 24 de junho.

Mais intrigante ainda é que o autor não tenha subido ao Convento da Penha, dada a ausência de referência a respeito. Quem dirigiu o bravo jipe de campanha pelas ruas de Vitória sem estar habilitado com a carteira de motorista bem que podia ter cometido a audácia de galgar, de jipe, a estrada do Convento, ainda sem o calçamento de paralelepípedos, apesar de ser o engenheiro um presbiteriano.

O quadro traçado no Diário sobre as modestas alternativas de lazer que se ofereciam à população capixaba, no fim da década de 40, vale como um recorte revelador de hábitos e costumes.

Dentre eles, para que não fique em branco, ressalte-se a tradição da janta como última refeição do dia, que era ainda muito comum entre os brasileiros, pelos menos os da classe média.

Em vários trechos do Diário fica evidenciado que era quase sempre depois da janta – inclusive servida nos domingos nos hotéis – que o engenheiro Appel buscava um passatempo para compensar o seu dia de trabalho ou para o preenchimento de seus vazios tediosos. No hotel de Nanuque, a falta da refeição vespertina, no domingo 2 de julho, mereceu um registro com toque de estranheza: “Aguardei o café (aos domingos não se janta aqui)”.

É graças a observações deste tipo que o geólogo Luiz Edmundo Appel nos legou uma contribuição que, apesar de despretensiosa e sucinta, propicia informações reveladoras sobre o Estado do Espírito Santo, na metade do século passado, que têm tudo para não passar alheias ao olhar atento da Historiografia.

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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