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Contrariando o verso de Caetano Veloso “nada no bolso ou nas mãos”, em Poesia de bolso ( Pequenos poemas pedestres ), Gilson Soares re...


Contrariando o verso de Caetano Veloso “nada no bolso ou nas mãos”, em Poesia de bolso (Pequenos poemas pedestres), Gilson Soares revela um bolso cheio de significados para o mundo que desenha a partir de um olhar atento e conciso, ao mesmo tempo em que demonstra ter nas mãos uma pena afiada traçando vocábulos de inquietação. São poemas curtos e, de certa forma, telegráficos, considerando tanto a precisão do discurso quanto o ritmo do código Morse na sonoridade do telégrafo distribuída entre pontos e traços e, obviamente, de silêncios. Por outro lado, alguns dos poemas comunicam como sinais de fumaça em que o leitor recebe a mensagem que se dissipa de acordo com o olhar dissipado no vento. Ainda, há os poemas que, devido a brevidade e os enigmas, se aproximam do Haikai.

Num certo sentido, havemos de considerar o aspecto filosófico de sua poesia, levando em conta uma alusão ao “humano, demasiado humano” de Nietzsche e, inclusive, referenda a estética do aforismo, num dos poemas intitulado “No rio de Heráclito”, onde flutuam seus versos. Aliás, podemos dizer que a poesia de Gilson Soares, mesmo que inconscientemente, traz uma espécie de devir, como propunha o pré-socrático Heráclito de Éfeso. Os poemas de Soares, da maneira como trata de temas distintos, mostram a mudança das coisas como uma alternância entre os contrários. Deus, lua, sol, cidade, dúvida, certeza e tantas outras coisas acontecem como partes de uma mesma realidade.

Poesia de bolso (Pequenos poemas pedestres) é uma poesia anunciada de um ponto de partida para um projeto que o poeta faz para viagens de bicicleta, cujo percurso mais recente, apesar de ter seu roteiro às margens do assoreado e maltratado Rio Doce, está aberto ao olho que busca um horizonte de montanhas que se sobrepõem uma a outra a cada espaço percorrido numa mirada estética.

Se, conforme a semiótica a literatura pode ser compreendida como uma ação intersubjetiva que se sustenta basicamente na relação entre o emissor, o signo e o receptor, obviamente, correspondendo ao criador, a obra e o leitor, Soares realiza essa interação sem que aparentemente tenha a preocupação de facilitar ao receptor uma leitura pronta e acabada ou uma espécie de continuidade, considerando o mosaico de suas abordagens, repletas de figuras quase geométricas que ora estabelecem definidas fronteiras entre um triângulo e um losango, ora cria nuances gradativas entre um tema e outro.

Se há uma possibilidade de estabelecer uma espécie de corpus para a poesia de Gilson Soares, podemos arriscar que em seu paideuma estão presentes o pessimismo e a solidão de Carlos Drummond de Andrade diante do cotidiano, o ceticismo de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, assim como a pedra de João Cabral de Melo Neto, a ironia de Mário Quintana e a infância de Manoel de Barros.

Enfim, voltando à ideia do poeta e sua bicicleta, recorro a Alfred Jarry e acredito que sua poesia se constrói como um passeio em duas rodas, uma visita à patafísica, a ciência das soluções imaginárias, onde a cada pedalada define um verso e em cada movimento do guidão estabelece um tema.


Wilson Coêlho
Primavera de 2016

[In SOARES, Gilson. Poesia de bolso: Pequenos poemas pedestres. Vitória: Estação Capixaba / Cândida Ed., 2017. (Prefácio)]

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A poesia abraça os sentidos. Viaja na alma poética deste livro, é sem dúvida alguma, uma dádiva. Vê-lo premiado como vencedor do Prêmio ...



A poesia abraça os sentidos. Viaja na alma poética deste livro, é sem dúvida alguma, uma dádiva. Vê-lo premiado como vencedor do Prêmio ASA é sensacional. São notas de envolvimento que nos fazem refletir sobre a profundidade da sensibilidade da autora. Ana, só temos a agradecer pela robustez e fragilidade, peso e leveza que o seu “Olhar Bilateral” nos apresenta neste singular conjunto poético.”

         
                                                                                                                Leandro Barco
                                                                                  Professor – Faculdade de Astorga
                                                                                Diretor SAHAR


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Ana Cristina Siqueira não é só a mais discreta figura daquela geração que no conturbado início da década de 80, no afã de escrever, escr...



Ana Cristina Siqueira não é só a mais discreta figura daquela geração que no conturbado início da década de 80, no afã de escrever, escrever, tornou-se já objeto de estudos acadêmicos (apud Francisco Aurélio Ribeiro, Reinaldo Santos Neves, Anaximandro Amorim). Era uma das que mais pensava o texto como um tecido previamente elucubrado, num ofício artesanal, numa conjugação entre significado e significante.

Havia a efervescência literária, talvez eclodida pela luta reivindicatória em prol da plena liberdade de expressão. Tímida, mas logo identificada como produtora de um bem urdido texto poético, Ana Cristina não se deixou inebriar por arroubos juvenis. Antes, poemas guardara, ou os vinha burilando sigilosamente, invertendo sintaxes, substituindo aqui e ali palavras, buscando a sonoridade compatível com o seu propósito expressional. Temas por ela enfocados cedo revelavam uma visão de mundo muito além da dos jardins universitários de então: enquanto maioria bradava contra uma agonizante ditadura, luta de Cristina era toda voltada para as classes gramaticais, para as articulações sintáticas, no sigiloso conluio com subversivas palavras.

Nesse tempo, na UFES ministrava oficina literária a Prof. Deny Gomes, e de uma delas participara Ana Cristina. No Caderno Dois (in jornal A Gazeta) o irrequieto jornalista Amylton de Almeida fazia-se guru ou ácido crítico, assim odiado ou amado pelos artistas. Aliado a esses fatores, o recente parque gráfico ufesiano vazão dava a livros avalizados pela então ativa Editoria da Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Dessa valorosa safra (Coleção Letras Capixabas), privilégio tive de anunciar, em orelha, dois daqueles oficinandos de Deny: assim o foi com Paulo Roberto Sodré (“Interiores”, poemas,1984) e com Ivan Castilho (“O Deus do Trovão”, contos,1988).

Agora Ana Cristina Siqueira, sob o título Poema Deitado ao Seu Peito, a lume boa mostra de sua arte verbal põe. Subintitula (“um jogo de amarelinha”) com aquele divertimento já folclórico, mais para meninas, que consiste em pular sobre um desenho (a giz ou a carvão) riscado no solo. Nesse aspecto, remete-nos àquele famoso livro do peruano Júlio Cortázar, pois lá tudo misturado, possibilitando alternada leitura de capítulos, saltadamente, podendo ir e vir, qual na aludida brincadeira em que alcança um céu o saltitante vencedor. Tudo ao sabor do fluxo de consciência introspectiva, no qual oscilam e brincam com a mente subjetiva do leitor. Assim o é o corpo do livro: poemas, crônicas, epístolas, narrativas ficcionais, outros indefinidos gêneros. Os poemas, em sua maioria, são os que, desde idos tempos, compunham o inédito livro A outra genuina tez, dos quais 3 já publicados na revista Letra (nº 7, FCAA-Ufes,1987).

Poetisa essencialmente lírica, se pela extensão, pela longura, possam os seus versos lembrar os caudalosos de Withman, derramados página afora, no entanto, não encontram, nesse tocante, similar em nossas Letras: cinéfila que o é, original e intrigante é a sua imagética. Lugar-comum não se o acha cá. Escritura laboriosa, de tantas reescrituras quantas pudessem conferir aquela rebuscada musicalidade bem aprazível a ouvinte apreciador dos clássicos. Não é à toa que ambas as artes(cinema e música) sejam, para ela, referências.

Estivesse no epicentro cultural(Rio-São Paulo) essa autora, por certo renderia assunto a atentos especialistas que, com olhar treinado, logo identificariam em sua tessitura o ludismo, tal o da amarelinha, capaz de , do reles chão de comuns mortais, fazer-nos saltar para um céu estético.

(Marcos Tavares, autor de Gemagem e de No escuro, armados)


[In Poema deitado no seu peito: um jogo de amarelinha. São Paulo: Scortecci, 2012.]

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A publicação de Poema Deitado no seu Peito, de Ana Cristina Costa Siqueira, pela Scortecci Editora (São Paulo, 2012), soa postumamente a...



A publicação de Poema Deitado no seu Peito, de Ana Cristina Costa Siqueira, pela Scortecci Editora (São Paulo, 2012), soa postumamente aos meus ouvidos, como se o seu livro pertencesse a uma poeta que morreu inédita — ou que estivesse morta em vida ou para a vida, tomada de uma incontrolável melancolia. O que é o caso.

Sinto que se trata de algo parecido com uma tentativa de reparar uma injustiça imperdoável. Talvez seja porque ela, apesar dos 54 anos bem vívidos e bem pesados, tenha algumas semelhanças com Emily Dickinson, cujo espírito de sua arte só se revelou, desencarnando-se, após sua morte, quando finalmente seus versos foram impressos em prol da criação da identidade da alma feminina.

Como Emily, Cristina é uma exilada dentro do seu próprio corpo almado, aprisionada dentro do seu silêncio tímido, e só se liberta momentaneamente quando escreve. Quem, por acaso, ler seus poemas, não acreditará, se vier a conversar com ela, que Cristina os tenha extraído de seu laconismo.  Mas é porque tirou as palavras de sua boca para destiná-las apenas ao papel.

Como em Emily, estão presentes o lirismo, o sentimento de comunhão com a natureza, o prazer em cantar o cotidiano e em lidar com ele: a paixão pela poesia como meio-mor de se expressar e de vivenciar o mundo, tudo isso revestido por uma aparência virginal, tímida, ousada e familiar.

Uma das melhores poetas da nova geração capixaba, nasceu em 23 de setembro de 1958 em Juiz de Fora, MG, e veio para o Espírito Santo em 1977.

Amiga de longos silêncios face a face em seu eterno batom vermelho, é também autora de cartas belíssimas reunidas no inédito primeiro romance epistolar capixaba, Cartas Deitadas no seu Peito — Cartas a Oscar Gama Filho (1983 -2006), que pode ser inscrito no Guiness e enriquecê-la ao ganhar o título mundial de cartas de amor sem resposta: são 23 anos sem retorno! A incapacidade de responder à altura da beleza de seu texto me impossibilitou a réplica, tornando-a desnecessária quando ela desenvolveu cartas de uma beleza tão espaçosa que ganhava o espaço por si só e, como um buraco negro, sugava até a luz e as palavras que me permitiriam uma correspondência. Mas guardei todas e as devolvi 30 anos depois.

Cristina era, desde cedo, dona de um corpo de talento e de primor técnico grande o bastante para que ela não o controlasse com a perfeição que o futuro, hoje chegado, lhe forneceria. Por isso só as devolvi 30 anos depois. Estava nova demais para apreciar a beleza cegante dos diamantes de sol.

Dia a dia, ao longo de três décadas, escrevemos e debatemos, e tanto e a tal ponto que uma ponte mágica se construiu entre nós quando criamos, juntos, a sua obra — eu de muso carnavalesco.

Anos de contato pontifício levaram-na a aliar voos condoreiros e imagens grandiosas aos seus pequenos cacos de lirismo e de cotidiano, influenciando na composição de um retrato ao mesmo tempo estranho e arrebatador pela união do lírico ao grandioso e ao ácido que se encontram neste magnífico Poema Deitado no seu Peito — um Jogo de Amarelinha (homenagem a Cortázar), publicado pela Scortecci Editora, de São Paulo, em 2012, com 142 p., lançado na Bienal de Literatura de São Paulo no ano passado.


[In A Gazeta, Caderno Pensar, 13/04/2013.]

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A cegueira, não. Pelo menos, não a definitiva, mas sim a herdada da negra sala de projeção do cine-teatro Glória. Saio meio cego, tonto, ch...


A cegueira, não. Pelo menos, não a definitiva, mas sim a herdada da negra sala de projeção do cine-teatro Glória. Saio meio cego, tonto, chegado de Casablanca, sem lábios feitos de vermelho, não de carne, ao meu lado para me servir de guia. Para dialogar à Platão.

Vindo da caverna de Platão, cego pela luz, saio tonto do Glória e tropeço, não num paralelepípedo, mas na rua Marcelino Duarte, que se torna gente. Ou fantasma. De uma sessão freudiano-espírito-santense que transcrevo a seguir. Escrita automática dos surrealistas, velhos amigos há muito, desde o nunca, vamos lavar a roupa suja de sua existência para que, enfim, descanse em paz.

Com a rua transformada em gente, habitamos o vazio, eu e Marcelino Pinto Ribeiro Duarte (Serra-ES, 1788 — Niterói-RJ, 1860). Choroso e melancólico, como sempre, Marcelino, em respeito à poluição sonora que ameaça o nada instaurado, recusa-se a falar. Está por baixo. Subimos, então, aos céus, via Cidade Alta, favela do ouro e, como Marcelino era padre, vamos à casa paroquial oitocentista, na rua José Marcelino, seu semi-homônimo, admirador e irmão em rua. José Marcelino, também escritor, incluiu a maior parte da obra publicada de Marcelino Duarte nos dois volumes de seu Jardim poético, publicados em 1856 e 1860.

Padre e filho do padre Manoel Pinto Ribeiro Duarte, Marcelino deixou diversos filhos carnais, muitos escândalos e a fama de agitador político. Mulato, venceu a cor e se pintou como primeiro dramaturgo capixaba e um dos pioneiros da arte poética. Coração numeroso, um romântico? Um clássico perdido na estante? Não e não. Certamente um pré-romântico. O que é sem ser, a divisão, o sentimentalismo, o nacionalismo patriotário, a dor fragmentada pela técnica.

Não há escritor capixaba mais controvertido do que Marcelino Duarte. Desde que morreu, nunca mais foi visto em público. Ligo para a revista Você e de lá pedem uma matéria. Pauta: teatro, poesia, Rubim e Afonso Cláudio. Pergunto a Marcelino como tem andado.

— Morto. Comendo capim pela raiz. Imóvel, naturalmente. Subterrâneo total underground. Enterrado no trabalho. O que me permite conhecer adegas subterrâneas, de onde extraio o vinho do Porto necessário para conservar meu cérebro em álcool. Não me lembro de muita coisa. (O contra-regra traz alguns litros de vinho.)

— E Afonso Cláudio?

— Esse cara mudou minha vida. Um artigo publicador por Você, segundo número, mostra que ele reescreveu os meus poemas incluídos em sua História da literatura espírito-santense. Distorceu meus versos com sua colher torta, querendo me fazer passar por um autor clássico, um árcade, veja só!

— Mas não foi o Afonso Cláudio que te transformou em herói da resistência contra a tirania de Francisco Rubim, que governava o Espírito Santo?

— Mais ou menos. Afonso Cláudio não imprimiu a lenda nem a história. Preferiu a ficção, maior que as duas. E mudou o desfecho da trama, incluindo um final feliz. (Os litros de vinho, como nó em gota d'água, enrolam sua língua com laços de beleza. A sede, vinda de séculos de abstinência, é morta pelo ex-morto.)

— Soube, no disse-me-disse, que você não disse palavra de honra do que o Afonso Cláudio disse. (Repórteres e escritores bebem em serviço. Não tanto mas não tampouco.) E aí, qual é a verdade?

— A verdade, segundo Welles: It's all true. In vino veritas: no vinho, a verdade. Atrás da verdade, você toma a primeira garrafa de vinho e não encontra. Sem desânimo, bebe a segunda. Também não. A persistência na busca da verdade leva à terceira garrafa. Quando chega à metade, ela não importa mais. (Bastante altos, somos arrebatados em corpo e alma por anjos até a visão da "Bahia" de Vitória.) A verdade começa com minha ida ao Rio de Janeiro, em outubro de 1817, para pedir ao rei aumento de vencimentos e a concessão do "Hábito de Cristo". Quem tiver insônia pode conquistar o sono eterno lendo a história no José Schiavo — Caderno Dois de A Gazeta de 13/1/1983. Eu merecia esse dinheiro: prestei muitos serviços à monarquia, mais por esperteza do que por crença. Em 1816, por exemplo, tive de me tornar o primeiro dramaturgo nascido no Espírito Santo, a fim de comemorar a coroação de D. João com o Drama que escrevi e encenei. Pretendia passar apenas quatro meses na Corte, tempo suficiente para a grana sair. Acabei ficando dois anos pois, em fevereiro de 1818, Rubim indeferiu meu pedido e eu decidi permanecer onde poderia ganhar melhor. Como eu sou escritor e o mundo é construído com palavras, resolvi me vingar do Rubim. A verdade, meu amigo, é que não fui até o Rio apenas para reclamar do despotismo de Rubim, ruim, com D. João vi. Nem vi o passarinho verde que o Sonso Gáudio (= daqui por diante, a Afonso Cláudio) viu. Você sabe: pegaria mal usar a necessidade de dinheiro e de honrarias nos versos. Transformei o caso em luta contra a tirania do governador e descrevi a viagem em um poemão em oitava rima, cego, como Camões, a tudo que não fosse a grandiosidade da pompa e circunstância. Cego — mas de raiva — chamei de "Derrota de uma Viagem Feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817". Usei a palavra "derrota" no sentido de rota marítima percorrida por um barco. De olhos abertos, o Sonso claudicante, sem a devida autorização, por força maior de meu falecimento, enxugou deturpando para "Derrota de uma Viagem ao Rio de Janeiro em 1817". Contra os privilégios, deu igual tratamento distorcedor aos versos. (O contra-regra traz cebola e glicerina. Ele chora com a artificialidade piegas dos pré-românticos, criador de uma sensibilidade brasileira dentro da literatura capixaba que foi:)

Oh, Rio, vós, que algum dia,
Ouvistes meu terno canto,
Parai um pouco p'ra ouvires
O triste som de meu pranto.

— Sei. Naturalmente, este é seu poema "Pranto". Mas e o "Derrota"?

Minhas palavras inauguram uma revolução no visual da baía. À força da mudez lacrimosa de Marcelino, suas musas se oferecem de montaria e nos levam ao ano da graça de 1817, mês de outubro. Sabendo que poemas não foram feitos para serem declamados por boca que não seja a vista, de seus olhos escorrem faixas em que letras contêm o som mudo das palavras. É, milagre, o Canto VI do "Derrota":

Adeus, Vitória, digo então comigo,
Pátria ditosa, a mais feliz colina,
Goza amável, ah, sim, fica contigo
A encantadora mas cruel Francina: (3)
Tu sabes, não que o céu maior castigo,
Nem tormenta maior, mágoa mais fina,
Me podia causar, se não privando
De por pouco avistar seu gesto brando.

Trazida por mil das musas, surge uma nota de rodapé, de autoria do próprio Marcelino, que seria rejeitada pela revista Você: [A revista proíbe e condena o uso de notas de rodapé por ser de alto nível e contra desvios de coluna Prestes a doer.]

— (3) Uma das moças mais honestas, a quem por simpatia amei; mas não mereci dela o mais pequeno favor, e que foi aleivosamente infamada por línguas peçonhentas."

Fora de si, boquiabertocaladamente, Marcelino pede as mais mais às musas espetaculosas que nos assessoram o dom da beleza aguçado pela morte de que o poeta ressuscitou, eternidade da arte. Aleatoriamente, metralhadoras giratórias alvas, elas disparam os Cantos XII e XVI:


XII

Qual o que raio viu, eu vacilante,
Turva-se o mar, desperto do tormento,
Eis sobranceiro a mim vejo um gigante,
Imenso, horrível, feio, e corpulento,
Parecendo, qual monstruoso Atlante,
Nos ombros sustentar o firmamento;
Era este porém árduo rochedo,
Que a linguagem vulgar chama — Penedo —.


Algumas lágrimas depois, os versos ainda se desenrolam:


XVI

Gela-se o sangue, e o pálido semblante
Inculca o susto, que sufoca o pejo;
Percebe o meu terror vivo estudante,
E grita: oh, lá, oh lá do Caranguejo...
Levanto os frouxos olhos, não distante,
Pernambucano vaso avisto, e vejo;
Me saúda de lá piloto ativo,
Correspondo, porém nem sei se vivo.


As musas têm seus encantos. Com um deles, voltamos a 1993, ao real e à verdade? Marcelino parece acordar — ou dormir, sonhar talvez o ser ou não — da bebedeira:

— Cheguei a puxar o saco de D. João VI, pai do Brasil português que eu combatia e me torturava. Fiz uma ode chamando o gordo comedor de galinhas — guardava coxas de "colegas" nos bolsos — de herói, de Enéias e de Ulisses. O Sonso Gáudio inventou, como justificativa, que os versos agradeciam o afastamento, a meu pedido, do governador Francisco Rubim (...)

— Fato que a boa História não registra!

— Não tenho nada a ver com isso! Não falei que a culpa é do Sonso?! Rubim só deixou o Espírito Santo dois anos depois, em 1819, por cima de sua carne seca: foi nomeado governador do Ceará. Não sei como vocês acreditaram. D. João VI nunca atenderia às queixas de um pobre padre-mestre roceiro contra um de seus homens de confiança, um capitão de mar-e-guerra da Armada Real! Nem demoraria dois anos — de 1817, em que escrevi o "Derrota", a 1819 — para atender um pedido: a burocracia não era tão ruim naquele tempo! Nem, se tivesse me atendido, nomearia o Rubim para o honroso posto de governador do Ceará. Não tenho mais nada a declarar sobre isso. Vamos mudar de assunto. Se a vida é um palco, gosta de teatro? (Notei que você coloca alguns comentários entre parênteses, como em uma peça.)

— Dizem que sim. Mas você namorou com Melpômene antes de mim.

— Foi. Amo todas as musas com meu grande coração de vazio, mas Melpômene é a preferida entre as iguais. Ela e Calíope adoçam o sal da vida até mesmo para os mortos.

— Sem querer insistir insistindo, guardou alguma memória de Calíope que nunca mostrou ao mundo? O amor é uma forma de comungar almas de versos?

— Diversos memórias diversas conservo em conservas enlatadas pelo (e no) Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (Delirante.) Na lata 120, documento oito, jaz meu poema "Ermenoville ou o Túmulo de J.J. Rousseau". Foi há muito tempo atrás, mas tenho dela uma "Memória sobre as vantagens do estabelecimento dos novos colonos estrangeiros na província do Espírito Santo" na lata 212, documento quatro, de 1825.

— Nunca mais falou com ela?

— Só nas 37 páginas da lata 6, documento onze. Vamos mudar de assunto? Teatro? Olha, aquela sessão de poema mudo foi coisa das musas. Fazem de tudo para me agradar.

— Mesmo?

— Eu também não falo nada ou porque não quero ser chato ou porque jamais devemos discordar das mulheres. Pelo menos enquanto estão presentes. Quero cair nas graças das musas. Acho o contrário: acho que a palavra devia ser escrita como se fala. Criei uma ortografia fonética antes de Qorpo Santo, nome que ele recebeu por motivo oposto a mim: devido ao tempo em que ele viveu "completamente separado do mundo das mulheres". Em 1842, publiquei um livro dando lisõens (sic!) sufisientes (sic!!). (Delírio con fuoco) Chamei de Arte de Ler e de Escrever em Pouco Tempo a essa "Razão Filosófica da Verdadeira Ortografia, Desinfestada dos Prejuízos da Ortografia Barbaresca, ou por Outro Nome, Etimológica; que, como elementos do Sistema de Instrução Preparatória, Compôs e Oferece à Mocidade Brasileira Estudiosa. Seu patrício"...

— Quer dizer que o lance é escrever como falamos e não falar como escrevemos? Langue x parole?

— Por enquanto, o jogo está indefinido. Atuo nos dois times porque importa mais a competição do que a Vitória para que as pessoas tenham algo de fundamental a usar como remédio antitédio. Assim caminha a humanidade!... Por gostar do som da palavra, vamos virar o disco? Vamos mudar o tom de loucura para lucidez e de poesia para teatro?

— Nada contra nem a favor, muito pelo contrário...

— Isso! No entanto, não veja pedantismo onde existe apenas a sinceridade distante e indiferente dos mortos em prol da História. Que venham os touros das musas!

(Anjinhos barrocos caracterizados de touros, discutindo a sua sexualidade através de quadraturas de círculos, feitos marionetes das musas, entram em transporte e mudam o cenário do real. A passagem dos céus nos deposita entre os dias 22 e 31 de maio de 1816, em frente ao atual Palácio Anchieta, Vitória City. Nesse local, armado na praça dos antigos Colégio dos Jesuítas e Igreja de São Tiago ("hoje fundidos em um só Palácio Anchieta", cantam os anjinhos), ergue-se o teatro improvisado que o povo capixaba se acostumou a aplaudir desde o quinhentismo dos inacianos, faixa temporal de seda esticada pelas musas, vendo-se à esquerda algumas que seguram o seu começo, no século XVI, e, à direita, outras que sustentam o seu fim, no século XIX. Marcelino e seus alunos de latim representam, em monótona cantilena, o Drama que serviria de mote ao seu pedido de aumento. E à briga com Francisco Rubim. Terminado o Ato inicial, os anjinhos contra-regras, entediados, mudam o cenário para 1821. Eu e Marcelino somos toda a platéia. Podemos sentir nosso próprio futuro se plasmando no ar. Eis a sinopse da cena:

Ato I — Revolucionário membro do grupo oposicionista dos exaltados, Marcelino participa dos protestos nacionalistas responsáveis pela revolta que levou D. Pedro I a abdicar, em abril de 1831.

Ato II — Sua presença, na insurreição popular de julho desse ano, leva Diogo Feijó a ordenar sua prisão a bordo da fragata Paraguaçu.

Ato III — Enquanto está detido, sobe ao palco, no Rio de Janeiro, a comédia em três atos A Rusga da Praia Grande, ou O Quixotismo do General das Massas, de autoria de Januário da Cunha Barbosa, aliado de Feijó. (Dentro da peça, passa-se a peça. Um real dentro do outro e o universo como a tela que Deus assiste de fora. Há muitos canais e programas nos universos a cabo disponíveis contra o tédio divino. Medalha de honra ao mérito, a trama se desenvolve em torno das carnes da agitada vida amorosa de Marcelino, que morava na Praia Grande, em Niterói.)

Ato IV — Encarcerado no Paraguaçu, Marcelino escreve como resposta a comédia política O Cônego e Inês, em que satiriza Januário Barbosa (o "cônego"), Feijó (chamado de "Jeifó") e Evaristo da Veiga ("Eravisto"). A polícia naturalmente impede sua representação. (Um anjo crítico, encarregado de recolher pérolas de beleza para o Senhor, escreve do meu lado: "(...) O texto, em decassílabos, com rimas emparelhadas, de que achei por bem fazer conhecer só um fragmento, empreende uma engraçada crítica de costumes em que a história do Brasil é a pedra-de-toque impossível mas existente enquanto exercício de farsa ou de manifestações pagãs dionisíacas de loucura.")

GRAND FINALE — Eu e Marcelino somos transportados ao meu esconderijo na Gruta da Onça, Morro do Vigia. Bebemos água em pó, que patenteei recentemente como máquina de criar poetas. Basta acrescentar água e o saquinho esterilizado de pó se enche de... — água! Marcelino bebe demais, fica chapado e pega minha guitarra Pérola Negra, escolhida por Chryso Rocha sua dileta para gravar "Geração Setenta" (Afonso Abreu — Mário Ruy — Oscar Gama Filho).

Os anjos vão embora, passear no bosque porque seu lobo evém.

Ele toca lundus e improvisa modinhas usando, em geral, brasileiríssimas trovas em que os personagens são seu alter-ego Marcino, Marílias, Análias e Francinas, moda árcade que os pré-românticos seguiram. A atmosfera nacional inclui fossa, pieguice, desespero, angústia, solidão, jogos amorosos burlescos ("Tu m'afagando entre os braços, / Eu t'estalando os dedinhos" — Lira), além da indispensável fantasia de suicídio ante os olhos traidores da amada — lupicínica vingança da dor-de-cotovelo —, flashes românticos em que a dor é uma equilibrista suspensa e esquartejada entre o grotesco, o patético, o trágico, o mórbido e o cômico.

Mostro meu disco. Surpreendido, pede que eu toque. Improviso uns acordes de blues. Súbito, paro: "Não toco nada, só componho." Mostro a melodia que fiz para seu "Soneto". É um samba. Sua emoção faz com que voltemos aos "bons tempos", no passado. Era um samba. Chorou. Chorinho.

Chorou notas em forma de lágrimas negras de chorinho.

Chorou lágrimas negras em forma de notas de chorinho.

Chorou notas em forma de lágrimas negras de chorinho.

Dormir profundamente. Sonhar, talvez.

Aqui jazz.

[Transcrito da Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]

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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)


No começo do século XIX o Espírito Santo ainda era verde. A mata espessa descia da capitania de Minas Gerais até o litoral capixaba. No ser...


No começo do século XIX o Espírito Santo ainda era verde. A mata espessa descia da capitania de Minas Gerais até o litoral capixaba. No sertão grosso, cuja travessia fora proibida no século anterior para proteção do ouro extraído dos rios mineiros, bugres hostis, que matavam animais a dentadas, deslizavam como sombras, misturados às árvores.

Sem ímpeto desbravador, a minguada população do Espírito Santo vivia com os pés na praia e a cabeça na brisa do mar, evitando o sertão. No vale do rio Doce esplendia a floresta ancestral e magnífica. Deus e o Diabo habitavam a terra luxuriosa tolerando-se na rivalidade complacente do compadrio.

O padre Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, filho dos trópicos, filho do Espírito Santo, sabia disto e acendia uma vela a Deus e outra ao Diabo. Entre ambas as chamas exerceu seu sacerdócio à brasileira, provando com gosto "as exuberâncias pagãs" da terra, dando asas ao seu "espírito irrequieto até o arrebatamento". Palavras de Afonso Cláudio.

Filho natural do padre Manoel Pinto Ribeiro, o que significa ter nascido com o pecado original em duplicata, Marcelino foi feito sacerdote pela vontade do pai, que lhe deu nome, exemplo e futuro garantido. Além da certeza da boa instrução, a carreira sacerdotal constituía, na colônia ignara, trampolim para a ascensão social e política.

A decisão pragmática do pai iria selar o destino do filho ainda que, dentro da batina, Marcelino fosse carne e nervos. O padre-poeta chamou-o "pai impiedoso" em versos dirigidos a uma de suas musas.

Falamos do pai e do seu pátrio poder. Falemos agora da mãe, com a devida licença.

Da mãe que o pariu — e o pariu certamente mestiço, em 1788 — pouco ou nada se sabe. Com a devida licença, repito, e a se dar crédito à crença popular, a mãe deve ter virado mula sem cabeça depois de legar ao filho o temperamento fogoso que o fez femeeiro.

Esse temperamento Marcino — nome poético do padre — vazou corajosamente para sua poesia amorosa. E bota coragem nisso em tempos primevos e num ambiente social limitado e rústico.

Veja-se a vila de Nossa Senhora da Vitória, edificada em ilha, onde temos o padre Marcelino Duarte, em 1817.

A vila, em pose de cartão-postal, mostra-se risonha e franca, vistosa em sua brancura de cal, bem assentada nos limites possíveis entre encostas verdejantes e as águas mansas do mar. Nela amontoam-se casas de janelas envidraçadas, fortes, igrejas e trapiches.

Suas ruas, no entanto, são estreitas, sem praças nem passeios públicos, e nela não existem hospedarias. A chegada de um estranho açula a curiosidade geral; se chegam dois, arma-se um reboliço que só perde para o grande ajuntamento popular que provoca o aparecimento de burros, animais raros na ilha.

O alimento trivial da terra é o feijão com peixe e farinha de mandioca. O boi, abatido duas vezes na semana, é consumido moderadamente, ficando o couro esticado no varal para curtir ao sol, em meio ao moscaréu ruidoso. Ao curtume, a céu aberto, chama-se, por isso, Pelames.

Nas roças da vila planta-se e colhe-se regulando-se o serviço das lavouras pelo almanaque das luas. Empregam-se as enxadas e os ancinhos e, se faltam ambos, mãos à terra. Picadas de cobras se curam com mezinhas, sumo de limão e pólvora. É tiro certo.

Os fortes da vila são tantos, para o tamanho dela — São João, São Diogo, São Maurício, Carmo — que só de vê-los correm arrepios de medo na espinha, apesar de terem a pólvora úmida e os canhões silenciosos.

As igrejas da vila são tantas, para a modéstia dela — São Tiago, Misericórdia, São Gonçalo, São Francisco, Santa Luzia, Matriz, Carmo, Nossa Senhora da Conceição, Rosário — que só de contemplá-las purifica-se a alma em enlevos de fé. Na verdade, guarnecida para a guerra a vila de Nossa Senhora da Vitória vive em paz celestial.

Gravura de 1805 faz referência particular ao seu porto declarando-o "belo e abrigado dos ventos; o seu comércio exportativo consiste em açúcar, aguardente, algodão em rama e manufaturado, madeira, arroz, milho, feijão". Era a produção da terra onde o café ainda não dera a graça de suas ramas.

Os gêneros e mercadorias desse comércio exportativo saíam por muitos trapiches e cais — das Colunas, dos Padres, do Azambuja, do Batalha, do Santíssimo, das Lanchas, Cais Grande — onde o arroto das águas, batendo no tabuado, embalava as sestas dos negros-estivas.

Já chama a atenção a escadaria entre palmeiras, diante do palácio do governo, antigo colégio dos jesuítas. No extremo oposto da vila, a ladeira de Pernambuco dava acesso ao "lugar chamado Capixaba". Ali, fonte famosa jorrava as águas da mataria próxima. Marcelino, em versos de 1850, mencionou-a evocativo juntamente com a fonte da Lapa, gabando-lhes a pureza das águas, "o santo licor das duas fontes / que a natureza formou e inda conserva".

Mas, e o povo, por que não aparece o povo nesse cartão-postal risonho e franco?

Não aparece porque é ralo mesmo.

Saint-Hilaire, que visitou Vitória em 1818, cita apenas 4.245 habitantes. Teria contado nos dedos ou deduzido o número pelos fogos (ou seja, casas) da vila?

No dedo, porém, podiam-se apontar os dois juízes ordinários e o de órfãos; este ou aquele mestre de ler e de contar para o gasto das letras e dos números, b-a, ba, 1 + 1; o cirurgião, o rábula e o boticário ou ainda o ferreiro-dentista que um dia dava na ferradura, outro na dentadura. Quem ousasse o desafio apontasse por fim o déspota governador, Francisco Alberto Rubim, capitão de mar-e-guerra, ancorado na terra desde 1812.

Vista está a vila de Nossa Senhora da Vitória quando dela partiu o padre Marcelino Duarte em 1817. Concedo que, nessa descrição, salpiquei-lhe suaves ironias. Nada, entretanto, que distorcesse o modelo real.

Marcelino Pinto Ribeiro Duarte amou de amor sempiterno essa vila a que chamou poeticamente de "ninho carinhoso", doce ninho de amadas, de mulheres especiais com nomes arcádicos — Francinas, Análias, Marílias — possivelmente descobertas com olho de padre-mestre através das tramas obscuras dos confessionários.

Com elas deleitou-se, devido a elas purgou penas. Os amores a Anália custaram-lhe um ano de desterro em Itacibá. Foi determinação de Rubim que, guardião dos bons costumes e da ordem pública, não admitia as derrapadas amorosas de Marcino. Este jamais perdoou ao tirano, cujas arbitrariedades — e foram tantas — foi denunciar à corte. Agia em causa própria, mas não mentia.

A ida é o tema do longo poema Derrota de uma viagem ao Rio de Janeiro em 1817. Se o padre teve ou não força para remover da capitania o todo-poderoso governador, não está muito claro. Afinal, Rubim era bem cotado na administração portuguesa desfrutando do respeito e da proteção nepótica do tio, o intendente Paulo Fernandes Viana. Além disso, pontificara como administrador notável ao rasgar, sertão adentro, a estrada que pôs o litoral do Espírito Santo em ligação direta com Vila Rica.

Seja como for, o capitão de mar-e-guerra acabou removido para o Ceará, em 1819. Marcelino Duarte pôde então voltar ao ninho carinhoso, recomeçando a amar e poetar com mais desembaraço entre uma vela a Deus e outra ao Diabo.

[Transcrito da Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui

O uso da oitava rima [no Poema mariano] provavelmente influenciou a 'Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817...


O uso da oitava rima [no Poema mariano] provavelmente influenciou a 'Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817',[ 1 ] obra de Marcelino Pinto Ribeiro Duarte[ 2 ] que, além de se assemelhar ao Poema mariano no seu falso arcadismo pré-romântico, apresenta esse metro em suas 55 estrofes. Como explicamos, a oitava rima, empregada por Camões em Os lusíadas, é tradicionalmente destinada à abordagem do grandioso, do altissonante, do pomposo, do grandiloqüente, e não se enquadra no bucolismo, na simplicidade, na ingenuidade e na tranqüilidade do arcadismo. Apesar de se atribuir, imitando seus clichês, o criptônimo de "Marcino" e de espalhar "Análias" e "Francinas" — epítetos pastoris — pelo texto, não estamos diante de um árcade. O pré-romantismo capixaba e o nacional têm em comum o marco inicial de 1808 — em que o príncipe regente d. João tomou as medidas que produziram o surgimento da nação brasileira[ 3 ] — e o hábito de misturar a velha forma arcádica com os novos temas românticos e vice-versa. Afrânio Coutinho explica essa interpenetração de estilos com clareza:

Entre os dois momentos medeia, aliás, uma fase de transição — pré-romântica — em que lutam as tendências novas e o espírito antigo, expressa tal hesitação na mistura e interpenetração de tendências estéticas, de formas novas com temas cediços ou de assuntos novos com gêneros superados, tudo mostrando a indefinição e a incaracterização da época, dominada por um subarcadismo ou pseudoclassicismo. Correntes diferentes cruzam-se e misturam-se, barrocas, arcádicas, iluministas, neoclássicas, rococós, românticas, oriundas a maioria de fontes européias (...)[ 4 ]

Utilizando a palavra derrota no sentido de rota marítima percorrida por uma embarcação, Marcelino Duarte se propõe a narrar, embalado por entidades mitológicas, sua viagem ao Rio de Janeiro, onde pretendia se queixar a d. João VI dos desmandos, das perseguições, da crueldade, das injustiças e do despotismo do governador da capitania, Francisco Rubim. Mas o pré-romantismo do poema não se limita à ânsia de liberdade, à defesa dos oprimidos, à revolta contra a tirania e à luta pela justiça, temas que, na verdade, ocupam apenas cinco estrofes. Bem característico desse estilo é o tom brasileiramente lamentoso, magoado, sentimental, melancólico e adoecido pela saudade com que ele pinta os amores que deixa e a cidade de Vitória — chamada, repetidas vezes, de 'pátria' e em que se detém para versar, atormentado pela tristeza e pela dor, sua paisagem e seus recantos que, a contragosto, abandona. À medida que seu barco avança, o sombrio poeta descreve Vila Velha, o convento de Nossa Senhora da Penha — a que dedica quatro elogiosas estrofes —, as cruéis arbitrariedades de Rubim e os pitorescos lugares e ocorrências que emolduraram seu percurso até o Rio de Janeiro.

O cognome pastoril de 'Marília' não é suficiente para tornar arcádico — movimento antibarroco — este belo soneto de Marcelino, caracterizado justamente pelos fortes traços barrocos — e pré-românticos — oriundos da presença de metáforas, hipérboles, hipérbatos e adjetivos:

SONETO

    Quando os deuses, Marília, projetaram
Tua imagem formar linda, e mimosa,
A rica pedra, a flor mais preciosa
Da natureza providos buscaram:

    Teu rosto encantador ledos formaram
Do nevado jasmim, purpúrea rosa;
Os lábios, dentes, a boca graciosa
De cristais, e rubins organizaram.

    Nos olhos te puseram dois brilhantes;
Os cristalinos peitos transparentes
São de alabastro globos palpitantes.

    Querendo dar os deuses providentes
Clara idéia de si, stando distantes,
Teus dotes divinais temos presentes.[ 5 ]

A própria estrutura de diversos trabalhos seus está mais próxima da liberdade dos românticos do que do apuro dos árcades. Em uma de suas epístolas, por exemplo, em vez de se valer do decassílabo, metro geralmente escolhido pelos neoclássicos para essa elástica forma, Marcelino adotou inusitados tetrassílabos para os 89 quartetos de que é composta. O texto da epístola, que aborda todos os principais temas pré-românticos, sugere que ela teria sido escrita no Sítio da Saudade (quarteto 85: "Voto solene/Sagro à amizade/No da Saudade/Sítio, em que moro."), para onde fugiu (11: "Ele só fez,/Que eu fugitivo,/Qual vil cativo,/Da Pátria andasse"), perseguido por Diogo Antônio Feijó (3: "Negra maldade/D'um monstro fero,/Feijó, vil Nero,/Q'a pátria oprime;"). O governo do grupo dos moderados (6: "Cativa grei/De moderados,/São seus soldados,/Prontos para tudo."), a que Feijó pertencia, de fato prendeu muitos dos oposicionistas exaltados (36: "Sou exaltado...") que, como Marcelino, tinham participado das revoltas populares que culminaram na abdicação de d. Pedro I, em 7.4.1831 (8: "Quem foi de Abril,/Sofre, como eu/Do vil Proteu,/Guerra cruenta.") Entretanto, mesmo obrigado a se esconder, ele não desistiu de proclamar o seu patriotismo (37: "Amor constante,/Firme amizade,/Terna saudade,/Pátria, e civismo."), o seu ardor nacionalista e revolucionário (74: "'Fazei já guerra/'À traição vil;/'Viva o Brasil,/'Aos maus castigo'") e o seu ódio à tirania (89: "Aos Céus imploro,/Te estenda os anos,/Salvo aos tiranos/Da Corte. Adeus." Em seus versos, que impressionam pela modernidade cômica das onomatopéias usadas para pintar a paisagem brasileira, Marcelino revela-se de vez pré-romântico quando descreve seu refúgio no campo como desagradável, feio, mórbido, sombrio, angustiante, triste, melancólico e torturante, ao contrário dos árcades, para quem a natureza era um genuíno remédio capaz de restituir ao homem a paz de espírito e a felicidade roubadas pelos males da civilização:

EPÍSTOLA

18

O sol ativo,
Q'alegra as flores,
Meus dissabores
Azeda mais.

20

Se à noite fria
A terra enluta,
Tristeza bruta
M'investe, e mata.

42

Da noite o manto
Desprende apenas...
Q' tristes cenas!
Q'imagem feia!...

43

Já não gorjeia
Meiga e sonora,
Saudando a aurora,
Terna avezinha.

44

Com voz daninha
No charco em bando
Pan... pan... gritando,
O Sapo enjoa.

45

No vale entoa,
Que o rio banha,
Nojenta intanha
Rom, rom, rom, rom.

46

D'agudo som
O perereca
Toca a rabeca,
Crré... crré... crré... crré.

47

Saudoso bé
Solta o bezerro:
Com outro berro
A mãe responde.

48

Bem perto, aonde,
Mato sombrio
Guarnece o rio
Sibila a cobra.

49

D'aqui desdobra
Com mago estilo
Caseiro grilo
Si... si... si... si...

50

Eis que dali
Com pio frouxo
Noturno mocho
Males augura.

51

Da sombra escura
D'alta figueira,
Geme agoureira
Magra coruja.

52

Ah! fuja... fuja
Destes lugares,
Quem meus azares
De ouvir se esquiva.

53

Se a luz furtiva
Do pirilampo
Matiza o campo
Um céu d'estrelas,

54

Julgai por elas
Minha ventura,
Se vem, não dura
Curto momento.

55

Voraz tormento,
Negra agonia,
Melancolia,
Baça tristeza,

[...][ 6 ]

Como bom pré-romântico, os acontecimentos políticos nacionais freqüentemente lhe serviam de inspiração. Em 1816, por ocasião dos festejos comemorativos da coroação de d. João VI, escreveu um Drama que foi encenado entre os dias 22 e 31 de maio, em um teatro improvisado erguido em frente ao atual palácio Anchieta, em Vitória. Membro do grupo oposicionista formado pelos liberais exaltados, Marcelino participou dos protestos nacionalistas responsáveis pela revolta que levou d. Pedro I a abdicar, em abril de 1831. Em conseqüência de sua presença nos distúrbios que, em julho desse ano,[ 7 ] provocaram uma nova insurreição popular, Diogo Feijó ordenou que ele fosse preso a bordo da fragata Paraguaçu — de onde fugiria mais tarde. Enquanto estava detido, segundo Wilson Martins, subiu ao palco, no Rio de Janeiro, a comédia em três atos A rusga da Praia Grande, ou O quixotismo do general das massas, de autoria de Januário da Cunha Barbosa, aliado de Feijó. A peça aludia à agitada vida amorosa de Marcelino,[ 8 ] que morava na Praia Grande, em Niterói. Informado da estréia, escreveu como resposta, mesmo encarcerado na Paraguaçu, a comédia política O cônego e Inês, em que satiriza Januário Barbosa (o 'cônego'), Feijó (chamado em cena de 'Jeifó') e Evaristo da Veiga ('Eravisto'). A polícia — sempre a serviço dos poderosos — naturalmente impediu sua representação. O texto, em decassílabos, com rimas emparelhadas, de que se conhece apenas um fragmento,[ 9 ] empreende uma engraçada crítica de costumes em que a história nacional ocupa lugar de destaque. Contudo, os inegáveis bons momentos de seu humor ficam fora do alcance do grande público, que não possui os conhecimentos históricos necessários para compreendê-los.

A lira que apresentamos em seguida é um poema tipicamente pré-romântico. Seu tom sombrio, noturno, irreal, povoado pela visão lúgubre da saudade, espelha o tormento do poeta que, longe da amada, se vê possuído por sonhos ruins, se desespera, se angustia e se entristece. A melancolia e a solidão que o torturam são vazadas em uma linguagem emotiva e adjetivada que expressa com habilidade o sentimentalismo brasileiro:

LIRA

Acaso eu dormia
Já frouxo, e cansado,
De andar todo o dia
Buscando o meu gado.
  Um sonho me pinta
De linda donzela,
A imagem mais bela,
Mais triste a chorar.
Ao vê-la me inspira,
Oh céus, que pesar!
Os olhos não tira
Do chão lagrimosa,
Soluça, e suspira
A deusa formosa.
  Nas vestes inculca
Pesar, e desgosto,
C'um véu cobre o rosto
De arminho na cor.
Minha alma então sinto
Partir-se de dor.
Marília, não minto,
Gemia eu dormindo,
Q'a imagem, que pinto
O mesmo sentindo
  Forcejo, e não posso
Sufocar o pranto,
Q'a dor pode tanto,
Q' julgo morrer,
Choraras, se visses
O meu padecer.
Se ao filho de Ulisses
Não deixa um Mentor,
Meus dias felizes
Empece-me a dor.
  Quem sois, eu pergunto
À triste deidade,
"Eu sou a saudade"
A deusa me diz,
Eu só te persigo,
Te faço infeliz.
Não basta, lhe digo,
Contra mim, oh! Nume,
P'ra meu mor castigo
Amor, e ciúme?...
  Se vejo a Marília
Amor me persegue,
Se a deixo, me segue
Ciúme infernal.
Ah! tu inda mais
Duplicas meu mal!...
Suspiros, mil ais
Do peito arrancando,
Ah! diz, não te faz
Mais meigo, e mais brando?...
  Tem dó de meu pranto,
Do mal, que suporto,
Se queres-me morto
Demora não tem.
Marília... repito;
Marília... meu bem...
A causa de aflito
Gemeres, chorares,
Sou eu, teu delito
Teu mal, teus pesares
  Vai ver a Marília
Que chora, qual gemes,
Que o mesmo, que temes
Te julga infiel
Assim me responde
O Nume cruel
Acordo, e se esconde,
Suponho em meu peito,
Pois apalpo a onde
Estava, era o leito.
  Em pranto afogado
A Deusa procuro
Um véu negro escuro
Só mostra-me horror.
São estes, Marília,
Prodígios de amor.[ 10 ]
'Pranto' é um trabalho que comprova a sua importância na criação de uma sensibilidade brasileira dentro da literatura capixaba. Inspirando-se em uma forma popular, a trova — originalmente formada por uma só quadra de versos heptassílabos em que o segundo e o quarto versos são obrigados a rimar —, Marcelino consegue um ritmo bem adequado à atmosfera de seu poema, cheio de fossa, de pieguice, de desespero, de angústia, de vazio existencial, de saudade, de solidão, de jogos amorosos burlescos ("Tu m'afagando entre os braços,/Eu te estalando os dedinhos"), de fantasia de suicídio ante os olhos traidores da amada — lupicínica vingança da dor-de-cotovelo —, flashes românticos em que a dor é uma equilibrista suspensa e esquartejada entre o grotesco, o patético, o trágico, o mórbido e o cômico:

PRANTO

     Ouvistes meu terno canto,
Parai um pouco p'ra ouvires
O triste som de meu pranto.

    Mil vezes, ah! venturoso,
Olhando a vossa corrente,
Os belos dons de Marília
Cantou Marcino contente,

    Mas hoje, oh! céus! que essa ingrata
Motiva minha amargura,
Ouvireis entre soluços
Minha cruel desventura.

    Essa com quem tantas vezes
Me vistes ledo brincando,
Ela tão meiga entre as outras
Furtivos beijos me dando,

    Que só mostrava prazer,
Quando contente me via,
Que, eu só gemendo, chorava,
Eu só me rindo, se ria,

    Mudou-se enfim; só m'ostenta
Um ar pesado e sisudo,
Já não me chama mimoso,
Seu bem, seu mimo, seu tudo.

    Outro merece os afagos
De seu cruel coração,
Eu só mereço seu ódio,
Seu desprezo, e ingratidão.

    Eu morro... ah! vil!... já não posso
Suportar tanta esquivança!
Marília; oh! céu! me despreza!...
Quem motivou tal mudança?...

    Marília!... o Nume por quem,
Desprezei patrícios lares,
O néctar mais saboroso
Nos meus tiranos pesares!...

    Matai-me, céus, nem viver
Um só momento desejo;
Acabai, Rio, meus males,
Se algum dia o meu desejo.

    Envolvei nas vossas águas,
Levai nas vossas correntes,
O mais triste, e desgraçado,
Mais infeliz dos viventes,

    Ânsia, raiva, amor, ciúme,
Todas as fúrias do Averno,
Exasperam meu tormento,
Duplicam meu mal eterno.

    Ah! Marília, e como ingrata,
Pôde em ti tão vil traição?
Tu, que mil vezes chorando
Mostravas tanta paixão?

    Mudaste em fim [sic]; não me adoras...
Toda és fúria contra mim,
Inda mais fera que um tigre,
Raivosa mais que o Rubim.

    Não me tiveste, cruel,
Sempre submisso a teu mando,
As leis sagradas de amor
Fielmente executando?

    Aquelas tardes passadas
Entre amorosos carinhos,
Tu m'afagando entre os braços,
Eu te estalando os dedinhos.

    Onde estão, cruel Marília?...
Quem me roubou tal ventura?...
Foi sim, ingrata, meu fado;
Foi minha pouca ventura.

    Um vesúvio o mesmo inferno
Abrasam meu peito aflito.
Não bramem, não choram tanto
As almas no vil cocito.

    Eu morro... Oh Céus! já percebo
Da morte o frio desmaio;
Vem ver ao menos, tirana,
Como d'aqui morro, e caio.

    Vós, Rio, que entre os peixinhos
Tão saudoso murmurais,
Que enternecido comigo
Tão tristemente chorais,

    Cobri, cobri compassivo
Meu corpo com vossas águas,
Nelas acabe Marcino,
Com ele pesar, e mágoas.[ 11 ]

A obra de Marcelino parece ter constituído uma espécie de modelo para os autores pré-românticos que o sucederam. Seus recursos técnicos, seu sentimentalismo, seu nacionalismo, seu patriotismo e seus lugares-comuns de falso árcade ressurgem em José Gonçalves Fraga e em João Luís da Fraga Loureiro de forma diluída e sem o talento que o caracterizava. Até mesmo a bajulação apologética, a que deu início com sua ode a d. João VI, é reproduzida ad nauseam por ambos e piorada — se isso for possível.



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NOTAS


[ 1 ] Esse é o título original, segundo o Jardim poético (op. cit., p. 39). Afonso Cláudio, não contente em distorcer os versos de Marcelino Duarte nas pp. 57-76 de sua História da literatura espírito-santense (op. cit.) realizando alterações desnecessárias que ele, entretanto, afirma serem "indispensáveis" (veja a p. 57), transformou o título em 'Derrota de uma viagem ao Rio de Janeiro em 1817' (p. 57). A erudição de José Augusto Carvalho efetuou, em seu Panorama das letras capixabas, a melhor transcrição integral — a partir do texto do Jardim poético — da 'Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817' ao alcance do leitor moderno. Veja José Augusto Carvalho, 'Panorama das letras capixabas', Revista de Cultura — Ufes, Vitória, Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 7 (21):63-76, 1982.
[ 2 ] Marcelino Pinto Ribeiro Duarte (Serra, 18.6.1788 — Niterói, 7.6.1860), professor de latim, poeta, político, primeiro dramaturgo nascido no Espírito Santo, não deixou que o fato de ser padre — e filho de padre — se tornasse um obstáculo à movimentada vida amorosa registrada pelos seus versos. De temperamento arrebatado, revoltou-se, em 1817, contra o despotismo do governador Francisco Rubim. Viveu no Rio de Janeiro de 1817 a 1830. Pertenceu ao grupo oposicionista de liberais exaltados cujos protestos nacionalistas contra os portugueses foram o estopim das revoltas populares de 1831. Segundo Afonso Cláudio (ibid., p. 89), elegeu-se deputado pelo Espírito Santo em 1838. Seus poemas estão distribuídos pelos dois volumes do Jardim poético. Sob a forma de ensaio, publicou a curiosa Arte de ler e escrever em pouco tempo, em 1842, pela tipografia Niteroiense, em que propunha uma ortografia fonética. E autor das peças Drama, de 1816, e O cônego e Inês, de 1831. Sua personalidade panfletária fica parcialmente exposta em um folheto de 16 páginas impresso na tipografia Nacional, no Rio de Janeiro, em 1822, e intitulado O Brasil indignado contra o projeto anticonstitucional sobre a privação das duas atribuições, por um filopátrico. Os dados fornecidos a seu respeito por Afonso Cláudio devem ser analisados com cautela antes de serem acolhidos.
[ 3 ] Marcelino é autor de uma ode em que bajula d. João VI, chamando-o de herói e comparando-o a Enéias e a Ulisses — veja J. M. P. Vasconcelos, Jardim poético, Segunda Série, Vitória, tipografia de Pedro Antônio d'Azeredo, 1860, pp. 65-6. Daqui por diante o denominaremos de Jardim poético II para diferenciá-lo do tomo de 1856, que continuará a ser citado sem algarismos romanos. Afonso Cláudio (op. cit., pp. 77-8) justifica sua atitude, afirmando — ou inventando, possivelmente — que os versos foram feitos para agradecer o afastamento, a seu pedido, do governador Francisco Rubim, o que não é registrado pelos bons historiadores. Rubim só deixaria o Espírito Santo dois anos após sua briga com Marcelino, em 1819, por ter sido nomeado governador do Ceará (veja José Teixeira de Oliveira, op. cit., p. 259). Ora, não se concebe que d. João VI desse ouvidos às reclamações de um desconhecido padre mestre do interior contra um de seus homens de confiança, capitão-de-mar-e-guerra da Armada Real, nem um pedido, se aceito, demoraria dois anos para ser executado — considerando que o próprio Marcelino Duarte data de 1817 sua viagem ao Rio de Janeiro com esse objetivo — nem, se atendido, é crível que lhe fosse dado o novo e honroso posto de governador do Ceará.
[ 4 ] Afrânio Coutinho, 'O movimento romântico', em: — A literatura no Brasil, 3ª ed., Rio de Janeiro/Niterói, José Olympio/Universidade Federal Fluminense, vol. 3, 1986, p. 16.
[ 5 ] M. P. R. Duarte, apud J. M. P. Vasconcelos, Jardim poético II, op. cit., p. 43. Afonso Cláudio (op. cit., p. 79) também deturpa este soneto e, de presente, confere-lhe um título inexistente no original.
[ 6 ] Ibid., pp. 107-15.
[ 7 ] Caio Prado Júnior relata os acontecimentos de julho de 1831: "O mês de julho assinala o início da série de golpes que encheriam todo o período da Menoridade. Logo nos primeiros dias deste mês, é a capital do Império teatro de arruaças, a que se juntam os soldados, que, desrespeitando os oficiais e abandonando os quartéis, fazem causa comum com o povo amotinado. No dia 14, depois de vários dias de distúrbios, reúnem-se tropa e povo sublevados no Campo da Aclamação e enviam ao governo suas condições: reformas democráticas da Constituição, suspensão dos funcionários nascidos em Portugal, deportação de uns cem cidadãos, entre os quais figuravam senadores, militares, magistrados e outras pessoas de destaque; exoneração do ministro da justiça; proibição da imigração portuguesa por dez anos. Como era de se esperar, a Assembléia nem tomou conhecimento da representação, estranhando mesmo que o ministro lha tivesse apresentado." Veja Caio Prado Júnior, Evolução política do Brasil e outros estudos, 5ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1966, p. 59.
[ 8 ] Wilson Martins, História da inteligência brasileira, 2ª ed., São Paulo, Cultrix, vol. II, 1978, p. 195.
[ 9 ] A História do teatro capixaba: 395 anos (op. cit.) transcreve esse fragmento nas pp. 68-72.
[ 10 ] M. P. R. Duarte, apud J. M. P. Vasconcelos, Jardim poético II, op. cit., pp. 58-60. Em nossas transcrições, limitamo-nos a atualizar a ortografia. Decidimos não eliminar outras falhas evidentes, como as de pontuação, por enxergarmos nelas um certo valor histórico.
[ 11 ] Ibid., pp. 123-7.


[In GAMA FILHO, Oscar, Razão do Brasil em uma sociopsicanálise da literatura capixaba. Rio de Janeiro / Vitória: José Olympio / Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1991, p. 57-70.]

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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

O poeta não morreu: foi ao Inferno e voltou. ( Frejat — Dulce Quental) “Todas as noites o jovem pescador lançava a rede ao mar. Quan...


O poeta não morreu: foi ao Inferno e voltou.
(Frejat — Dulce Quental)


“Todas as noites o jovem pescador lançava a rede ao mar. Quando soprava o vento de terra, não apanhava nada, ou muito pouco; quando o vento soprava para a praia, os peixes subiam das profundezas e caíam na rede. Ele os vendia a bom preço no mercado”. Assim se inicia “O pescador e sua alma”, conto de Oscar Wilde em que um rapaz se apaixona por uma sereia e, para tornar-se imortal — condição para poder se unir a ela — dispensa sua alma, recortando com uma faca, na areia da praia, a própria sombra, símbolo da ligação com o mundo dos vivos. A mesma simbologia aparece na Divina Comédia, quando Dante percebe que Virgílio não possui sombra, entendendo-o, a partir de então, como pertencente a uma outra realidade, aquela de após-vida.

A lembrança desses dois textos me surge em meio à leitura de Dédalo, livro do poeta capixaba Miguel Marvilla, onde também se encontra um sujeito que busca, e cuja aventura existencial se perfaz entre a vida e a morte, na experiência da ausência, da perda, do nada. Os poemas que aparecerão adiante, retirados de “Personae” — primeira parte do livro —, vão do verso livre ao soneto e são repletos de símbolos e imagens, trazendo por vezes os hipérbatos e a cuidada rima; por outras o mito, as quadras e o coloquial, numa prova da versatilidade desse autor no manejo de temas e formas.

“A minha alma, partida”, poema que abre essa primeira parte, anuncia já um duplo: um eu naufraga “n’um mar de pensamentos” enquanto vê afastar-se sua alma “por uma alameda de sombras inclementes”. Ele é ameaçado por uma cisão que, não obstante, parece saber impossível: a “alma” que segue envereda também pelo caminho das lembranças — “inventadas” embora — que é o destino do próprio sujeito, além de que inicia o texto uma sugestão de feminino — “a minha alma, partida“, parte que ameaça se conjugar, no último verso, com “um homem ido” (grifos meus), formando uma unidade — ainda que temporária — que é, supostamente, o tesouro; melhor se diz: o ouro em pó reluzente em busca do qual o sujeito segue e, ao mesmo tempo, o cerne da obra e o que permite a ela acontecer.

Assim como o sujeito é duplicado, o poema “Eu me fiz ao léu” é todo fragmentado em dísticos. Ele dispensa um tradicional componente externo da personalidade — o chapéu —, mais a simbólica sombra referida anteriormente, para mergulhar à procura da própria criação (apropriadamente dúbia): “Eu me fiz ao léu,/ sem sombra ou chapéu”. Há nesse poema, entre parênteses, uns versos que lembram aqueles populares, de que as crianças gostam: “a gente é fraco/ cai no buraco/ o buraco é fundo/ acabou-se o mundo”. Os versos de Marvilla entoam: “(Mar é muito grande:/ some a gente antes/ que se diga ‘amém,/ Jesus’)”. É patente o medo de uma possível aproximação do mar — as plagas do inconsciente? A opção, ao contrário, é pelo rio, “ravina ou coxia”, estes não representando perigo, pela sua rasidão — razãoconsciente?

Outros elementos ainda permeiam o texto como referências à parcela inconsciente: “o escuro”, as “florestas”, “recados ou pistas”, “lembranças”, são todos caminhos obscuros que ameaçam com a possibilidade de um encontro inusitado. Curioso é que, no que parece ser a fuga do próprio inconsciente, o sujeito termina entregue a um turbilhão que também o guia, fazendo-o seguir… inconscientemente, jamais abandonando a aventura em que se lança. Embora “só tomando o rumo do que não é escuro”, escolhendo, aparentemente, “o esperado”, “o certo”, ainda assim o sujeito estará agindo como que impulsionado por uma força incontrolável. Fugindo do inconsciente, no receio de flagrar-se, é exatamente por ele que é guiado. Ao final, ele se reconhece “de volta ao princípio,/ fechando este círculo,/ um desconhecido/ para o próprio umbigo”, mas que, de qualquer forma, cumpriu um ciclo, se fez, ainda que “ao léu”, ou seja, pelo caminho da fragmentação.

O verso que intitula o poema “Tudo era por minha causa” reproduz um reclame infantil — “Tudo é por minha causa!” — geralmente carregado de um sentimento de culpa e de revolta. O verso abre as três primeiras estrofes, repetindo-se com a mesma insistência com que a expressão costuma surgir na fala cotidiana. É como se, no início de cada estrofe, o sujeito fosse momentaneamente tomado do espírito da criança que fora um dia, travestindo-se juntamente o próprio discurso, que já no segundo verso de cada estrofe volta a representar a fala adulta e culta. Há, no fim da terceira estrofe, uma quebra temporal e sensorial: “Era pra ser assim a vida inteira. / Mas eu vim em direção a este outro futuro”. O tempo, a memória, a transformação desses elementos em matéria para o próprio fazer artístico podem bem representar o cerne deste poema e desta parte do livro. Juntamente com a descoberta da expressão poética, a descoberta do eu. O sujeito se liberta de um possível futuro e encaminha-se a um outro: “Eu fugi em direção a mim, destino”. Ainda que intuitiva ou inconscientemente, caminha ao seu próprio encontro através da poesia, trazendo para isso apenas as lembranças, que afinal constroem a ele e à obra: “Mas eu vim…/ um casaco apertado que mal me cobria os cotovelos”, no reconhecimento das marcas deixadas pelas perdas, pela ausência, pelo “não-sido”: “E deixarei saber de novo/ que a minha primeira namorada/ não era um porquinho-da-índia/ e se chamava Beatriz,/ mas que meu primeiro beijo/ eu até hoje não sei”.

Do mesmo modo como o sujeito do poema vai se construindo a partir de presenças e ausências, unem-se o desejo e a culpa; passado, presente e futuro: “não tenho culpa de ser culpado por estar aqui”; “agora, amanhã, levanto-me”. O texto é repleto de contradições, e delas é feito o sujeito. Mesmo sua auto-afirmação: “eu
eu
eu
eu
a duas letras de Deus”

se dá graças a uma negação: “que eu seria o não-sido”, “com não-malas, não-heranças/ não-cartas de apresentação” e, curiosamente, a linha que traça em direção à divindade é descendente. Paradoxalmente, o sujeito desce em direção a Deus, por meio da experiência negativa, da ausência, da inexistência, da morte…

Novamente se dá a experiência da negação e da impossibilidade do total controle, que é também a experiência da morte: “… acharam que eu voltaria à tona satisfeito/ com meu cadáver fartamente irreconhecível/ este cadáver que nem escolhi”. A morte forma uma antítese à experiência do corriqueiro, infantil e cotidiano anteriormente expresso. Os advérbios que se ligam à ideia de podridão e morte exprimem também abundância: “meu cadáver fartamente irreconhecível/ sobejamente podre” (grifos meus). Pela força que têm essas últimas imagens, aquele que ressurge é muito mais o resultado da danação, da morte e da negação — experiência verdadeiramente positiva na sua negatividade —, que daquele cotidiano expresso anteriormente pelas imagens feitas do vazio típico daquilo que flui, como “uns pedaços de sombra”, “a imensidão das horas”, “um tempo de estar escondido em lacunas”. A experiência negativa é densa e mais significativa para a construção do ser que a corriqueira leveza.

O mesmo tempo — implacável mensageiro diário da destruição — surge mais adiante como “O cupim” que “mergulha em meu livro de Fernando Pessoa/ até o fundo de mim”. A ligação com a poesia — e o pensar — daquele autor se mostra íntima a ponto de o substantivo situar-se dubiamente entre dois possessivos: “meu livro de Fernando Pessoa” (grifos meus), formalizando a relação autor-leitor em torno da obra. O tempo-cupim que atravessa aquela obra (de Pessoa) e aquele autor encontra-se, no presente, com a sensibilidade do leitor-sujeito do poema de Marvilla, que dá início à nova relação, agora como autor. Nesse poema realiza-se uma inusitada reversão de sentidos, porque anuncia-se que tudo aquilo que o tempo destrói, paradoxalmente, não tem fim, repetindo-se em outro exemplar: “O cupim,/ em sua fome,/ destrói/ a celulose e o homem,/ a cola, o corante,/ o amante,/ e não tem fim”. A enumeração realizada ali induz a englobar todos esses elementos — tão diversos entre si —, juntamente com o tempo, como sujeitos da negação final. Apenas ele — o sujeito do poema — e Pessoa, têm fim, porque só a persona é irrepetível, una — o nome do poeta português reforçando essa relação. Através da imagem do cupim, “que não decifra, mas devora”, perverte-se o senso comum e o tempo agora doa imortalidade ao vulgar, ao serial, destruindo, redundantemente, a única coisa que por si mesma não se poderá reproduzir, a que jamais terá réplica.

O sujeito segue seu caminho por entre consciência e inconsciência, passado e presente, vida e morte, sem a intenção de solucionar qualquer dos pares de oposição, trazendo-os, ao contrário, conjuntamente para a formação de uma persona complexa. Como um Dédalo que, envolto num labiríntico cotidiano massacrante, busca “um adorno que seja para os (seus) dias” através do voo poético — “o mais leve movimento” —, ameaçado, embora, com o único futuro certo — a morte —, e por esse mesmo destino sendo tentado ao investimento na construção de si: “quando os silêncios de onde nunca estive/… / me dizem o verbo morrer/ … / arranca lascas/ da estrutura que me protege e embala”. A certeza do fim impõe uma realização qualquer, a necessidade de salvar aquele momento dando-lhe uma significação: “Abro claros no turvo e caudaloso esquecimento (…). Este instante é aqui”. É na observação do detalhe e no contraste entre opostos que inicia sua busca: “desvendo em meio à neblina um pormenor/ Cristal e ônix…”. A partir de então, esse Dédalo meio Ícaro ascende “olhando (seus) sapatos pendura
dos”.

O voo alçado deve mantê-lo suspenso, no exato meio-termo da significação, sem aproximá-lo demasiado do sol, o que seria, ao mesmo tempo, culminância e destruição — o cumprimento de uma etapa é sempre o seu aniquilamento — e sem arriscar a queda, que se daria “sobre o canyon”. Estão representados ali o trabalho cuidadoso com a palavra e a suspensão em que ela se mantém. “Mas, no enfim, tudo me leva ao precipício“. O verso final condensa, nos vocábulos destacados, pela aproximação sonora, o fim e o princípio, na mostra sutil de que o término surge sempre como anúncio do novo, no movimento infinito da busca.


[Reprodução autorizada pelo autor.]


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Andréia Delmaschio nasceu em Vitória, Espírito Santo, em 20 de abril de 1969. É escritora, professora e pesquisadora. Graduou-se em Letras na Universidade Federal do Espírito Santo (1991), onde realizou também o Mestrado em Estudos Literários (2000), cujas pesquisas resultaram no livro Do palco ao porão: uma leitura de Um copo de cólera, de Raduan Nassar, publicado em 2004 pela editora Annabume (São Paulo). A máquina de escrever (de) Chico Buarque foi sua tese de doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora do livro de contos Mortos vivos (2008), em que apresenta seus primeiros escritos (ficcionais) sobre Chico Buarque. Publicou ensaios sobre as obras de Hoffmann, Rosa, Nasar, Noll e Manuel de Barros, entre outros.

Espectros de mulheres escapam-me da mente — estranhos seres de signos imaginários. Eu as recebo na minha torre sem janela, da qual sou...


Espectros de mulheres escapam-me da mente — estranhos seres de signos imaginários. Eu as recebo na minha torre sem janela, da qual sou prisioneiro e onde cabem minha loucura e minha solidão.

Com essas palavras inicia-se o livro de contos eróticos e fantásticos de Luiz Guilherme Santos Neves: A torre do delírio. E nesse pequeno excerto podem ser percebidos alguns tópicos que conduzem a um percurso cujo sentido está imerso na estética pós-moderna.

O signo torre remete à história de Rapunzel, a donzela que, aprisionada na torre, é resgatada por um príncipe, quando se concretiza o amor de ambos. Em A torre do delírio há uma torre, mas não é mais a donzela fragilizada; é o homem fragilizado que não concretiza o encontro com o outro, nem mesmo na imaginação, que é o que ele tem em mãos, e estando com todos os desejos aprisionados, surge o erotismo, tão marcante nas imagens. Afinal, nem mesmo janelas tem a torre, restando ao voyeur apenas os olhos da mente.

A torre é a própria situação do homem atual, assim como loucura e solidão são estados de um homem fadado ao isolamento. "É uma torre ensimesmada, recolhida na própria sombra", continua na mesma página o narrador.

Ora, no homem pós-moderno há a tentativa de afirmação da identidade, só que é uma tentativa frustrada, e o homem sabe disso, ou mesmo já espera tal desfecho. Essa "torre ensimesmada" é o homem ensimesmado que perde na pós-modernidade até mesmo a noção de sujeito. É aí que entra o delírio, que acaba sendo o que resta.

O narrador recebe em sua torre mulheres, estranhos seres de signos imaginários que escapam de sua mente. São apenas fantasmas, seres oníricos que entram e saem, deixando marcas ou não, mas sempre efêmeras. Vale também ressaltar que, apesar de todas essas personagens que entram na torre serem personagens eróticas, praticamente não há a concretização do ato, restando apenas a frustração e, ainda, o delírio.

Não há no homem pós-moderno a identificação com o outro; não é à toa que a questão da alteridade tem sido amplamente debatida. Repensá-la acaba por conduzir ao problema da própria identidade. E o interessante nesse processo é que o outro, que no livro são pessoas imaginárias, traz o erotismo impregnado. Ora, é o próprio narrador então que o tem inundando a sua mente.

Tal percepção acaba por recair na ausência do outro no que diz respeito à questão do amor a dois. Não há o par. Isso é comprovado no decorrer de cada conto que se refere a cada uma das visitantes. Diria Jean Baudrillard que "o outro é o hóspede". Ora, no livro em questão não há hóspedes, não há quem permaneça. Há, então, relações incompletas e não concretizadas. Tal é o erotismo presente no livro, aquele que se dá de forma imagética simplesmente, da mesma forma que quase não há na atual sociedade o amor; fala-se muito em paixão. Não é à toa que os jovens atuais só falam em ficar com alguém, isto é, momentos fugazes de relação a dois: a própria efemeridade.

Só que, como é a efemeridade que dita as normas, não basta Ter percorrido o ciclo — o zodíaco é o próprio ciclo — e além disso outros mitos, ou intersignos, ou simplesmente outros nomes. O "eterno retorno" não se dá nessa vertigem que em determinado momento acaba, juntamente com a narrativa, quando o autor admite: "hora de tocar um réquiem para um sonhador".

É nesse ponto que deverá então o narrador chegar ao cimo da escada em caracol, e atingir, quem sabe, o infinito? O que equivale a concluir também, a partir da afirmativa de Baudrillard, que a repetição ao infinito é a ausência do outro, que seria então a ausência da própria identidade.

Cabe então questionar: seria isso a morte do homem atual?

[In Revista Você n. 12, de junho de 1993. Reprodução autorizada pelo autor.]


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Adrianna M. Meneguelli possui graduação em Letras-Português pela Universidade Federal do Espírito Santo (1989), graduação em Gastronomia pela Universidade Vila Velha (2013), mestrado em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (2003) e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008). Atualmente é professora do Instituto Federal do Espírito Santo. Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literaturas Brasileira e Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas: tradução, literatura contemporânea, literaturas de língua portuguesa, produção textual e ensino, estudos culturais, antropologia e gastronomia (informações coletadas do Lattes em 28/11/2015).

A teoria da literatura costuma criar gavetas onde, dividindo o tempo, coloca as produções literárias e seus respectivos autores. O saber uni...

A teoria da literatura costuma criar gavetas onde, dividindo o tempo, coloca as produções literárias e seus respectivos autores. O saber universitário segue este critério, justificando este procedimento como finalidade própria; afinal, o ensino superior deve organizar o saber desorganizado.

Se há uma coisa desorganizada em arte literária é a obra de Narciso Araújo. Em primeiro lugar porque a publicou esparsa e, em segundo lugar, seu único livro, compendiado por João Calazans e Eugênio Sette com o título Poesias (1ª. série), foi uma coletânea feita à revelia, por ocasião do concurso “Príncipe dos Poetas Capixabas”, promovido pelo jornal A Tribuna em 1941. Conforme atesta a professora Maria Madalena Pisa, procurado para as entregar, Narciso negou que as tivesse. Supõe-se que não as tivesse organizadas.

Todos atestam a sua natural modéstia e, embora o chamem de “solitário de Itapemirim”, ele nega. Sua vida é bem conhecida e também a sua carreira cultural desce criança até a formatura em Direito no Rio de Janeiro. O que aconteceu é que ele fez uma escolha pelo torrão natal e não pela buliçosa Capital Federal da Belle Époque. Seu círculo de amizades contava com todos os nomes brilhantes da época, a começar por Cruz e Sousa. Vamos encontra-lo no Panorama da poesia brasileira, de Fernando Góes, volume IV, O Simbolismo, 1959. Tanta vida e obra para duas páginas e dois sonetos! Os dois sonetos da antologia são “Saudade estéril” e “Sabor azul”. Realmente é engavetar o poeta nos dois ou mais sentidos. Nesta antologia Fernando Góes faz um apanhado do simbolismo em dezenove pequenos capítulos. Afirma que os simbolistas fizeram uma verdadeira revolução nos temas e na técnica, isto é, também na forma. Fizeram verso de dezessete e até de dezenove sílabas que prenunciam a liberdade métrica do modernismo. Mexeram na ortografia e na impressão tipográfica com largo abuso das letras maiúsculas.

Outra antologia dedica a Narciso Araújo seis páginas. Trata-se de Panorama do movimento simbolista brasileiro, de Andrade Muricy, volume 2, editado pelo Instituto Nacional do Livro, segunda edição, 1973. Entre os 131 autores contemplados, Narciso Araújo é o 61. A antologia traz oito sonetos dele. Além disto, não existe fortuna crítica sobre o príncipe dos poetas capixabas. Entenda-se, pois, que a consagração de um escritor reside na publicação de livros. Andrade Muricy em sua antologia resume a obra de Narciso a Poesias e acrescenta numa única linha: “Numerosa produção esparsa.”

O acervo da criação poética de Narciso vai muito, muito além dos 71 poemas de seu único livro. É um material precioso para uma tese de crítica genética e ecdótica.

1. Ele deixou um caderno de capa dura com apontamentos de Direito onde mistura sua incipiente produção literária com a lista de livros a serem encadernados e... rol de roupa para lavar.

2. É deste caderno todo manuscrito e a partir dele que Narciso organizou o 1º. Caderno de Poesias de Narciso da Costa Araújo (35 poemas) e o 2º. Caderno das Poesias de Narciso da Costa Araújo (com mais 42 poemas). Os cadernos estão bem danificados pelas traças e roídos de barata. Cada poema traz subscrito o local, a data em que foi escrito, a idade do autor – ele cometia sonetos já aos 17 anos –, o nome do jornal em que foi publicado e data. Com tais indicações é possível localizá-lo no tempo e no espaço e saber quando estava residindo nesta ou naquela rua do Rio de Janeiro, ou no seu querido Brejo dos Patos, em Itapemirim.

3. Ainda fazem parte do acervo manuscritos em folhas avulsas, originais de oitenta poemas dos quais apenas sete não são sonetos. Nestes manuscritos se delineiam as características próprias do poeta parnasiano-simbolista, a que os apressados organizadores do volume Poesias não foram inteiramente fiéis. A revisão ortográfica fez modificações indevidas, por exemplo, nas palavras com iniciais maiúsculas que, no simbolismo, tinham um sentido de absolutização do termo.

4. Sabe-se, outrossim, que Narciso elaborou umas páginas de correção à sua obra e que houve algum desrespeito aos originais.

5. Existe uma pasta só com recortes das suas publicações em jornais e revistas.

6. Também em dois jornais capixabas, O Eco e O Cachoeirano, foram publicados 29 e 35 poemas, respectivamente.

7. Finalmente há uma coletânea de 29 poemas manuscritos intitulada Maria. Nenhum tem título, mas foi possível identificar títulos em pelo menos metade deles, em publicações de jornal. Esta coletânea também manuscrita é toda composta de poemas de amor dedicados a uma mulher. Sabe-se, discretamente, que a grande paixão de sua vida foi a professora Maria Madalena Pisa. Pode-se inferir deste fato que Narciso leu Petrarca, cuja musa foi Laura. A obra Petrarca – Poesia aparece numa relação colada no verso da primeira capa do 2º. Caderno de Poesias, onde Narciso enumera mais de setenta livros.

Narciso Araújo privilegiava o soneto na sua criação poética. Esta forma da lírica é apenas uma das três dezenas e mais de formas existentes classificadas em formas fixas e formas livres. O modernismo o detestou, numa época de revolução literária, aquela da antropofagia. O Espírito Santo regurgitava de sonetistas, dos bons e dos maus. Narciso Araújo se manteve distante da polêmica que se travou em Vitória, em 1928. Quem vai proporcionar a Narciso a amostragem do seu talento literário é exatamente um iconoclasta antropofágico, o jornalista João Calazans, que, juntamente com Eugênio Sette, vai criar o concurso “Príncipe dos Poetas Capixabas”.

Sabe-se que um bom soneto pode imortalizar e projetar um autor no cenário das letras. Assim aconteceu com Jorge de Lima e o seu “O acendedor de lampiões”. Quem não conhece “As pombas”, de Raimundo Correia? Quem não se lembra de Olavo Bilac e do soneto “A língua portuguesa”?

Entre os inumeráveis sonetos de Narciso deve-se destacar um sobre o qual ele próprio chamou a atenção. É “Saudade estéril”:


A saudade comum essa consiste
Em nos rememorar cada momento
Um quer que seja, cujo afastamento,
Pungindo-nos o peito, o torna triste.

Outra saudade todavia existe
Que nos agita. Vem do firmamento
Nos clarões do luar. E o pensamento,
Por mais firme e tenaz, lhe não resiste.

É a saudade de ignotas primaveras;
É a saudade de quadros incriados;
É a saudade de coisas nunca tidas;

É a saudade infecunda das esferas,
Onde os astros rolaram, conglobados,
Desde as fundas idades escondidas.


Recomenda-se, a título de curiosidade, a leitura do “Soneto do maior amor”, de Vinícius de Moraes, e lá aparecerão as semelhanças.

Em toda transcrição cometem-se transgressões, algumas relevantes, outras irrelevantes. Neste soneto as diferenças são pequenas. Os editores imprimiram os sonetos já com o espírito modernista, com minúsculas onde deveriam aparecer maiúsculas.

Narciso metrificava desde cedo. Dominava o decassílabo heroico e também o sáfico. No verso alexandrino respeitava a cesura obrigatória nos poucos sonetos com esta métrica. As coisas, hoje, foram profundamente alteradas. Basta o signo, a palavra em liberdade. Nada de métrica, ritmo, rima no poema. Há tanta liberdade que a acredito igual à falta de talento para a poesia. Este soneto, dedicado a João Ribeiro, foi assim historiado pelo próprio Narciso:

Nota – Tinha eu de 21 para 22 anos, quando escrevi este soneto. Foi publicado na “Rua do Ouvidor”, semanário das elegâncias, no Rio, com dedicatória a João Ribeiro. Meu colega e amigo Dr. Figueiredo Lima entusiasmou-se (fácil entusiasmo) pelo soneto, e dizia-me: “nunca farás outro soneto igual a este.” Raul [Pederneiras] ilustrou o soneto, republicando-o numa revista de arte, no Rio. O trabalho de Raul era bonito, e dava valor ao soneto feio. Anos mais tarde, em Teresópolis, durante o verão, Figueiredo Lima encontrou-se com o Dr. Lúcio de Mendonça, Ministro do Supremo Tribunal. [Ilegível], poeta, figura literária valiosa, membro da Academia Brasileira de Letras. No salão do hotel, uma noite, em reunião de hóspedes, surgiu a ideia de recitação de poesias. Figueiredo só tinha de cor o soneto Saudade Estéril – e impingiu-o ao auditório. Lúcio de Mendonça pediu-lhe que repetisse a recitação, e Figueiredo reimpingiu o soneto. “De quem é isso?”, perguntou-lhe Lúcio, e Figueiredo impingiu o nome do autor dos versos. Lúcio louvou-os francamente. Contando-me isso, disse-me, em carta, o impingidor, mais ou menos isto: Você não dá valor aos seus versos, nem mesmo ao Saudade Estéril, que me entusiasma. Lúcio de Mendonça, entretanto, figura superior nas letras brasileiras, admirou o soneto. Jarbas Loreti levou o soneto a Martins Júnior, notável homem de letras e jurista, que, então, auxiliava Quintino Bocaiúva, presidente do E[stado] do Rio, numa das secretarias. Martins Júnior louvou os versos e concluiu: Mas Narciso é um torturado. Esse soneto é o que figura no livro de Laudelino Freire. Quando disse que conhecias o soneto, lembrava-me de ter sido ele publicado em O Cachoeirano, e de teres os números [do jornal em] que apareciam versos meus. Em tempos passados, eu não dava ao soneto o valor que outros davam. Mas, de alguns anos para cá, reputo esse soneto uma das raras produções poéticas, de que se orgulha a literatura deste mundo (e a do outro também). Ia-me esquecendo de uma coisa importante: Sei que Figueiredo e Lúcio e Martins Júnior recitam, no Além, o soneto, que é sempre saudado com fragorosas palmas.

A consagração poética pelo soneto foi um fenômeno interessante na literatura brasileira. Quando se diz: “Ora, direis, ouvir estrelas!”, todos, unânimes, correm para Olavo Bilac. Por um verso se identifica um poeta, de Camões a Vinícius de Moraes. Entre os poetas capixabas, Narciso, se fosse divulgado, seria conhecido pelos seus sonetos. Esta forma fixa perdeu prestígio com o advento do modernismo, mas ainda serve de teste para o ofício de escritor. O soneto tem segredos que o leitor vulgar, o leitor comum desconhece. A chave de ouro, por exemplo. O enjambement. A posição das rimas. As modalidades da acentuação. Tudo isto pode ser observado no primeiro e no segundo Cadernos de Poesias de Narciso e que constituem uma espécie de obra imatura. Ainda não se fez um estudo desta trajetória de sua aprendizagem, de sua aplicação, do progressivo burilar do gosto. Em Narciso, a qualidade poética decorreu também da convivência com outros poetas, declaradamente Cruz e Sousa, Nestor Vítor e Olavo Bilac. Andrade Muricy identificou dezesseis grupos dentro do simbolismo. Narciso Araújo aparece atuando no grupo Rosa-Cruz, onde pontificava um amigo seu, Félix Pacheco, que, de muitas formas, tentava promovê-lo. Inutilmente.

A título de exemplo de qualidade poética, vejam-se alguns primeiros versos dos 77 poemas que compõem o primeiro e o segundo Cadernos. Todos os poemas têm título:


Ingratidão: Foste tu, mulher má, que despertaste
Idílio: Canta o mar gemedora cavatina
Um soneto: Vou ver, amigos, se um soneto faço.


Citar o primeiro verso dos poemas seria uma forma de organizar a obra de Narciso. Fazendo isto em Maria resultou um fenômeno interessante. Alinhavando os 29 primeiros versos, ter-se-ia como resultado um novo poema.

Andrade Muricy organizou um glossário dos vocábulos constantes nos poetas simbolistas que caracterizam o simbolismo brasileiro. Narciso Araújo não fugiu à regra. Palavras raras, então chamadas “peregrinas”, entram em circulação como se fossem moedas de valor e também salvação para o caso de se necessitar de uma rima. Há um papel em que Narciso enumera uma série de palavras contendo as mesmas rimas para uso na composição do soneto.

De tudo o que se pode aprender e apreciar neste poeta, cuja virtude essencial foi a modéstia e o fato de ter preferido a sua terra natal à agitação cultural de um centro urbano, fica o soneto (sem nome em Maria) que tem o título de “Condor” em O Cachoeirano e o de “Transfiguração” no livro Poesias:


Venho de tua casa e de ti trago
Toda a fragrância. Calmo céu se anila
Dentro de mim e lindo sonho mago
Enche minh’alma e, todo azul, cintila.

Vou perturbado e volto como um lago,
Depois de estar contigo. Uma tranquila
Esperança me vem do teu afago
E muda em bronze minha fraca argila.

Tu transformas em trigo o inútil joio,
O paul morto em cristalino arroio
E num gigante intrépido um pigmeu.

Vou ver-te em tua casa, mas, voltando,
Em remígios possantes o ar cruzando,
É um condor que volta, não sou eu.


[In Bravos companheiros e fantasmas: Estudos críticos sobre o autor capixaba. Vitória: Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Espírito Santo, 2006.]

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Luiz Busatto nasceu em Ibiraçu-ES, em 1937. Graduado em Letras, com cursos de especialização em Portugal (Teoria da Literatura e História da Literatura Portuguesa), na Itália (Filosofia), mestrado em Letras pela PUC/RJ e doutorado na mesma área pela UFRJ. Professor da Ufes e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Colatina (1969-1983). É membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e da Academia Espírito-santense de Letras. Foi presidente do Conselho Estadual de Cultura (1993/4) e vice-presidente (1986/7). Tem várias obras publicadas, sendo um estudioso da imigração italiana. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)