1- A Revolução pela Palavra A Vida Secreta dos Gabirus (Record, 2014), de Carlos Nejar, é devorada sem respirar pelo leitor,  graças a...

Oscar Gama Filho: As Metamorfoses do Homem



1- A Revolução pela Palavra


A Vida Secreta dos Gabirus (Record, 2014), de Carlos Nejar, é devorada sem respirar pelo leitor,  graças ao encanto que concedeu um só parágrafo a cada capítulo. Ou à transformação do romance em uma história sem fim nem começo, mérito de certa espécie de gerúndio temporal que une passado e futuro no presente contínuo que estamos vivenciando desde que Fukuyama decretou o fim da História. Ilustrando essa tese, Nejar criou um brilhante oxímoro barroco: o que não acontece, de fato, no presente, na verdade já aconteceu e continuará acontecendo (p. 9).

É o retrato do tempo divino que se instala na obra, pois Deus é o alfa e o ômega, só Ele contém o real, a soma de todos os momentos ocorridos justapostos e no seu princípio está seu fim, como queria Eliot.

As imagens, alegorias, metáforas, aforismos e manipulações sobressimbolistas da realidade inundam todas as frases, deixando o leitor sem fôlego, como se estivesse diante de um filme em clipes rápidos, característicos do cinema moderno. Explico: os filmes antigos eram lentos, possuíam uma ação vagarosa. O cinema contemporâneo acolheu, em sua teoria eisensteiniana da montagem, a linguagem de clipes dos anúncios publicitários. Qualquer cena é completa e se constitui em uma surpresa sensorial, tal como cada frase de A Vida Secreta dos Gabirus, pois carrega em si imagens (no sentido literocinematográfico) eletrizantes, comoventes, surpreendentes,condensadas, que prendem a leitura à maneira de um filme-romance. Qualquer oração tem sua beleza em si e explode na cara do leitor em imagens inusitadas típicas do cinema contemporâneo.

Um exemplo claro é o nome da cidade em que se passa a ação, Assombro, que também é uma mulher encarnada na forma mais radical de metáfora, a alegoria. Em Carta aos Loucos Nejar também havia recorrido ao nome Assombro para chamar esse ser híbrido que não é menos cidade que mulher. Na Vida Secreta dos Gabirus assim ele a descreve:

“uma cidade com cabelos adornados de lady, vergéis em sua pele e ruas de polida pedra”(p.31).

Os aforismos de Nejar deixam sua marca de fora a fora. Mas, graças ao Livro das Vidências (p 67-104), ganham o primeiro lugar em qualquer desfile carnavalesco de livros que metamorfoseiam a literatura à moda de gabirus que se transformam em homens e vice-versa. Seus aforismos, capazes de explicar o impossível, emergem da fôrma de respostas e perguntas feitas em sua vulcânica, insaciável, escatológica e metafísica preocupação com a essência, com o fim e com os princípios do existente, do invisível e do inacreditável.

A História escrita, até agora, tem sido a narrativa da vitória da classe dominante e dos homens de sucesso. A Vida Secreta dos Gabirus é a história que não foi contada, é a história da classe dominada, dos gabirus, e prega a revolução pela palavra em seu duplo sentido. No de palavra literária e no de Palavra enquanto sinônimo de Bíblia. E de fato o Messias foi esperado como um salvador, como um líder revolucionário que traria paz à terra.

Uma explicação: gabiru é uma raça de híbridos homens-ratos que devoram livros e vivem à margem de Assombro, em seus arredores. Mas essa é uma das falsas pistas lançadas por Nejar, ratoeiras para capturar leitores em busca do fácil.

Sem nenhuma referência a Kafka, mas talvez como seu complemento, o romance ensina, contudo, que qualquer pessoa pode se metamorfosear em gabiru, por força de sua opção pela barbárie, e qualquer gabiru de nascença, como Pompílio Salerno, pode se transformar em gente pela escolha da palavra certa.

A mulher de Pompílio, Cláudia, foi decalcada na eterna esposa e musa do romancista, Elza dos Pássaros. Da mesma forma, o protótipo dos gabirus é o próprio Nejar, que devorava livros em sua juventude, pois cortava as páginas de suas obras preferidas e carregava-as por toda parte, alimentando-se delas por meio de sua leitura em ônibus e bondes. Assim, Nejar foi o primeiro gabiru a se tornar homem por meio da revolução da palavra literobíblica. E a vida secreta do gabiru é a do homem platonicamente ideal e bom que existe dentro dele. Consequentemente, a vida secreta do homem é a do rato que mora em sua alma e pode devorá-lo se o permitir, animalizando-o no mau sentido.

O corpo de Nejar parece ser apenas o cavalo em que o escritor se incorporou e a que a entidade estética não dá muita atenção, não lhe permitindo tomar cuidado algum com sua saúde ou com seu aspecto físico. A monástica ascese de seu corpo serve somente para cumprir o destino de escrever a sua obra literária. Mas essa máquina de escrever ambulante possui alma e gênio.

Vivendo em um jogo de palavras, enquanto elas existirem, Nejar estará vivo, pois elas o sustentam, assim como à humanidade em metamorfose.


2- A Subdivisão Prismática da Ideia


A invulgar estrutura do romance não é a do romance clássico, ou não a renovaria, tanto pela evasão de uma fórmula exausta quanto de uma simultânea aproximação de novelas de suspense — H. G. Wells— e dos primeiros romances medievais em versos, poemas épicos como Orlando Furioso e A Demanda do Santo Graal. Como ilustra Nejar:

@
“Dirão alguns que a arte da evasão é a inexistência de ossatura de um romance, por não se darem conta de que a ossatura é a evasão. E, ao mudarmos o tempo que andava em ruínas, vai-se tornando jovem. Porque o estilo é enxergar o que está detrás das palavras, para que elas nos alcancem ver melhor. Não é Wells que adverte que as novelas de antecipação se livram muito pouco do mundo que cerca o autor, por poderosa que seja sua imaginação?” (p.26)


A Vida secreta dos Gabirus só pode ser lida por meio da chave decifradora criada por Mallarmé e lançada em Un Coup de Dés Jamais n’Abolira Le Hasard — a subdivisão prismática da ideia. O brilhante conceito, entretanto, jamais foi executado como estrutura de romance, pois é lógico, rígido, e não permite excessos: cada cristal vai refratar a luz e produzir algo diferente, outra ideia, outro texto-cristal edipicamente diferente de seu pai, apesar de ser uma continuação sua.  Não é uma obra aberta nem um romance desmontável, como preconizava Umberto Eco. As pérolas só se tornam colar quando estão reunidas.

Qualquer texto é capaz de gerar novos personagens de que nascem vários outros acontecimentos que assim se bifurcam, à Borges, referindo-se aos caminhos que se abrem para o ser enquanto escolhas existenciais: as nossas escolhas nos produzem.

O mesmo fenômeno ocorre em cada um dos condensados parágrafos de Nejar, que fornecem material, eventos e personagens suficientes para a produção de outros romances mais ou menos intercambiáveis no seu conjunto e totalmente independentes entre si. Nejar larga pérolas em sementes que não colhe e de onde outros livros poderiam nascer, se suas histórias e figuras singulares não fossem cortadas pelas Parcas mãos de Carlos, que tecem, cruzam ou cortam o fio do destino e deixam pelo caminho o texto-tecido-mãe-de-que- muitos-que-seriam-capazes-de-nascer-dele.

Ou seja, o livro é seminal. Cada prisma se subdivide em outro que se subdivide em outro — e todos são doadores potenciais de sêmen capazes de produzir outros romances ou contos ou...

Um exemplo é o da espada cravada no centro de Assombro (p. 30-1) — quem a arrancasse seria o seu senhor — a lança também retirada do solo no duelo entre Uzias e Pompílio pela chefia dos gabirus (p. 121) e o encontro entre Lancelot e Guinevere (p. 35). É claro o intertexto com o Rei Artur e a Távola Redonda, mas os eventos não se tocam, não se entrecruzam, apesar da mesma origem.

Para um romancista clássico, não aproveitar bons personagens, como Lancelot e Guinevere, nem ligá-los à espada na praça seria um erro na estrutura do romance. A ordem era não deixar nenhuma ponta solta. Mas, quando o erro se repete 100 vezes, é um estilo revolucionário que se revela: o sobressimbolismo de Carlos Nejar. Parece mesmo seguir a ordem de Picasso, que afirmou que o grande problema da arte do século XX é que todos os defeitos foram usados como estilo. Bem, estamos no século XXI, e o impossível acontece.

Seguindo a tendência contemporânea ao hibridismo dos gêneros, Nejar retorna ao passado indo além dele e cria um novo estilo, que poderia ser chamado precipitadamente, apressadamente, de surrealismo mágico. Como alça voo da realidade até tocar o sonho, mas não perde a coerência nem a lógica, prefiro chamá-lo de sobressimbolismo (veja o apêndice). O gênero literário é o humano (p. 26), de onde brotou esse novo rebento, híbrido, mas não transgênico. E totalmente orgânico no sentido de que indiscutivelmente é um órgão do corpo literário.

Assim, incorpora a habilidade de destruir para reconstruir de Joyce e de Guimarães Rosa, com quem passa a compor — cada um deles à sua maneira— a santíssima trindade do romance.

É um romance visível se o leitor usar como óculos a chave da estrutura de evasão controlada: a subdivisão prismática da ideia.


3- Falsa Terceira Pessoa e Falsas Pistas 


Nejar emprega a falsa 3ª pessoa, como advogava Autran Dourado em Uma Poética de Romance: Matéria de Carpintaria —  em que o autor pensa (ou escreve o original) na 1ª pessoa mas transpõe o tempo verbal do texto para a 3ª. Ganha em proximidade, em psicologia do personagem e em envolvimento emocional.

Sim, pois o narrador é Pompílio, que se entrega quando confessa:

“E apenas sou uma vírgula no tronco do texto, que por vezes me expulsa ou interroga — pensava.” (p. 17-18).

A narrativa passa da terceira pessoa para a primeira, sem limite algum, na p. 23, e continua assim, abrindo o capítulo segundo, em que Pompílio assume o papel de narrador, do escritor Nejar que conta sua própria história:

“Há coisas que ainda não relatei ao meu amigo Raimundo Facó. E por que adiantar-me? Sou eu que registro tais fatos, porque ninguém sabe melhor de mim que eu.” (p.24)

De fato, A Vida Secreta dos Gabirus se assemelha a palimpsestos legítimos que desafiam o leitor a se lançar em busca da escrita original, da essência do croqui riscado no papel que o ameaça: “decifra-me ou te devoro”. A pergunta vem da esfinge ou do gabiru? Qual hibridismo, qual metamorfose se impõe agora?

Resposta: é um romance de suspense, em que dá falsas pistas ao leitor. E o adverte, puxando suas orelhas de Midas, para o ajudar a transformar tudo que lê em ouro:

“Entretanto, se o leitor parou de se acampar na pesquisa, exigindo comida posta na boca, banalidades ou livros de autoajuda (que nem a si ajudam), o brilho lapidar, interplanetário, das palavras não o vai atingir, ao não crer que a inteligência se torne faculdade coletiva.” (p.20)

Segue uma falsa pista do autor quem acreditar que Pompílio de fato roía livros com a boca. Nejar explica que ele era banguela. Portanto seus olhos é que mastigavam pela leitura voraz:

“(...) e era de vazios contados a dedo. Sem dentes. Nem os olhos se apresentavam, dentuços — ele viu.” (p. 13)

Pompílio, como fazia Nejar em sua juventude, estraga os volumes, manuseando-os até se desfazerem. E a verdade, caro Watson, é que ratos não degustam livros nem os memorizam quando os comem. Homens é que o fazem:

“E Pompílio aventou, num átimo: o livro é vingança contra o esquecimento. E digeri-los é se alimentar de memória.” (p.17)

E repito: a verdade, caro Watson, é que Nejar criou uma belíssima sinestesia, que une impressões de sentidos diferentes como fez o simbolista Baudelaire em seu soneto Correspondances. Nejar retoma a sensorialidade e o subjetivismo, renovando-os pelo sobressimbolismo que inaugura.

Mas é uma nova sinestesia. Ele criou uma nova figura de harmonia sua, que nomearei de sinestesia complementar, com alto teor de sobresssimbolismo.  Dirão meus críticos que não dei um exemplo adequado de sinestesia, pois o que relato como sinestesia é uma metáfora. Um gabiru mastigar livros com os olhos é uma metáfora. Mesmo sendo a sinestesia uma forma de metáfora, tenho de incluir, complementarmente, a informação de que eles mastigavam livros com os olhos e que eles tinham sabor:

"Quando, certa vez, mastigou o papel e os vocábulos de As confissões, de Agostinho, eram de outro gosto ressabiado: o de ostras e frutos do mar. (...) E os instantes com que mastigara Laços de família, de Clarice, na epifania,  eram uvas cortadas de um vinhedo. Saberes e sabores são indiscutíveis." (p. 123)

O fato é que a sinestesia cruza duas sensações diferentes e que mastigar apenas não é algo necessariamente olfativo ou gustativo.  É a complementaridade do mastigar com sensações ao longo do livro que permite chamá-la de sinestesia complementar, pois só podemos tomar conhecimento das percepções diferentes usufruídas pelos gabirus, ao degustarem diversos livros, se percebermos a existência do cruzamento que as caracteriza como tais, gerador de uma nova estrutura em que uma se une à outra em comunhão: os gabirus mastigam com os olhos (visão) e sentem gosto (paladar) de frutos do mar ou de uvas. Veem o gosto e o cheiro. Trata-se de uma visão degustativa, de uma gastronomia pantugruélica dos livros, à moda de vinhos e comidas. Um dado de origem semântica permite a compreensão da imagem.

Carlos confirmou minha tese em conversa comigo. De fato, ele afirmou que se autocaracteriza pela existência da técnica da “Imagem Eidética”, varando sua obra de fora a fora. Desde há muito tempo, Nejar a definiu e a vem definindo como uma imagem “que continua na outra imagem que continua na outra imagem que continua na outra imagem na outra imagem e assim vai infinitamente”. Ao final, formam um conjunto, um bloco associativo de imagens em subdivisão prismática das imagens.

Levando à frente sua própria herança de continuidade de imagens em que metáforas se contradizem complementarmente e de forma dialética, gabirus se tornam homens e homens se tornam gabirus pela sua livre escolha, em mais uma outra criação sua: a metáfora complementar dialética.

Acordo, assombrado, da conversa com Nejar e me lembro que a sinestesia é uma das formas de metáfora.

E recordo que a sinestesia tem sido vista pela neurociência como o processo pelo qual são criadas não só as artes, mas também as ciências e a possibilidade da evolução humana — desde a pré-história. Cada novo evento é encaminhado por sinapses neuronais que se interligam a todas as outras partes do cérebro, como os círculos dentro de círculos a que se referia Dante. Não, Dante, não é o amor que move o Sol e as estrelas e funda o humano. A sinestesia é que permite a sensação do amor e a criação da linguagem e da raça humana a partir da formação de um todo que é mais do que a mera soma das partes que se interligam sinestesicamente. Sim, qualquer pensamento humano se forma com base nela.

A Vida Secreta dos Gabirus aponta para o bem e o mal que estão ocultos dentro do homem, transformando pecadores em santos e santos em criminosos. A proposta de Nejar é que a raça humana some suas diferenças, apurando-as pela palavra. Se alguém se isola em si mesmo, renegando o que há de desigual no outro, só terá a si mesmo como resultado da seguinte equação: quanto maior o grau de intimidade em um relacionamento, maior o número de problemas. Porém problemas não foram feitos para serem resolvidos, mas sim para que as pessoas cresçam na sua resolução. Se as soluções forem superiores aos problemas que as originaram, a relação vale a pena.

Se Pompílio soma sua cabeça à de Raimundo Facó, ambos crescem, pela compreensão mútua, e passam a ter duas cabeças: a do homem (representando o consciente) e a do animal (que significa o inconsciente). O resultado será o misto de equilíbrio e harmonia que deve cimentar as contradições inerentes a qualquer pessoa.

A sinestesia, alicerce do livro, é classificada como uma figura de harmonia pela teoria literária. Não é por acaso que Nejar a escolheu para alicerce da obra com que luta pela harmonia entre os homens. Com ela, A Vida Secreta dos Gabirus conseguiu revolucionar o mundo pelas palavras e criar um novo estilo de época: o sobressimbolismo.


Casamar, 22 de agosto de 2014.

* * * *

APÊNDICE


O Sobressimbolismo de Carlos Nejar


Linhas Sobre a Superfície


Qual música ecoa de linhas sobre a superfície? Não de linhas complexas: — linhas simples, como as das letras.

Que quadro compõem essas linhas desunidas, que apenas se tocam nos seus vértices? Pontos em que se interseccionam, mas não se penetram.


Toda escrita é formada de linhas sobre a superfície. As linhas podem ser cordas suspensas, como a língua inca. Ou gravadas na areia da praia.

Quem se dedica a descobrir o ritmo e a musicalidade dessas linhas sobre a superfície é. Música sem harmonia nem arranjos além da escansão greco-latina ocidental.

Quem se dedica a transformar letras em tintas espalhadas na tela branca da página e a compor cenas em quadros sem perspectiva, mas dotadas de plasticidade é.

É sobressimbolista.

Este estilo de época apresenta Carlos Nejar como seu autor clássico, no sentido de modelo a ser estudado em classes de aula. O único 100% sobressimbolista.



Características do Sobressimbolismo


Leitmotiv: Toda escrita envolve linhas sobre uma superfície.

Presente em artistas contemporâneos em que o hibridismo dos gêneros fez com que se tornassem posteriores a fronteiras.

A obra híbrida e desmontável é típica do sobressimbolismo.

Insatisfação com o cientificismo, com o neoliberalismo e com a destruição dos valores humanos e culturais pela globalização.

Emprego do Método do Delírio da Razão Criadora, que leva a técnica a esgotar os mínimos detalhes dos caminhos estéticos, por ele bifurcados até o cruzamento inumerável de cada possibilidade.

Interesse pelo aspecto plástico, visual e musical da literatura. Sem abandonar a letra e a palavra.

Criação da literatura mítica, não figurativa, mas comprometida com a mensagem e dotada de uma cosmogonia própria.

Propõe uma épica do futuro, em que a ação pertence a um mundo que está sendo inventado e criado por ele.

Visionário e profético, sua criação o santifica enquanto luta contra o mal. Quer eliminá-lo com a arte, pois a sua existência conspurca a dele. O mal o adoece, seja doença de origem física, psíquica, espiritual ou estética. Por isso se lança contra o adversário, contra o feio, contra a dor, contra a injustiça e contra a angústia.

Assim, enxerga o homem como responsável pela mudança da história para melhor.

O ritmo e as imagens de Nejar falam por si sós, alcançando uma musicalidade que não chega à música e uma plasticidade que não chega às artes plásticas.

O ritmo é sua maior preocupação, esteja ele no papel de poeta, de romancista, de dramaturgo ou de crítico.

Poeta, romancista, dramaturgo e crítico em mesmas dosagens.

Para ele, escrever é falar imagens. Faz falar as imagens mesmo dentro da prosa. Não abomina a história, mas sua épica de imagens é que vai desenvolver o enredo até o mito se tornar história.

Psicologismo: foco na visão do indivíduo, no mundo interior do artista ou no dos seus personagens.

Interesse por símbolos, em que o sentido deve ser descoberto, não revelado de pronto. Trabalha com metáforas arquetípicas do inconsciente, como é o caso de Memórias do Porão e de O Túnel Perfeito.

Sua obra é uma enciclopédia que reúne os mais variados recursos usados por escritores desde Homero: suas metáforas, aliterações, assonâncias, paronomásias, metonímias, comparações, rimas internas, sinestesias, antíteses — e inúmeras outras — tocam o barroco sem deixar o sobressimbolismo.

Culto da forma sem se preocupar com a clareza, mas sim com a claridade, de que é sedento.

Hibridismo dos gêneros e das artes. As fronteiras entre gêneros e artes são anuladas: qualquer coisa é a mesma coisa e deságua na literatura. Romance = poema = conto = novela = teatro = música = artes plásticas.

Paixão pelo mistério, pela noite, pela origem e pelo fim de todas as coisas.

A liberdade só é possível no sonho, na imaginação e na fantasia. Inventor de palavras, brinca com elas feito criança, divertindo-se enquanto cria.

Sua preocupação com a essência o tornou um especialista em aforismos capazes de explicar o impossível.

Temperamento utópico e crítico.

Misticismo agnóstico: volta ao espiritualismo cristão medieval, no sentido de que o Deus é vivo. Senti-lo é uma experiência para a qual destinar a vida não é muito e pela qual a compreensão é inapreensível. O Deus vivo é o objeto do desejo humano porque existe o Lugar Simbólico de Deus, um lugar psíquico criado pela crença humana em algum tipo de entidade divina por milhares de anos.

O Lugar Simbólico de Deus pode ser ocupado por dinheiro, sexo, política, drogas, poder — por qualquer coisa, mas pertence primariamente a Deus, e, por isso, crer em algo é inevitável para o homem. Até a crença no vazio o constrói como homem. Mas crer no amor parece a melhor escolha, já que ele é mais importante do que a fé ou a esperança, segundo Paulo em Coríntios.

Preocupação com o cultural propriamente dito e com o cultural no natural e na natureza.

Subjetividade contra a sociedade objetiva.

Preocupação com o inconsciente e com o psicológico.

Nefelibata recluso, anda nas nuvens e se aprisiona em torres de cristal de que suas palavras o libertam.

Na narrativa, o enredo e ação ficam em segundo plano. Contar uma história é importante, mas o conteúdo e a forma são muito mais.

Afastamento e crítica da sociedade burguesa.

Idealismo — arte pura — crença nos espíritos da razão e da escrita.

Tom literário, mesmo na prosa, não o banal.

Temas elevados ou elevação de temas vulgares até a altura em que se acha o estético

Arte pela arte, sem interesse comercial.

Prevenção contra rimas fáceis e adjetivos que chegam com facilidade, mas são ladrões que mendigam em busca de sua luz própria. Com gentileza ele os afasta da soleira da porta em que reside sua arte.

Não procura rimas. As rimas o procuram. Devem ser dosadas, em entretons, pelo espírito suave que rege a assonância das rimas toantes.

Emprega adjetivos proparoxítonos tentando substantivar o texto. O verbo fornece a ação; e o substantivo, a coisa, a matéria. O adjetivo é um tempero raro que deve ser usado para colorir o texto sem empanar os outros ingredientes.

O núcleo da sua criação é resistente. Seguindo o conselho de Pound, ele testa as suas palavras e lança mão apenas das que funcionam. Escolhe as que lhe apresentam a garantia de que funcionarão pela eternidade.

Casamar, 4 de maio de 2014.


O Homem nos Ratos

Pilar do ensaio sobre A Vida Secreta dos Gabirus


Nós somos os homens de ratos,
Nós somos os homens nos ratos.

Nosso corpo não é nosso corpo,
Mas sim um acaso de roedores
que se reúnem em forma humana por pouco.

Nosso corpo não é nosso corpo
e nossos olhos não podem ver o terror
nos que trazem pedaços de nossa figura
contidos em seu interior:
Somos os que comeram ratos antes de serem concebidos,
Os que se alimentaram de ratos, não de maternos líquidos,
Os que extraíram sua força de ratos,
Os que na origem da própria carne
não encontram mais que carne de ratos digerida,
Os que possuem nos ossos, na força e na carne
carne de ratos — transubstanciada
em ratos porque sua concepção se originou
de um desejo dos ratos
que em nossas fotos de criança foram os retratados
e que permaneceram os mesmos
enquanto nosso fraterno eu original,
Crescendo, sumia.

Assim reunidos em grandes corporações,
Roedores sendo cabeça, tronco e membros,
Um susto nos desfaz soltos pelo departamento
e nossos sentimentos convulsionados
extinguem os  poucos pedaços ainda humanos
enquanto completamos nossa evolução para ratos.

Nós terminamos aos pedaços enquanto existimos.
Achamos que vivemos, mesmo perdendo pedaços para os vivos,
E nos apegamos à certeza de termos rapidamente existido
como ilusão de ótica que cresce mais do que os nascidos.

Despojados de hinos de fé no trabalho,
Somos animais precisos em um mundo falho
que ninguém conhece, medrosos,
A carícia e o risco nas superfícies dos olhos.

Com os buracos do corpo sendo morada de ratos,
Deveríamos eliminá-los:
— Mas como, sem eliminar também os buracos?
Com o corpo infestado de ratos,
Deveríamos eliminá-los, como ao ânus, à vagina e ao falo?

Com o corpo infestado de ratos
de onde nascemos por acaso,
Todos em seus buracos medrosos e não planejados,
Todos enterrados em nossos buracos
buracos com olhos de ratos,
Que piscam e pulam como dados
programados para o computador errado,
Com o corpo nascido várias vezes
por uma breve coincidência de ratos
reunidos em Congresso Nacional pela privatização do Estado,
Temos de aproveitá-los vezes e vezes
até que aceitemos que lado a lado com a comida — de ratos —
repousem — de ratos — as  fezes.

Somos homens formados por ratos cada vez mais.
Quando elevamos os olhos para os velhos ideais
é como se não olhássemos,
Por não poder qualquer imagem da luz atingir uma pele secreta,
E o que acontece é apenas uma caminhada de ratos — como flecha —
que por acaso indica uma meta.


Casamar, 2014.


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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)


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