Qual música ecoa de linhas sobre a superfície? Não de linhas complexas: — linhas simples, como as das letras. Que quadro compõem estas...
O sobressimbolismo: linhas sobre a superfície
Qual música ecoa de linhas sobre a superfície? Não de linhas complexas: — linhas simples, como as das letras.
Que quadro compõem estas linhas desunidas, que apenas se tocam nos seus vértices? Pontos em que se interseccionam, mas não se penetram.
Toda escrita é formada de linhas sobre a superfície. As linhas podem ser cordas suspensas, como a língua inca. Ou gravadas na areia da praia.
Quem se dedica a descobrir o ritmo e a musicalidade dessas linhas sobre a superfície é. Música sem harmonia nem arranjos além da escansão greco-latina ocidental.
Quem se dedica a transformar letras em tintas espalhadas na tela branca da página e a compor cenas em quadros sem perspectiva, mas dotadas de plasticidade é.
É sobressimbolista.
Características do Sobressimbolismo
Carlos Nejar é o autor clássico, no sentido de ser estudado em classes de aula. O único 100% sobressimbolista.
Leitmotiv: Toda escrita envolve linhas sobre uma superfície.
Presente em artistas contemporâneos em que o hibridismo dos gêneros fez com que se tornassem posteriores a fronteiras.
Insatisfação com o cientificismo, com o neoliberalismo e com a destruição dos valores humanos e culturais pela globalização.
Emprego do Método do Raciocínio Obsessivo, que leva a técnica a explorar os mínimos detalhes dos caminhos estéticos que se bifurcam até o exagero inumerável de cada possibilidade. Melhor dizendo: leva tudo ao exagero dos mínimos detalhes de cada caminho estético possível.
Interesse pelo aspecto plástico, visual e musical da literatura. Sem abandonar a letra e a palavra.
Criação da literatura abstrata, não figurativa, sem compromisso com a mensagem, em que o ritmo e as imagens falam por si sós, com uma musicalidade que não chega à música e uma plasticidade que não chega às artes plásticas.
Psicologismo: foco na visão do indivíduo, no mundo interior do artista ou no dos seus personagens.
Interesse por símbolos, em que o sentido deve ser descoberto, não revelado de pronto.
Metáforas, aliterações, assonâncias, paronomásias, comparações, rimas internas, coliterações, antíteses — não barrocas, mas sobressimbolistas. Culto da forma, chegando ao hermetismo.
Hibridismo dos gêneros e das artes. As fronteiras entre gêneros e artes são anuladas: qualquer coisa é a mesma coisa. Romance = poema = conto = novela = teatro = música = artes plásticas.
Paixão pelo mistério, pela noite, pela morte e por entretons como o pôr do sol.
A liberdade só é possível no sonho, na imaginação e na fantasia.
Temperamento pessimista e crítico.
Misticismo agnóstico: volta ao espiritualismo cristão medieval.
Preocupação com o cultural, não com o natural.
Subjetividade contra a sociedade objetiva.
Preocupação com o inconsciente e com o psicológico.
Nefelibatas reclusos, andam nas nuvens e vivem em torres de cristal.
Na narrativa, o enredo e ação ficam em segundo plano. Contar uma história é importante, mas a forma é muito mais: formalismo.
Afastamento e crítica da sociedade burguesa.
Idealismo — arte pura — crença nos espíritos da razão e da narrativa — platonismo.
Tom literário, mesmo na prosa, não o coloquial.
Temas elevados ou elevação de temas vulgares até a altura em que se acha o estético.
Arte pela arte, sem interesse comercial.
Técnica típica do sobressimbolismo: a obra desmontável.
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© 2017 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
A publicação de Poema Deitado no seu Peito, de Ana Cristina Costa Siqueira, pela Scortecci Editora (São Paulo, 2012), soa postumamente a...
Oscar Gama Filho: Lirismo arrebatador
A publicação de Poema Deitado no seu Peito, de Ana Cristina Costa Siqueira, pela Scortecci Editora (São Paulo, 2012), soa postumamente aos meus ouvidos, como se o seu livro pertencesse a uma poeta que morreu inédita — ou que estivesse morta em vida ou para a vida, tomada de uma incontrolável melancolia. O que é o caso.
Sinto que se trata de algo parecido com uma tentativa de reparar uma injustiça imperdoável. Talvez seja porque ela, apesar dos 54 anos bem vívidos e bem pesados, tenha algumas semelhanças com Emily Dickinson, cujo espírito de sua arte só se revelou, desencarnando-se, após sua morte, quando finalmente seus versos foram impressos em prol da criação da identidade da alma feminina.
Como Emily, Cristina é uma exilada dentro do seu próprio corpo almado, aprisionada dentro do seu silêncio tímido, e só se liberta momentaneamente quando escreve. Quem, por acaso, ler seus poemas, não acreditará, se vier a conversar com ela, que Cristina os tenha extraído de seu laconismo. Mas é porque tirou as palavras de sua boca para destiná-las apenas ao papel.
Como em Emily, estão presentes o lirismo, o sentimento de comunhão com a natureza, o prazer em cantar o cotidiano e em lidar com ele: a paixão pela poesia como meio-mor de se expressar e de vivenciar o mundo, tudo isso revestido por uma aparência virginal, tímida, ousada e familiar.
Uma das melhores poetas da nova geração capixaba, nasceu em 23 de setembro de 1958 em Juiz de Fora, MG, e veio para o Espírito Santo em 1977.
Amiga de longos silêncios face a face em seu eterno batom vermelho, é também autora de cartas belíssimas reunidas no inédito primeiro romance epistolar capixaba, Cartas Deitadas no seu Peito — Cartas a Oscar Gama Filho (1983 -2006), que pode ser inscrito no Guiness e enriquecê-la ao ganhar o título mundial de cartas de amor sem resposta: são 23 anos sem retorno! A incapacidade de responder à altura da beleza de seu texto me impossibilitou a réplica, tornando-a desnecessária quando ela desenvolveu cartas de uma beleza tão espaçosa que ganhava o espaço por si só e, como um buraco negro, sugava até a luz e as palavras que me permitiriam uma correspondência. Mas guardei todas e as devolvi 30 anos depois.
Cristina era, desde cedo, dona de um corpo de talento e de primor técnico grande o bastante para que ela não o controlasse com a perfeição que o futuro, hoje chegado, lhe forneceria. Por isso só as devolvi 30 anos depois. Estava nova demais para apreciar a beleza cegante dos diamantes de sol.
Dia a dia, ao longo de três décadas, escrevemos e debatemos, e tanto e a tal ponto que uma ponte mágica se construiu entre nós quando criamos, juntos, a sua obra — eu de muso carnavalesco.
Anos de contato pontifício levaram-na a aliar voos condoreiros e imagens grandiosas aos seus pequenos cacos de lirismo e de cotidiano, influenciando na composição de um retrato ao mesmo tempo estranho e arrebatador pela união do lírico ao grandioso e ao ácido que se encontram neste magnífico Poema Deitado no seu Peito — um Jogo de Amarelinha (homenagem a Cortázar), publicado pela Scortecci Editora, de São Paulo, em 2012, com 142 p., lançado na Bienal de Literatura de São Paulo no ano passado.
[In A Gazeta, Caderno Pensar, 13/04/2013.]
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Anotações de Oscar Gama Filho. Reinaldo Santos Neves não abriria mão de viver esteticamente nem para ser autor de um best-sell...
Match Point
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Anotações de Oscar Gama Filho. |
A visão de Reinaldo sobre Mictória é mais europeia, americana e noir, que brasileira. Daí a mordacidade, a aversão à mediocridade, a ausência da complacência que seria de esperar num nativo. Seu olhar britânico é que o torna capaz de capturar o genuíno. Para ele, o único noir verdadeiro é o espírito-santense, com suas nuances de romantismo neorrealista. O contraste entre seus claros solares, que empapuçam a cor, desfazendo-a, e tons escuros, primitivos e bárbaros, compõe um filme preto e branco ultrapassado pela realidade: cápsula do tempo a ser apreciada no museu raro desta obra.
Reinaldo trata de pessoas que, abandonadas por deus (e, agora, por demônios que não as suportam), metamorfoseiam-se em mitos pela mão que bate o egoísmo, a violência, a crueldade e a indiferença pelo próximo — como massa de pão — até que se convertam em arte.
O processo de escrever, para um clássico, passa necessariamente por barreiras que dificultem a facilidade criativa. Daí seu processo de pesquisa ter-lhe granjeado dois momentos em mundos que jamais conheceu: A Crônica de Malemort e Kitty aos 22. Desta vez, lança mão de fragmentos de um sonho real para compor um alegado divertissement, gênero musical que vai do ligeiro à sinfonia, passando por tons noturnos de uma atmosfera com toques policiais.
É uma tradução intersemiótica. O eidos, que constitui a essência da obra desmontável, transforma-se em qualquer forma de arte e lê-se em qualquer linguagem ou língua. Ao inventar a cor das vogais, Rimbaud executou uma tradução intersemiótica da pintura para a literatura. Se a passagem da linguagem de uma forma de arte para outra é tão impossível quanto escrever um divertissement, sua missão de artista foi realizada. O eidos está centrado no sonho parcialmente esquecido, a que se lança para recuperar o tempo perdido. Proust mostrou que é pela memória involuntária que se recupera esse tempo perdido, momento miraculoso que possibilita escutar o tão caro silêncio. E há descrições minuciosamente proustianas, como a da alvorada (p. 71-73) e (sem ter assistido a nenhum) do desfile de moda (p. 183-86). Mas é um mundo a que só teve acesso pela pesquisa na internet. Sonhar é crime em 2017, e Reinaldo é réu confesso: culpado. O futuro o absolverá. O sonho retornará apenas no epílogo do livro (p. 232-33), com o avesso do som fazendo ouvir o silêncio.
Retrata, com total verossimilhança, fixando suas características, a Geração Y: seu modo de falar (o dialeto internetês), de sentir friamente e de se expressar. O rico vocabulário inclui neologismos como ‘putamerdalmente’ (p.112) e ‘adolescentozoides’ (p.183), gírias como ‘mó sexy’ (p. 120) e ‘ficou rox’ (p.121), e construções sintáticas que reproduzem o dialeto contemporâneo. Citações cinematográficas e intertextos refletem a formação do escritor: Camões, Orwell, ‘King Kong’, ‘Cabaré’, ‘De Olhos Bem Fechados’, ‘Cinderela’...
Em Reinaldo, as metáforas tomam vida. O pedido de Lu, melhor amiga de Kitty, é literalmente atendido: “Kitty: dá ponto pra ele, e aí, quando ele achar que te ganhou, fura o olho do gato, pelamor de Deus” (p. 163). Se, na gíria, “furar o olho” é trair, Kitty o faz: na oportunidade da primeira transa, ela o deixa na mão, sem comê-la, e ainda o mata, furando seu olho com o salto alto agulha do sapato, depois de usá-lo, anteriormente, para sair nas manchetes dos jornais de Mictória, que é exatamente a união da cidade de Vitória com o mictório poluído em que a contemporaneidade a transformou.
Bruno e Kitty são personagens complexos, dinâmicos, contraditórios, dotados de primorosa construção psicológica, digna de Dostoiévski. A partir do encontro com o Relinchador (p.110), Kitty se humaniza, retira-se de um estado primitivo de amoralidade e egocentrismo para uma semi-humanidade circunstancial. Já Phil é plano, linear, paráfrase de Philip Marlowe, detetive durão criado por Raymond Chandler. Estamos diante de um virtuose: esta novela pode ser usada, por um aprendiz de prosador, como compêndio de fórmulas de realização de narrativas e falas, escalas literomusicais, ou seja, exercícios de improviso em inúmeras variações.
Se a morte é um evento constrangedor, mas imprescindível à sua proposta, a solução é embrulhá-la no mais belo papel de presente: a literatura. A questão básica da humanidade, aqui abordada, é o quanto vamos aguentar, como vamos aguentar e por que vamos aguentar.
A equação proposta por ‘Kitty’, criada a partir do sonho, tem suas consequências. Mostra, pelo princípio clássico da intemporabilidade do belo, por autoevidência, que a arte é o eidos, a essência em torno de que a realidade variante muda. O belo, a arte, é o invariante, o eixo da realidade, núcleo imutável ao redor do qual ela se fragmenta, centrifugadora existencial. A arte forma o mundo real como dom que dela vaza. O que há de belo e atemporal em Kitty é o eixo-eidos da incompreensível consciência.
E para quem deseje posições sociais ou políticas engajadas, é bom lembrar que o autor viveu num tempo de ditadura militar, terrorismo e censura federal. Descrever e ridicularizar foi a saída. Rindo, ele castigou os costumes: ridendo castigat mores. O que nossas escassas forças podem alterar? Quando os políticos agem como se a corrupção fosse um direito adquirido, a mudança é a única guerrilha ao nosso alcance. Mas a solução apenas homologa a situação. Resta saber para qual revolução micropolítica possível conformaremos nossos gestos, que não podem ser estancados nem paralisados, mesmo que aleatórios e perdidos no mundo fútil e superficial de Kitty.
Em seu romance Sueli, Reinaldo Santos Neves afirmou que a função maior do homem no mundo “é transformar-se em literatura.”
Aprendemos, então, que a maior missão de um escritor é fazer-se literatura, tornar-se literatura. Escrever bem qualquer um consegue. O diferencial é conseguir metamorfosear-se em O Escritor, transformar-se em matéria-prima de lendas, em homem santo da religião sem deus dedicada à adoração do hegeliano espírito da literatura, entronizar-se como Filho do Absoluto.
Este é o caso de Reinaldo, que saiu da vida e abandonou seu lar para dormir em bibliotecas, livrarias e estantes, tornando-se pedra fundamental da literatura brasileira.
EPÍLOGO
Kitty, a Bela Adormecida.
O Mago-mor, vândalo infiltrado entre os Reis Magos, amaldiçoou Kitty, e todos os que na obra viviam, a um sono de cem anos, porque não foi convidado à festa da beleza e do destino. Preferiu a festa do sucesso e da riqueza, e lá chapou o coco e dormiu. Perdeu o melhor batizado do mundo e acordou puto por isso. E, afinal de contas, por não estar na lista dos convidados. Mas sabia, como Mago, que seu talento na magia encantava a todos e, por si só, o admitiria em qualquer recinto. Todos gostam de show de mágicas.
O Mago-padrinho, contudo, figura mais esperada no evento, chegou atrasado, como sempre, e não tinha dado seu presente. Nem levado. Esqueceu. A única saída residia em cumprir seu destino na linha do tempo, a que nada escapa.
Aí o Mago-padrinho concedeu sua bênção a Kitty, transformando seu sono de esquecimento. O encanto seria quebrado quando um poeta recluso, solitário e verdadeiro e sincero beijasse a beleza que do livro emana. Seria tarde demais, porque o vestibular da UFES, em que foi adotado, em 2008, já se foi, mas Kitty acordaria e viveria para sempre nas estantes de livrarias.
Kitty dormiu por mais de uma década: este ensaio foi escrito entre 2006 e 2017, em marginália, nas páginas do próprio livro, ou em pedaços de papel avulsos, com garranchos incompreensíveis em que eu insistia em ver ideogramas autoexpressivos, não um texto com início, meio e fim. Em homenagem aos 70 anos de Reinaldo, concluí o caso. Tirem suas conclusões por si mesmos, pois nem sempre o mordomo é o culpado, mesmo sendo anglo-capixaba seu senso de humor.
Enfim ressuscitei e beijei a pátina de sua página de rosto, tencionando resolver esta longa história de amor, ou, ao menos, captar seu satori, a iluminação possível em um ambiente noir, e que por isso forneceria presença à alma de Kitty, que, sem ela, continuaria perdida no limbo onírico.
© 2017 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Livreto ------------------------------------ Faixa 1 - Natal [Mario Ruy - Oscar Gama Filho] Faixa 2 - Mariana (A luz principa...
Depois do fim, antes do começo
Livreto
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Faixa 1 - Natal [Mario Ruy - Oscar Gama Filho]
Faixa 2 - Mariana (A luz principal) [Mario Ruy - Oscar Gama Filho]
Faixa 3 - Bem êxtase [Oscar Gama Filho - Mario Ruy]
Faixa 4 - O mano [Oscar Gama Filho - Mario Ruy]
Faixa 5 - Nadar [Oscar Gama Filho - Mario Ruy]
Faixa 6 - Fora de si [Mario Ruy - Oscar Gama Filho]
Faixa 7 - Amor ao entardecer [Mario Ruy - Oscar Gama Filho]
Faixa 8 - Sil [Oscar Gama Filho - Mario Ruy]
Faixa 9 - Óleos de menta [Oscar Gama Filho - Mario Ruy]
Faixa 10 - Você [Mario Ruy - Oscar Gama Filho]
Faixa 11 - Além do amor [Mario Ruy - Oscar Gama Filho]
Faixas bônus
Faixa 12 - Troféu [Oscar Gama Filho - Mario Ruy]
Faixa 13 - Ana Márcia (Geração setenta) [Afonso Abreu - Mario Ruy - Oscar Gama Filho]
Faixa 14 - Dor secreta [Oscar Gama Filho - Mario Ruy]
Faixa 15 - Bom malandro [Mario Ruy - Oscar Gama Filho]
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Arranjos: Paulo Sodré - Mario Ruy - Carlos Augusto;
Músicos: Alexandre Lima - Amaro Lima - Manoel Queiroz - Paulo Branco - Flávio Rocha "Kabimba" - Chryso Rocha - Saulo Simonassi - Paulo Sodré - Sérgio Melo - Afonso Abreu - Marco Antonio Grijó - Carlos Augusto - Pedro Alcântara - Sérgio Rouver - Carlos Bernardo - Mario Ruy - Dalton Rosa - Melão - Marcelo Santos - Selbe Meireles Filho - Almir Paulo -
Intérpretes: Alexandre Lima - Carlos Papel - Daniela Moraes - Edésio Fraga - Elaine Rowena - Eliane Gonzaga - Flávia Moraes - Kátia Brinco - Lula D'Vitória - Paulo Branco.
[GAMA Filho, Oscar, RUY, Mario. Depois do fim, antes do começo (CD). Vitória, Reprodução autorizada pelos compositores e intérpretes.]
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© 2017 Direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Co-edição com a Cândida Editora [Edição digital - ISBN 978-85-64258-12-9]
Série Estação Capixaba - volume 6
1- A Revolução pela Palavra A Vida Secreta dos Gabirus (Record, 2014), de Carlos Nejar, é devorada sem respirar pelo leitor, graças a...
Oscar Gama Filho: As Metamorfoses do Homem
1- A Revolução pela Palavra
A Vida Secreta dos Gabirus (Record, 2014), de Carlos Nejar, é devorada sem respirar pelo leitor, graças ao encanto que concedeu um só parágrafo a cada capítulo. Ou à transformação do romance em uma história sem fim nem começo, mérito de certa espécie de gerúndio temporal que une passado e futuro no presente contínuo que estamos vivenciando desde que Fukuyama decretou o fim da História. Ilustrando essa tese, Nejar criou um brilhante oxímoro barroco: o que não acontece, de fato, no presente, na verdade já aconteceu e continuará acontecendo (p. 9).
É o retrato do tempo divino que se instala na obra, pois Deus é o alfa e o ômega, só Ele contém o real, a soma de todos os momentos ocorridos justapostos e no seu princípio está seu fim, como queria Eliot.
As imagens, alegorias, metáforas, aforismos e manipulações sobressimbolistas da realidade inundam todas as frases, deixando o leitor sem fôlego, como se estivesse diante de um filme em clipes rápidos, característicos do cinema moderno. Explico: os filmes antigos eram lentos, possuíam uma ação vagarosa. O cinema contemporâneo acolheu, em sua teoria eisensteiniana da montagem, a linguagem de clipes dos anúncios publicitários. Qualquer cena é completa e se constitui em uma surpresa sensorial, tal como cada frase de A Vida Secreta dos Gabirus, pois carrega em si imagens (no sentido literocinematográfico) eletrizantes, comoventes, surpreendentes,condensadas, que prendem a leitura à maneira de um filme-romance. Qualquer oração tem sua beleza em si e explode na cara do leitor em imagens inusitadas típicas do cinema contemporâneo.
Um exemplo claro é o nome da cidade em que se passa a ação, Assombro, que também é uma mulher encarnada na forma mais radical de metáfora, a alegoria. Em Carta aos Loucos Nejar também havia recorrido ao nome Assombro para chamar esse ser híbrido que não é menos cidade que mulher. Na Vida Secreta dos Gabirus assim ele a descreve:
“uma cidade com cabelos adornados de lady, vergéis em sua pele e ruas de polida pedra”(p.31).
Os aforismos de Nejar deixam sua marca de fora a fora. Mas, graças ao Livro das Vidências (p 67-104), ganham o primeiro lugar em qualquer desfile carnavalesco de livros que metamorfoseiam a literatura à moda de gabirus que se transformam em homens e vice-versa. Seus aforismos, capazes de explicar o impossível, emergem da fôrma de respostas e perguntas feitas em sua vulcânica, insaciável, escatológica e metafísica preocupação com a essência, com o fim e com os princípios do existente, do invisível e do inacreditável.
A História escrita, até agora, tem sido a narrativa da vitória da classe dominante e dos homens de sucesso. A Vida Secreta dos Gabirus é a história que não foi contada, é a história da classe dominada, dos gabirus, e prega a revolução pela palavra em seu duplo sentido. No de palavra literária e no de Palavra enquanto sinônimo de Bíblia. E de fato o Messias foi esperado como um salvador, como um líder revolucionário que traria paz à terra.
Uma explicação: gabiru é uma raça de híbridos homens-ratos que devoram livros e vivem à margem de Assombro, em seus arredores. Mas essa é uma das falsas pistas lançadas por Nejar, ratoeiras para capturar leitores em busca do fácil.
Sem nenhuma referência a Kafka, mas talvez como seu complemento, o romance ensina, contudo, que qualquer pessoa pode se metamorfosear em gabiru, por força de sua opção pela barbárie, e qualquer gabiru de nascença, como Pompílio Salerno, pode se transformar em gente pela escolha da palavra certa.
A mulher de Pompílio, Cláudia, foi decalcada na eterna esposa e musa do romancista, Elza dos Pássaros. Da mesma forma, o protótipo dos gabirus é o próprio Nejar, que devorava livros em sua juventude, pois cortava as páginas de suas obras preferidas e carregava-as por toda parte, alimentando-se delas por meio de sua leitura em ônibus e bondes. Assim, Nejar foi o primeiro gabiru a se tornar homem por meio da revolução da palavra literobíblica. E a vida secreta do gabiru é a do homem platonicamente ideal e bom que existe dentro dele. Consequentemente, a vida secreta do homem é a do rato que mora em sua alma e pode devorá-lo se o permitir, animalizando-o no mau sentido.
O corpo de Nejar parece ser apenas o cavalo em que o escritor se incorporou e a que a entidade estética não dá muita atenção, não lhe permitindo tomar cuidado algum com sua saúde ou com seu aspecto físico. A monástica ascese de seu corpo serve somente para cumprir o destino de escrever a sua obra literária. Mas essa máquina de escrever ambulante possui alma e gênio.
Vivendo em um jogo de palavras, enquanto elas existirem, Nejar estará vivo, pois elas o sustentam, assim como à humanidade em metamorfose.
2- A Subdivisão Prismática da Ideia
A invulgar estrutura do romance não é a do romance clássico, ou não a renovaria, tanto pela evasão de uma fórmula exausta quanto de uma simultânea aproximação de novelas de suspense — H. G. Wells— e dos primeiros romances medievais em versos, poemas épicos como Orlando Furioso e A Demanda do Santo Graal. Como ilustra Nejar:
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“Dirão alguns que a arte da evasão é a inexistência de ossatura de um romance, por não se darem conta de que a ossatura é a evasão. E, ao mudarmos o tempo que andava em ruínas, vai-se tornando jovem. Porque o estilo é enxergar o que está detrás das palavras, para que elas nos alcancem ver melhor. Não é Wells que adverte que as novelas de antecipação se livram muito pouco do mundo que cerca o autor, por poderosa que seja sua imaginação?” (p.26)
A Vida secreta dos Gabirus só pode ser lida por meio da chave decifradora criada por Mallarmé e lançada em Un Coup de Dés Jamais n’Abolira Le Hasard — a subdivisão prismática da ideia. O brilhante conceito, entretanto, jamais foi executado como estrutura de romance, pois é lógico, rígido, e não permite excessos: cada cristal vai refratar a luz e produzir algo diferente, outra ideia, outro texto-cristal edipicamente diferente de seu pai, apesar de ser uma continuação sua. Não é uma obra aberta nem um romance desmontável, como preconizava Umberto Eco. As pérolas só se tornam colar quando estão reunidas.
Qualquer texto é capaz de gerar novos personagens de que nascem vários outros acontecimentos que assim se bifurcam, à Borges, referindo-se aos caminhos que se abrem para o ser enquanto escolhas existenciais: as nossas escolhas nos produzem.
O mesmo fenômeno ocorre em cada um dos condensados parágrafos de Nejar, que fornecem material, eventos e personagens suficientes para a produção de outros romances mais ou menos intercambiáveis no seu conjunto e totalmente independentes entre si. Nejar larga pérolas em sementes que não colhe e de onde outros livros poderiam nascer, se suas histórias e figuras singulares não fossem cortadas pelas Parcas mãos de Carlos, que tecem, cruzam ou cortam o fio do destino e deixam pelo caminho o texto-tecido-mãe-de-que- muitos-que-seriam-capazes-de-nascer-dele.
Ou seja, o livro é seminal. Cada prisma se subdivide em outro que se subdivide em outro — e todos são doadores potenciais de sêmen capazes de produzir outros romances ou contos ou...
Um exemplo é o da espada cravada no centro de Assombro (p. 30-1) — quem a arrancasse seria o seu senhor — a lança também retirada do solo no duelo entre Uzias e Pompílio pela chefia dos gabirus (p. 121) e o encontro entre Lancelot e Guinevere (p. 35). É claro o intertexto com o Rei Artur e a Távola Redonda, mas os eventos não se tocam, não se entrecruzam, apesar da mesma origem.
Para um romancista clássico, não aproveitar bons personagens, como Lancelot e Guinevere, nem ligá-los à espada na praça seria um erro na estrutura do romance. A ordem era não deixar nenhuma ponta solta. Mas, quando o erro se repete 100 vezes, é um estilo revolucionário que se revela: o sobressimbolismo de Carlos Nejar. Parece mesmo seguir a ordem de Picasso, que afirmou que o grande problema da arte do século XX é que todos os defeitos foram usados como estilo. Bem, estamos no século XXI, e o impossível acontece.
Seguindo a tendência contemporânea ao hibridismo dos gêneros, Nejar retorna ao passado indo além dele e cria um novo estilo, que poderia ser chamado precipitadamente, apressadamente, de surrealismo mágico. Como alça voo da realidade até tocar o sonho, mas não perde a coerência nem a lógica, prefiro chamá-lo de sobressimbolismo (veja o apêndice). O gênero literário é o humano (p. 26), de onde brotou esse novo rebento, híbrido, mas não transgênico. E totalmente orgânico no sentido de que indiscutivelmente é um órgão do corpo literário.
Assim, incorpora a habilidade de destruir para reconstruir de Joyce e de Guimarães Rosa, com quem passa a compor — cada um deles à sua maneira— a santíssima trindade do romance.
É um romance visível se o leitor usar como óculos a chave da estrutura de evasão controlada: a subdivisão prismática da ideia.
3- Falsa Terceira Pessoa e Falsas Pistas
Nejar emprega a falsa 3ª pessoa, como advogava Autran Dourado em Uma Poética de Romance: Matéria de Carpintaria — em que o autor pensa (ou escreve o original) na 1ª pessoa mas transpõe o tempo verbal do texto para a 3ª. Ganha em proximidade, em psicologia do personagem e em envolvimento emocional.
Sim, pois o narrador é Pompílio, que se entrega quando confessa:
“E apenas sou uma vírgula no tronco do texto, que por vezes me expulsa ou interroga — pensava.” (p. 17-18).
A narrativa passa da terceira pessoa para a primeira, sem limite algum, na p. 23, e continua assim, abrindo o capítulo segundo, em que Pompílio assume o papel de narrador, do escritor Nejar que conta sua própria história:
“Há coisas que ainda não relatei ao meu amigo Raimundo Facó. E por que adiantar-me? Sou eu que registro tais fatos, porque ninguém sabe melhor de mim que eu.” (p.24)
De fato, A Vida Secreta dos Gabirus se assemelha a palimpsestos legítimos que desafiam o leitor a se lançar em busca da escrita original, da essência do croqui riscado no papel que o ameaça: “decifra-me ou te devoro”. A pergunta vem da esfinge ou do gabiru? Qual hibridismo, qual metamorfose se impõe agora?
Resposta: é um romance de suspense, em que dá falsas pistas ao leitor. E o adverte, puxando suas orelhas de Midas, para o ajudar a transformar tudo que lê em ouro:
“Entretanto, se o leitor parou de se acampar na pesquisa, exigindo comida posta na boca, banalidades ou livros de autoajuda (que nem a si ajudam), o brilho lapidar, interplanetário, das palavras não o vai atingir, ao não crer que a inteligência se torne faculdade coletiva.” (p.20)
Segue uma falsa pista do autor quem acreditar que Pompílio de fato roía livros com a boca. Nejar explica que ele era banguela. Portanto seus olhos é que mastigavam pela leitura voraz:
“(...) e era de vazios contados a dedo. Sem dentes. Nem os olhos se apresentavam, dentuços — ele viu.” (p. 13)
Pompílio, como fazia Nejar em sua juventude, estraga os volumes, manuseando-os até se desfazerem. E a verdade, caro Watson, é que ratos não degustam livros nem os memorizam quando os comem. Homens é que o fazem:
“E Pompílio aventou, num átimo: o livro é vingança contra o esquecimento. E digeri-los é se alimentar de memória.” (p.17)
E repito: a verdade, caro Watson, é que Nejar criou uma belíssima sinestesia, que une impressões de sentidos diferentes como fez o simbolista Baudelaire em seu soneto Correspondances. Nejar retoma a sensorialidade e o subjetivismo, renovando-os pelo sobressimbolismo que inaugura.
Mas é uma nova sinestesia. Ele criou uma nova figura de harmonia sua, que nomearei de sinestesia complementar, com alto teor de sobresssimbolismo. Dirão meus críticos que não dei um exemplo adequado de sinestesia, pois o que relato como sinestesia é uma metáfora. Um gabiru mastigar livros com os olhos é uma metáfora. Mesmo sendo a sinestesia uma forma de metáfora, tenho de incluir, complementarmente, a informação de que eles mastigavam livros com os olhos e que eles tinham sabor:
"Quando, certa vez, mastigou o papel e os vocábulos de As confissões, de Agostinho, eram de outro gosto ressabiado: o de ostras e frutos do mar. (...) E os instantes com que mastigara Laços de família, de Clarice, na epifania, eram uvas cortadas de um vinhedo. Saberes e sabores são indiscutíveis." (p. 123)
O fato é que a sinestesia cruza duas sensações diferentes e que mastigar apenas não é algo necessariamente olfativo ou gustativo. É a complementaridade do mastigar com sensações ao longo do livro que permite chamá-la de sinestesia complementar, pois só podemos tomar conhecimento das percepções diferentes usufruídas pelos gabirus, ao degustarem diversos livros, se percebermos a existência do cruzamento que as caracteriza como tais, gerador de uma nova estrutura em que uma se une à outra em comunhão: os gabirus mastigam com os olhos (visão) e sentem gosto (paladar) de frutos do mar ou de uvas. Veem o gosto e o cheiro. Trata-se de uma visão degustativa, de uma gastronomia pantugruélica dos livros, à moda de vinhos e comidas. Um dado de origem semântica permite a compreensão da imagem.
Carlos confirmou minha tese em conversa comigo. De fato, ele afirmou que se autocaracteriza pela existência da técnica da “Imagem Eidética”, varando sua obra de fora a fora. Desde há muito tempo, Nejar a definiu e a vem definindo como uma imagem “que continua na outra imagem que continua na outra imagem que continua na outra imagem na outra imagem e assim vai infinitamente”. Ao final, formam um conjunto, um bloco associativo de imagens em subdivisão prismática das imagens.
Levando à frente sua própria herança de continuidade de imagens em que metáforas se contradizem complementarmente e de forma dialética, gabirus se tornam homens e homens se tornam gabirus pela sua livre escolha, em mais uma outra criação sua: a metáfora complementar dialética.
Acordo, assombrado, da conversa com Nejar e me lembro que a sinestesia é uma das formas de metáfora.
E recordo que a sinestesia tem sido vista pela neurociência como o processo pelo qual são criadas não só as artes, mas também as ciências e a possibilidade da evolução humana — desde a pré-história. Cada novo evento é encaminhado por sinapses neuronais que se interligam a todas as outras partes do cérebro, como os círculos dentro de círculos a que se referia Dante. Não, Dante, não é o amor que move o Sol e as estrelas e funda o humano. A sinestesia é que permite a sensação do amor e a criação da linguagem e da raça humana a partir da formação de um todo que é mais do que a mera soma das partes que se interligam sinestesicamente. Sim, qualquer pensamento humano se forma com base nela.
A Vida Secreta dos Gabirus aponta para o bem e o mal que estão ocultos dentro do homem, transformando pecadores em santos e santos em criminosos. A proposta de Nejar é que a raça humana some suas diferenças, apurando-as pela palavra. Se alguém se isola em si mesmo, renegando o que há de desigual no outro, só terá a si mesmo como resultado da seguinte equação: quanto maior o grau de intimidade em um relacionamento, maior o número de problemas. Porém problemas não foram feitos para serem resolvidos, mas sim para que as pessoas cresçam na sua resolução. Se as soluções forem superiores aos problemas que as originaram, a relação vale a pena.
Se Pompílio soma sua cabeça à de Raimundo Facó, ambos crescem, pela compreensão mútua, e passam a ter duas cabeças: a do homem (representando o consciente) e a do animal (que significa o inconsciente). O resultado será o misto de equilíbrio e harmonia que deve cimentar as contradições inerentes a qualquer pessoa.
A sinestesia, alicerce do livro, é classificada como uma figura de harmonia pela teoria literária. Não é por acaso que Nejar a escolheu para alicerce da obra com que luta pela harmonia entre os homens. Com ela, A Vida Secreta dos Gabirus conseguiu revolucionar o mundo pelas palavras e criar um novo estilo de época: o sobressimbolismo.
O Sobressimbolismo de Carlos Nejar
Linhas Sobre a Superfície
Qual música ecoa de linhas sobre a superfície? Não de linhas complexas: — linhas simples, como as das letras.
Que quadro compõem essas linhas desunidas, que apenas se tocam nos seus vértices? Pontos em que se interseccionam, mas não se penetram.
Toda escrita é formada de linhas sobre a superfície. As linhas podem ser cordas suspensas, como a língua inca. Ou gravadas na areia da praia.
Quem se dedica a descobrir o ritmo e a musicalidade dessas linhas sobre a superfície é. Música sem harmonia nem arranjos além da escansão greco-latina ocidental.
Quem se dedica a transformar letras em tintas espalhadas na tela branca da página e a compor cenas em quadros sem perspectiva, mas dotadas de plasticidade é.
É sobressimbolista.
Este estilo de época apresenta Carlos Nejar como seu autor clássico, no sentido de modelo a ser estudado em classes de aula. O único 100% sobressimbolista.
Características do Sobressimbolismo
Leitmotiv: Toda escrita envolve linhas sobre uma superfície.
Presente em artistas contemporâneos em que o hibridismo dos gêneros fez com que se tornassem posteriores a fronteiras.
A obra híbrida e desmontável é típica do sobressimbolismo.
Insatisfação com o cientificismo, com o neoliberalismo e com a destruição dos valores humanos e culturais pela globalização.
Emprego do Método do Delírio da Razão Criadora, que leva a técnica a esgotar os mínimos detalhes dos caminhos estéticos, por ele bifurcados até o cruzamento inumerável de cada possibilidade.
Interesse pelo aspecto plástico, visual e musical da literatura. Sem abandonar a letra e a palavra.
Criação da literatura mítica, não figurativa, mas comprometida com a mensagem e dotada de uma cosmogonia própria.
Propõe uma épica do futuro, em que a ação pertence a um mundo que está sendo inventado e criado por ele.
Visionário e profético, sua criação o santifica enquanto luta contra o mal. Quer eliminá-lo com a arte, pois a sua existência conspurca a dele. O mal o adoece, seja doença de origem física, psíquica, espiritual ou estética. Por isso se lança contra o adversário, contra o feio, contra a dor, contra a injustiça e contra a angústia.
Assim, enxerga o homem como responsável pela mudança da história para melhor.
O ritmo e as imagens de Nejar falam por si sós, alcançando uma musicalidade que não chega à música e uma plasticidade que não chega às artes plásticas.
O ritmo é sua maior preocupação, esteja ele no papel de poeta, de romancista, de dramaturgo ou de crítico.
Poeta, romancista, dramaturgo e crítico em mesmas dosagens.
Para ele, escrever é falar imagens. Faz falar as imagens mesmo dentro da prosa. Não abomina a história, mas sua épica de imagens é que vai desenvolver o enredo até o mito se tornar história.
Psicologismo: foco na visão do indivíduo, no mundo interior do artista ou no dos seus personagens.
Interesse por símbolos, em que o sentido deve ser descoberto, não revelado de pronto. Trabalha com metáforas arquetípicas do inconsciente, como é o caso de Memórias do Porão e de O Túnel Perfeito.
Sua obra é uma enciclopédia que reúne os mais variados recursos usados por escritores desde Homero: suas metáforas, aliterações, assonâncias, paronomásias, metonímias, comparações, rimas internas, sinestesias, antíteses — e inúmeras outras — tocam o barroco sem deixar o sobressimbolismo.
Culto da forma sem se preocupar com a clareza, mas sim com a claridade, de que é sedento.
Hibridismo dos gêneros e das artes. As fronteiras entre gêneros e artes são anuladas: qualquer coisa é a mesma coisa e deságua na literatura. Romance = poema = conto = novela = teatro = música = artes plásticas.
Paixão pelo mistério, pela noite, pela origem e pelo fim de todas as coisas.
A liberdade só é possível no sonho, na imaginação e na fantasia. Inventor de palavras, brinca com elas feito criança, divertindo-se enquanto cria.
Sua preocupação com a essência o tornou um especialista em aforismos capazes de explicar o impossível.
Temperamento utópico e crítico.
Misticismo agnóstico: volta ao espiritualismo cristão medieval, no sentido de que o Deus é vivo. Senti-lo é uma experiência para a qual destinar a vida não é muito e pela qual a compreensão é inapreensível. O Deus vivo é o objeto do desejo humano porque existe o Lugar Simbólico de Deus, um lugar psíquico criado pela crença humana em algum tipo de entidade divina por milhares de anos.
O Lugar Simbólico de Deus pode ser ocupado por dinheiro, sexo, política, drogas, poder — por qualquer coisa, mas pertence primariamente a Deus, e, por isso, crer em algo é inevitável para o homem. Até a crença no vazio o constrói como homem. Mas crer no amor parece a melhor escolha, já que ele é mais importante do que a fé ou a esperança, segundo Paulo em Coríntios.
Preocupação com o cultural propriamente dito e com o cultural no natural e na natureza.
Subjetividade contra a sociedade objetiva.
Preocupação com o inconsciente e com o psicológico.
Nefelibata recluso, anda nas nuvens e se aprisiona em torres de cristal de que suas palavras o libertam.
Na narrativa, o enredo e ação ficam em segundo plano. Contar uma história é importante, mas o conteúdo e a forma são muito mais.
Afastamento e crítica da sociedade burguesa.
Idealismo — arte pura — crença nos espíritos da razão e da escrita.
Tom literário, mesmo na prosa, não o banal.
Temas elevados ou elevação de temas vulgares até a altura em que se acha o estético
Arte pela arte, sem interesse comercial.
Prevenção contra rimas fáceis e adjetivos que chegam com facilidade, mas são ladrões que mendigam em busca de sua luz própria. Com gentileza ele os afasta da soleira da porta em que reside sua arte.
Não procura rimas. As rimas o procuram. Devem ser dosadas, em entretons, pelo espírito suave que rege a assonância das rimas toantes.
Emprega adjetivos proparoxítonos tentando substantivar o texto. O verbo fornece a ação; e o substantivo, a coisa, a matéria. O adjetivo é um tempero raro que deve ser usado para colorir o texto sem empanar os outros ingredientes.
O núcleo da sua criação é resistente. Seguindo o conselho de Pound, ele testa as suas palavras e lança mão apenas das que funcionam. Escolhe as que lhe apresentam a garantia de que funcionarão pela eternidade.
O Homem nos Ratos
Nós somos os homens de ratos,
Nós somos os homens nos ratos.
Nosso corpo não é nosso corpo,
Mas sim um acaso de roedores
que se reúnem em forma humana por pouco.
Nosso corpo não é nosso corpo
e nossos olhos não podem ver o terror
nos que trazem pedaços de nossa figura
contidos em seu interior:
Somos os que comeram ratos antes de serem concebidos,
Os que se alimentaram de ratos, não de maternos líquidos,
Os que extraíram sua força de ratos,
Os que na origem da própria carne
não encontram mais que carne de ratos digerida,
Os que possuem nos ossos, na força e na carne
carne de ratos — transubstanciada
em ratos porque sua concepção se originou
de um desejo dos ratos
que em nossas fotos de criança foram os retratados
e que permaneceram os mesmos
enquanto nosso fraterno eu original,
Crescendo, sumia.
Assim reunidos em grandes corporações,
Roedores sendo cabeça, tronco e membros,
Um susto nos desfaz soltos pelo departamento
e nossos sentimentos convulsionados
extinguem os poucos pedaços ainda humanos
enquanto completamos nossa evolução para ratos.
Nós terminamos aos pedaços enquanto existimos.
Achamos que vivemos, mesmo perdendo pedaços para os vivos,
E nos apegamos à certeza de termos rapidamente existido
como ilusão de ótica que cresce mais do que os nascidos.
Despojados de hinos de fé no trabalho,
Somos animais precisos em um mundo falho
que ninguém conhece, medrosos,
A carícia e o risco nas superfícies dos olhos.
Com os buracos do corpo sendo morada de ratos,
Deveríamos eliminá-los:
— Mas como, sem eliminar também os buracos?
Com o corpo infestado de ratos,
Deveríamos eliminá-los, como ao ânus, à vagina e ao falo?
Com o corpo infestado de ratos
de onde nascemos por acaso,
Todos em seus buracos medrosos e não planejados,
Todos enterrados em nossos buracos
buracos com olhos de ratos,
Que piscam e pulam como dados
programados para o computador errado,
Com o corpo nascido várias vezes
por uma breve coincidência de ratos
reunidos em Congresso Nacional pela privatização do Estado,
Temos de aproveitá-los vezes e vezes
até que aceitemos que lado a lado com a comida — de ratos —
repousem — de ratos — as fezes.
Somos homens formados por ratos cada vez mais.
Quando elevamos os olhos para os velhos ideais
é como se não olhássemos,
Por não poder qualquer imagem da luz atingir uma pele secreta,
E o que acontece é apenas uma caminhada de ratos — como flecha —
que por acaso indica uma meta.
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© 2017 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Ignorando que está no presente, Carlos Nejar escreveu Matusalém de Flores como uma máquina do tempo total — capaz de inventar uma época in...
Oscar Gama Filho: A invenção do tempo
Ignorando que está no presente, Carlos Nejar escreveu Matusalém de Flores como uma máquina do tempo total — capaz de inventar uma época inexistente — que o levou diretamente às origens do romance. Pelo dom da ubiquidade, todas as frases de seu genial texto datam simultaneamente da novela cavaleiresca medieval Dom Quixote, da Bíblia, do romanceiro medieval em versos e do amanhã. Do hoje, não.
Com mestria, o autor se valeu do arquétipo junguiano do Dom Quixote, de Cervantes, e empregou essa fôrma para narrar as aventuras de Noe Matusalém em um contexto vanguardista e visionário.
Surpreendentemente, se o vemos por um lado, Matusalém de Flores, lançado pela Boitempo, na verdade é uma novela. Visto de outro ângulo, é um romance em estado nascente. Nejar encontrou o elo perdido, a primeira novela pré-romance brasileira, de onde o romance surgiria, se pudesse, mas que ainda não nasceu na era que ele descobriu. E esclareço: o Brasil, nascido no barroco, não produziu livros na Idade Média que não possuiu. E sempre é bom lembrar que a ação transcorre em um imperceptível século XXI.
Carlos escreveu de dentro de uma Idade Média virtual, recriando-a segundo a lei de Sam Peckinpah: “Se a lenda é melhor do que a realidade, imprima-se a lenda e esqueçamos a história.”
Ajudou-o nessa tarefa seu personagem Noe Matusalém, que sobrevive desde sempre, ao contrário do Matusalém bíblico, falecido aos 969 anos. Por encanto, talvez por licença poética, prendeu o tempo em uma garrafa de símbolos sem espaço, pois — diz o personagem —não há tempo sem espaço. Assim, conseguiu não envelhecer e pôde dar sequência às suas façanhas na cidade de Pedra das Flores, juntamente com sua amada Lídia — leia-se Dulcineia — e na companhia de seu fiel cão Crisóstomo — leia-se Sancho Pança. Entenda-se que o arquétipo em que foi inspirado o animal é extensivo, segundo o autor, também às cadelas Baleia, criada por Graciliano Ramos em Vidas Secas, à Mila, que acompanhou Carlos Heitor Cony, e à fiel Lelé, companheira amada de Nejar durante quatorze anos. Naturalmente, Pedra das Flores fica em algum lugar do Pampa, que é a medida de todas as coisas. Pelo menos para sua cosmogonia.
Dos que foram aprisionados em sua garrafa, o principal símbolo é a palavra. Se Matusalém não morre é porque tem a palavra. Sobreviverá enquanto existirem as palavras. Qualquer homem vive pelo tempo de suas palavras. As palavras o sustentam mais do que suas carnes. Matusalém não encanece porque virou literatura. Que é a missão de todos nós. Fazer-se literatura, tornar-se literatura. Ficou encantado, e o seu encanto subsistirá enquanto houver humanidade. Seu espírito subsistirá porque foi protagonista de um romance completamente original, e suas aventuras heroicas lhe concedem graça e humanidade. E viverá sempre enquanto houver lembrança, tal qual o Quixote.
O corpo de Noe Matusalém parece ser apenas o cavalo em que o personagem se incorporou e a que a entidade estética não dá muita atenção, não lhe permitindo tomar cuidado algum com sua saúde ou com seu aspecto físico, nem ao menos envelhecer. A monástica ascese de sua triste figura serve somente para cumprir o destino literário. Vivendo em um jogo de palavras, enquanto elas existirem ele estará vivo, pois elas o sustentam. Noe Matusalém é tão ocupado que não tem tempo para envelhecer.
As imagens, alegorias, metáforas, aforismos e manipulações da realidade inundam todas as frases, deixando o leitor sem fôlego, como se estivesse diante de um filme em clips rápidos, característicos do cinema moderno. Explico: os filmes antigos eram lentos, possuíam uma ação vagarosa. O cinema contemporâneo acolheu, em sua teoria eisensteiniana da montagem, a linguagem de clips dos anúncios publicitários. Qualquer cena é completa e se constitui em uma surpresa sensorial, tal como cada frase de Matusalém de Flores, pois carrega em si imagens — no sentido literocinematográfico — eletrizantes, comoventes, surpreendentes, condensadas, que prendem a leitura à maneira de um filme-romance. Qualquer oração tem sua beleza em si e explode na cara do leitor em imagens inusitadas típicas do cinema contemporâneo.
Nejar emprega a falsa 3ª pessoa, como advogava Autran Dourado em Uma Poética de Romance: Matéria de Carpintaria — em que o autor pensa (ou escreve o original) na 1ª pessoa mas transpõe o tempo verbal do texto para a 3ª. Ganha em proximidade, em psicologia do personagem e em envolvimento emocional.
Se é possível tocar no cerne de um romance sem espaço nem tempo, eu diria que o romance dá um xeque-mate na física por meio do inédito que sua literatura propõe. Reproduzindo o cenário anterior ao big-bang, extinguiu o espaço e assim apagou o tempo. Sua originalidade consiste na subversão dos códigos e padrões estéticos dominantes em sua época. Ela fornece a cada criação a propriedade de se localizar simultaneamente em sua era e em um outro lugar, em um outro momento que ainda não existe, situado no futuro de um dos novos modos de vida que são propostos por ela.
A intuição de Nejar é um sentimento tão puro que chega a ser uma antecipação da infância. Presente na nossa constituição inicial, nós a perdemos lentamente à medida que, por defesa, nos fechamos. Um recém-nascido, cheio de intuição, não precisa de antecipar a infância, pois a experiencia. Matusalém de Flores é a chance oferecida ao leitor para que ele se abra continuamente para o novo que já nos é mais do que o antigo que fomos. E que a intuição traz, nos devolvendo, por meio deste romance, ao original de que agora somos feitos.
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
OSCAR GAMA FILHO, escritor capixaba, nascido em 1958, busca captar a essência dos momentos estéticos justapostos, passados e presen...
Oscar Gama Filho - Biobibliografia
OSCAR GAMA FILHO, escritor capixaba, nascido em 1958, busca captar a essência dos momentos estéticos justapostos, passados e presentes. Por meio da soma de seus diversos pontos de vista, tenta atingir a completude da arte. Eis um esboço da equação passada:
Esforçou-se por alcançar a essência do poema em De Amor à Política (Vitória: edição marginal mimeografada, 1979, obra dividida meio a meio com Miguel Marvilla); em Congregação do Desencontro (Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1980); em O Despedaçado ao Espelho (Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES, 1988); em O Relógio Marítimo (Rio de Janeiro: Imago, 2001) e em Ovo Alquímico, escrito com seu filho Alexandre Herkenhoff Gama (São Paulo: Escrituras Editora, 2016).
Procurou o tempo perdido em obras como História do Teatro Capixaba: 395 Anos (Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo/Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1981) e Teatro Romântico Capixaba (Rio de Janeiro-Vitória: Instituto Nacional de Artes Cênicas/Ministério da Cultura, Departamento Estadual de Cultura, Secretaria de Estado da Educação e Cultura, Governo do Estado do Espírito Santo, 1987).
Precisando de outras línguas para auxiliá-lo em sua tarefa, traduziu-se para Rimbaud em Eu Conheci Rimbaud & Sete Poemas para Armar um Possível Rimbaud mesclado com O Barco Ébrio/Le Bateau Ivre (ensaio-tradução-conto-poema, Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, Universidade Federal do Espírito Santo, Departamento Estadual de Cultura, 1989).
Acrescentou sabedoria à sua equação graças à Razão do Brasil em uma sociopsicanálise da literatura capixaba (Rio de Janeiro: José Olympio Editora; Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1991).
Percebendo a insuficiência da ótica literária, realizou a exposição de arte ambiental poético-plástica Varais de Edifícios, em 1978, a partir do conceito criado por Hélio Oiticica.
Gravou o disco Samblues, em 1992 — incluído no selo histórico Série Fonográfica do Espírito Santo, da Fundação Cultural do Espírito Santo. Em 2005, lançou o CD Antes do Fim-Depois do Começo, que contém músicas em parceria com Mario Ruy e em que aparece pela primeira vez o invariante eidético universal absoluto: o Ovo Alquímico. As músicas foram executadas pela Ovo Alquímico Samblues Band.
Mas era pouco: dirigiu suas peças A Mãe Provisória, em 1978, e Estação Treblinka Garden, em 1979. Miguel Marvilla encenou seu poema dramático Onaniana, em 1990.
Foi escolhido por Afrânio Coutinho para escrever o verbete “Literatura do Espírito Santo” em sua Enciclopédia de Literatura Brasileira (Oficina Literária Afrânio Coutinho/Fundação de Assistência ao Estudante,1990 ), na qual mereceu inclusão como escritor.
Citado como escritor e crítico na História da Literatura Brasileira, de Carlos Nejar (São Paulo: Leya, 2011), honra que se repetiu na 3ª edição da mesma obra, pela Editora Unisul, em 2014.
Assis Brasil também lhe concedeu verbete em A Poesia Espírito-santense no século XX (Rio de Janeiro, Imago; Vitória, Secretaria de Estado de Cultura e Esportes, 1998).
Colaborou em diversos jornais brasileiros, entre eles Folha de São Paulo, Zero Hora, Suplemento Literário de Minas Gerais, A Gazeta e A Tribuna.
Orgulha-se, especialmente, de A Essência da Poesia, publicado na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras (Rio de Janeiro: Fase VII, outubro-novembro-dezembro de 1996, Ano III, nº 9, p.48). Assim como de As Metamorfoses do Homem, também estampado na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras (Rio de Janeiro: Fase VIII, abril-maio-junho de 2015, Ano IV, nº 83, p.191).
Pertence à Academia Espírito-santense de Letras e ao Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Profissionalmente, é psicólogo clínico.
Sua excursão argonáutica mereceu os seguintes comentários:
Assis Brasil (A Poesia Espírito-santense no século XX, p. 210): “a poesia de Oscar Gama Filho, em especial seu quarto livro, de 1988, O Despedaçado ao espelho, é de feição original, recursos técnicos e de linguagem personalíssimos, num momento em que voltamos ao academicismo das fórmulas, das costumeiras metáforas e... do soneto. Nada contra a coinvenção de Petrarca, mas é raro um poeta, hoje, época algo sincretista — como o foi o começo do século — criar os seus próprios recursos de expressão.”
Afrânio Coutinho (orelha de Razão do Brasil): “A obra de Anchieta é analisada com a maior penetração, como jamais fora feito antes. Livro original e destinado a ser um marco na historiografia brasileira e capixaba.”
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A cegueira, não. Pelo menos, não a definitiva, mas sim a herdada da negra sala de projeção do cine-teatro Glória. Saio meio cego, tonto, ch...
Chorinho com Marcelino
A cegueira, não. Pelo menos, não a definitiva, mas sim a herdada da negra sala de projeção do cine-teatro Glória. Saio meio cego, tonto, chegado de Casablanca, sem lábios feitos de vermelho, não de carne, ao meu lado para me servir de guia. Para dialogar à Platão.
Vindo da caverna de Platão, cego pela luz, saio tonto do Glória e tropeço, não num paralelepípedo, mas na rua Marcelino Duarte, que se torna gente. Ou fantasma. De uma sessão freudiano-espírito-santense que transcrevo a seguir. Escrita automática dos surrealistas, velhos amigos há muito, desde o nunca, vamos lavar a roupa suja de sua existência para que, enfim, descanse em paz.
Com a rua transformada em gente, habitamos o vazio, eu e Marcelino Pinto Ribeiro Duarte (Serra-ES, 1788 — Niterói-RJ, 1860). Choroso e melancólico, como sempre, Marcelino, em respeito à poluição sonora que ameaça o nada instaurado, recusa-se a falar. Está por baixo. Subimos, então, aos céus, via Cidade Alta, favela do ouro e, como Marcelino era padre, vamos à casa paroquial oitocentista, na rua José Marcelino, seu semi-homônimo, admirador e irmão em rua. José Marcelino, também escritor, incluiu a maior parte da obra publicada de Marcelino Duarte nos dois volumes de seu Jardim poético, publicados em 1856 e 1860.
Padre e filho do padre Manoel Pinto Ribeiro Duarte, Marcelino deixou diversos filhos carnais, muitos escândalos e a fama de agitador político. Mulato, venceu a cor e se pintou como primeiro dramaturgo capixaba e um dos pioneiros da arte poética. Coração numeroso, um romântico? Um clássico perdido na estante? Não e não. Certamente um pré-romântico. O que é sem ser, a divisão, o sentimentalismo, o nacionalismo patriotário, a dor fragmentada pela técnica.
Não há escritor capixaba mais controvertido do que Marcelino Duarte. Desde que morreu, nunca mais foi visto em público. Ligo para a revista Você e de lá pedem uma matéria. Pauta: teatro, poesia, Rubim e Afonso Cláudio. Pergunto a Marcelino como tem andado.
— Morto. Comendo capim pela raiz. Imóvel, naturalmente. Subterrâneo total underground. Enterrado no trabalho. O que me permite conhecer adegas subterrâneas, de onde extraio o vinho do Porto necessário para conservar meu cérebro em álcool. Não me lembro de muita coisa. (O contra-regra traz alguns litros de vinho.)
— E Afonso Cláudio?
— Esse cara mudou minha vida. Um artigo publicador por Você, segundo número, mostra que ele reescreveu os meus poemas incluídos em sua História da literatura espírito-santense. Distorceu meus versos com sua colher torta, querendo me fazer passar por um autor clássico, um árcade, veja só!
— Mas não foi o Afonso Cláudio que te transformou em herói da resistência contra a tirania de Francisco Rubim, que governava o Espírito Santo?
— Mais ou menos. Afonso Cláudio não imprimiu a lenda nem a história. Preferiu a ficção, maior que as duas. E mudou o desfecho da trama, incluindo um final feliz. (Os litros de vinho, como nó em gota d'água, enrolam sua língua com laços de beleza. A sede, vinda de séculos de abstinência, é morta pelo ex-morto.)
— Soube, no disse-me-disse, que você não disse palavra de honra do que o Afonso Cláudio disse. (Repórteres e escritores bebem em serviço. Não tanto mas não tampouco.) E aí, qual é a verdade?
— A verdade, segundo Welles: It's all true. In vino veritas: no vinho, a verdade. Atrás da verdade, você toma a primeira garrafa de vinho e não encontra. Sem desânimo, bebe a segunda. Também não. A persistência na busca da verdade leva à terceira garrafa. Quando chega à metade, ela não importa mais. (Bastante altos, somos arrebatados em corpo e alma por anjos até a visão da "Bahia" de Vitória.) A verdade começa com minha ida ao Rio de Janeiro, em outubro de 1817, para pedir ao rei aumento de vencimentos e a concessão do "Hábito de Cristo". Quem tiver insônia pode conquistar o sono eterno lendo a história no José Schiavo — Caderno Dois de A Gazeta de 13/1/1983. Eu merecia esse dinheiro: prestei muitos serviços à monarquia, mais por esperteza do que por crença. Em 1816, por exemplo, tive de me tornar o primeiro dramaturgo nascido no Espírito Santo, a fim de comemorar a coroação de D. João com o Drama que escrevi e encenei. Pretendia passar apenas quatro meses na Corte, tempo suficiente para a grana sair. Acabei ficando dois anos pois, em fevereiro de 1818, Rubim indeferiu meu pedido e eu decidi permanecer onde poderia ganhar melhor. Como eu sou escritor e o mundo é construído com palavras, resolvi me vingar do Rubim. A verdade, meu amigo, é que não fui até o Rio apenas para reclamar do despotismo de Rubim, ruim, com D. João vi. Nem vi o passarinho verde que o Sonso Gáudio (= daqui por diante, a Afonso Cláudio) viu. Você sabe: pegaria mal usar a necessidade de dinheiro e de honrarias nos versos. Transformei o caso em luta contra a tirania do governador e descrevi a viagem em um poemão em oitava rima, cego, como Camões, a tudo que não fosse a grandiosidade da pompa e circunstância. Cego — mas de raiva — chamei de "Derrota de uma Viagem Feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817". Usei a palavra "derrota" no sentido de rota marítima percorrida por um barco. De olhos abertos, o Sonso claudicante, sem a devida autorização, por força maior de meu falecimento, enxugou deturpando para "Derrota de uma Viagem ao Rio de Janeiro em 1817". Contra os privilégios, deu igual tratamento distorcedor aos versos. (O contra-regra traz cebola e glicerina. Ele chora com a artificialidade piegas dos pré-românticos, criador de uma sensibilidade brasileira dentro da literatura capixaba que foi:)
Oh, Rio, vós, que algum dia,
Ouvistes meu terno canto,
Parai um pouco p'ra ouvires
O triste som de meu pranto.
— Sei. Naturalmente, este é seu poema "Pranto". Mas e o "Derrota"?
Minhas palavras inauguram uma revolução no visual da baía. À força da mudez lacrimosa de Marcelino, suas musas se oferecem de montaria e nos levam ao ano da graça de 1817, mês de outubro. Sabendo que poemas não foram feitos para serem declamados por boca que não seja a vista, de seus olhos escorrem faixas em que letras contêm o som mudo das palavras. É, milagre, o Canto VI do "Derrota":
Adeus, Vitória, digo então comigo,
Pátria ditosa, a mais feliz colina,
Goza amável, ah, sim, fica contigo
A encantadora mas cruel Francina: (3)
Tu sabes, não que o céu maior castigo,
Nem tormenta maior, mágoa mais fina,
Me podia causar, se não privando
De por pouco avistar seu gesto brando.
Trazida por mil das musas, surge uma nota de rodapé, de autoria do próprio Marcelino, que seria rejeitada pela revista Você: [A revista proíbe e condena o uso de notas de rodapé por ser de alto nível e contra desvios de coluna Prestes a doer.]
— (3) Uma das moças mais honestas, a quem por simpatia amei; mas não mereci dela o mais pequeno favor, e que foi aleivosamente infamada por línguas peçonhentas."
Fora de si, boquiabertocaladamente, Marcelino pede as mais mais às musas espetaculosas que nos assessoram o dom da beleza aguçado pela morte de que o poeta ressuscitou, eternidade da arte. Aleatoriamente, metralhadoras giratórias alvas, elas disparam os Cantos XII e XVI:
XII
Qual o que raio viu, eu vacilante,
Turva-se o mar, desperto do tormento,
Eis sobranceiro a mim vejo um gigante,
Imenso, horrível, feio, e corpulento,
Parecendo, qual monstruoso Atlante,
Nos ombros sustentar o firmamento;
Era este porém árduo rochedo,
Que a linguagem vulgar chama — Penedo —.
Algumas lágrimas depois, os versos ainda se desenrolam:
XVI
Gela-se o sangue, e o pálido semblante
Inculca o susto, que sufoca o pejo;
Percebe o meu terror vivo estudante,
E grita: oh, lá, oh lá do Caranguejo...
Levanto os frouxos olhos, não distante,
Pernambucano vaso avisto, e vejo;
Me saúda de lá piloto ativo,
Correspondo, porém nem sei se vivo.
As musas têm seus encantos. Com um deles, voltamos a 1993, ao real e à verdade? Marcelino parece acordar — ou dormir, sonhar talvez o ser ou não — da bebedeira:
— Cheguei a puxar o saco de D. João VI, pai do Brasil português que eu combatia e me torturava. Fiz uma ode chamando o gordo comedor de galinhas — guardava coxas de "colegas" nos bolsos — de herói, de Enéias e de Ulisses. O Sonso Gáudio inventou, como justificativa, que os versos agradeciam o afastamento, a meu pedido, do governador Francisco Rubim (...)
— Fato que a boa História não registra!
— Não tenho nada a ver com isso! Não falei que a culpa é do Sonso?! Rubim só deixou o Espírito Santo dois anos depois, em 1819, por cima de sua carne seca: foi nomeado governador do Ceará. Não sei como vocês acreditaram. D. João VI nunca atenderia às queixas de um pobre padre-mestre roceiro contra um de seus homens de confiança, um capitão de mar-e-guerra da Armada Real! Nem demoraria dois anos — de 1817, em que escrevi o "Derrota", a 1819 — para atender um pedido: a burocracia não era tão ruim naquele tempo! Nem, se tivesse me atendido, nomearia o Rubim para o honroso posto de governador do Ceará. Não tenho mais nada a declarar sobre isso. Vamos mudar de assunto. Se a vida é um palco, gosta de teatro? (Notei que você coloca alguns comentários entre parênteses, como em uma peça.)
— Dizem que sim. Mas você namorou com Melpômene antes de mim.
— Foi. Amo todas as musas com meu grande coração de vazio, mas Melpômene é a preferida entre as iguais. Ela e Calíope adoçam o sal da vida até mesmo para os mortos.
— Sem querer insistir insistindo, guardou alguma memória de Calíope que nunca mostrou ao mundo? O amor é uma forma de comungar almas de versos?
— Diversos memórias diversas conservo em conservas enlatadas pelo (e no) Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (Delirante.) Na lata 120, documento oito, jaz meu poema "Ermenoville ou o Túmulo de J.J. Rousseau". Foi há muito tempo atrás, mas tenho dela uma "Memória sobre as vantagens do estabelecimento dos novos colonos estrangeiros na província do Espírito Santo" na lata 212, documento quatro, de 1825.
— Nunca mais falou com ela?
— Só nas 37 páginas da lata 6, documento onze. Vamos mudar de assunto? Teatro? Olha, aquela sessão de poema mudo foi coisa das musas. Fazem de tudo para me agradar.
— Mesmo?
— Eu também não falo nada ou porque não quero ser chato ou porque jamais devemos discordar das mulheres. Pelo menos enquanto estão presentes. Quero cair nas graças das musas. Acho o contrário: acho que a palavra devia ser escrita como se fala. Criei uma ortografia fonética antes de Qorpo Santo, nome que ele recebeu por motivo oposto a mim: devido ao tempo em que ele viveu "completamente separado do mundo das mulheres". Em 1842, publiquei um livro dando lisõens (sic!) sufisientes (sic!!). (Delírio con fuoco) Chamei de Arte de Ler e de Escrever em Pouco Tempo a essa "Razão Filosófica da Verdadeira Ortografia, Desinfestada dos Prejuízos da Ortografia Barbaresca, ou por Outro Nome, Etimológica; que, como elementos do Sistema de Instrução Preparatória, Compôs e Oferece à Mocidade Brasileira Estudiosa. Seu patrício"...
— Quer dizer que o lance é escrever como falamos e não falar como escrevemos? Langue x parole?
— Por enquanto, o jogo está indefinido. Atuo nos dois times porque importa mais a competição do que a Vitória para que as pessoas tenham algo de fundamental a usar como remédio antitédio. Assim caminha a humanidade!... Por gostar do som da palavra, vamos virar o disco? Vamos mudar o tom de loucura para lucidez e de poesia para teatro?
— Nada contra nem a favor, muito pelo contrário...
— Isso! No entanto, não veja pedantismo onde existe apenas a sinceridade distante e indiferente dos mortos em prol da História. Que venham os touros das musas!
(Anjinhos barrocos caracterizados de touros, discutindo a sua sexualidade através de quadraturas de círculos, feitos marionetes das musas, entram em transporte e mudam o cenário do real. A passagem dos céus nos deposita entre os dias 22 e 31 de maio de 1816, em frente ao atual Palácio Anchieta, Vitória City. Nesse local, armado na praça dos antigos Colégio dos Jesuítas e Igreja de São Tiago ("hoje fundidos em um só Palácio Anchieta", cantam os anjinhos), ergue-se o teatro improvisado que o povo capixaba se acostumou a aplaudir desde o quinhentismo dos inacianos, faixa temporal de seda esticada pelas musas, vendo-se à esquerda algumas que seguram o seu começo, no século XVI, e, à direita, outras que sustentam o seu fim, no século XIX. Marcelino e seus alunos de latim representam, em monótona cantilena, o Drama que serviria de mote ao seu pedido de aumento. E à briga com Francisco Rubim. Terminado o Ato inicial, os anjinhos contra-regras, entediados, mudam o cenário para 1821. Eu e Marcelino somos toda a platéia. Podemos sentir nosso próprio futuro se plasmando no ar. Eis a sinopse da cena:
Ato I — Revolucionário membro do grupo oposicionista dos exaltados, Marcelino participa dos protestos nacionalistas responsáveis pela revolta que levou D. Pedro I a abdicar, em abril de 1831.
Ato II — Sua presença, na insurreição popular de julho desse ano, leva Diogo Feijó a ordenar sua prisão a bordo da fragata Paraguaçu.
Ato III — Enquanto está detido, sobe ao palco, no Rio de Janeiro, a comédia em três atos A Rusga da Praia Grande, ou O Quixotismo do General das Massas, de autoria de Januário da Cunha Barbosa, aliado de Feijó. (Dentro da peça, passa-se a peça. Um real dentro do outro e o universo como a tela que Deus assiste de fora. Há muitos canais e programas nos universos a cabo disponíveis contra o tédio divino. Medalha de honra ao mérito, a trama se desenvolve em torno das carnes da agitada vida amorosa de Marcelino, que morava na Praia Grande, em Niterói.)
Ato IV — Encarcerado no Paraguaçu, Marcelino escreve como resposta a comédia política O Cônego e Inês, em que satiriza Januário Barbosa (o "cônego"), Feijó (chamado de "Jeifó") e Evaristo da Veiga ("Eravisto"). A polícia naturalmente impede sua representação. (Um anjo crítico, encarregado de recolher pérolas de beleza para o Senhor, escreve do meu lado: "(...) O texto, em decassílabos, com rimas emparelhadas, de que achei por bem fazer conhecer só um fragmento, empreende uma engraçada crítica de costumes em que a história do Brasil é a pedra-de-toque impossível mas existente enquanto exercício de farsa ou de manifestações pagãs dionisíacas de loucura.")
GRAND FINALE — Eu e Marcelino somos transportados ao meu esconderijo na Gruta da Onça, Morro do Vigia. Bebemos água em pó, que patenteei recentemente como máquina de criar poetas. Basta acrescentar água e o saquinho esterilizado de pó se enche de... — água! Marcelino bebe demais, fica chapado e pega minha guitarra Pérola Negra, escolhida por Chryso Rocha sua dileta para gravar "Geração Setenta" (Afonso Abreu — Mário Ruy — Oscar Gama Filho).
Os anjos vão embora, passear no bosque porque seu lobo evém.
Ele toca lundus e improvisa modinhas usando, em geral, brasileiríssimas trovas em que os personagens são seu alter-ego Marcino, Marílias, Análias e Francinas, moda árcade que os pré-românticos seguiram. A atmosfera nacional inclui fossa, pieguice, desespero, angústia, solidão, jogos amorosos burlescos ("Tu m'afagando entre os braços, / Eu t'estalando os dedinhos" — Lira), além da indispensável fantasia de suicídio ante os olhos traidores da amada — lupicínica vingança da dor-de-cotovelo —, flashes românticos em que a dor é uma equilibrista suspensa e esquartejada entre o grotesco, o patético, o trágico, o mórbido e o cômico.
Mostro meu disco. Surpreendido, pede que eu toque. Improviso uns acordes de blues. Súbito, paro: "Não toco nada, só componho." Mostro a melodia que fiz para seu "Soneto". É um samba. Sua emoção faz com que voltemos aos "bons tempos", no passado. Era um samba. Chorou. Chorinho.
Chorou notas em forma de lágrimas negras de chorinho.
Chorou lágrimas negras em forma de notas de chorinho.
Chorou notas em forma de lágrimas negras de chorinho.
Dormir profundamente. Sonhar, talvez.
Aqui jazz.
[Transcrito da Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]
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© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
O uso da oitava rima [no Poema mariano] provavelmente influenciou a 'Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817...
Análise da obra
O uso da oitava rima [no Poema mariano] provavelmente influenciou a 'Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817',[ 1 ] obra de Marcelino Pinto Ribeiro Duarte[ 2 ] que, além de se assemelhar ao Poema mariano no seu falso arcadismo pré-romântico, apresenta esse metro em suas 55 estrofes. Como explicamos, a oitava rima, empregada por Camões em Os lusíadas, é tradicionalmente destinada à abordagem do grandioso, do altissonante, do pomposo, do grandiloqüente, e não se enquadra no bucolismo, na simplicidade, na ingenuidade e na tranqüilidade do arcadismo. Apesar de se atribuir, imitando seus clichês, o criptônimo de "Marcino" e de espalhar "Análias" e "Francinas" — epítetos pastoris — pelo texto, não estamos diante de um árcade. O pré-romantismo capixaba e o nacional têm em comum o marco inicial de 1808 — em que o príncipe regente d. João tomou as medidas que produziram o surgimento da nação brasileira[ 3 ] — e o hábito de misturar a velha forma arcádica com os novos temas românticos e vice-versa. Afrânio Coutinho explica essa interpenetração de estilos com clareza:
Entre os dois momentos medeia, aliás, uma fase de transição — pré-romântica — em que lutam as tendências novas e o espírito antigo, expressa tal hesitação na mistura e interpenetração de tendências estéticas, de formas novas com temas cediços ou de assuntos novos com gêneros superados, tudo mostrando a indefinição e a incaracterização da época, dominada por um subarcadismo ou pseudoclassicismo. Correntes diferentes cruzam-se e misturam-se, barrocas, arcádicas, iluministas, neoclássicas, rococós, românticas, oriundas a maioria de fontes européias (...)[ 4 ]
Utilizando a palavra derrota no sentido de rota marítima percorrida por uma embarcação, Marcelino Duarte se propõe a narrar, embalado por entidades mitológicas, sua viagem ao Rio de Janeiro, onde pretendia se queixar a d. João VI dos desmandos, das perseguições, da crueldade, das injustiças e do despotismo do governador da capitania, Francisco Rubim. Mas o pré-romantismo do poema não se limita à ânsia de liberdade, à defesa dos oprimidos, à revolta contra a tirania e à luta pela justiça, temas que, na verdade, ocupam apenas cinco estrofes. Bem característico desse estilo é o tom brasileiramente lamentoso, magoado, sentimental, melancólico e adoecido pela saudade com que ele pinta os amores que deixa e a cidade de Vitória — chamada, repetidas vezes, de 'pátria' e em que se detém para versar, atormentado pela tristeza e pela dor, sua paisagem e seus recantos que, a contragosto, abandona. À medida que seu barco avança, o sombrio poeta descreve Vila Velha, o convento de Nossa Senhora da Penha — a que dedica quatro elogiosas estrofes —, as cruéis arbitrariedades de Rubim e os pitorescos lugares e ocorrências que emolduraram seu percurso até o Rio de Janeiro.
O cognome pastoril de 'Marília' não é suficiente para tornar arcádico — movimento antibarroco — este belo soneto de Marcelino, caracterizado justamente pelos fortes traços barrocos — e pré-românticos — oriundos da presença de metáforas, hipérboles, hipérbatos e adjetivos:
SONETO
Quando os deuses, Marília, projetaram
Tua imagem formar linda, e mimosa,
A rica pedra, a flor mais preciosa
Da natureza providos buscaram:
Teu rosto encantador ledos formaram
Do nevado jasmim, purpúrea rosa;
Os lábios, dentes, a boca graciosa
De cristais, e rubins organizaram.
Nos olhos te puseram dois brilhantes;
Os cristalinos peitos transparentes
São de alabastro globos palpitantes.
Querendo dar os deuses providentes
Clara idéia de si, stando distantes,
Teus dotes divinais temos presentes.[ 5 ]
A própria estrutura de diversos trabalhos seus está mais próxima da liberdade dos românticos do que do apuro dos árcades. Em uma de suas epístolas, por exemplo, em vez de se valer do decassílabo, metro geralmente escolhido pelos neoclássicos para essa elástica forma, Marcelino adotou inusitados tetrassílabos para os 89 quartetos de que é composta. O texto da epístola, que aborda todos os principais temas pré-românticos, sugere que ela teria sido escrita no Sítio da Saudade (quarteto 85: "Voto solene/Sagro à amizade/No da Saudade/Sítio, em que moro."), para onde fugiu (11: "Ele só fez,/Que eu fugitivo,/Qual vil cativo,/Da Pátria andasse"), perseguido por Diogo Antônio Feijó (3: "Negra maldade/D'um monstro fero,/Feijó, vil Nero,/Q'a pátria oprime;"). O governo do grupo dos moderados (6: "Cativa grei/De moderados,/São seus soldados,/Prontos para tudo."), a que Feijó pertencia, de fato prendeu muitos dos oposicionistas exaltados (36: "Sou exaltado...") que, como Marcelino, tinham participado das revoltas populares que culminaram na abdicação de d. Pedro I, em 7.4.1831 (8: "Quem foi de Abril,/Sofre, como eu/Do vil Proteu,/Guerra cruenta.") Entretanto, mesmo obrigado a se esconder, ele não desistiu de proclamar o seu patriotismo (37: "Amor constante,/Firme amizade,/Terna saudade,/Pátria, e civismo."), o seu ardor nacionalista e revolucionário (74: "'Fazei já guerra/'À traição vil;/'Viva o Brasil,/'Aos maus castigo'") e o seu ódio à tirania (89: "Aos Céus imploro,/Te estenda os anos,/Salvo aos tiranos/Da Corte. Adeus." Em seus versos, que impressionam pela modernidade cômica das onomatopéias usadas para pintar a paisagem brasileira, Marcelino revela-se de vez pré-romântico quando descreve seu refúgio no campo como desagradável, feio, mórbido, sombrio, angustiante, triste, melancólico e torturante, ao contrário dos árcades, para quem a natureza era um genuíno remédio capaz de restituir ao homem a paz de espírito e a felicidade roubadas pelos males da civilização:
EPÍSTOLA
18
O sol ativo,
Q'alegra as flores,
Meus dissabores
Azeda mais.
20
Se à noite fria
A terra enluta,
Tristeza bruta
M'investe, e mata.
42
Da noite o manto
Desprende apenas...
Q' tristes cenas!
Q'imagem feia!...
43
Já não gorjeia
Meiga e sonora,
Saudando a aurora,
Terna avezinha.
44
Com voz daninha
No charco em bando
Pan... pan... gritando,
O Sapo enjoa.
45
No vale entoa,
Que o rio banha,
Nojenta intanha
Rom, rom, rom, rom.
46
D'agudo som
O perereca
Toca a rabeca,
Crré... crré... crré... crré.
47
Saudoso bé
Solta o bezerro:
Com outro berro
A mãe responde.
48
Bem perto, aonde,
Mato sombrio
Guarnece o rio
Sibila a cobra.
49
D'aqui desdobra
Com mago estilo
Caseiro grilo
Si... si... si... si...
50
Eis que dali
Com pio frouxo
Noturno mocho
Males augura.
51
Da sombra escura
D'alta figueira,
Geme agoureira
Magra coruja.
52
Ah! fuja... fuja
Destes lugares,
Quem meus azares
De ouvir se esquiva.
53
Se a luz furtiva
Do pirilampo
Matiza o campo
Um céu d'estrelas,
54
Julgai por elas
Minha ventura,
Se vem, não dura
Curto momento.
55
Voraz tormento,
Negra agonia,
Melancolia,
Baça tristeza,
[...][ 6 ]
Como bom pré-romântico, os acontecimentos políticos nacionais freqüentemente lhe serviam de inspiração. Em 1816, por ocasião dos festejos comemorativos da coroação de d. João VI, escreveu um Drama que foi encenado entre os dias 22 e 31 de maio, em um teatro improvisado erguido em frente ao atual palácio Anchieta, em Vitória. Membro do grupo oposicionista formado pelos liberais exaltados, Marcelino participou dos protestos nacionalistas responsáveis pela revolta que levou d. Pedro I a abdicar, em abril de 1831. Em conseqüência de sua presença nos distúrbios que, em julho desse ano,[ 7 ] provocaram uma nova insurreição popular, Diogo Feijó ordenou que ele fosse preso a bordo da fragata Paraguaçu — de onde fugiria mais tarde. Enquanto estava detido, segundo Wilson Martins, subiu ao palco, no Rio de Janeiro, a comédia em três atos A rusga da Praia Grande, ou O quixotismo do general das massas, de autoria de Januário da Cunha Barbosa, aliado de Feijó. A peça aludia à agitada vida amorosa de Marcelino,[ 8 ] que morava na Praia Grande, em Niterói. Informado da estréia, escreveu como resposta, mesmo encarcerado na Paraguaçu, a comédia política O cônego e Inês, em que satiriza Januário Barbosa (o 'cônego'), Feijó (chamado em cena de 'Jeifó') e Evaristo da Veiga ('Eravisto'). A polícia — sempre a serviço dos poderosos — naturalmente impediu sua representação. O texto, em decassílabos, com rimas emparelhadas, de que se conhece apenas um fragmento,[ 9 ] empreende uma engraçada crítica de costumes em que a história nacional ocupa lugar de destaque. Contudo, os inegáveis bons momentos de seu humor ficam fora do alcance do grande público, que não possui os conhecimentos históricos necessários para compreendê-los.
A lira que apresentamos em seguida é um poema tipicamente pré-romântico. Seu tom sombrio, noturno, irreal, povoado pela visão lúgubre da saudade, espelha o tormento do poeta que, longe da amada, se vê possuído por sonhos ruins, se desespera, se angustia e se entristece. A melancolia e a solidão que o torturam são vazadas em uma linguagem emotiva e adjetivada que expressa com habilidade o sentimentalismo brasileiro:
LIRA
Acaso eu dormia
Já frouxo, e cansado,
De andar todo o dia
Buscando o meu gado.
Um sonho me pinta
De linda donzela,
A imagem mais bela,
Mais triste a chorar.
Ao vê-la me inspira,
Oh céus, que pesar!
Os olhos não tira
Do chão lagrimosa,
Soluça, e suspira
A deusa formosa.
Nas vestes inculca
Pesar, e desgosto,
C'um véu cobre o rosto
De arminho na cor.
Minha alma então sinto
Partir-se de dor.
Marília, não minto,
Gemia eu dormindo,
Q'a imagem, que pinto
O mesmo sentindo
Forcejo, e não posso
Sufocar o pranto,
Q'a dor pode tanto,
Q' julgo morrer,
Choraras, se visses
O meu padecer.
Se ao filho de Ulisses
Não deixa um Mentor,
Meus dias felizes
Empece-me a dor.
Quem sois, eu pergunto
À triste deidade,
"Eu sou a saudade"
A deusa me diz,
Eu só te persigo,
Te faço infeliz.
Não basta, lhe digo,
Contra mim, oh! Nume,
P'ra meu mor castigo
Amor, e ciúme?...
Se vejo a Marília
Amor me persegue,
Se a deixo, me segue
Ciúme infernal.
Ah! tu inda mais
Duplicas meu mal!...
Suspiros, mil ais
Do peito arrancando,
Ah! diz, não te faz
Mais meigo, e mais brando?...
Tem dó de meu pranto,
Do mal, que suporto,
Se queres-me morto
Demora não tem.
Marília... repito;
Marília... meu bem...
A causa de aflito
Gemeres, chorares,
Sou eu, teu delito
Teu mal, teus pesares
Vai ver a Marília
Que chora, qual gemes,
Que o mesmo, que temes
Te julga infiel
Assim me responde
O Nume cruel
Acordo, e se esconde,
Suponho em meu peito,
Pois apalpo a onde
Estava, era o leito.
Em pranto afogado
A Deusa procuro
Um véu negro escuro
Só mostra-me horror.
São estes, Marília,
Prodígios de amor.[ 10 ]
'Pranto' é um trabalho que comprova a sua importância na criação de uma sensibilidade brasileira dentro da literatura capixaba. Inspirando-se em uma forma popular, a trova — originalmente formada por uma só quadra de versos heptassílabos em que o segundo e o quarto versos são obrigados a rimar —, Marcelino consegue um ritmo bem adequado à atmosfera de seu poema, cheio de fossa, de pieguice, de desespero, de angústia, de vazio existencial, de saudade, de solidão, de jogos amorosos burlescos ("Tu m'afagando entre os braços,/Eu te estalando os dedinhos"), de fantasia de suicídio ante os olhos traidores da amada — lupicínica vingança da dor-de-cotovelo —, flashes românticos em que a dor é uma equilibrista suspensa e esquartejada entre o grotesco, o patético, o trágico, o mórbido e o cômico:
PRANTO
Ouvistes meu terno canto,
Parai um pouco p'ra ouvires
O triste som de meu pranto.
Mil vezes, ah! venturoso,
Olhando a vossa corrente,
Os belos dons de Marília
Cantou Marcino contente,
Mas hoje, oh! céus! que essa ingrata
Motiva minha amargura,
Ouvireis entre soluços
Minha cruel desventura.
Essa com quem tantas vezes
Me vistes ledo brincando,
Ela tão meiga entre as outras
Furtivos beijos me dando,
Que só mostrava prazer,
Quando contente me via,
Que, eu só gemendo, chorava,
Eu só me rindo, se ria,
Mudou-se enfim; só m'ostenta
Um ar pesado e sisudo,
Já não me chama mimoso,
Seu bem, seu mimo, seu tudo.
Outro merece os afagos
De seu cruel coração,
Eu só mereço seu ódio,
Seu desprezo, e ingratidão.
Eu morro... ah! vil!... já não posso
Suportar tanta esquivança!
Marília; oh! céu! me despreza!...
Quem motivou tal mudança?...
Marília!... o Nume por quem,
Desprezei patrícios lares,
O néctar mais saboroso
Nos meus tiranos pesares!...
Matai-me, céus, nem viver
Um só momento desejo;
Acabai, Rio, meus males,
Se algum dia o meu desejo.
Envolvei nas vossas águas,
Levai nas vossas correntes,
O mais triste, e desgraçado,
Mais infeliz dos viventes,
Ânsia, raiva, amor, ciúme,
Todas as fúrias do Averno,
Exasperam meu tormento,
Duplicam meu mal eterno.
Ah! Marília, e como ingrata,
Pôde em ti tão vil traição?
Tu, que mil vezes chorando
Mostravas tanta paixão?
Mudaste em fim [sic]; não me adoras...
Toda és fúria contra mim,
Inda mais fera que um tigre,
Raivosa mais que o Rubim.
Não me tiveste, cruel,
Sempre submisso a teu mando,
As leis sagradas de amor
Fielmente executando?
Aquelas tardes passadas
Entre amorosos carinhos,
Tu m'afagando entre os braços,
Eu te estalando os dedinhos.
Onde estão, cruel Marília?...
Quem me roubou tal ventura?...
Foi sim, ingrata, meu fado;
Foi minha pouca ventura.
Um vesúvio o mesmo inferno
Abrasam meu peito aflito.
Não bramem, não choram tanto
As almas no vil cocito.
Eu morro... Oh Céus! já percebo
Da morte o frio desmaio;
Vem ver ao menos, tirana,
Como d'aqui morro, e caio.
Vós, Rio, que entre os peixinhos
Tão saudoso murmurais,
Que enternecido comigo
Tão tristemente chorais,
Cobri, cobri compassivo
Meu corpo com vossas águas,
Nelas acabe Marcino,
Com ele pesar, e mágoas.[ 11 ]
A obra de Marcelino parece ter constituído uma espécie de modelo para os autores pré-românticos que o sucederam. Seus recursos técnicos, seu sentimentalismo, seu nacionalismo, seu patriotismo e seus lugares-comuns de falso árcade ressurgem em José Gonçalves Fraga e em João Luís da Fraga Loureiro de forma diluída e sem o talento que o caracterizava. Até mesmo a bajulação apologética, a que deu início com sua ode a d. João VI, é reproduzida ad nauseam por ambos e piorada — se isso for possível.
_____________________________
NOTAS
[In GAMA FILHO, Oscar, Razão do Brasil em uma sociopsicanálise da literatura capixaba. Rio de Janeiro / Vitória: José Olympio / Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1991, p. 57-70.]
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
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